terça-feira, 27 de maio de 2014

Absolvição em processo criminal não dá direito à indenização por danos morais

O réu absolvido em processo criminal não tem direito a receber indenização por danos morais. Este foi o entendimento da 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região ao negar o pedido feito por um homem processado por denúncias de irregularidades em obras na sua residência, tombada pelo patrimônio histórico. A ação já havia sido considerada improcedente pela 1ª Vara Federal de Tubarão (SC).
O autor da ação havia sido acusado pelo arquiteto do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) de restaurar seu imóvel indevidamente. Então, após ser absolvido no processo criminal, ajuizou ação contra a União, o Iphan e um servidor do órgão, pedindo indenização por danos morais.
Alegou ainda, que passou por situação extremamente constrangedora e dispendiosa ao responder ao processo criminal para provar a sua inocência. Diz que mesmo inocentado sua moral ficou abalada em razão da condição de réu, pois tem condições econômicas, profissionais e sociais significativas, sendo sócio-proprietário de três empresas.
Ao analisar recurso do autor ao TRF-4, o desembargador Luiz Alberto d’Azevedo Aurvalle, relator do processo, confirmou a decisão de primeira instância e manteve a sentença. Em seu voto, reproduziu um trecho em que diz: “o fato de ter sido processado e julgado inocente em ação criminal, por si só, não tem como ensejar a responsabilidade da União (por ato do titular da ação penal) ou do servidor do órgão ambiental do qual emanou a notícia crime (no caso, o arquiteto do Iphan), uma vez que é função institucional do Ministério Público a promoção de ação penal pública, nos termos do art. 129, I, da Constituição Federal”.
Segundo o magistrado, o autor respondeu a processo judicial criminal com todas as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, sendo processado e sentenciado por autoridade competente. "Embora reconheça a situação incômoda vivenciada pelo autor, não vislumbro a caracterização do dever de indenizar dos réus, uma vez que não há comprovação de conduta ilícita a ensejar a reparação pretendida. Ademais, a ação penal ajuizada foi favorável ao autor, não incidindo nenhuma espécie de punição, danos emocionais ou a sua imagem", escreveu. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRF-4.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Interpretação ultrapassada - PT vai ao Supremo contra exigência de um sexto da pena para trabalhar

O Partido dos Trabalhadores quer que o Supremo Tribunal Federal discuta a constitucionalidade da exigência do cumprimento de um sexto da pena para que o preso possa trabalhar fora da prisão. O partido ajuizou no domingo (25/5) uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) para que “seja afastada a aplicação do requisito objetivo prévio de um sexto da pena para prestação de trabalho externo por apenados em fase de regime semiaberto”.
De acordo com a inicial da ação, assinada pelo advogado Rodrigo Mudrovitsch, essa parte do artigo 37 da Lei de Execução Penal não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988. O argumento é que o dispositivo não é compatível com o inciso XLVI do artigo 5º da Constituição, segundo o qual a lei deve regular a individualização da penal, e com o inciso XLIX do mesmo artigo, que diz: “É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”.
O contexto político da ação são as recentes decisões do ministro Joaquim Barbosa, relator da Ação Penal 470 (mensalão), de cassar as permissões dos réus que cumprem pena no regime semiaberto de trabalhar fora do presídio. Barbosa já cassou as permissões dos ex-deputados Valdemar da Costa Neto, Bispo Rodrigues, ambos do PR, e Pedro Corrêa (PP); do ex-tesoureiro do PL Jacinto Lamas; do ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares; do advogado Rogério Tolentino; e do ex-deputado Romeu Queiroz.
Em suas decisões, Joaquim Barbosa afirma que, embora haja precedentes do Superior Tribunal de Justiça afastando a aplicação do artigo 37 da LEP a condenados ao regime semiaberto, há também decisões das turmas do Supremo que não autorizam o afastamento da aplicação da regra.
Criminalistas ligados à discussão atestam que os tribunais de Justiça do país inteiro não aplicam a regra da Lei de Execução Penal para autorizar o trabalho interno. A interpretação é a de que a exigência de cumprimento de fração da pena só se aplica aos condenados em regime fechado. Por mais que o regime inicial de cumprimento seja o semiaberto, não deve haver essa exigência, afirmam.
Nova ordem
O contexto jurídico da ADPF é que o artigo consta da redação original da lei, de 1984. Mudrovitsch explica que a norma não diferencia se as exigências nela descritas se aplicam a condenados no regime aberto, semiaberto ou fechado. No entanto, vigia no Brasil, na época em que a lei foi editada, a Constituição de 1967, alterada pela Emenda Constitucional 1, de 1969. Isso significa que, à época, “as técnicas de ressocialização do apenado ainda se fundamentavam essencialmente no seu encarceramento”.
Não havia, segundo a inicial da ADPF, maiores preocupações com a ressocialização do condenado. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a redemocratização do país, diz a ação, “a interpretação do ato ora impugnado sofreu considerável alteração, uma vez que não se afigura compatível com a nova ordem constitucional a exigência dos requisitos legais para que os condenados ao regime semiaberto possam exercer trabalho externo”.
A ADPF cita inúmeros julgados do STJ em que a aplicação do artigo 37 da LEP é afastada para condenados que cumprem pena no semiaberto, ainda que o regime tenha sido o inicial da pena. “É fácil reconhecer, portanto, que o posicionamento jurisprudencial pátrio evoluiu no sentido de que o requisito temporal objetivo fixado pelo artigo 37 da LEP não deve ser aplicado aos condenados em regime semiaberto, adequando-se a interpretação legal aos ditames constitucionais instituídos pela Carta Política promulgada em 1988.”
Segundo Rodrigo Mudrovitsch, há mais de dez anos não se encontra na jurisprudência do STJ decisões determinando a aplicação da regra do cumprimento de um sexto da pena. As decisões que ele encontrou do Supremo em que a regra é aplicada são apenas as do ministro Joaquim Barbosa, no processo do mensalão. Para o advogado, o resultado dessas decisões foi a “ressurreição da ultrapassada interpretação” de que a regra do artigo 37 se aplica aos condenados em regime semiaberto.
Pena e dignidade
A inicial da ação afirma que a Constituição Federal de 1988 traz como direitos fundamentais a individualização da pena e de seu cumprimento e a garantia de integridade física e moral. Para o autor da ação, não se trata de “benefício de ordem garantista”, mas de formas de garantir “a reinserção do condenado ao convívio social”.
“Trata-se, portanto, de preceitos fundamentais à concretização da pena estatal, a qual, em nossa contemporaneidade, despe-se do viés punitivo, até mesmo vingativo, que permeou sua aplicação primitiva”, diz a ADPF.
De acordo com as alegações do PT na ação, a exigência abstrata do cumprimento de um sexto da pena atenta contra o princípio da individualização, já que cria regras para o retorno do condenado ao convívio social “de modo alheio às condições individuais do apenado”. Por isso, continua a ação, enquanto a Constituição determina que a finalidade da pena seja ressocializar, a exigência do cumprimento de um sexto da pena “impõe óbice em sentido contrário”.
O PT também afirma que a individualização da pena não é uma garantia só do condenado, mas também da sociedade. “De acordo com a concepção contemporânea, o cumprimento particularizado da sanção penal não se caracteriza exclusivamente como uma relação vertical entre o encarcerado e o poder público”, diz a ação. “Pelo contrário”, continua, “a individualização da execução da pena adquire contornos majoritariamente prestacionais, exigindo, inclusive, ações positivas do Estado voltadas a permitir a efetiva reintegração do apenado à sociedade”.
Clique aqui para ler a petição inicial.
ADPF 321

