quarta-feira, 18 de junho de 2014

Criminalistas reclamam de decisão do STJ sobre grampo telefônico

Após a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça considerar válida a gravação de conversa telefônica entre advogado e cliente, criminalistas criticaram a decisão. Para os profissionais, a decisão foi equivocada e deve ser rediscutida, uma vez que o sigilo das conversas são garantidos pela Constituição.
No caso, o escritório de advocacia Teixeira e Camilo pedia a destruição dos grampos, alegando violação à liberdade de defesa e ao sigilo profissional da comunicação entre advogado e cliente, assegurados pelo artigo 133 da Constituição (inciso II e pelo parágrafo 6°).
"Não é porque o advogado defendia o investigado que sua comunicação com ele foi interceptada, mas tão somente porque era um dos interlocutores", citou a ministra Laurita Vaz, relatora de recurso apresentado pelo escritório. Seguiram o voto os ministros Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro e Regina Helena Costa, que negaram provimento ao recurso interposto pelo escritório — a ausência do ministro Jorge Mussi foi justificada.
O advogado Celso Vilardi, do escritório Vilardi & Advogados Associados, explica que o sigilo só não se aplica ao advogado se as conversas tratarem sobre tema estranho à advocacia. "É claro que não há sigilo se o advogado, por exemplo, integra uma determinada organização criminosa, mas se a conversa tratar sobre tema jurídico o sigilo deve prevalecer”, afirma.
O advogado Alberto Zacharias Toron, do escritório Toron, Torihara e Szafir Advogados, acrescenta que o sigilo da conversa entre o advogado e seu cliente deve ser absoluto. “Trata-se de um limite imposto à atividade persecutória estatal, como é a vedação da tortura e das provas ilícitas em geral”, afirma.
Especializado em direito penal econômico, o advogado Fábio Tofic, do escritório Tofic Simantob, também discorda da decisão do STJ. Ele afirma que a lei protege o sigilo da conversa, independentemente se é o advogado ou o cliente que esteja sendo investigado. “Essa decisão é um grande e rematado absurdo. A conversa entre cliente e advogado não interessa a mais ninguém a não ser aos dois."
O advogado Rodrigo Dall’Acqua, do escritório Oliveira Lima, Hungria, Dall’Acqua e Furrier Advogados, reconhece que durante uma interceptação telefônica podem acontecer casos em que o investigado converse com seu representante. “Essa conversa somente poderá ser usada como prova se restar evidente que o advogado age como autor de um crime e não como defensor”, ponderou Dall’Acqua.
O advogado diz ainda que, caso haja dúvida, a conversa deve ser inutilizada. Por isso discorda da decisão do STJ. Segundo ele, se o relatório elaborado pela Polícia Federal não indica que o advogado conversava sobre a prática de crimes com seu cliente, a conversa deve ser descartada.
O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, disse que essa decisão está equivocada e que a Ordem vai adotar as medidas necessárias para que prevaleça, no âmbito do STJ, a posição de outras turmas do tribunal e do Supremo Tribunal Federal no sentido oposto.
Para ele, essa decisão afronta o direito de defesa e a necessária relação de confidencialidade do advogado com o seu cliente. “A conversa telefônica do advogado com o seu cliente é inviolável, por força de norma constitucional e da lei federal estatutária da advocacia. Respeitamos a decisão judicial, mas vamos recorrer porque a consideramos inconstitucional e ilegal”, disse o presidente.  
Ponderações
O advogado André Mellodo escritório André Mello Filho Advogados Associados, considera a questão mais complexa e diz ser importante diferenciar quando o profissional atua apenas como defensor e quando passa a ser "sócio" do cliente criminoso.
“Parece que era uma organização criminosa e é importante saber qual o grau de ligação do advogado com a mesma”, diz. Ele também ressalta que não se grampeou o telefone do advogado, mas do cliente. Sobre esse tipo de situação, Mello cita o exemplo da Alemanha, onde adota-se o princípio da proporcionalidade, no qual são mensurados os valores da segurança e do sigilo.
