sábado, 30 de janeiro de 2010

GILMAR MENDES REVOGA PRISÃO DECRETADA POR DE SANCTIS

Por Maurício Cardoso

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes concedeu liminar em pedido de Habeas Corpus revogando a prisão de Jacques Bernardo Leiderman. Acusado de lavagem de dinheiro e evasão de divisas, Leiderman foi preso preventivamente por determinação do juiz da 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo Fausto Martin de Sanctis. O ministro Gilmar Mendes entendeu que o decreto de prisão expedido por De Sanctis não estava devidamente fundamentado. A defesa do acusado foi feita pelo advogado Alberto Zacharias Toron.

A Polícia Federal pediu a prisão de Leiderman ao juízo da 6ª Vara Federal, especializada em Crimes Financeiros e Lavagem de Dinheiro, com base em interceptações telefônicas. Segundo a PF, as gravações provariam a atuação de Leiderman no mercado ilegal de divisas e sua ligação com uma quadrilha internacional de doleiros, com ramificações no Uruguai.

De Sanctis atendeu ao pedido e ordenou a prisão do doleiro sob alegação de garantia da ordem pública. Destacou que Leiderman já fora preso em 2008 e responde processo pelas mesmas imputações na 2ª Vara Federal Criminal de São Paulo.

Ao fundamentar o decreto de prisão, o juiz afirmou ainda que “brasileiros também estão sendo objeto prisões de mesma natureza no exterior, por fatos supostamente praticados a partir do Brasil, levando a toda sorte de comentários pejorativos contra a credibilidade da eficácia do Poder Judiciário brasileiro.”

Para Fausto De Sanctis “os fatos agora analisados, além de denotarem o desrespeito dos investigados para com os órgãos estatais,notadamente, a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e o Poder Judiciário Federal, afetam a credibilidade deste à medida que não se adote resposta drástica para fazer cessar a prática de atos irregulares.”

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região bem como o Superior Tribunal de Justiça confirmaram a decisão de De Sacntis ao negar pedidos de liminar idênticos ao apresentado ao Supremo. Por isso, o ministro Gilmar Mendes, antes de decidir, analisou e afastou a aplicação da Súmula 691 do Supremo Tribunal Federal, que impede ao tribunal a concessão de liminar sobre negativa de liminar de instância anterior. Entendeu o ministro que o afastamento da Súmula se justifica por haver claros sinais de violação de direitos fundamentais.

Ao conceder a liminar, o ministro entendeu que o decreto de prisão não está devidamente fundamentado. Para Gilmar Mendes, as alegações de De Sanctis não passam de “mera opinião pessoal do magistrado, demonstrando maior preocupação com o que possam pensar do Judiciário do que em analisar, com a necessária serenidade, a efetiva incidência de algum dos fundamentos da prisão preventiva, não se admitindo nesta Corte argumentos relativos à credibilidade do Judiciário como justificativa ao encarceramento provisório”.

O ministro rejeitou também a alegação da prisão anterior do acusado por igual delito para justificar a preventiva: “É remansosa a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre não se admitir juízo de valor sobre o mesmo fato investigado como justificativa à prisão preventiva, o que não é diferente no que diz com o fato de figurar o paciente como investigado em outro inquisitório, pois quanto a este, a exemplo do aqui discutido, não existe sentença condenatória que permita a certeza sobre o que se alega”.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

UNIÃO ESTÁVEL AINDA É OBJETO DE MUITAS DÚVIDAS

Por Sérgio Fisher

Apesar de já figurar no ordenamento jurídico brasileiro desde 1988, quando da promulgação da Constituição Federal (artigo 226, parágrafo 3º), a união estável ainda é objeto de muitas dúvidas por parte da população em geral. Atualmente merecedora de um título específico no Código Civil (artigos 1.723 a 1.727), esse instituto deixou de ser encarado como modalidade de união entre homem e mulher inferior ao casamento para ser, talvez, mais frequente do que este.

É que, apesar de não serem garantidos aos companheiros os mesmos direitos hereditários daquele que é efetivamente casado, não há como negar que os direitos patrimoniais decorrentes da dissolução da união estável são os mesmos de um casamento celebrado pelo regime legal da comunhão parcial de bens.

Especificamente em relação aos direitos hereditários, o Código Civil assegura ao companheiro ou companheira a participação na sucessão hereditária do outro, só que essa possibilidade só existe em relação aos bens adquiridos de forma onerosa na vigência da união estável.

Nestas situações, é importante esclarecer que o(a) companheiro(a) sobrevivente somente receberá a herança sem concorrer com qualquer outro familiar do companheiro falecido se não houver mais nenhum outro parente, ou seja: se o falecido tinha irmãos, por exemplo, o sobrevivente partilhará com os mesmos os bens, seus frutos e valores, se tiverem sido obtidos onerosamente durante a união.

Além disso, da mesma forma que no casamento, os conviventes podem estabelecer, mediante pacto por escritura pública ou instrumento particular, um regime de bens para a união estável já em curso, ou regular a união que pretendem iniciar.

É relevante salientar, também, que tanto no casamento quanto na união estável há dever de mútua assistência, lealdade e respeito, sendo importante dizer, entretanto, que os tribunais entendem não ser possível atribuição de culpa na dissolução da união estável, como ocorre no casamento.

O casamento, por ser, em síntese, um contrato, pede formalidades não necessárias à união estável, como por exemplo, ser vedado a indivíduos não divorciados contrair núpcias — o que não ocorre na união estável, onde é admitido que pessoas não separadas judicialmente mas, tão somente de fato, convivam em união estável com todos os direitos daí decorrentes.

Outra questão que causa dúvidas e é também muito importante é o fato de não haver prazo mínimo para que seja reconhecida a união estável entre homem e mulher, que fica ao prudente arbítrio do juiz, avaliadas as circunstâncias, caso a caso.

Há controvérsias, no entanto, quanto à manutenção do direito real de habitação, isto é, à moradia no imóvel onde o casal residia, pelo companheiro sobrevivente. O entendimento majoritário é no sentido da subsistência desse direito.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

PRODUÇÃO DE PROVA CABE AO MINISTÉRIO PÚBLICO E À DEFESA

Produção de prova cabe ao MP e à defesa

Por André Karam Trindade e Lenio Luiz Streck1.

Explicitação do problema

Com a reforma processual penal – levada a cabo pelo advento das Leis 11.689/08 (Tribunal do Júri), 11.690/08 (prova), 11.719/08 (procedimento) –, deu-se mais um importante passo na direção da concretização do princípio acusatório (art. 129, I, CF).

Isto ficou evidente, entre outros aspectos, no que diz respeito à produção da prova (Lei 11.690/08), com a substituição do sistema presidencialista – ou inquisitorial – pelo sistema fiscalizador – ou garantidor, vinculado ao cross-examination –, na medida em que passou a ser competência do juiz apenas o indeferimento de perguntas impertinentes e, em caráter excepcional, a complementação da inquirição das testemunhas a respeito de pontos eventualmente não esclarecidos, conforme determina a nova redação do art. 212 do Código de Processo Penal:

Art. 212. As perguntas das partes serão requeridas ao juiz, que as formulará à testemunha. O juiz não poderá recusar as perguntas da parte, salvo se não tiverem relação com o processo ou importarem repetição de outra já respondida.

Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida (redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008).

Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição (incluído pela Lei nº 11.690, de 2008).

Neste contexto, entretanto, observa-se que tanto no caso da ausência do representante do Ministério Público quanto na situação em que o juiz, afora presidir a audiência, conduzir toda a instrução criminal, inquirindo (stricto sensu) as testemunhas arroladas pelas partes viola(ri)am o art. 212 do CPP.

Todavia, ocorrendo tais hipóteses – ausência do agente ministerial e/ou condução da prova por parte do juiz, fora do permitido pelo art. 212, CPP –, a questão que resta é a seguinte: qual a interpretação adequada à Constituição?

2. O ESTADO D’ARTE DA QUESTÃO OU “DE COMO OS TRIBUNAIS ESTÃO DECIDINDO” E “A VISÃO DA DOUTRINA”.

De pronto, devemos referir que parcela considerável dos juízes e tribunais de terrae brasilis nem estão “dando bola” para a nova redação do art. 212 do CPP. Olham o novo com os olhos do velho. Nenhuma surpresa nesse sentido. Afinal, o senso comum teórico tem exatamente essa função: obnubilar.