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Planos econômicos - Juros em ACP contam a partir do início da ação, julga STJ

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça decidiu na tarde desta quarta-feira (21/5) que os juros de mora em ações civis públicas correm a partir da citação inicial no processo, e não da data da liquidação da sentença. A decisão — por 8 a 7 — afasta recurso de bancos, segundo os quais os juros valeriam a partir da citação na execução individual.
A decisão foi tomada no julgamento de recursos que se referem ao Plano Verão — um dos mecanismos de indexação da economia para recompor perdas decorrentes da inflação, e vale para todas as ações coletivas do país. Portanto, vai afetar as ações que discutem reajuste de plano de saúde, cobrança abusiva, indenização por dano ambiental, entre outras.
Para o banco, os juros deveriam ser contados a partir da data da liquidação da sentença, e não do início do processo. Com esse entendimento, o ministro relator Raul Araújo votou a favor dos bancos, sendo seguido por Gilson Dipp, Laurita Vaz, João Otavio Noronha, Maria Thereza de Assis Moura, Napoleão Nunes Maia Filho, Felipe Salomão.
O voto vencedor no caso partiu do ministro Sidnei Beneti (foto), que discordou do relator para reconhecer a contagem dos juros a partir da citação na Ação Civil Pública, e acrescentou que "a pretensão dos bancos vem contra a razão de ser da Ação Civil Pública". Foi seguido pelos ministros Ari Parglender, Nancy Andrighi, Arnaldo Esteves Lima, Antonio Herman Benjamin, Humberto Martins, Og Fernandes, Felix Fisher.
Dois recursos
São dois os recursos que discutem o termo inicial da contagem de juros de mora na reposição de expurgos inflacionários decorrentes em cadernetas de poupança, ambos afetados sob o rito dos recursos repetitivos, (Resp 1.370.899/SP e Resp 1.361.800). Inicialmente, seriam julgados diretamente pela 2ª Seção, que reúne os ministros da 3ª e da 4ª Turmas.
A ministra Maria Teresa contestou nesse sentido e disse que a Corte Especial não deveria julgar dois recursos que trazem, consequentemente, dois relatores. O ministro Salomão concordou e entendeu que o caso deveria ter sido julgado pela 2 seção. Mas como a maioria votou a favor da Corte Especial, deu-se início ao julgamento.
Os recursos eram de execuções movidas por poupadores com base nas decisões proferidas nas ações civis públicas contra o Banco do Brasil e Banco Bamerindus (atual Banco HSBC), casos em que foram reconhecidos o direito à diferença da correção monetária do Plano Verão.
Inicialmente, o caso a ser julgado seria o recurso interposto pelo Banco do Brasil, sob relatoria do ministro Sidnei Beneti. No entanto, os ministros João Otávio Noronha e Villas Bôas Cueva se declararam impedidos de julgar o caso, o que reduziu o quórum da Seção. Noronha era diretor jurídico do BB antes de ser nomeado ministro e Cueva é marido da procuradora-geral da Fazenda Nacional, Adriana Queiroz.
A solução encontrada pelos ministros foi, então, escolher outro caso como paradigma. Foi afetado, assim, o recurso que discute a mesma matéria, de relatoria do ministro Raul Araújo Filho.
O pedido do INSS para que o recurso fosse afetado para o órgão máximo do STJ leva em conta conflitos nas jurisprudências da 1ª e da 2ª seções. A Seção de Direito Público entende que os juros começam a contar a partir da citação da Fazenda Pública, ou seja, do início do processo. Já a 4ª Turma, parte da 2ª Seção, entende que os juros só passam a ser contados a partir da liquidação da sentença. Coube, então, à Corte Especial a decisão.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Servidor que tem filho com deficiência mental tem direito a carga horária menor