Professora de Direito Penal Econômico da Universidade de São Paulo, a criminalista Heloisa Estellita diz não haver ilegalidade na interceptação de telefone que não era do advogado, mas de uma pessoa não protegida pelo sigilo profissional.
“A interceptarão pode vir a captar conversas protegidas por sigilo profissional: neste caso, a interceptarão em si não é ilegal, mas é ilegal a manutenção nos autos de diálogos protegidos por sigilo”, diz Heloisa. Portanto, caso não seja comprovada a prática de crime entre o advogado e seu cliente, as provas deveriam ser destruídas.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

União estável STJ valida doação a cônjuge antes de casamento com separação de bens

A doação de um imóvel para um dos cônjuges, antes do casamento, não entra no regime de  separação de bens quando não é feita por meio de pacto antenupcial e o casal já vivia junto. Foi o que decidiu a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça ao afastar a nulidade de doação de imóvel feita pelo marido à mulher antes do casamento feito sob o regime da separação obrigatória de bens. A decisão se deu no julgamento de recurso especial, com origem em ação de inventário.
O marido já morreu e os filhos, frutos do primeiro casamento do homem, moveram ação contra a viúva para que o imóvel doado a ela, antes do matrimônio, fosse incluído na partilha. O casal vivia junto desde 1970 e a doação do imóvel foi feita em 1978, dias antes da celebração do casamento. Como o marido já tinha 66 anos de idade, o matrimônio foi realizado sob o regime da separação obrigatória de bens.
Decisão anterior reconheceu a existência da união estável do casal no período de 1970 a 1978 e declarou nula a doação, determinando que todos os bens adquiridos durante a união fizessem parte do inventário, a fim de que fossem partilhados entre os herdeiros. O acórdão de apelação também entendeu que a doação seria nula porque, quando foi realizada, o doador tinha mais de 60 anos.
De acordo com a decisão, “se é certo que os sexagenários só poderiam se casar sob o regime da separação absoluta, por imposição do artigo 258 (Código Civil de 1916), também é certo que o concubino, com essa idade, não poderia doar bens seus à amásia, ainda que desimpedidos, pois, por se tratar de um arremedo de casamento, também deveria estar sujeito às mesmas regras, sob pena de ludibriar a lei”.
União estável
Em seu recurso especial a viúva rechaçou a nulidade da doação, já que o casal vivia “sob o manto do casamento eclesiástico desde 1970 até 1978, e não havia qualquer impedimento para a realização do negócio, pois o bem não ultrapassava a parte disponível do doador”. Também argumentou que a doação não foi feita pelo marido por meio de pacto antenupcial, pois já conviviam havia oito anos e se casaram posteriormente.
A relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi (foto), aceitou os argumentos. Para ela, “tendo sido efetivada na constância de uma união estável iniciada quando o falecido estava com 58 anos de idade e, portanto, quando não lhe era obrigatório casar sob o regime da separação de bens, a doação feita à recorrente, pouco antes da celebração do casamento, não implica violação dos artigos 258, parágrafo único, II, e 312 do Código Civil de 1916”.
A ministra também observou que “embora, com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, tenha remanescido a obrigatoriedade do casamento sob o regime da separação obrigatória de bens em razão da idade dos nubentes (maiores de 70 anos, conforme a Lei 12.344/10), ao menos a proibição das doações antenupciais entre sexagenários deixou de existir, o que configura claro indicativo de que a restrição não foi recepcionada pela sociedade contemporânea”.
Ainda segundo Nancy Andrighi, mesmo com a doação efetivada em 1978, sob a Constituição de 1967 e na vigência do Código Civil de 1916, não haveria razão para que fosse considerada nula de pleno direito.