Mas há um conjunto de magistrados e membros do Ministério Público preocupado com a quaestio juris. Assim, por exemplo, a 5ª Câmara Criminal de TJ-RS está formando seu entendimento a respeito da matéria.

Em um primeiro momento, os integrantes desse órgão fracionário, adotando a linha proposta pelo desembargador Amilton Bueno de Carvalho, entenderam que a violação do novo art. 212 do CPP implicaria a anulação parcial do processo, invalidando a prova produzida diretamente pelo magistrado, para que fosse prolatada nova sentença:

“PROCESSUAL PENAL. INQUIRIÇÃO DAS VÍTIMAS E TESTEMUNHAS DIRETAMENTE PELA MAGISTRADA CONDUTORA. NULIDADE. A nova redação legal do art. 212 do CPP, dando largo passo em direção ao sistema acusatório consagrado na Lei Maior, previu expressamente a subsidiariedade das perguntas do Magistrado em relação às indagações das partes: do juiz é exigido o julgamento justo e eqüidistante, de modo tal que não pode ele ter compromisso com quaisquer das vertentes da prova. Anularam, em parte, o processo. Unânime” (Apelação-Crime nº 70028349843, Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho, 5ª Câmara Criminal, TJRS, j. em 18/03/09).

Já em um segundo momento, ainda no mesmo sentido da posição anteriormente firmada, consideraram ilícita – e, portanto, inválida – a prova coletada pelo magistrado, porém entenderam possível passar imediatamente ao julgamento do processo, cujo resultado foi a absolvição do réu em face da insuficiência probatória:

“PROCESSUAL PENAL. INQUIRIÇÃO DA VÍTIMA E TESTEMUNHAS DIRETAMENTE PELO MAGISTRADO CONDUTOR DA AUDIÊNICA. NULIDADE. ROUBO TENTADO. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. ABSOLVIÇÃO. 1. A nova redação legal do art. 212 do CPP, dando largo passo em direção ao sistema acusatório consagrado na Lei Maior, previu expressamente a subsidiariedade das perguntas do Magistrado em relação às indagações das partes: do juiz é exigido o julgamento justo e eqüidistante, de modo tal que não pode ele ter compromisso com quaisquer das vertentes da prova. 2. A inobservância da ritualística legal, somada a desistência tácita da coleta da prova, permite enquadrar o vício como ilicitude da própria prova, nos termos do art. 157 do CPP, daí autorizado o pronto julgamento do feito, mediante a desconsideração das provas ilícitas. 3. A condenação só pode emergir da convicção plena do julgador – sua base ética indeclinável. A prova controversa, insegura e que não afasta todas as dúvidas possíveis enseja um desate favorável ao acusado, em homenagem ao consagrado princípio in dubio pro reo. Prejudicado o apelo ministerial, deram provimento ao defensivo. Unânime” (Apelação-Crime nº 70030112387, Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho, 5ª Câmara Criminal, TJRS, j. em 17/06/09).

Em um terceiro momento, entretanto, ocorre uma sensível mudança na orientação até então assumida. Acolhendo a virada proposta pelo desembargador Luís Gonzaga da Silva Moura, os integrantes desta Câmara passaram a entender que a inobservância do art. 212 do CPP configura nulidade relativa do processo:

1. PROCESSO PENAL. Ministério Público ausente na instrução criminal. Inobservância pelo Magistrado do artigo 212, caput, do Código de Processo Penal. Nulidade parcial da prova oral colhida. 2. Roubo majorado. Materialidade e autoria do fato denunciado, inclusive no que diz com a majorante do concurso de agentes, comprovadas. Condenação confirmada. Concurso formal e crime continuado determinam um só aumento. Precedente do STJ. Pena reajustada. Inviável afastar a multa, por pena cominada em lei. Cassada, por extra petita, a reparação mínima prevista no art. 387, IV, do CPP. Apelo parcialmente provido. Unânime” (Apelação-Crime nº 70029599941, Rel. Des. Luís Gonzaga da Silva Moura, 5ª Câmara Criminal, TJRS, j. em 08/07/09).

“PROCESSUAL PENAL. INQUIRIÇÃO DAS VÍTIMAS E TESTEMUNHAS DIRETAMENTE PELA MAGISTRADA CONDUTORA DA AUDIÊNCIA. NULIDADE ABSOLUTA NÃO CARACTERIZADA. ROUBO IMPRÓPRIO. DESCLASSIFICAÇÃO PARA FURTO TENTADO. PENA REVISTA. 1. A nova redação do art. 212 do CCP, dando largo passo em direção ao sistema acusatório consagrado na Lei Maior, previu expressamente a subsidiariedade das perguntas do Magistrado em relação às indagações das partes, porém o fez apenas com alcance à inquirição das testemunhas, resguardando o antigo procedimento de inquirição ‘presidencialista’ para a oitiva do ofendido e para o interrogatório do réu (Apel. Crim. nº 70029599941, Rel. Des. Luís Gonzaga da Silva Moura, j. em 08/07/2009). 2. A interferência do magistrado na instrução, no tocante à inquirição das testemunhas, quando inobservados o art. 212 do CPP, há de ser qualificada como nulidade relativa, pois não será ela interferência maior do que aquela já autorizada para o interrogatório e para a coleta do depoimento do ofendido. 3. Em se tratando de nulidade relativa, somente quando as partes se rebelarem expressamente contra a forma de inquirição das testemunhas, na própria audiência (pena de preclusão), é que será viável acolher a alegação de nulidade por violação da norma insculpida no art. 212 do CPP, pois, do contrário, a acusação e a defesa terão concorrido para que a audiência se instrumentalizasse pela sistemática de inquirição presidencialista e, como sabido, nenhuma das partes pode argüir nulidade à qual haja dado causa (CPP, art. 625). 4. A confissão parcial do acusado, somada a elementos outros de convicção, autoriza a condenação. Entretanto, havendo dúvida razoável quanto à ocorrência da violência sucessiva à subtração, impõe-se a desclassificação da hipótese delitiva para a figura de furto. 5. Caracteriza-se a tentativa quando o agente é detido ainda antes de ter a posse tranqüila da res. Deram parcial provimento ao apelo. Unânime” (Apelação-Crime nº 70030638670, Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho, 5ª Câmara Criminal, TJRS, j. em 22/07/09).

Em um quarto momento, todavia, os demais integrantes da Câmara acompanharam o voto do desembargador Aramis Nassif – que repristinou a tese da prova ilícita – em julgado que restou assim ementado:

“APELAÇÃO. CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO. I. PRELIMINARES. AUTO DE RECONHECIMENTO. Reconhecimento em audiência. Informalidade admissível. Preliminar rejeitada. II. NULIDADE DO PROCESSO. Inocorrência. Prova ilegítima sem repercussão na condenação. III. MÉRITO. Existência e autoria do delito: Prisão em flagrante. Palavra das vítimas. Condenação confirmada. Desclassificação: Lesão grave configurada. Qualificadora mantida. Apenamento. Readequação. Regime carcerário alterado. Pena pecuniária. Isenção. A multa não pode deixar de ser aplicada pelo juiz, sob pena de violação ao princípio da inderrogabilidade da pena, visto que é um imperativo legal. APELO PARCIALMENTE PROVIDO” (Apelação-Crime nº 70031632284, Rel. Des. Aramis Nassif, 5ª Câmara Criminal, TJRS, j. em 07/10/09).

Neste contexto, verifica-se que não existe ainda um entendimento consolidado acerca da matéria, ao contrário do que vem constando nos últimos acórdãos prolatados pela 5ª Câmara Criminal do TJ-RS.

A questão que se coloca é: faz sentido falar em nulidade relativa quando se está a tratar da imposição constitucional de respeito ao devido processo legal (due process of law)? Como se verá, a resposta é: não. A nulidade é sempre absoluta.

Isto porque não é possível exigir a demonstração de prejuízo para a decretação da nulidade, uma vez que o “princípio” (sic) pas de nullité sans grief não foi recepcionado pela nova ordem constitucional, de maneira que toda nulidade pressupõe um prejuízo, sendo antigarantista e metafísico qualquer entendimento em contrário (cf. STRECK, Lenio L. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009). Tampouco se pode alegar que as partes – em determinados casos – convalida(ra)m os atos instrutórios, sob pena de se passar de um “processo de partes” para um “processo das partes” – no qual elas disponibilizariam do seu próprio manejo – e, assim, colocar em xeque a função jurisdicional.