Uma vez comprovado que o filho de um servidor tem grave deficiência mental, exigindo assistência diuturna, ele faz jus à concessão de horário especial sem necessidade de compensação. O entendimento, pacificado na jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, foi usado para garantir a uma servidora pública federal o direito de ter sua carga horária de trabalho reduzida de 40h para 20h semanais para cuidar de seu filho, portador da síndrome de Down. A decisão foi do desembargador federal Néviton Guedes.
Em primeira instância, o juiz condicionou a alteração do horário à redução proporcional de sua remuneração. Ele embasou a decisão no argumento de que a redução da jornada de trabalho sem a redução da remuneração não tem amparo legal.
Entretanto, ao recorrer ao TRF-1, a servidora afirmou ter comprovado no processo que seu filho, menor de idade, é pessoa com deficiência física e necessita de acompanhamento constante. Essa condição asseguraria o direito a obter redução da jornada laboral sem a redução da remuneração. Ela ampara seu pedido no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e proteção à família.
O Decreto Legislativo 186 aprovou a “Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência”, assinada em 30 de março de 2007 e ratificada pelo Brasil em agosto de 2008. O documento, entre outros pontos, destaca a preocupação com o respeito pelo lar e pela família e, sobretudo, da criança com deficiência, exigindo um padrão de vida e proteção social adequados. Os direitos assegurados pela Convenção passaram a gozar do status de direitos fundamentais, pois o documento equivale a uma emenda constitucional.
O artigo 98 da Lei 8.112/1990 concede horário especial para o servidor com deficiência física sem a necessidade de compensação. Entretanto, quanto ao servidor que tenha filho com deficiência física, a legislação autoriza o horário especial à condição de haver compensação de horário. Assim, o desembargador federal Néviton Guedes ressaltou a necessidade de questionar se a Lei 8.112 ainda é compatível com o que estabelece a Convenção. “Esse regime diferenciado parece não atender ao escopo de diversas normas constitucionais e àquelas veiculadas na Convenção internacional sobre os direitos dos portadores de deficiência, à medida que confere tratamento menos abrangente ao portador de deficiência sob os cuidados do servidor do que ao servidor quando ele próprio é o portador da deficiência. Com isso, estabelece injustificável tratamento preferencial ao adulto com deficiência em relação à criança com deficiência”, afirmou.
O desembargador afirmou que a Lei 7.853/1989 já assegurava à servidora o direito requerido, pois garante a pessoas com deficiência, entre outros direitos, o tratamento prioritário da Administração Pública federal, ao estabelecer que esta mesma Administração conferirá aos assuntos relativos às pessoas com deficiência tratamento prioritário e apropriado, para que lhes seja efetivamente ensejado o pleno exercício de seus direitos individuais e sociais, bem como sua completa integração social.
Néviton Guedes entende que a redução de horário mediante compensação remuneratória seria uma resposta ainda mais prejudicial aos interesses da família da criança com deficiência e, certamente, não atenderia constitucional e legalmente aos objetivos traçados, seja na Lei 9.853/1989, seja na Convenção ou na Constituição Federal. “A criança portadora de síndrome de Down necessita de cuidados especializados que lhe permitam desenvolver, ao máximo, suas capacidades físicas e habilidades mentais. Obviamente, esse tratamento tem custo elevado, sendo inviável impor à recorrente redução de seus rendimentos, considerando que tal ônus poderia, até mesmo, inviabilizar a continuidade desse tratamento”, concluiu o desembargador. Ele concedeu à servidora a redução de horário para 20h semanais, sem compensação de horário ou redução remuneratória. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRF-1.
Processo 513163320134010000