“A doação realizada na constância da união estável das partes, iniciada quando não havia qualquer impedimento ao casamento ou restrição à adoção do regime patrimonial de bens, não se reveste de nulidade exclusivamente porque, algum tempo depois, as partes celebraram matrimônio sob o regime da separação obrigatória de bens”, disse a relatora.
Nancy Andrighi observou também que, embora isso não tenha sido objeto do recurso, “até mesmo a imposição do regime matrimonial de bens poderia ser questionada quando da realização do casamento, em razão da antecedente união estável, que vivenciavam havia oito anos”. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Absolvido por improbidade não está isento de multa do TCU

Quando um servidor descumpre seus deveres na gestão de recursos públicos, mesmo sendo absolvido na esfera penal, tem que pagar multa ao Tribunal de Contas da União. Decisão da 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região apontou que há jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do TRF-1 que validam essa posição.
O caso julgado envolve a apelação de um servidor da Fundação Nacional do Índio (Funai) contra sentença que negou seu pedido de anulação de multa a ele imposta pelo TCU. O ex-servidor foi investigado em diversas instâncias em virtude de fatos por ele praticados como chefe do Posto Indígena Aruanã. O servidor foi réu em ação criminal e em ação por ato de improbidade administrativa nas quais foi absolvido. Além disso, também foi acusado em processo administrativo disciplinar que resultou em sua demissão e, por fim, foi acusado em processo administrativo perante do TCU, que fixou multa no valor de R$ 5 mil.
O juiz de primeira instância, Eduardo Pereira da Silva, da Seção Judiciária de Goiás, afirmou que o fato de o autor ter sido absolvido na esfera penal por ausência de provas não inibe a autoridade administrativa de aplicar-lhe multa por descumprimento de seus deveres na gestão de recursos públicos.
Mas o ex-servidor não se conformou com a multa e, por isso, recorreu ao TRF-1 com o argumento de que a sua absolvição nas outras esferas demonstra de forma clara que não existem provas dos fatos contra ele imputados, inexistindo, então, fato gerador que autorize a cobrança de tributos sobre os supostos desvios por ele realizados.
Porém a relatora do processo no TRF, juíza federal convocada Gilda Maria Carneiro Sigmaringa Seixas, destacou que o entendimento adotado na sentença está de acordo com o posicionamento jurisprudencial do STJ e do TRF-1, segundo o qual é certo concluir que a sentença absolutória na esfera penal sob o fundamento de ausência de provas não vincula as esferas administrativa e cível.
“Consoante entendimento consagrado na doutrina e na jurisprudência do colendo STJ e do excelso Supremo Tribunal Federal (STF), ressalvada a hipótese da ocorrência de sentença penal absolutória que comprove a inexistência material do fato ou que o acusado não foi seu autor, as instâncias penal, civil e administrativa são autônomas, fato que permite à Administração impor punição disciplinar ao servidor faltoso à revelia de anterior julgamento no âmbito criminal, ou em sede de ação civil”, afirmou. Com informações da Assessoria de Imprensa da Justiça Federal.
Clique aqui para ler o voto vencedor.
Processo 0017785-05.2008.4.01.3500.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Prisões em flagrante não motivadas devem ser anuladas

Existem duas formas de se prender alguém no Brasil conforme o artigo 5º, LXII, da Constituição da República: em flagrante delito ou por determinação de autoridade judicial.
Enquanto a prisão em flagrante consiste em ato administrativo conduzido pela autoridade policial, no nosso caso, pelo delegado da Polícia Civil ou Federal, a prisão por ordem judicial pressupõe representação da autoridade policial ou requerimento da parte ministerial legítima.
Enquanto a prisão por ordem judicial somente pode ser utilizada quando tiver finalidade cautelar ou instrumental, seja para a investigação (prisão temporária, de duvidosa constitucionalidade), seja para o processo (prisão preventiva baseada na ordem pública, na garantia da instrução criminal ou na aplicação da lei penal), a prisão em flagrante que pode ser feita por possibilidade de qualquer do povo ou autoridades da segurança pública tem dois objetivos principais: cessar a prática da infração e permitir apreensão de elementos probatórios imediatos que viabilizem a responsabilização do criminoso.