Ademais, mesmo que não se concorde com a revogação do referido princípio, a tese da nulidade relativa tampouco resiste ao argumento de Paulo Busato, membro do MP-PR e professor da UFPR, para quem não há de se falar em nulidade relativa, convalidável mediante ausência de prejuízo. Isto porque a contaminação da prova pela atuação do juiz gera duplo e incontornável prejuízo: por um lado, invalida a prova, cujo aproveitamento implica evidente pressuposto; e, por outro, torna suspeito o juiz, ao menos à luz de um sistema acusatório. Assim, ao contrário do que se afirma, é o próprio princípio reitor pas de nullite sans grief que torna inviável a tese adotada na maioria dos julgados desse órgão fracionário (5ª Câmara Criminal do TJ-RS), segundo afirma o professor paranaense.

Na mesma direção, embora sem fazer menção ao art. 564, inc. IV, do CPP – segundo o qual haverá nulidade em caso de omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato –, vale lembrar a posição assumida por Nereu Giacomolli e Cristina di Gesu em recente artigo publicado no Boletim do IBCCrim:

“A formulação de perguntas pelo magistrado, antes das partes, ultrapassa a mera irregularidade da metodologia da inquirição, pois o defeito atinge uma formalidade essencial, por não ter sido observado o devido processo legal, no plano formal (ordem de inquirição) e material (vício substancial, por ofensa ao contraditório e a distribuição das funções entre os sujeitos processuais). A inversão das perguntas ou a inquirição inicial do magistrado invalidam o depoimento e vedam a sua utilização no processo, pois a inutilizabilidade é uma forma de invalidade dos atos processuais (Lozzi, 2007, p. 193). A utilização dos depoimentos defeituosos, no julgamento, contaminam o decisum, o qual há de ser desconstituído e, em cada caso penal, há de ser verificado o desdobramento causal do ato viciado, nos seguintes atos processuais, pois poderá haver contaminação dos atos processuais subseqüentes” (cf. GIACOMOLLI, Nereu José; DI GESU, Cristina Carla. Nova metodologia de inquirição das testemunhas e consequências de sua inobservância Boletim do IBCCRIM, São Paulo, n. 201, ago. 2009).

Aliás, no sentido da nulidade absoluta, merece destaque um importante precedente do Superior Tribunal de Justiça, que – ao contrário do que passou a ser afirmado por esta Câmara – acolheu recurso interposto pelo Ministério Público, na mesma linha adotada neste parecer:

“HABEAS CORPUS. NULIDADE. RECLAMAÇÃO AJUIZADA NO TRIBUNAL IMPETRADO. JULGAMENTO IMPROCEDENTE. RECURSO INTERPOSTO EM RAZÃO DO RITO ADOTADO EM AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO. INVERSÃO NA ORDEM DE FORMULAÇÃO DAS PERGUNTAS. EXEGESE DO ART. 212 DO CPP, COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI 11.690/2008. OFENSA AO DEVIDO PROCESSO LEGAL. CONSTRANGIMENTO EVIDENCIADO. 1. A nova redação dada ao art. 212 do CPP, em vigor a partir de agosto de 2008, determina que as vítimas, testemunhas e o interrogado sejam perquiridos direta e primeiramente pela acusação e na sequência pela defesa, possibilitando ao magistrado complementar a inquirição quando entender necessários esclarecimentos. 2. Se o Tribunal admite que houve a inversão no mencionado ato, consignando que o Juízo Singular incorreu em error in procedendo, caracteriza constrangimento, por ofensa ao devido processo legal, sanável pela via do habeas corpus, o não acolhimento de reclamação referente à apontada nulidade. 3. A abolição do sistema presidencial, com a adoção do método acusatório, permite que a produção da prova oral seja realizada de maneira mais eficaz, diante da possibilidade do efetivo exame direto e cruzado do contexto das declarações colhidas, bem delineando as atividades de acusar, defender e julgar, razão pela qual é evidente o prejuízo quando o ato não é procedido da respectiva forma. 4. Ordem concedida para, confirmando a medida liminar, anular a audiência de instrução e julgamento reclamada e os demais atos subsequentes, determinando-se que outra seja realizada, nos moldes do contido no art. 212 do CPP” (HC n° 121.216, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª Turma, STJ, j. em 19/05/09).

Registre-se, ainda, que recentemente o Superior Tribunal de Justiça confirmou tal posicionamento em novo julgado sobre o mesmo tema:

“PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO. INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS. NÃO-OBSERVÂNCIA DO PROCEDIMENTO PREVISTO NO ART. 212 DO CPP, COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI 11.690/08. NULIDADE. CONSTRANGIMENTO EVIDENCIADO. ORDEM CONCEDIDA. LIMINAR CONFIRMADA. 1. A nova redação dada ao art. 212 do CPP pela Lei 11.690/08 determina que as vítimas, as testemunhas e o acusado sejam ouvidos direta e primeiramente pela acusação e na sequência pela defesa, possibilitando ao magistrado complementar a inquirição se entender necessários esclarecimentos. 2. Se o Tribunal de origem admite que houve a inversão na inquirição, consignando que o Juízo Singular incorreu em error in procedendo, patente o constrangimento, sanável pela via do habeas corpus, por ofensa ao devido processo legal. 3. Ordem concedida para, confirmando a liminar, anular a audiência de instrução e julgamento realizada em desconformidade com a previsão contida no art. 212 do Código de Processo Penal, bem como os atos subsequentes, determinando que outra seja realizada, consoante as disposições do referido dispositivo” (HC 137.091/DF, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 5ª Turma, STJ, j. em 01/09/09).

Nesta esteira, igualmente, cumpre referir a importante decisão prolatada pela 6ª Câmara Criminal do TJ-RS, de relatoria do desembargador Nereu Giacomolli:

“CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO. METODOLOGIA DE INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS. ARTIGO 212 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. 1. Da regra processual contida no artigo 212 do Código de Processo Penal se infere que as partes dirigem as perguntas às testemunhas, num primeiro momento, pois a elas interessa, prima facie, a produção dessa modalidade de prova e, num segundo momento, o magistrado, por ser o destinatário da prova, poderá complementar a inquirição, sem inovar, sobre pontos não esclarecidos. Trata-se de nova realidade processual, incorporada pelo legislador ordinário nas modificações parciais de 2008 e admitida no projeto de reforma total do Código de Processo Penal (art. 175), na opção por um processo penal republicano, eticamente comprometido e democrático. 2. Precedentes da 5ª Câmara do TJRS e do STJ. DESCONSTITUÍRAM A DECISÃO, POR MAIORIA. MÉRITO PREJUDICADO. (Apelação Crime Nº 70030301774, Sexta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Rel. Nereu José Giacomolli, j. em 25/06/09).

Por outro lado, entretanto, não é difícil constatar que a doutrina – cuja atividade, no Brasil, limita-se à habitual prática de colacionar a jurisprudência e reproduzir, acriticamente, a sua orientação (que, neste caso específico, ainda é incipiente) – ainda não compreendeu a mudança operada pela reforma processual penal de 2008, à medida que a trata como uma mera “formalidade”.

Basta ver, por todos, a – equivocada – posição defendida por Guilherme de Souza Nucci, em um dos manuais mais vendidos do país, segundo a qual a inovação legislativa não alterou o sistema anterior:

"69. Reperguntas diretas às testemunhas: a Lei 11.690/2008 eliminou o sistema presidencialista de inquirição das testemunhas, vale dizer, todas as perguntas, formuladas pelas partes, deviam passar pelo juiz, que as dirigia a quem estivesse sendo ouvido. Em outros termos, antes da reforma processual, quando a parte desejasse fazer uma repergunta, dirigiria a sua indagação ao magistrado que a transmitiria à testemunha, com suas próprias palavras. De fato, era um sistema vetusto e lento. Afinal, a testemunha havia entendido perfeitamente o que fora perguntado pela acusação ou pela defesa, bastando-lhe responder. Mesmo assim, era orientada a esperar que o magistrado repetisse a tal pergunta para que, então, pudesse dar sua resposta. Tratava-se de uma precaução para que as partes não induzissem as testemunhas ou não fizessem indagações despropositadas ou ofensivas. De todo modo, o sistema era anacrônico. Imaginemos a modernidade do processo informatizado, com os depoimentos colhidos em fita magnética. Para que ouvir duas vezes a mesma indagação? Desnecessário. Basta que a parte faça a repergunta diretamente à testemunha. Se houver alguma pergunta indevida, deve o juiz indeferi-la. Para isso, está o magistrado presente, controlando os atos ocorridos em audiência, sob sua presidência” (NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, pp. 479-480).

E prossegue Nucci:

“Tal inovação, entretanto, não altera o sistema inicial de inquirição, vale dizer, quem começa a ouvir a testemunha é o juiz, como de praxe e agindo como presidente dos trabalhos e da colheita da prova. Nada se alterou nesse sentido. A nova redação dada ao art. 212 manteve o básico. Se, antes, dizia-se que ‘as perguntas das partes serão requeridas ao juiz, que as formulará à testemunha’, agora se diz que ‘as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha [...]’. Nota-se, pois, que absolutamente nenhuma modificação foi introduzida no tradicional método de inquirição, iniciado sempre pelo magistrado. Porém, quanto às perguntas das partes (denominadas reperguntas na prática forense), em lugar de passarem pela intermediação do juiz, serão dirigidas diretamente às testemunhas. Depois que o magistrado esgota suas indagações, passa a palavra à parte que arrolou a pessoa depoente. Se se trata de testemunha da acusação, começa a elaborar as reperguntas o promotor, diretamente à testemunha. Tratando-se de testemunha da defesa, começa a reinquirição o defensor, diretamente à testemunha. Após, inverte-se. Finalizadas as perguntas do promotor à testemunha de acusação, passa-se a palavra ao defensor (se não houver assistente de acusação, que tem precedência). O mesmo se faz quando o defensor finaliza com a sua inquirição; passa-se a palavra ao promotor e, depois, ao assistente, se houver”.

Na mesma linha, cumpre referir, a leitura – de cariz nitidamente conservador, do ponto de vista da manutenção do sistema inquisitivo – feita por um dos processualistas mais conceituados no centro do país, Tourinho Filho:

“Os que vivem a vida forense sabem muito bem que o tradicional sistema superava e o supera o atual. Sempre defendemos o sistema presidencialista, para evitar discussão entre as partes, mesmo porque, quando as perguntas são formuladas pelo Juiz, a modulação da voz permanece inalterada e a audiência se realiza num ambiente de maior tranquilidade. Agora, as perguntas serão formuladas diretamente pelas partes, com entonação de voz variada, às vezes influenciando positiva ou negativamente nas respostas. Se o Juiz não ficar bem atento, às vezes a sagacidade da parte pode burlar a sua vigilância. Vamos aguardar” (Cf. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de processo penal comentado. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 627).

Observa-se, neste contexto, que tanto setores da jurisprudência quanto setores da doutrina parecem estar optando por andar na contramão da luta travada nesses últimos 20 anos pela afirmação – e concretização – do princípio constitucional do acusatório, ao menos no que se refere ao papel exercido durante a produção da prova.

Oportuno lembrar, a título de ilustração, as posições firmadas pela 5ª Câmara Criminal do TJ-RS ao longo de mais de uma década no sentido da necessária filtragem hermenêutica do Código de Processo Penal à luz da Constituição, a partir do princípio acusatório: a produção de prova de ofício (art. 156, CPP – ver apelações nº 70026105965, 70022266498, 70006183826), a figura do assistente de acusação (arts. 267 a 273, CPP – ver apelações nº 70023493604, 70023119811, 70022405690), a mutatio libelli (art. 384 CPP – ver apelações nº 70013093968, 70012468765, 70006851752), o requerimento de diligências (art. 502, CPP – ver apelações nº 70013093968, 70012468765, 70006851752) e o recurso de ofício (art. 574, CPP – ver correições parciais nº 70015997273, 70014869697, 70007384779). E isto é do conhecimento de todos: a 5ª Câmara Criminal do TJ-RS foi a primeira a falar do princípio acusatório em terrae brasilis – sempre ladeada pelas posições do Procurador de Justiça (Lenio Streck) com assento no referido Órgão Fracionário.

Isto porque, como se sabe, a Constituição Federal ao estabelecer o princípio (ou sistema) acusatório – segundo o qual cabe ao Ministério Público a titularidade da Ação Penal Pública, afastando, desse modo, prerrogativas de ingerências na acusação da alçada do Poder Judiciário – não recepcionou uma série de institutos processuais penais, marcados pelo seu caráter inquisitório, eis que absolutamente incompatíveis com o sistema acusatório adotado pelo novo paradigma constitucional (cf. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório – A conformidade constitucional das leis processuais penais. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006).

3. O ART. 212 DO CPP VISTO A PARTIR DE UMA ADEQUADA FILTRAGEM CONSTITUCIONAL DO VELHO E SUPERADO “SISTEMA INQUISITIVO”

Para além do que foi dito, há que se destacar que essa filtragem hermenêutica do processo penal decorre não somente do novo texto constitucional, mas também – e fundamentalmente – do novo paradigma do conhecimento, inaugurado com o giro lingüístico-ontológico (ontologische Wendung) operado no campo da filosofia da linguagem (cf. STRECK, Lenio L. Verdade e Consenso. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009).

Ora, se o processo (lato sensu) sempre esteve, historicamente, dependente do Estado-juiz em uma perspectiva solipsista (marcada pelo esquema sujeito-objeto), agora, no Estado Democrático de Direito, já não há mais espaço para esse protagonismo da figura do juiz.

Nesse sentido, não se pode olvidar que o novo texto constitucional estabeleceu um novo paradigma. E este deve ser visto, inevitavelmente, com os olhos do novo. Um juiz imparcial e um promotor de Justiça independente: são estes os requisitos indispensáveis à implantação de um processo penal democrático. O corolário disto, evidentemente, é a plena aplicação do princípio acusatório, cujo advento deveria ter sepultado, de uma vez por todas, o sistema inquisitorial que caracterizava o Código de Processo Penal, de 1941, ainda assentado no mito da verdade real (que, no fundo, sempre mascara a busca pela condenação do réu).

Dito de outro modo, é preciso compreender que o princípio acusatório constitui uma conquista do Estado Democrático de Direito. Tal princípio revoga o serôdio princípio inquisitório, de triste memória histórica. Ao juiz cabe julgar; ao promotor cabe deduzir a pretensão acusatória, investigar e produzir provas; ao advogado cabe efetuar a defesa e garantir os direitos do réu; ao legislador cabe produzir legislação adequada ao ordenamento jurídico. E, fundamentalmente, cabe à jurisdição constitucional – e isso é o que se está fazendo neste caso – adequar a legislação infraconstitucional à Constituição.

É neste contexto, portanto, também marcado pelo reconhecimento da função investigatória do Ministério Público (Cf. STRECK, Lenio Luiz: FELDENS, Luciano. Crime e Constituição. A legitimidade da função investigatória do Ministério Público. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006), que se deve compreender o sentido e o alcance das alterações levadas a cabo com advento da Lei 11.690/08, no que se refere à gestão e produção da prova.

Trata-se, com efeito, de uma verdadeira guinada no interior do processo penal, que nada tem a ver com uma “doutrina contrária aos poderes instrutórios do juiz” (sic), mas sim com a tensão – contemporânea – entre democracia e jurisdição, entre o Estado das Leis (Gesetzstaat) e o Estado dos Juízes (Richterstaat).

Nessa mesma direção, inclusive, aponta a Escola Mineira (Marcelo Cattoni, Flaviane de Magalhães Barros, Dierle Nunes, Alexandre Bahia, André Cordeiro Leal, entre outros) – à qual rendemos, aqui, nossas homenagens, embora seu cariz procedimentalista – quando defende a concepção segundo a qual o processo deve ser entendido como “procedimento em contraditório”, a partir da influência de Elio Fazzalari (Istituzioni di diritto processuale. Padova: Cedam, 1992). A teoria de Fazzalari reconstrói os conceitos de processo e de procedimento, modificando a estrutura convencional do processo, ainda caudatária dos padectas, baseada no direito de ação e no processo entendido como relação jurídica, conforme sustenta a Escola Paulista, a partir das formulações desenvolvidas por Liebman e Chiovenda.

Todavia, essa nova compreensão do processo penal pressupõe a superação de um vício estrutural que lhe acarreta um grave prejuízo na sua função: o Código de Processo Penal, desde sua gênese, especialmente no que diz respeito à produção da prova, é refém do paradigma inquisitivo e, via reflexa, do paradigma da filosofia da consciência.

Neste contexto, então, discutir o “sistema acusatório” significa falar de paradigmas. Mais do que isso, implica tratar de rupturas paradigmáticas, tanto no âmbito do Direito quanto no campo da filosofia.

Isto porque é preciso entender que o “sistema inquisitório” está ligado umbilicalmente ao paradigma da subjetividade. No sistema inquisitório, o sujeito é “senhor dos sentidos”. Ele “assujeita” as coisas. Isto se evidencia, por exemplo, tanto na produção da prova ex oficio, quanto na clássica noção de “livre convencimento do juiz” ou “livre apreciação da prova”.

De outra banda, entretanto, pode-se afirmar que o sistema acusatório é o modo pelo qual a aplicação igualitária do direito penal penetra no direito processual penal. É o modo pelo qual se garante que não existe um “dono da prova”; é o modo pelo qual se tem a garantia de que o Estado trata de modo igualitário da aplicação da lei.

Tudo isso para dizer que um processo penal democrático depende de uma ampla intersubjetividade; depende da perspectiva acusatória, e não inquisitória; depende do respeito ao contraditório (cf. NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008), tudo a partir de uma fundamentação/justificação detalhada no nível daquilo que venho denominando de accountability processual, em oposição ao crescente – e preocupante – “ativismo judicial”.

Ora, como se sabe, nem mesmo nos países em que (ainda) não há a figura do juiz de instrução, o juiz responsável pela investigação é aquele que faz o julgamento, tendo em vista aquilo que Cordero chama, acertadamente, de “quadros mentais paranóicos”, a partir do clássico “primado das hipóteses sobre os fatos” (Cf. CORDERO, Franco. Guida alla Procedura Penale. Torino: UTET, 1986; e, também, COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Coord.). Crítica à teoria geral do direito processual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001).

Mas, afinal, qual é o modelo de juiz correspondente ao paradigma do Estado democrático de direito? (cf. STRECK, Lenio L. Desconstruindo os modelos de juiz: a hermenêutica jurídica e a superação do esquema sujeito-objeto. Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica - Anuário do PPGD da UNISINOS. v. 4. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 10-20). E qual é o papel do juiz no interior do sistema acusatório estabelecido pela Constituição de 1988, como bem indaga Jacinto Nelson Miranda Coutinho (O papel do novo juiz, op. cit)?

Mas atenção: apenas delinear o papel do juiz neste novo cenário não é o suficiente. Para que isso ocorra, é preciso – também – colocar o representante do Ministério Público no seu devido lugar.

No Brasil, como se sabe, o Ministério Público não só é separado completamente do Poder Judiciário, como, com o advento da Constituição de 1988, assumiu um status de (quase) completa desvinculação do Poder Executivo. Sem querer cometer injustiças com outras instituições e tampouco incorrer em exageros – como aqueles que a ele se referem como o “quarto poder” –, é de notório conhecimento que o Órgão Ministerial foi alçado pelo texto constitucional a um lugar privilegiado de defesa da Constituição e da cidadania, mormente enquanto a sociedade civil não se organiza por si só. Não parece difícil de se constatar esse novo papel do Ministério Público.

Neste contexto, considerando o princípio do devido processo legal aliado ao princípio acusatório (sim, o “sistema” acusatório tem a função de “princípio” ou “padrão”), não há espaço – ao menos no plano de uma análise pragmati(ci)sta – senão para um processo de partes, na linha do que se está tentando fazer no anteprojeto de reforma global do CPP realizado por Comissão Externa de Juristas criada no âmbito do Senado Federal e ora em curso no Projeto 156/2009-PLS.

Claro que a isso se deve colocar uma ressalva: não se trata, aqui, de discutir se o Ministério Público é parte, stricto sensu, no processo penal. Também não é relevante discutir se o “processo de partes” repristina uma ideia liberal, pré-Estado social. Longe disso. Igualmente, não é importante saber se o processo penal é “luta entre partes” (Parteienkampf). Mas o fundamental é examinarmos as condições que temos para fazer cumprir o princípio acusatório. E, neste caso, parece que compreender o processo penal como um “processo de partes” é o modo mínimo para fazer com que, à luz do contraditório, possamos deixar que o Ministério Público e a defesa efetivamente produzam a prova, sem que sejam substituídos pelo juiz inquisidor.

Com efeito, no sistema acusatório, o exercício do papel da acusação está ligado a um princípio fundante do processo penal, ou seja, o princípio dispositivo. Centrado na gestão da prova, o processo penal será acusatório se ela não couber, em hipótese alguma, ao juiz.

Ocorre que, quando o juiz não sai à busca da prova – e nem deve sair! –, ao Ministério Público caberá fazer a prova da acusação, o que é o óbvio diante dos dispositivos constitucionais e – agora – do Código de Processo Penal (art. 212).

Desse modo, neste caminho rumo à concretização do sistema acusatório, o Ministério Público não pode restar inerte e permanecer confinado na mediocridade que o sistema inquisitorial lhe reservava, ou seja, de coadjuvante do juiz.

Em suma: a atuação do juiz deve se limitar àquela que lhe confere a Constituição e, para isso, é imprescindível que o Ministério Público assuma a tarefa que lhe foi constitucionalmente atribuída.

Na verdade, ao fim e ao cabo, trata-se simplesmente do dever – inerente ao Estado democrático de direito – de cumprir a lei (constitucional), pois este, como se sabe, é um dos preços impostos pelo direito e, sobretudo, pela democracia!

Ratio final, cabe ainda registrar que o sistema acusatório vem recebendo o tratamento adequado à Constituição por inúmeros juízes, cuja atuação vem se mostrando absolutamente louvável, como se verifica, por exemplo, nas Comarcas de São Borja (Maurício Ramires), Veranópolis (Paulo Meneghetti), Santa Cruz do Sul (Assis Leandro Machado) e Florianópolis (Alexandre Morais da Rosa), entre outras, assim como pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme se verifica nos acórdãos citados no decorrer deste artigo.

Para além de “disputas de poder” ou “disputas corporativas”, trata-se de dar ao (novo) processo penal o que dele é – a prevalência do acusatório – sem se esquecer que novos paradigmas implicam, inevitavelmente, novos olhares.

4. À GUISA DE CONCLUSÃO

Os juristas preocupados com a democratização das relações sociais vêm apostando há décadas na implementação de um sistema acusatório no âmbito do processo penal. Esse processo de convencimento dos legisladores por vezes gera frutos interessantes e alvissareiros, como foi o caso da alteração do art. 212 do CPP. Não importa, aqui, a vontade do legislador ou a sua intenção, discussão essa já superada há muito. O que importa é que ficou estabelecido que o juiz não pode mais inquirir as testemunhas nos moldes como vinha procedendo. Se assim o fizer, o processo é nulo! Chegou o momento de o Ministério Público e a advocacia dizerem a que vieram. A produção da prova é tarefa desses sujeitos processuais.

Trata-se do cumprimento de um comando legal. Não há como tergiversar. Tanto é assim que um juiz ou um Tribunal somente pode deixar de aplicar uma lei nas seguintes circunstâncias:

a- quando a lei (o ato normativo) for inconstitucional, caso em que deixará de aplicá-la (controle difuso de constitucionalidade stricto sensu) ou a declarará inconstitucional mediante controle concentrado;

b- quando for o caso de aplicação dos critérios de resolução de antinomias (nesse caso, entretanto, há que se ter cuidado com a questão constitucional, pois, v.g., a lex posterioris, que derroga a lex anterioris, pode ser inconstitucional, com o que as antinomias deixam de ser relevantes);

c- quando aplicar a interpretação conforme a Constituição (verfassungskonforme Auslegung), ocasião em que se torna necessária uma adição de sentido ao artigo de lei para que haja plena conformidade da norma à Constituição (neste caso, o texto de lei – entendido na sua “literalidade” – permanecerá intacto; o que muda é o seu sentido, alterado por intermédio de interpretação que o torne adequado a Constituição);

d- quando aplicar a nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung), pela qual permanece a literalidade do dispositivo, sendo alterada apenas a sua incidência, ou seja, ocorre a expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de determinada(s) hipótese(s) de aplicação (Anwendungsfälle) do programa normativo sem que se produza alteração expressa do texto legal (observe-se, aqui, que, enquanto na interpretação conforme há uma adição de sentido, na nulidade parcial sem redução de texto ocorre uma abdução de sentido);

e- quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto, ocasião em que a exclusão de uma palavra conduz à manutenção da constitucionalidade do dispositivo (STRECK, Verdade e consenso, op. cit., especialmente o posfácio).

Fora dessas cinco hipóteses, o Poder Judiciário estará se sobrepondo à legislação produzida de acordo com a democracia representativa. Não parece que a nova redação do art. 212 do CPP seja inconstitucional. Logo, se não for inconstitucional ou não estiver em antinomia com outro dispositivo que o afaste, parece razoável que se possa não apenas requerer”, mas, sim, “exigir” que o Poder Judiciário aplique a lei processual, uma vez que o cidadão tem um direito fundamental a uma resposta adequada à Constituição (STRECK, Verdade e consenso, op. cit.).

Em síntese: às vezes, embora em pleno paradigma constitucional, ainda temos certa dificuldade em fazer cumprir até mesmo a racionalidade formal burguesa. No caso, não se está nem mesmo está exigindo que se cumpra “diretamente” a Constituição; está se exigindo somente que se cumpra o Código de Processo Penal. Numa palavra: crise é quando o novo não nasce e o velho não morre; no caso, basta que se deixe vir à tona a nova dicção da lei processual, que sepulta, de vez, o dogma do superadissimo “princípio” (sic) da “verdade real” (que, diga-se de passagem, não resiste a mais do que cinco segundos de discussão filosófica).

FONTE: CONSULTOR JURÍDICO

NOTÍCIAS DESTA TERÇA FEIRA, DIA 12 DE JANEIRO DE 2010

A Folha de S.Paulo informa que a equipe dedicada a estudar a tese jurídica que deverá fundamentar a manutenção do terrorista Cesare Battisti no Brasil, como deseja o presidente Lula, começa o ano com o entendimento de que o argumento mais aplicável ao caso está no temor de perseguição política. É o mesmo usado para o pedido de refúgio rechaçado pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e que fatalmente reabriria uma crise diplomática com a Itália. O pacote de medidas prevê ações para amenizar tais efeitos: um forte trabalho da diplomacia, que nem começou; e entrevistas nas quais Lula atribuiria a manutenção de Battisti no Brasil a "razões humanitárias".


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Desvio de verbas
Em meio ao escândalo do "mensalão do DEM", o grupo empresarial do vice-governador do Distrito Federal, Paulo Octávio (DEM), é acusado de provocar um rombo de R$ 27 milhões aos cofres da Caixa Econômica Federal. De acordo com reportagem do Estadão, o Ministério Público Federal entrou, há três semanas, com cinco denúncias na Justiça Federal contra as construtoras do vice-governador. O procurador da República Carlos Henrique Martins Lima cobra, entre outras coisas, a devolução do dinheiro à Caixa. Paulo Octávio é a aposta do DEM para suceder o governador José Roberto Arruda, que deixou o partido após as denúncias de corrupção no governo.


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CPI da Propina
O Estado de S.Paulo também informa que, sob suspeita, a Câmara Legislativa retorna aos trabalhos nesta segunda-feira em Brasília diante de um cenário contraditório e de pouco perigo para o governador José Roberto Arruda (sem partido). Os deputados prometem instalar nesta tarde a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que vai investigar o esquema de corrupção no governo Arruda. O problema é que ao menos 10, dos seus 24 parlamentares, são suspeitos de ligação com as supostas fraudes.


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Lei da Anistia
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva avalia que foi um erro da Secretaria Nacional de Direitos Humanos incluir no novo plano setorial assuntos relacionados à Lei de Anistia, publica O Globo. Contrariado com os conflitos desencadeados pela versão final do Programa Nacional de Direitos Humanos, o presidente afirmou a auxiliares que esse tema deve ser tratado exclusivamente pelo Poder Judiciário, e não pelo Executivo. Editada em 1979, a Lei da Anistia perdoou todos os atos de autoridades e de opositores cometidos durante a ditadura militar.


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Fim do bate-boca
Surpreso e preocupado com o tamanho da crise envolvendo as Forças Armadas, o Ministério da Defesa e a Secretaria de Direitos Humanos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva baixou a lei do silêncio. Em conversa com um auxiliar direto, Lula considerou grave a troca de farpas entre ministros e disse que pedirá à equipe mais cautela e menos bate-boca pela imprensa sobre o Programa Nacional de Direitos Humanos, para não alimentar a polêmica. A informação é do Estadão.


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Nova edição
Já a Folha de S.Paulo informa que o governo articula uma solução de meio termo para a questão crítica do terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos: em vez de acrescentar ao texto do programa a investigação da esquerda armada durante a ditadura militar (1964-1985), como querem as Forças Armadas, seria suprimida a referência à "repressão política" na diretriz 23, que cria a comissão da verdade. Ou seja, a questão seria resolvida semanticamente, sem especificar a apuração de excessos de nenhum dos dois lados. O texto passaria a prever a apuração da violação aos direitos humanos durante a ditadura, genericamente, sem especificar de quem e de que lado. Essa proposta está sendo colocada pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, e poderá ser aceita pelo ministro de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, que aposta numa "solução de meio termo".


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Despesas secretas
Reportagem de O Globo, informa que os gastos secretos dos cartões corporativos — que incluem a Presidência, a PF e a Abin — tiveram aumento de 52%, entre 2008 e 2009. Em 2008, os três órgãos gastaram R$17,8 milhões e, em 2009, essa soma pulou para R$27,1 milhões. O aumento nos gastos da Presidência foi de 38,9%: passou de R$4,8 milhões em 2008 para R$6,7 milhões ano passado. No total, em 2009 os cartões corporativos consumiram R$64,5 milhões, contra R$55,2 milhões no ano anterior.



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OPINIÃO
O editorial da Folha aponta que duas notícias recentes dão mostras do momento de transição vivido pela Justiça brasileira, ainda marcada por privilégios e falta de transparência, mas capaz de lenta modernização em seu funcionamento administrativo. Uma das notícias diz respeito à fraude descoberta pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que tem 5 mil servidores afastados de suas funções por alegados problemas de saúde. O TJ constatou que houve fraude por parte dos servidores. A segunda notícia diz respeito ao Siafi do Judiciário, que é a publicação de informações referentes à administração orçamentária e financeira dos tribunais de todo o país na internet.

domingo, 10 de janeiro de 2010

NÃO ADIANTA PUNIR OS RICOS PARA EQUILIBRAR A BALANÇA

Por Marina Ito

Está sendo gestado no Congresso Nacional um novo Código de Processo Penal. O atual é de 1941 e desagrada acusação, defesa e os próprios julgadores. Nos últimos meses, muitos pontos do anteprojeto foram discutidos, sobretudo o que trata do juiz de garantias, que ficará responsável exclusivamente pela investigação, mas não vai julgar o processo. O advogado Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, conhecido processualista na área penal, participou da comissão do Senado para elaborar o anteprojeto e avisa: não dá para pensar o novo código com a cabeça no anterior.

Em entrevista concedida à revista Consultor Jurídico, Jacinto Coutinho explica que o ponto primordial do anteprojeto é adequar o processo penal à Constituição. Para isso, é preciso mudar o sistema inquisitório, que tem como característica o juiz buscar as provas, para o acusatório, em que as provas são levadas até o julgador.

Segundo o advogado, o anteprojeto que deve ser apresentado coloca cada figura da Justiça em seu devido lugar. "Com a mudança no papel do juiz, necessariamente, o Ministério Público ganha um novo lugar, que aparentemente é o que ele já ocupa hoje. Só que, hoje, como o juiz pode ter a iniciativa de ir atrás das provas, há uma sobreposição de funções." Para Coutinho, é preciso mudar a cultura inquisitorial que faz parte da formação das pessoas em geral. "Imagino que, se o código vingar, em 10 anos nós teremos uma outra cultura solidificada."