terça-feira, 20 de maio de 2014

Não cabe exigir comprovação de veracidade em reportagem com denúncia

LIBERDADE DE IMPRENSA

Não cabe exigir comprovação de veracidade em reportagem com denúncia


A publicação de reportagens com denúncias não exige a certeza de sua veracidade, sob pena de se criar obstáculo grave à liberdade de imprensa e ao direito à informação. Com esse entendimento, o juiz de direito Rodrigo Nogueira, da 26ª Vara Cível de São Paulo, julgou improcedente ação movida pelo pastor Josivaldo Batista de Souza, da Igreja Mundial do Poder de Deus, contra a revista IstoÉ. A advogada Lucimara Ferro Melhado defendeu a publicação.
A reportagem trata da crise financeira da igreja. O texto elenca uma série de motivos para as dificuldades: a atuação de uma “quadrilha de pastores ladrões, dívidas milionárias com canais de televisão, administração amadora e investimentos equivocados na construção de templos”.
O pastor, que era responsável pela gestão administrativa e financeira da instituição, é citado três vezes. A reportagem afirma que havia um grupo próximo a Josivaldo “agindo como lobos em pele de cordeiro”. “Era gente pedindo avião para fazer não sei o quê, para ter programa na televisão não sei onde, para abrir igreja em um grotão aí”, afirmou um membro da hierarquia paulista da igreja à revista.
De acordo com a reportagem, motivado pelas dívidas, calotes e traições, o líder da IMPD, Valdemiro Santiago de Oliveira, transferiu Josivaldo para Lisboa. Em seu lugar, empossou o bispo Jorge Pinheiro, marido da irmã de sua mulher.
Na ação, Josivaldo afirma que sua honra foi atingida por a revista ter extrapolado os limites da informação. Ele pediu indenização por danos morais no valor de R$ 500 mil.
Em sua decisão, o juiz Rodrigo Nogueira escreveu que “é suficiente que a notícia esteja amparada em levantamento jornalístico sério, desprovido de má-fé, voltado a atender aos interesses da sociedade, como foco na informação. Não podem ser ignoradas as circunstâncias de cada caso, que podem dificultar levantamentos mais precisos, como a inexistência de fontes confiáveis, sigilo de documentos, urgência ou atualidade da notícia”.
Nogueira sustentou ainda que a reportagem não extrapolou o direito de informação e liberdade de imprensa, conforme os artigo 5, inciso IX e XIV e 220, da Constituição, e que não houve intenção de atingir a honra ou imagem dos envolvidos, “não se olvidando que as poucas referências a ele [Josivaldo] são sérias, com caráter meramente narrativo, sem adjetivações ou cunho sensacionalista”. O juiz colocou fim ao processo, com resolução de mérito.
Clique aqui para ler a decisão.
Processo 1106234-29.2013.8.26.0100

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Estado deve dar passo à frente para restabelecer autoridade

Ao lado de atrocidades perpetradas impunemente pelo país afora, eclodiram recentes manifestações populares, algumas violentas, contra desastradas políticas públicas, nomeadamente relacionadas com transporte e segurança. Assistiu-se a protestos exigindo melhoria dos serviços públicos, o fim da corrupção e contra os excessivos gastos com obras da Copa do Mundo.
Rivalizando manifestações ordeiras, vimos ações de depredação de prédios públicos e privados, recurso à força utilizada por grupos vestidos de preto, disfarçados e mascarados, intitulados black bloc, sem ideologização determinada e baixo nível de consciência política.
No rastro desse roldão, em várias capitais brasileiras infiltraram-se bandos pilhados na posse de facas, canivetes, esferas de aço, estiletes, máscaras e escudos, tudo indicando efetiva participação do crime organizado em meio às turbas desorganizadas.
A esse piquete desordenado acorreram os rolezinhos, encontros marcados pela internet por jovens em busca de diversão, na maioria adolescentes, cuja origem remonta a uma lamentável tentativa legislativa de barrar a realização de bailes funks nas ruas da capital paulista.
Muito trabalho para a Segurança Pública dos Estados e baixa eficiência no controle da multidão ensandecida, além de pouca compreensão do fenômeno, que promete repetir-se durante os eventos da Copa do Mundo.
Com os jogos internacionais marcados e uma campanha eleitoral interna prestes a ser deflagrada, vem a talho um velho dilema: a quem compete manter a ordem? Nossa forma federativa é a ideal para o enfrentamento da crise que se anuncia?
A falta de cultura federalista sedimentada tem produzido improfícuos embates entre os poderes central e locais. Insta lembrar estes dois modelos de federalismo: por agregação e por segregação. Os Estados Unidos da América do Norte adotaram o primeiro modelo, sendo o Estado Federal o resultado da agregação de Estados autônomos que a ele preexistiam (movimento centrípeto). O brasileiro adotou o segundo, forma pela qual um Estado Unitário descentraliza-se a ponto de gerar diversos centros de poder a ele justapostos (movimento centrífugo).
Nosso primevo Estado federativo teve como justificativa implementar melhorias na prestação de serviços públicos, porquanto o poder descentralizado garantiria maior eficiência, o que asseguraria o devido respeito aos direitos humanos. Paradoxalmente a essa ideia embrionária, mais de um século depois, instituímos a federalização dos crimes contra os direitos humanos, agora com estofo na ideia de que o poder central é que pode melhor cuidar das recorrentes violações, sendo competente para o julgamento a Justiça Federal.
Federação exige equilíbrio, combinação de forças, competências bem distribuídas entre seus entes federados. Aqui, isto ainda não foi alcançado, mais pela falta de percepção das responsabilidades de cada um dos centros de poder do que pelo desenho federativo escolhido desde a nossa primeira República. É um corpo sem alma.
Esse ausente espírito federalista, de cooperação e coordenação, faz com que fique cada vez mais distante a famigerada reforma tributária ou a não menos importante reforma política. E, o que dizer sobre o mau exercício da repartição de competências nas áreas da educação, saúde e segurança?
Para descalibrar ainda mais nosso pacto federativo, a FIFA vem com todo o seu peso político impor regras para desregrar ainda mais nossa ordem interna, bastando citar a exigência de liberação da venda e consumo de cervejas dentro dos estádios. Paradoxalmente, nossa Lei de Trânsito proíbe a condução de veículos automotores após a ingestão de bebida alcóolica. Teremos milhares de torcedores voltando para casa em flagrante descumprimento da lei, já que as cidades onde ocorrerão os jogos não dispõem de sistema de transporte público apto a atender a tanta gente!
E, quem é o responsável por toda essa insegurança a que assistimos atônitos? Buscam alguns políticos uma rota de fuga quando o assunto é responsabilização. Em ano eleitoral, não faltam propostas que beiram o miraculoso. O assunto é sério e o cidadão já não se deixa enredar por promessas vãs, pois sabe que viver — ou sobreviver — é uma questão de fazer escolhas certas.
Com o anúncio de protestos violentos, somado à infraestrutura inadequada dos grandes centros urbanos, o turismo não será o carro-chefe desta Copa de 2014. Não deveria ser assim. São bilhões de reais investidos em preparativos para esse evento mundial. A imagem do país está em jogo. Compromissos internacionais também. É preciso utilizar todos os instrumentos de que dispomos para minimizar impactos negativos.
União, Estados e municípios devem atuar em conjunto para garantir a segurança das pessoas e a integridade do patrimônio público e privado. A Constituição Federal autoriza mais que isso: permite que as Forças Armadas atuem para garantir o funcionamento dos poderes constituídos e para assegurar o cumprimento da lei e da ordem (artigo 142).
É certo que deve ser garantido o exercício da cidadania através de manifestações populares, sempre que imantadas por apelos sociais, ancoradas nos direitos de lazer, liberdade de manifestação e de reunião. Não devem, todavia, impedir igual liberdade a quem pretenda assistir ou participar dos jogos da Copa.
Neste ponto, assinale-se que o inciso XV do artigo 5º da Constituição Federal estabelece ser livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens. É pacífico na doutrina e jurisprudência pátrias que o turista, cidadão estrangeiro, goza dos mesmos direitos fundamentais de um nacional. Todos têm direitos, sem distinção de qualquer natureza.
A Lei Geral da Copa (Lei 12.663/2012) descreve crimes de natureza temporária, visando a inibir práticas muito mais voltadas à tutela econômica do evento desportivo do que para garantir a segurança de seus participantes. Temos leis que coíbem a violência e as depredações que alguns grupos prometem promover durante os jogos.
Protestos violentos podem ser enquadrados em práticas terroristas. Amoldam-se, em tese, ao artigo 20 da à Lei dos crimes contra a segurança nacional (Lei 7.170/1983), cuja pena varia de 3 a 10 anos de prisão para quem “devastar, saquear, extorquir, roubar, sequestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas.”
Referida Lei está em vigor, mas ninguém tem a coragem ou a pretensão de aplicá-la por ter sido editada em pleno regime de opressão do Governo Militar. A toque de caixa, buscam-se alternativas legislativas, sendo exemplo o PL 499/2013 do Senado, que define crimes de terrorismo, com penas muito mais opressivas e severas que a militar, variando de 15 a 30 anos de prisão. Eis aí mais um paradoxo, democracia mais dura que a ditadura!
Federação requer razoabilidade diante de direitos fundamentais em rota de colisão, devendo-se compatibilizar a liberdade de locomoção do torcedor, nacional e estrangeiro, com a liberdade de manifestação de insurgentes, reprimindo-se com vigor tão somente protestos violentos e a criminalidade organizada infiltrada. Espera-se que os serviços de inteligência estejam separando o joio do trigo!
Os abusos podem vir dos dois lados, de agentes públicos e particulares, sendo de rigor puni-los igualmente. Nas palavras do jurista e intelectual baiano Carlos Valder do Nascimento, “designadamente, dentro da realidade cambiante, o que importa proteger, seja em que circunstâncias forem, é a dignidade da pessoa humana. Esta sim, que constitui o próprio fundamento da República Federativa do Brasil. Então, não se pode admitir a perseguição odiosa por meio de instrumentos legais distorcidos ou meios suasórios inconsequentes, para alcançar objetivos ilegítimos.” (in Abuso do exercício do direito: responsabilidade pessoal, São Paulo: Saraiva, 2013, p. 117).
É preciso dar um passo à frente para restabelecer o princípio da autoridade. O Estado dispõe de meios para gerir manifestações ordeiras e repelir o abuso, as multidões ensandecidas, o poder paralelo do crime organizado. O recente e brutal assassinato de um cinegrafista de televisão, durante uma manifestação no Rio de Janeiro, é um sinal do que vem pela frente. A democracia foi desafiada e nossa desunião pode colocar em risco o pacto federativo. Que a Copa do Mundo de 2014 não seja a discórdia, mas a cola que faça grudar ainda mais nossa Federação!

Paridade de armas é necessária para bom combate processual

A doutrina[1], a jurisprudência[2] e a própria lei[3] por vezes se serve da analogia para se referir ao princípio da igualdade no processo difundindo a expressão paridade de armas ou igualdade de armas necessárias para o bom combate ou litigância processual entre adversários, uma forma de explicar a necessidade de que as partes, do início ao fim, tenham as mesmas condições, possibilidades e oportunidades para que possam obter uma decisão justa do órgão judicial. Tais jargões jurídicos, nos tempos atuais não estariam mais em total sintonia com o princípio da consensualidade como escopo do processo, sobretudo civil. Daí talvez fosse o caso de se cogitar da propagação de expressões mais afinadas com o processo contemporâneo, baseado na prevalência dos direitos humanos e da pacificação.
Assim, as armas, o duelo e o combate não teriam mais predominância no campo processual e deveriam concorrer ou dar lugar a outras figuras de linguagem afinadas com os sujeitos cooperantes e com os protagonistas do contraditório. Isto porque uma nova concepção do processo busca configurar um cenário menos de luta jurídica e mais de tentativas de paz; menos de briga judicial e mais de cooperação e balanceamento entre pretensões; menos de sentença exclusivamente impositiva, porém, antes de tudo, de conciliação e mediação; menos de agudeza de ânimos e mais de consenso e harmonia; menos de litigantes e mais de agentes cooperantes que buscam uma boa e serena solução; menos de rivalidade, busca de vantagens e tomadas de posições estratégicas sorrateiras e mais de diálogo franco e aberto; menos de duelo processual e mais de concordância e satisfação total das partes; menos ambiente de peleja e astúcia entre advogados[4] e mais de compreensão e coerência técnica entre representantes das partes; menos de vitoriosos e derrotados, mas, acima de tudo, de beneficiários do processo justo.
A denominada igualdade de armas, o bom combate, o duelo processual e a litigância entre adversários vencedores e vencidos muito embora percam espaço para os novos anseios dos consumidores da Justiça e das novas aspirações podem perfeitamente adequar-se ao espírito de colaboração, hoje fundamental no início do procedimento e recomendável em qualquer fase ou grau de jurisdição.
Numa visão técnica a igualdade e o devido processo constituem importantes garantias da jurisdição, esta caracterizada pela decisão consciente, segura e produto de uma analise completa da relação material conflituosa. A ressalva se centralizaria no fato de que a litigância, o duelo, o combate com paridade de armas constituem vocábulos mais pulsantes depois de tentativas e tratativas para uma solução amigável e abarcariam ainda a necessidade de colaboração entre partes e entre juiz, entre partes, entre juízes, entre juiz e ministério público, entre juiz e advogado, entre defensoria e ministério público, entre terceiros e órgão jurisdicional etc. Sem deixar também de contar com o estímulo ao contraditório, transparência e eficiência na condução da lide, que deveria ser vista não como um processo guerra, repleto de arsenais e armas, conquanto se saiba que se usem tais termos apenas no sentido figurado.
Vale lembrar que a questão posta não pode ser concebida, dentro do processo em transformação evolutiva, apenas como um jogo de palavras, mas como ecos e representações capazes de orientar regras de conduta, mentalidades dos sujeitos envolvidos, ética na produção da prova, lógica na apresentação dos arrazoados e razões convincentes nas manifestações, nos recursos e no cumprimento efetivo do mandamento judicial. Mesmo porque à realidade deve acompanhar tanto a linguagem quanto a mensagem e a simbologia no Direito.
As expressões supramencionadas, principalmente igualdade de armas, duelo justo e bom combate entre adversários que poderão ser ou vencidos ou vencedores, apesar de serem figurações, podem apontar para uma realidade em que há intensa beligerância na conduta e na intenção das partes e forte intransigência no desenvolvimento procedimental, situações que o processo contemporâneo quer eliminar ou reduzir. Portanto toda essa fraseologia guerreira poderia ser atualizada para permitir termos mais requisitados por um dos escopos mais importantes e atuais do processo civil, que é a busca do consenso e da cooperação, e a solução harmoniosa geralmente no início da lide.
Não se deve nem se pretende suprimir a igualdade, princípio processual, nem o debate jurídico, por ser da essência do processo a agudeza de argumentos e a lógica nos fundamentos, principalmente por se tratar de atividade exigida dos advogados das partes e de requisito para a melhor distribuição de justiça, especialmente nos conflitos civis. No entanto, o ânimo de disputa e de embate deve fazer-se mais presente quando o litígio não puder ser, apesar dos esforços, resolvido pelo consenso e quando a solução por uma decisão impositiva se fizer indispensável. Mesmo nesse instante ritual civil é imprescindível a comunicação aberta, as garantias asseguradas e as decisões razoáveis e motivadas. No momento azado, se frustrante a consensualidade e o diálogo intenso sem resultados, é que a parte deve sentir-se verdadeiramente como um litigante judicial no bom combate, dispondo das mesmas armas jurídicas que o seu oponente, a fim de propiciar ao Estado a sua missão pacífica de ofertar a tutela justa e a composição adequada da lide.