Superado o Estado Policial de outrora para o Estado Constitucional e democrático, sendo a regra que a restrição sempre excepcional de liberdade somente se dê por ordem judicial, sempre decorrente de pedido de parte legítima e decisão fundamentada em respeito ao artigo 93, IX, da Constituição, evidente que a prisão em flagrante delito, que somente é formalizada juridicamente pela autoridade policial, deve pressupor preenchimento de requisitos formais e materiais, sob pena de ser tida como ilegal. O flagrante consiste numa exigência fática prévia que precisa ser formalizada e registrada pela roupagem jurídica adequada.
Enquanto a prisão cautelar temporária ou preventiva é analisada e decretada por Juízo competente, a prisão em flagrante precisa ser “decretada fundamentadamente” (STJ, RHC 4494-RS – “a prisão em flagrante decretada com a devida fundamentação não ofende o princípio da presunção de inocência”, ainda que a afirmação da ementa não corresponda aos fundamentos discutidos no caso concreto) pela autoridade policial para, posteriormente, após prévia manifestação do titular da ação penal, ser submetida à apreciação do Poder Judiciário para sua validação positiva ou negativa.
Embora o rigor na apreciação da validade desta modalidade de prisão seja implícito ao fato de que esta exige o comunicado imediato ou, no máximo, em até 24 horas tanto da autoridade judicial como do Ministério Público, a prática teima em mostrar que, de modo geral, não se examina com a técnica e rigor necessário a validade da prisão. Por mais que o Código de Processo Penal trate do instituto da prisão em flagrante nos artigos 301 a 310, tal disciplina não tem se mostrado suficiente e, via de regra, é mal interpretada e aplicada.
Os defeitos são muitos. Autoridade policial ausente e que não preside o ato, falta de deliberação fundamentada do enquadramento justificando a restrição do direito constitucional de liberdade de ir e vir, ausência de menção às situações do artigo 302 do Código de Processo Penal, falta de preenchimento adequado da nota de culpa de modo a informar tanto a capitulação legal como o nome do crime, falta de motivação para arbitramento de fiança, falta de qualificação adequada do indiciado etc.
Mesmo assim os flagrantes são confirmados de maneira geral, muitas vezes sem ressalva, sem censura, quando o caminho natural seria o relaxamento da prisão, ou seja, a invalidação do flagrante, que não só tem o efeito de cercear a liberdade como também configura importante elemento de prova de materialidade e, sobretudo, da autoria do delito.
Um dos aspectos ignorados pelo “senso comum” (Warat) que norteia a apreciação do flagrante consiste no fato deste implicar em restrição de direito, consistindo em ato administrativo vinculado que, nos termos do artigo 50 da Lei 9.784/99, exige fundamentação. Ora, se a autoridade judicial após um pedido fundamentado de parte legítima, no caso, o titular da ação penal, Ministério Público, precisa fundamentar o decreto de prisão expedido, isso quando já existe uma investigação ou um processo, com muito mais razão não é de se permitir que a autoridade policial utilize jargões e expressões de significado aberto para segregar o direito de liberdade de quem quer que seja.
Não obstante isso, a compreensão reinante (e irritante) que impõe a dicção do óbvio, na falta de interpretação sistemática, já que o Código de Processo Penal não menciona expressamente uma necessidade intrínseca ao ato, do mesmo modo que é difícil encontrar o ato de “indiciamento” do Delegado como formalização fundamentada e argumentada da probabilidade de autora, é raro de se identificar autos de prisão em flagrante que tenham observado a exigência de motivação justificadora do enquadramento jurídico-penal preliminar dado, o qual, vale dizer, irá prevalecer até o momento da manifestação do Ministério Público e Poder Judiciário, normalmente até a posterior formação de “opinio delicti” pelo Ministério Público como titular da ação penal.