O advogado explica que o anteprojeto pretende mudar o sistema de recursos. Segundo ele, diminui quantitativamente para aumentar qualitativamente. Com recursos funcionando bem, diz, há menos carga para os tribunais, principalmente os superiores, hoje abarrotados de pedidos de Habeas Corpus. "Pela própria natureza, o Habeas Corpus, em geral, acaba não sendo apreciado devidamente. No geral, quem tem grandes advogados acaba usando o Habeas Corpus e dá certo. A grande massa dos réus tem dificuldade até para ter advogados."

Jacinto Coutinho reconhece que o sistema hoje acaba fazendo com que a punição recaia sobre os mais pobres, mas critica quem tenta equilibrar a balança com a punição dos ricos. "Estamos reclamando de que se tem punido os pobres sem cumprir a Constituição. Vamos punir os ricos sem cumprir a Constituição? Não tem sentido." Coutinho é professor titular de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Paraná, conselheiro da OAB pelo Paraná e procurador do Estado.

Leia a entrevista

ConJur — Quais mudanças o anteprojeto do novo Código de Processo Penal propõe?
Jacinto Coutinho — A modificação substancial é no próprio sistema. Hoje, o sistema é inquisitorial, fundado no Código de 1941, cópia do Código Rocco, de 1930, que, por sua vez, é uma deformação do Código Napoleônico de 1808. O Código atual é a expressão do mecanismo utilizado na velha estrutura ordenatória, influenciada pelo processo canônico. Esta estrutura nasceu com a Igreja e se estende até hoje. É um sistema de processo propositadamente desigual. Ele favorece o desnivelamento dos órgãos. Privilegia um e reprime outro. A escolha do sistema é política: ou se permite ao juiz buscar o conhecimento ou faz com que as partes levem o conhecimento ao juiz. Esta é a diferença fundamental entre os sistemas inquisitorial e acusatório.

ConJur — Não é melhor o juiz comandar o processo e buscar o conhecimento sobre o crime?
Jacinto Coutinho — Aparentemente é, porque ele tem um domínio maior do que é feito. Mas isso é um desastre, pois a tendência natural das pessoas é decidir primeiro e depois buscar o conhecimento suficiente para justificar as suas decisões. Isso é muito perigoso, mesmo que a pessoa não aja por mal. O sistema inquisitorial foi criado para ser assim. Quando a Igreja o criou foi para combater tudo aquilo que era contra o pensamento dela.

ConJur — E o que o anteprojeto propõe?
Jacinto Coutinho — Simplesmente colocar o processo em absoluta compatibilidade com a Constituição Federal. Isso é a grande força doa proposta elaborada. Apenas a estrutura acusatória, com um juiz que não produza provas, é compatível com a Constituição. Do jeito que está, o Código está em desacordo com o texto constitucional. A Constituição estabelece o lugar do juiz e dá garantias ao cidadão. O juiz pode decidir, se for o caso, contramajoritariamente para garantir o cidadão contra o todo. Ele faz isso pelos princípios que regem a Constituição, como o da dignidade humana e da isonomia, por exemplo. O processo democrático é aquele que pode ser aplicado a todos. Se tiver que condenar, condena. Não importa se é rico ou pobre. Do jeito que está, há uma preferência pela condenação dos pobres, que não têm de ser absolvidos só porque são pobres. Não é disso que se trata. Mas não dá para imaginar que só porque a pessoa tem dinheiro não comete crime. Nem porque é pobre é que comete. Quem cometeu o crime, se tiver que ser punido, será. Hoje, a regra não tem sido essa. Expor o conhecimento ao juiz é exatamente para que ele tenha isenção suficiente e possa atingir quem deve ser atingido e proteger quem tem de ser protegido. A regra tem que ser clara para que se possa cumprir a Constituição.

ConJur — É difícil o juiz determinar a constituição de provas e, ao mesmo tempo, julgar com isenção?
Jacinto Coutinho — O problema não é julgar. Os juízes fazem um grande esforço para julgar bem. O sistema é torto, entre outras coisas, porque a investigação preliminar é inquisitorial, ou seja, é levada primeiro pelas ideias e hipóteses e, depois, pelos fatos. O juiz tem que ir atrás das provas e é natural que ele tenda a decidir, não só por conta dos fatos, mas por outros fatores, como preconceitos, por exemplo. São seres humanos. Qualquer um que ficar em seu lugar pode fazer o mesmo. O sistema só ajuda a incrementar esse tipo de situação.

ConJur — O juiz está preparado para um sistema diferente?
Jacinto Coutinho — Não. Todos nós, de uma maneira geral, somos treinados dentro de um sistema inquisitorial. Por isso o anteprojeto sofre tanta resistência. As pessoas têm grande resistência ao novo. Só que, dentro da Constituição, não há outra opção. A Constituição é que estabeleceu uma base diferenciada, mas a cultura inquisitorial faz parte da nossa formação. Às vezes, imagens e fofocas valem mais do que os fatos. Pela Constituição, não deve ser assim. Logo os juízes vão descobrir que, dentro da Constituição, não é a função deles correr atrás de prova. Valerá a regra do processo: quem acusa, prova. Ou os juízes vão virar acusadores ou vão perceber que é muito melhor estar nesse lugar de julgar. É melhor para eles e para nós. O juiz vai decidir a favor ou contra, mas será isento, pelo menos, de toda a influência que pesa sobre ele hoje. É muito difícil isso ser feito no atual sistema porque o juiz é empurrado na direção oposta.

ConJur — O senhor disse que, hoje, a punição recai principalmente sobre os pobres. Não existe, até por conta dessa constatação, uma tendência contrária de querer punir os ricos para tentar equilibrar?
Jacinto Coutinho — Ir ao outro extremo é tão injusto quanto o mecanismo atual. Pensar que punimos os pobres e, agora, puniremos os ricos é trocar seis por meia dúzia. É preciso punir os culpados sejam pobres ou ricos. Não parece ser justo, em um país tão desigual quanto este, punir, preferencialmente, os pobres. É um problema na estrutura. É neste aspecto que é preciso uma Justiça equilibrada. Estamos reclamando de que se tem punido os pobres sem cumprir a Constituição. Vamos punir os ricos sem cumprir a Constituição? Não tem sentido.

ConJur — O senhor disse que o anteprojeto muda o papel do juiz. Como fica o Ministério Público com essa mudança?
Jacinto Coutinho — Pelo anteprojeto, a prova é feita para levar o conhecimento ao juiz, sem que ele tenha iniciativa de correr atrás dos elementos probatórios ou fazer papel investigador. Com a mudança no papel do juiz, necessariamente o Ministério Público ganha um novo lugar, que aparentemente é o que ele ocupa hoje. Só que, hoje, como o juiz pode ter a iniciativa de ir atrás das provas, há uma sobreposição de funções. O juiz está fazendo o papel que é do Ministério Público. Não está em questão, mas sequer faz sentido, por exemplo, eles ganharem o mesmo salário. Evidentemente que, do ponto de vista de funções, a do juiz está muito mais sobrecarregada.

ConJur — Então o Ministério Público ganha força com o anteprojeto?
Jacinto Coutinho — Ganha uma importância transcendental porque vai encabeçar a ação. Com isso, o Ministério Público deverá dar conta da acusação e produzir provas que sejam capazes de levar à condenação. Se isso não for feito e ficar uma dúvida razoável, o juiz deve absolver. Claro que o Ministério Público tem papel de destaque no país de modo tal que vem ganhando independência e condições de formular acusações contra os mais poderosos e, se tiver fatos e provas, levar à condenação. Coisa que não raro, hoje, ele não consegue fazer. Há muita dificuldade por conta dos meandros do próprio sistema que fecham as portas para ele. Imagino que, com as mudanças propostas, o Ministério Público vai ter mais trabalho, pois terá de estar mais atento, mas os promotores ganham para isso e estão capacitados para tanto. Eu tenho a esperança de que mude também a cultura do Ministério Público. Hoje, muitos não têm um grau de maturidade constitucional adequada. Não é só acusar por acusar. Isso também é cultural e sempre vem com o tempo.

ConJur — O anteprojeto acaba com a polêmica sobre o papel investigatório do MP?
Jacinto Coutinho — Constitucionalmente, a investigação preliminar é feita por órgãos que a lei determina. A investigação de crimes na Constituição está vinculada à atuação da Polícia Judiciária, no âmbito federal e estadual. Toda a investigação é preliminar ao processo para saber se há condições necessárias para ajuizar a ação. A lei estabelece que outros órgãos podem investigar crimes, mas não há previsão para o Ministério Público, senão nos casos de crimes cometidos pelos próprios órgãos do MP. É preciso criar mecanismos de interpretação que levem a outra conclusão. Até pouco tempo ninguém duvidava de que cada um cumpria sua missão. Eu mesmo acho que a estrutura deve ser acusatória, com o Ministério Público sendo o senhor da ação. Ele deve, por exemplo, ter controle do que se investiga porque, se a investigação for insuficiente, não tem como acionar o Judiciário e o trabalho do MP estará comprometido.

ConJur — O anteprojeto modifica isso?
Jacinto Coutinho — A comissão chegou à conclusão de que era melhor manter a investigação com a Polícia, com um controle externo do Ministério Público, tal como prevê a Constituição. Não há exclusividade da Polícia, mas só fazem investigação os órgãos que a lei estabelece. Não há nenhuma lei onde esteja escrito que o Ministério Público vai fazer um outro tipo de investigação com outra finalidade. Tanto que a Constituição prevê que, nas hipóteses de crime, o MP requisite à Polícia e depois acompanhe. Eu mesmo não me envolvi nessa discussão porque, do ponto de vista acusatório, o MP sai do lugar que eles ocupam. Claro que fica meio complicado, por exemplo, eles escolherem os crimes que querem investigar. O que tem causado muita polêmica é isso. E não tem produzido o efeito que devia produzir em investigações recentes. Muito da falta de resultado diz respeito não só às más condições com as quais eles investigam, mas à própria qualidade da investigação que eles têm feito. Eu sou cético quanto a esse ponto, mas a realidade mostra uma situação delicada, que balança os juízes e os ministros, quando se trata de crimes cometidos por policiais e que são investigados pela própria Polícia. Não estou falando de lei, estou falando da vida. A vida empurrou para essa situação.

ConJur — O Pedro Abramovay [secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça] disse, em um evento recente, que antes de se fazer uma reforma do Código, deveria haver um tempo para que as minirreformas tivessem mais tempo de aplicação.
Jacinto Coutinho — Claro que não. Nada contra o Pedro, meu amigo que gosto e respeito. O problema das reformas parciais é que o defeito começa pelo sistema. Em um conjunto, mexer em um elemento produz efeito no sistema inteiro. O que acontece com as reformas parciais é que se mexe em um ponto, mas não consegue calcular o efeito que vai produzir no todo. Com isso, acaba consertando um ponto e desarrumando outro. Da forma como o código está hoje é algo impraticável porque, simplesmente, não tem condição material para operar.

ConJur — O senhor acha que as pequenas reformas pioraram o Código?
Jacinto Coutinho — Acho que muitas delas pioraram excepcionalmente o código, de modo a chegar nesse colapso a que se chegou. Exemplo clássico está na reforma de 2008, que dentre enormes inconstitucionalidades patentes, só reforçou o sistema inquisitorial, que é o que estamos vivendo. Isso é uma tragédia. As comissões que fizeram as reformas incluíram pessoas muito boas, especializadas, mas não dá mais. O código virou um grande remendo que não funciona. Se funcionasse, paulatinamente, daria para colocar um remendo, mas não foi assim que aconteceu, daí a necessidade de uma reforma global.

ConJur — Como fica a questão dos recursos no anteprojeto? A proposta é diminuir a quantidade de recursos?
Jacinto Coutinho — Os recursos mudam para, tecnicamente, ficarem mais adequados. Uma das coisas que o sistema inquisitório introduziu foi um mecanismo de recursos inadequado, absolutamente ultrapassado. Ele é tão inapropriado que foi sendo superado. Têm alguns recursos que não se utiliza mais ou que são mal utilizados. Isso provocou uma grande defasagem que acabou levando a um uso excessivo dos Habeas Corpus. O Habeas Corpus é usado, hoje, como substitutivo dos recursos. De um lado, é uma solução. De outro lado, um desastre. Pela própria natureza, o pedido de Habeas Corpus acaba não sendo apreciado devidamente. No geral, quem tem grandes advogados acaba usando o Habeas Corpus e dá certo. A grande massa dos réus tem dificuldade até para ter advogados. Cria-se assim uma grande injustiça. Com os recursos, isso muda de figura. Isso tem que ser pensado sempre. O sistema de recurso no projeto está moldado e pautado diante de uma situação primordial: a mais ampla presunção de inocência. Há todo um rigor em relação ao tempo. Isso vai dar uma maior habilidade para os recursos. O anteprojeto propõe outra disposição para os Habeas Corpus para forçar que se use a via dos recursos e não dos HCs. Os tribunais são obrigados a olhar mais adiante para analisar a questão de fundo.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

NÚMERO DE EMBARGOS PROVIDOS JUSTIFICA MANUTENÇA DO RECURSO

Número de embargos justifica manutenção do recurso

Por Marina Ito

Uma das propostas que estão sendo analisadas pelo Congresso Nacional no anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal é a que muda a regra dos Embargos Infringentes. Previsto tanto no processo civil quanto no penal, o recurso permite que, quando há voto divergente em decisão colegiada, a questão possa ser analisada por um novo colegiado. A proposta pretende fazer com que os Embargos Infringentes só sejam possíveis nos processos em que a sentença absolve o réu e o tribunal, por maioria de votos, reforma a decisão de primeiro grau para condenar.

De acordo com o artigo 609, do Código de Processo Penal, hoje, "quando não for unânime a decisão de segunda instância, desfavorável ao réu, admitem-se Embargos Infringentes e de nulidade, que poderão ser opostos dentro de 10 dias, a contar da publicação de acórdão, na forma do artigo 613. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto de divergência”.

Para o advogado Antonio Pedro Marques, a mudança na regra dos Embargos Infringentes em matéria penal tem de ser vista com cautela. Ao analisar os dados das Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Marques, que é estagiário da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, lotado no gabinete do desembargador Geraldo Prado, constatou que foram 109 decisões que negaram o recurso em Embargos Infringentes em processos cuja sentença foi condenatória. Já os que proveram Embargos Infringentes somaram 68, para ele, número suficiente para mostrar que o recurso não é apenas mais um degrau no processo penal.

“Não raras as vezes a vontade contra majoritária presente na decisão colegiada – mormente quando pese uma sentença condenatória na origem – ao se consagrar vencedora no julgamento dos Embargos Infringentes, apresenta-se como vital elemento de oxigenação do Direito, fortalecimento da amplitude da defesa e materialização de um processo penal essencialmente democrático”, entende.


Para ele, a constatação de decisões em Embargos Infringentes que mudaram o resultado em favor do réu mostra que a urgência como medida para dar mais agilidade ao processo penal deve ser analisada com cuidado. “A possibilidade de se recorrer com fundamento na vontade contra-majoritária do voto vencido cumpre inesgotável papel de maturação da decisão penal e, por conseguinte, de legitimidade do ato de poder inerente à sanção criminal.”

Antonio Marques fez a pesquisa no Tribunal de Justiça fluminense, levantando dados de 2009, em que apareciam os termos "embargos e infringentes”. A 8ª Câmara, por exemplo, segundo a pesquisa, proveu seis Embargos Infringentes e desproveu 27. A 5ª e a 7ª Câmaras aparecem como as que mais proveram o recurso em que o réu foi condenado pelo juiz de primeiro grau e a condenação foi mantida, por maioria, no tribunal. A 5ª reformou a decisão 19 vezes contra quatro embargos desprovidos. Já a 7ª proveu 13 contra oito desprovidos.

“Ainda que o réu tenha sido condenado, o simples fato de ter sido a condenação mantida por maioria já demonstra estar plantado no seio do tribunal a legitimidade da tese defensiva”, afirma Antonio Marques.

A pesquisa foi feita por Marques na condição de estagiário da Emerj para o trabalho apresentado pelo desembargador Geraldo Prado, da 5ª Câmara Criminal, pelo programa de pós-graduação da Universidade Estácio de Sá no encontro de pesquisadores da Unesa e da UFPR.