[1] Vide, entre outros, José Carlos Barbosa Moreira, “Duelo e Processo”, Revista de Processo 112, Ed. Revista dos Tribunais e “Paridade de Armas no Processo Penal”, Welton Roberto, Ed. Fórum.
[2] “(...) assegurar que as partes gozem das mesmas oportunidades e faculdades processuais, atuando sempre com paridade de armas” (ARE 648629/RJ, Rel. MIn. Luiz Fux).
[3] O nosso Código de Processo Civil de 1973 em diversas passagens ao tratar dos litigantes, acentua, por exemplo: “se cada litigante for em parte vencedor e vencido...” (art. 21); “contrário ao seu interesse e favorável ao adversário” (art. 348); “a sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor” (art. 20); “adversário do assistido” (art. 54).
[4] Também o processo visto como uma luta tem relação com a atividade do advogado, que, nas palavras de Antonio Carvalho Neto, muitas vezes “se vê forçado a mudar de armas no combate, descendo à arena do adversário com os recursos que este lhe proporciona” (Antonio Carvalho Neto, Advogados, São Paulo: Aquarela, 1989, p. 26). Ou, como ensina Eduardo Couture, o advogado tem de viver com a arma em punho (Os mandamentos do Advogado, Porto Alegre: Fabris, 1979, p. 22).

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Nova Lei Seca não se aplica a casos anteriores à sua edição

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O delito de embriaguez ao volante ocorrido antes da mudança no Código de Trânsito Brasileiro é de perigo abstrato. Por isso, não exige a demonstração da efetiva potencialidade lesiva da conduta do motorista. De acordo com o Superior Tribunal de Justiça, o motorista flagrado no bafômetro antes da alteração no Código de Trânsito Brasileiro, feita em dezembro de 2012 pela Lei 12.760, deve ser julgado conforme a lei vigente à época. O entendimento foi aplicado em duas decisões monocráticas que reformaram acórdãos que haviam absolvido motoristas com base na nova Lei Seca.
“Com efeito, a caracterização do delito descrito no artigo 306 do CTB, antes da alteração do dispositivo pela Lei 12.760/2012, dependia apenas de estar comprovada, por meio do etilômetro ou do exame sanguíneo, a concentração de álcool no sangue do condutor acima dos limites permitidos em lei — 6 decigramas (ou 0,6g) de álcool por litro de sangue ou 0,3 mg de álcool por litro de ar alveolar”, registrou a ministra Assusete Magalhães, em uma das decisões.
Publicada no dia 21 de dezembro de 2012, a Lei 12.760 foi criada com objetivo de aumentar o rigor das punições aos motoristas que dirigem embriagados. Conhecida como nova Lei Seca, a Lei 12.760 alterou o artigo 306 do Código de Nacional de Trânsito, que trata do crime de embriaguez ao volante. Antes da lei, o Código de Trânsito definia como crime conduzir veículo com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas. Entretanto, o texto atual retirou o limite de álcool previsto, ficando com a seguinte redação: “Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”.
Em ambos os casos, os recursos foram apresentados pelo Ministério Público de Minas Gerais contra acórdãos do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Nas duas ocasiões, o TJ-MG havia absolvido os motoristas alegando que para a configuração do crime de embriaguez ao volante, além da prova de que o motorista dirigia alcoolizado, exige-se a demonstração de que sua conduta gerou uma situação de risco contra o bem juridicamente protegido.
Entretanto, no STJ, os acórdãos foram reformados. De acordo como STJ, à época dos ocorridos, a lei vigente exigia apenas a comprovação da concentração de álcool por litro de sangue acima do limite estabelecido. “Dessa forma, realizado o teste em aparelho de ar alveolar pulmonar e descrito na denúncia que o recorrido foi flagrado dirigindo veículo automotor com concentração de álcool no sangue superior ao que a lei permite, não é possível a absolvição sumária do recorrente”, afirmou a desembargadora convocada Alderita Ramos de Oliveira.
Clique aqui e aqui para ler as decisões.
REsp 1.245.304 e REsp 1.374.481