É inaceitável que “a autoridade competente” (artigo 304 do CPP) para apresentação do preso, no caso o delegado de Polícia, quando da deliberação ou exercício de um de seus atos máximos, possa estar ausente do ato, fazendo sugestões ou orientações por telefone, como sabe-se não ocorrer costumeiramente... A legislação é clara ao estabelecer que ouvir o condutor e colher a oitiva das testemunhas é ato que deve ser acompanhado e conduzido diretamente pela autoridade policial, evidentemente com o auxílio do serviço auxiliar disponível à polícia (escrivão ou agente de polícia) apenas para a execução de atos materiais e burocráticos relativos à lavratura do auto (formalização escrita da prisão).
Fosse desnecessária a presença da autoridade policial no auto de prisão em flagrante e estar-se-ia diante da necessidade de rever a utilidade e a necessidade de se manter os cargos de Delegado e da própria carreira, ainda mais considerando que a Lei 12.830/13, prevê o cargo de delegado como “carreira” jurídica, equivalendo a prisão em flagrante a indiciamento, que pressupõe, nos termos do parágrafo sexto do artigo 2º, “ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias”; fosse assim e sequer haveria sentido na determinação do artigo 308 do CPP, segundo o qual a falta da autoridade exige que o preso seja apresentado no lugar mais próximo no qual esta esteja presente.
Tratando do tema, ainda que parcialmente, no sentido de exigir a presença da autoridade policial quando da lavratura do auto de prisão em flagrante, sob pena de nulidade, observe-se o disposto no julgamento do Supremo Tribunal Federal HC 77.042-0/RJ, julgado em 16 de maio de 1998, relator ministro Sepúlveda Pertence. Entender diferente é admitir que a “autoridade policial” a que se refere à Lei não consiste no Delegado de Polícia, mas em qualquer agente policial civil ou militar, o que não se entende ser adequado, mas que deve ser objeto de alerta, inclusive por questão de coerência.
São deletérios e nefastos os efeitos da preguiça ou da negligência dos membros do Ministério Público e do Poder Judiciário no exame do auto de prisão em flagrante que, infelizmente, constantemente são lavrados de modo nulo e viciado. Dois exemplos práticos são bastante elucidativos. A falta de exigência de deliberação fundamentada da autoridade policial pode implicar em atitude arbitrária que não explica o motivo de se enquadrar determinada situação como uso de drogas sujeito à lavratura de termo circunstanciado de outra situação de tráfico, delito equiparado à hediondo e sujeito à formalização de auto de prisão em flagrante. O mesmo vale, por exemplo, para menção a qualificadoras de homicídio, que não podem simplesmente ser alegadas, mas devem ser justificadas de modo fundamentado pela autoridade policial, sob pena de se entender que o auto de prisão em flagrante deve ser “decotado” ou homologado apenas de modo parcial, já que com reenquadramento preliminar da situação criminosa que se tem como prática sob hipótese legitimadora de custódia flagrancial.
Não é possível desconsiderar a compreensão de enquadramento do fato típico pressupõe juízo de tipicidade abrangente de nexo de causalidade e resultado, isso tudo associado às situações espaciais e temporais previstas no artigo 302 do Código de Processo penal e seus incisos. Não se olvide que, diferente de uma simples apresentação para que o preso seja recolhido, o auto de prisão em flagrante pressupõe não só a identificação e qualificação do preso, mas oitiva de condutor, de testemunhas e, derradeiramente, o interrogatório do próprio investigado, todos esses atos iniciais e cruciais para o bom andamento da persecução penal e a prática dos atos que serão subsequentes.
