quinta-feira, 20 de novembro de 2008

A RAIZ AUTORITÁRIA DO JUIZ

A raiz autoritária do juiz

“A Constituição não é mais importante que o povo, os sentimentos e as aspirações do Brasil. É um modelo, nada mais que isso, contém um resumo das nossas idéias. Não é possível inverter e transformar o povo em modelo e a Constituição em representado. (...) A Constituição tem o seu valor naquele documento, que não passa de um documento; nós somos os valores, e não pode ser interpretado de outra forma: nós somos a Constituição, como dizia Carl Schmitt.”Estas afirmações do juiz da 6ª Vara Criminal Federal Fausto De Sanctis - o polêmico responsável pelo processo em que o banqueiro Daniel Dantas é acusado de crimes financeiros e corrupção -, pronunciadas em badalada palestra no Rio, perante verdadeiro fã clube, dizem muito da origem do pensamento de um magistrado que tentou pôr em xeque - para não dizer desmoralizar - decisão da mais alta Corte de Justiça do País, quando mandou prender quem havia sido solto por liminar, 48 horas antes, proferida pelo presidente do STF. A inspiração de De Sanctis, como se deduz de sua palestra, provém do jus-filósofo alemão que, crítico acerbo da República de Weimar, se tornou em certo momento o quase oficial “jurista do nazismo” - embora, a seu favor, conste a acusação que a SS lhe fazia de ser um anti-semita apenas oportunista, sem “autênticas” convicções sobre a superioridade racial ariana. De qualquer forma, vê-se a raiz autoritária na idéia que substitui a força intrínseca de uma Carta Magna - expressão maior da vontade político-jurídica de uma sociedade, na visão dos adeptos do regime democrático - pela imposição do que se pretende sejam “os sentimentos e aspirações de um povo”, do que os líderes autoritários (e especialmente totalitários) sempre se julgaram os únicos intérpretes.O que significa dizer que a Constituição “não passa de um documento”? Se é assim tão relativo o valor do conjunto de regras - fixadas pela sociedade, sempre é bom lembrar - que está no topo da hierarquia do ordenamento jurídico de um Estado soberano, o que valerão as outras normas legais que lhe estão subordinadas? Assim, não há como deixar de ver em um magistrado que atribui apenas valor “documental” a uma Constituição a incapacidade de exercer, com a devida isenção, a tutela jurisdicional do Estado. Porque esse magistrado, na formação de seus elementos de convicção, para julgamento, sempre será conduzido pelos impulsos de sua própria subjetividade. Além de simples “documento”, na visão do juiz De Sanctis a Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988 - depois de memorável Assembléia Nacional Constituinte - é um simples “modelo”. Ora, modelo é o que pode ser seguido ou não, conforme a disposição de agir ou não em consonância com a, digamos, “maioria”. Para esse magistrado não cabe vestir uma toga prêt-à-porter de modelo constitucional, mas sim confeccionar sua própria indumentária judicante, com estilo jorrado do que lhe ditam os próprios sentimentos.“Não pertenço ao faz-de-conta” e “me recuso a me constituir à humilde condição de esponja”, disse o magistrado, com isso dando a entender que considera o Judiciário (menos a parte que lhe toca, é claro) um espaço ficcional, onde as coisas apenas são “como se fossem”, sem serem, efetivamente. Daí, talvez, a missão messiânica de alguém ungido para fazer “milagres” até pela coincidência do celeste sobrenome. E nessa especialíssima missão o que menos importa é absorver o que dizem a Constituição e a lei, por exemplo, sobre os limites (jurídicos, éticos ou de outra natureza) a serem observados na investigação criminal de suspeitos. Pois, afinal de contas, “juiz não é esponja, que absorve a jurisprudência e deixa fluir” - como assevera o destemido magistrado, para quem “o crime organizado só é investigado eficazmente quando o Estado tem de usar uma medida um pouco mais invasiva”. Não resta dúvida de que o “julgamento do julgador”, como tem sido considerado o rumoroso caso do juiz De Sanctis, será ponto de reflexão e estudos nas escolas de Direito, especialmente quanto ao preparo que devem ter os operadores da tutela jurisdicional do Estado no trato dos valores jurídicos e éticos de uma sociedade, devidamente consignados, em algum momento, em um texto constitucional.
FONTE: EDITORIAL JORNAL ESTADO DE SÃO PAULO do dia 12.01.2008

Nenhum comentário: