segunda-feira, 17 de abril de 2017

Por uma visão humanista na execução penal

Por uma viso humanista na execuo penal
Por Fabio Silva de Oliveira
No julgamento da medida cautelar requerida na ADPF 347 o Supremo Tribunal Federal reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional do Sistema Carcerário Brasileiro em face da violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica.
Os cárceres brasileiros, além de não servirem à ressocialização dos presos, fomentariam o aumento da criminalidade, pois transformariam pequenos delinquentes em “monstros do crime”.
A política de encarceramento adotada pelo estado brasileiro sofreu forte influência, direta e indireta, de movimentos repressivistas como o Law & OrderBroken Windows Theory ou Zero Tolerance.
Todos esses movimentos possuem como característica principal o foco na repressão e estigmatização do indivíduo transgressor da lei como grave risco à ordem pública e a famigerada paz social. Assim, é mais fácil excluir do que restabelecê-lo à vida em sociedade.
A execução penal, tal como é, serve de um verdadeiro processo de exclusão humana, negação da pessoa, daquilo que não está de acordo com os “bons costumes”. São pessoas que “perdem” sua característica humana, deixam de ser pessoa, são tratados como lixo social, pois, como tal, devem ser excluídos.
Evidente que nesse modelo, apontado por Zaffaroni, e pontuado por Aury Lopes Jr. Em sua obra “Fundamentos do Processo Penal”, a pena de prisão não ressocializa, não reeduca, não reinsere socialmente. Do discurso “re” somente se efetivam a reincidência e a rejeição social.
É o retrato de um modelo falido, de uma política de segurança pública que gira em torno da obtenção de votos e manutenção da hegemonia de grupos políticos e econômicos no Estado Emergencial.
O sistema carcerário, tal como é, provoca um verdadeiro estado de coisificação do homem, em que se perde toda a sua identidade, passando a ser tratado por um número, e taxado como lixo social.
Esse pensamento encontra-se tão arraigado no sistema prisional [e fora dele] que, com o passar do tempo, o próprio sujeito preso acaba por acreditar que sua vida não mais lhe pertencente, que não é mais um ser humano, sujeito de direitos e garantias fundamentais presentes em nossa Carta Política de 1988 e nos mais diversos tratados e convenções internacionais que nosso país é signatário.
Apesar dos inúmeros avanços no tange à busca pela ressocialização do indivíduo encarcerado, é preciso que deixemos de lado o olhar sobre o fato e passemos a enxergar de modo primeiro o sujeito.
É sabido que o ordenamento jurídico adota o chamado Direito Penal do Fato, em que se analisa a conduta praticada, os fatos e não o sujeito em si.
Ocorre que, tal sistemática é cabível no âmbito do Direito Penal, de atividade restritiva e coercitiva, ao passo que na Execução Penal o foco é o Reeducando, autor do fato gerador da condenação, e sua recuperação para a reinserção social.
Por sua vez, o direito não é capaz de sanar todos os problemas que permeiam a criminalidade e a sua reinserção em sociedade. Em especial, como destacado no início deste breve ensaio de abertura, os estabelecimentos prisionais brasileiros servem como verdadeiras faculdades do crime, uma fábrica de monstros.
Aury Lopes Jr. Ao tratar dos fundamentos do processo penal, em uma abordagem crítica, já nos alerta que o sistema penal, material e processual, não pode ser objeto de uma análise estritamente jurídica, sob pena de ser minimalista, ingênua, porquanto a violência seja fato complexo, decorrente de fatores biopsicossociais.
De efeito, torna-se necessária uma abordagem multidisciplinar com o objetivo de promover uma compreensão maior e mais precisa do sistema prisional de modo à reestabelecer a condição humana do sujeito preso.
Nessa linha, e dada a necessidade de um olhar humano em relação ao Reeducando que, por não raras vezes é tratado como coisa, uma abordagem humanista mostra-se primordial no tocante à busca pela ressocialização do preso.
A Psicologia e a Psiquiatria ganham espaço de significativa importância no processo de reinserção social do preso, desde que, como já aludido mais acima, a abordagem seja humanista, centrada no Reeducando, num processo de reconhecimento dele mesmo e tudo o que permeia sua vida enquanto sujeito preso, além de uma reflexão acerca do modo como agir com a sociedade ao ser reinserido, considerando que carregará o estigma de sujeito preso, criminoso.
Repita-se, a intervenção na Execução Penal deve ser centrada no sujeito preso, na pessoa do condenado, na busca pelo seu autoconhecimento, com empatia, com aceitação, para que seja possível relembrar suas características próprias de ser humano e, de acordo com cada caso concreto, prover o cumprimento de pena nos moldes que mais lhe seja aplicável, inclusive por observância ao princípio da individualização da pena como consagrado na Lei 7.210 de 1984, a Lei de Execucoes Penais.
Concomitantemente, imperioso o trabalho de educação carcerária à população, a sociedade precisa compreender de forma mais humana o que é a cadeia, quem são as pessoas que ali estão e como devem ser vistas.
Um olhar humanista e com respeito auxilia o próprio sujeito preso em sua recuperação, pois quanto menos estigmatizado estiver, quanto menos o olharem com preconceito, mais fácil será sua reinserção.
Também é preciso que o próprio Poder Judiciário compreenda a importância de uma abordagem humanista. Laudos são peças informativas de fundamental relevância e devem ser lidos com zelo, estudos psicossociais e relatórios devem ser analisados com cautela.
Enfim, é preciso valorizar o trabalho desenvolvido pelas equipes multidisciplinares nos estabelecimentos prisionais; ideal que milita em consonância às normas de Direitos Humanos que protegem o sujeito preso, tal como o Pacto de San José da Costa Rica, as Regras de Mandela, que são as regras mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos, e as Regras de Bangkok, que são as regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras.
Enfim, os diversos atores que compõem o complexo processo de recuperação do Reeducando durante a execução de sua pena e, posteriormente, inclusive, devem estar comprometidos com uma visão mais humana, menos estigmatizada, livre de pré-conceitos e julgamentos [até porque o Recuperando já foi julgado em uma ação penal, a priori, sob o manto do devido processo legal e garantido o contraditório e ampla defesa] mesmo que muitas vezes seja difícil aceitar a condição humana do sujeito preso.
Esse é o caminho das pedras a ser trilhado em busca de um processo de reconstrução da Execução Penal para que se possa garantir de forma eficaz a ressocialização dos homens e mulheres encarceradas e que será o tema central de nossas futuras discussões neste espaço de diálogo.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