A “fundada suspeita sobre o conduzido” (artigo 304 do CPP) capaz de determinar que se mande a recolher a prisão alguém pela prática de crime, mais do que mera afirmação, precisa estar fundamentada de modo juridicamente consistente, alcançando todos os requisitos formais e materiais que compõem a regra do jogo do instituto complexo da prisão em flagrante, não fosse assim não seria necessária a lavratura de um “auto”. A fundamentação do enquadramento jurídico-penal dado também se mostra necessária, inclusive, para explicitação dos “motivos” da prisão, requisito inerente à elaboração da “nota de culpa” como garantia do acusado. Tal como evoluiu-se o regramento legal para constar a explícita necessidade do juiz relaxar o flagrante ou homologá-lo convertendo em prisão preventiva ou concedendo liberdade provisória, superando-se entendimentos do passado que entendiam que apenas a desconstituição deveria ser fundamentada, não a homologação (justificativa para o fato de muitos juízes anotarem um simples e vergonhoso “ciente do flagrante; aguarda-se a remessa do inquérito policial”, evidente que a exigência de motivação de ato administrativo que restringe direito fundamental de liberdade de locomoção deve ser imposta à autoridade policial.
Desde a Constituição de 1988 que que a prisão imposta ilegalmente, nos termos do artigo 5º, LXV, da Constituição deve ser objeto de “relaxamento imediato”, mas preocupação com o cumprimento efetivo deste comando infelizmente nunca foi prioridade na prática ministerial e judiciaria, não raras vezes optando-se por excessiva flexibilidade e contornos hermenêuticos para “salvar” o injustificável, atitude que somente contribui para estimular a falta de aprimoramento e zelo no exercício da atividade policial. Mesmo após o advento das Leis 11.113/05, Lei 11.449/07 e Lei 12.403/11, que fizeram aprimoramentos legislativos no tocante ao tema em questão, diversos outros problemas cumulados ou alternados ao ponto já demonstrado persistem.
Não raras vezes, além da “comunicação imediata” do juiz competente e do Ministério Público, que pode ser feita tanto de modo presencial como por meio eletrônico em prestígio ao princípio da eficiência, ainda mais em tempos de processo digital, percebe-se a violação do devido processo legal substancial inerente ao flagrante, que também exige a comunicação da “família do preso” ou de “pessoa por ele indicada”, que pode ser evidentemente o advogado, tal como previsto pelo artigo 306 do CPP. Do mesmo modo não é possível que se admita a falta de comunicado da Defensoria Pública ou adoção de medida equivalente.
Embora não haja previsão legal específica, é lógico entender-se que o fato de a autoridade policial possuir, pelo menos em tese ou como exige a lei, contato pessoal e direto com o acusado (isso, claro, se estiver efetivamente presidindo o ato e não praticando delito de falsidade ideológica), pressupõe que esta, em visualizando base fático-empírica capaz de justificar a conversão da prisão em flagrante em prisão cautelar (preventiva ou temporária, embora a lei textualmente apenas trate da primeira espécie no artigo 310, inciso II, do CPP), seja a primeira a apresentar seu entendimento e argumentos para os membros do Ministério Público e Poder Judiciário que atuarão no caso.
Se a prática do “jogo” da prisão em flagrante ainda admite que se conviva com ilegalidades, com omissão de dever e ato de ofício da autoridade policial que também implica em possível prevaricação, isso se deve a fenômeno atribuíveis a múltiplas causas. Primeiro, muito se deve ao controle leniente e falho do Ministério Público como instituição no exercício da sua atribuição constitucional de controle externo da atividade policial (artigo 129, VII); segundo, na falta de atenção e zelo de alguns membros do Poder Judiciário com a fiscalização das garantias do investigado, notadamente a partir da previsão do artigo 310, I, do CPP; terceiro, na falta de consciência ou mesmo ímpeto de alguns no exercício da advocacia como atividade essencial à justiça, já que, embora ainda não seja obrigatório (neste sentido são os precedentes dos Tribunais Superiores, por exemplo, HC 155.665/TO como precedente do Superior Tribunal de Justiça), como acertadamente se prevê no Anteprojeto de alteração do Código de Processo Penal em curso no Congresso Nacional, mesmo quando o ato realizado na Delegacia é acompanhado de advogado não é incomum que este negligencie a cobrança e fiscalização para que o ato se desenvolva dentro do “campo” do devido processo legal.