Ordem pública e prisão preventiva

Há tempos o tal requisito garantia da ordem pública, para decreto de prisão preventiva, vem merecendo maior atenção, que tanto doutrina quanto jurisprudência não são suficientes para aclarar a subjetividade (e ambiguidade e inconsistência) da norma penal – art. 312 do CPP – a despeito desse critério cada vez mais utilizado em qualquer pretensa fundamentação para decreto segregacional, medida extrema no famigerado Estado Democrático.
Tribunais de todo o Brasil (e até os Superiores) insistem em confundir “ordem pública” com comoção social. E, sendo assim, o crime “chocante” ou “midiático” ganha a pecha de haver abalado a sociedade, num íntimo arquetípico moldado pelo inconsciente coletivo que clama por JUSTIÇA.
Em parte, a culpada é a lei. Declinando “ordem pública” como sustentáculo primário da prisão cautelar, deixa a lei a desejar quanto a uma singela explicação sobre definições e limites da tal “ordem pública”.
Diz no seco: “garantia da ordem pública”... E nada mais. E, com isso, prende-se o/a acusado/a. Nem é necessário outro requisito (o CPP aduz a alternativa: “ou”).
Mas é igualmente tão simples, no decreto prisional, conjugar uma “aplicação da lei penal” ou uma “conveniência da instrução criminal”, que as decisões se tornaram um padrão colado e copiado e se multiplicam pelos gabinetes sem que, muitas vezes, o signatário tenha sequer uma vez na vida cheirado os ferros do cárcere.
O grau de subjetividade desses requisitos (especialmente o da “garantia da ordem pública”) leva, ou deveria levar, seriamente, a uma reflexão sobre democracia, sobre garantias, sobre Estado Democrático de Direito, sobre constitucionalismo ou constitucionalização de um País.
Por aqui, Jacinto Coutinho, Juarez Cirino, Fábio Bozza, Jacson Zillio, Aury Lopes Jr, Bruno Milanez e agora Lucas Cavini, dentre outros/as, vêm batendo nessa tecla. E é absolutamente necessário e urgente fazer coro a esses (des) pensadores [críticos] do direito e do processo penal.
É que a pretensa “garantia da ordem pública” não se sustenta sequer diante do positivismo jurídico! Qualquer formalismo que pretenda impor regras sociais necessita, ao menos, explicar (ou fazer compreender) tais regras!
Ora: ordem pública está diretamente atrelada à ideia de segurança [pública]. Mas essa segurança, que também é jurídica, se converte, além de fato, também em garantia (direito fundamental).
O choque semântico que suscita confusão judiciária (decretos prisionais em nome da segurança/ordem pública) adentra a uma espécie de senso comum jurídico e se repete vertiginosamente enquanto verdade indefensável e imutável, transmutando-se, por fim, na gloriosa metafísica do processo penal, sobre a qual reside a imperiosa crença judiciária, ministerial, policialesca, midiática e popular, nessa ordem.
Ordem pública não merece ser requisito para decreto de prisão. Não obstante a presunção de inocência, existem requisitos mais plausíveis. Conveniência da instrução criminal – apenas enquanto perdurar (e necessitar) a instrução! – parece, às vezes, ser um bom critério.
Mas não a comoção pública. Não a “garantia da ordem pública”. Esta não se sustenta enquanto critério material para decreto de medida extrema, cerceadora da liberdade – direito fundamental.
Aguardemos, nesse ponto, o trabalho de Lucas Cavini, orientado por Jacinto Coutinho.