Admitir que aspectos de estrutura humana e material possam justificar o descumprimento dos requisitos da prisão em flagrante é enfraquecer o Estado Democrático de Direito e fazer com que a prática equivocada sobreponha-se a exigências legalmente exigíveis, sendo postura equivalente a se admitir que tanto membro do Ministério Público quanto do Judiciário também possam delegar atos intelectuais e decisórios que são próprios e intransferíveis dessas autoridades.
Importante considerar que, ao contrário do que pode se pensar, independente da concessão ou não de liberdade, a validade ou não do flagrante, como elemento probatório irrepetível, pode e deve ser discutida, se preciso, mediante ajuizamento de ação constitucional de liberdade (Habeas Corpus), não havendo que se falar em falta de “interesse de agir” ou “superação de vício por superveniência de prisão sob outro título” (ex: STJ – HC n. 276909/SP, DJe 30/10/2013), mesmo quando tiver havido a soltura do acusado pela concessão de liberdade provisória. Mais do que prisão e liberdade provisória como ocorrências processuais, o auto de prisão em flagrante, como pode ser constatado no relatório de qualquer ação penal, constitui relevante e por vezes decisivo meio de prova. Há, portanto, consequência processual relevantíssima de caráter probatório consistente na validação ou na invalidação do flagrante. Ora, flagrante que pode ser denominado como tal é somente aquele válido e chancelado pela autoridade judicial após prévia manifestação do Ministério Público e apreciação fundamentada da presença dos requisitos constitucionais e legais.
A despeito da importância da temática do controle ministerial e jurisdicional da legalidade formal e material das regras do jogo envolvendo o instituto da prisão em flagrante, escassa é a doutrina que cuida especificamente do tema. Normalmente os manuais ou estudos que tratam de todos os temas do processo penal não são minuciosos e criteriosos, ou seja, não emprestam a profundidade e reflexão crítica suficiente, no trato do tema. A busca por precedentes jurisprudenciais alinhados com o rigor aqui proposto no exame da validade ou não do flagrante, que pode se dar de modo completo ou parcial, também é exercício difícil, o que somente exorta a necessidade de maior reflexão crítica sobre o tema, tanto no plano dogmático, quanto no que tocante à constante necessidade de revisão e aprimoramento normativo.
Tanto a matéria é esquecida que não raras vezes confunde-se a possibilidade justificada de não-lavratura de prisão da autoridade policial com a postura de relaxamento total ou parcial do flagrante de parte do juiz, não sendo difícil de se encontrar situações em que magistrados cometem o equivoco crasso de confundir relaxamento do flagrante (medida pautada na ilegalidade da custódia) com concessão de liberdade provisória, medidas que apesar de terem o mesmo efeito prático possuem distintos significados jurídicos.
Ao contrário do que se pensa, nas “regras do jogo” de um Estado Democrático de Direito ocupado na restrição e limitação dos abusos estatais, o flagrante “não prende por si só”, mas somente pode prender validamente se houver controle e homologação fundamentado do ato pela autoridade judicial. Não se trata de questão pessoal, mas de de acordar e não se deixar levar para o “sempre foi assim”. Despertar esta consciência e entender que o comunicado da prisão em flagrante ao Ministério Público e Poder Judiciário somente tem sentido se sucedido de exame da facticidade do caso concreto de acordo com o cumprimento dos requisitos formais e materiais de ordem constitucional e legal é o objetivo a que se propôs o presente estudo, firme na compreensão de que a constrição da liberdade, especialmente na modalidade de uma prisão inicialmente administrativa que posteriormente torna-se validada pelo Juízo, precisa ser alvo de efetivo controle jurisdicional.