Falta de regulamentação da Lei Anticorrupção cria insegurança

A entrada em vigor da Lei 12.846/13, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, colocou o Brasil em posição mais confortável diante da comunidade internacional na luta contra a corrupção.
O Brasil vinha sendo estimulado por organismos internacionais a aprimorar os mecanismos de controle e sua legislação, de modo a contribuir mais ativamente com a luta contra a corrupção, mal que enfraquece a livre concorrência e cria um ambiente negocial desfavorável às empresas sérias e que se disponham a “jogar conforme as regras”.
Desde a criação do U.S. FCPA (Foreign Corrupt Practices Act), em 1977, muito se caminhou na direção de um mercado competitivo, livre da prática de atos ilícitos. Em Dezembro de 1997 o Brasil tornou-se signatário da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da OCDE, assumindo obrigações relacionadas ao tema e obrigando-se a punir empresas que utilizassem a corrupção como ferramenta do negócio.
Inevitável para tanto a criação de uma legislação mais moderna, que previsse punições mais efetivas e uma participação mais direta das empresas no combate a atos ilícitos praticados contra a administração pública, já que somente com a colaboração destas é que se poderia falar em um cenário de redução dos danos gerados pela prática ilegal.
O que diferencia, entretanto, a iniciativa brasileira de outras semelhantes, é a falta de interação entre a política punitiva adotada e as demais orientações da política macro econômica. Em outras palavras, não existe na lei recentemente aprovada uma explícita preocupação com as formas de adequação das empresas ao novo cenário. Elas foram promovidas à categoria de “agentes auxiliares do Estado”, sem que se previsse os impactos de tal condição na saúde financeira das empresas.
Utilizando como forma de comparação, o Ministério da Justiça do Reino Unido editou, posteriormente à promulgação de sua lei anticorrupção (Bribery Act), guia explicativo sobre procedimentos que podem ser adotados pelas empresas para que possam se defender em caso de futura investigação.
Tal manual contempla a preocupação do governo daquele país com a adequação das empresas, especialmente as de pequeno e médio porte, aos programas preventivos e, mais ainda, estabelece isenções e condições especiais para aqueles que demonstrem ter empreendido esforços em criar internamente uma cultura empresarial avessa à atos de corrupção.
No mesmo sentido, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, em conjunto com a Securities and Exchange Comission (SEC) lançou manual sobre o FCPA com exemplos de medidas que deveriam ser tomadas pelas empresas. Tais medidas teriam, inclusive, o condão de isentá-las de responsabilidade em futura investigação.
Preocupação semelhante não aparece na legislação brasileira. Apesar de prever duras sanções administrativas e civis (multa chegando a 20% do faturamento bruto, suspensão ou interdição parcial de suas atividades, dissolução compulsória da pessoa jurídica, dentre outras), a Lei é econômica ao estabelecer as situações em que a atuação preventiva da empresa possa servir como elemento capaz de isentá-la das punições.
De fato, “a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denuncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e conduta no âmbito da pessoa jurídica” (artigo 7º, VIII) e eventual acordo de leniência celebrado com a autoridade administrativa (artigo16 e ss.) têm o condão de proporcinar reprimendas mais brandas, sem, contudo, isentar a empresa do pagamento das altas multas previstas, ou das sanções judiciais.
O que parece evidente é que a nova legislação perdeu uma excelente oportunidade de instituir mecanismos eficientes para a criação de uma cultura empresarial avessa à corrupção, tendo se limitado a estabelecer procedimentos e punições.
Aparentemente nosso legislador não visou uma mudança de conduta e de consciência empresarial. Como de praxe em legislações aprovadas em clima de emergência, são os cidadãos que deverão buscar formas de adaptação, em um clima de insegurança e de regras ainda muito pouco claras.
Mas, ainda restam esperanças. Muito se têm ouvido dentro das empresas sobre a expectativa do decreto regulamentador da nova lei. De fato, os parâmetros de avaliação dos procedimentos de ética e governança instituídos pelas empresas serão definidos em decreto sob condução da AGU.
O Estado de São Paulo já regulamentou a Lei (Decreto 60.106) e nada falou sobre os impactos dos programas de compliance para a redução das punições, tendo limitado-se a ratificar a aplicação do que vier a ser instituído no decreto federal aos procedimentos estaduais.
A CGU tem afirmado, por meio de seu ministro-chefe, que não há data definida para a publicação do texto regulamentador,não existindo menção à uma saudável e preliminar discussão com a sociedade e gerando insegurança sobre o papel a ser desempenhado pela empresa.
Diante de tal contexto, somente nos resta torcer para que os órgãos federais não se acovardem em enfrentar as regras sobre quais tipos de programas de compliance e modelos de governança corporativa devem ser levados em conta em caso de eventual investigação. Neste caso, poderemos então acreditar que não se trata de uma lei apenas “para inglês ver”.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Prova de operação anulada não serve para outra operação

Por terem sido obtidas a partir de um grampo declarado ilegal pelo Superior Tribunal de Justiça, também são, por consequência, nulas as provas que instruíram a operação poseidon, deflagrada em outubro de 2009 pela Polícia Federal para desarticular um suposto esquema de fraudes na importação de 70 veículos de luxo via Porto de Vitória, no Espírito Santo. Esse entendimento levou o juiz Marcus Vinícius Figueiredo de Oliveira Costa, da 1ª Vara Federal Criminal do Espírito Santo, a determinar o trancamento da respectiva ação penal.
O juiz baseou sua decisão em julgamentos do STJ que declararam ilegais longos períodos de interceptação telefônica a que foram submetidos alvos de outra investigação, denominada operação dilúvio, sobre descaminho e contrabando. As decisões do STJ são definitivas.
O grampo na poseidon se prolongou por mais de um ano. A legislação autoriza o procedimento por apenas 15 dias, prorrogáveis por mais 15. Há diferentes interpretações no Judiciário sobre se essa contagem deve ser feita apenas uma vez ou se repetir indefinidamente.
A operação dilúvio, desencadeada em 2004, abriu caminho para outras operações, como a poseidon. O juiz Marcus Vinícius Figueiredo de Oliveira Costa entendeu que as provas obtidas a partir da operação dilúvio "contaminaram" a investigação sobre a importação dos carros de luxo.
“Ainda que se pudesse cogitar da possibilidade de subsistência do crime de descaminho, ante algumas poucas constituições de crédito tributário, o fato é que os elementos que lhe deram suporte foram colhidos a partir das interceptações telefônicas declaradas nulas pelo STJ”, afirmou em sua decisão.
Para ele, sem as provas conseguidas na interceptação, não seria possível a obtenção dos mandados de busca e apreensão, nem colher o material probatório que instrui a denúncia.
O juiz argumenta que a denúncia feita pelo Ministério Público Federal é clara ao associar o início da investigação a documentos vinculados à operação dilúvio, contendo informações relacionadas a importações fraudulentas de automóveis.
“Dessa forma, tem-se que até mesmo naqueles casos em que houve constituição do crédito tributário, esta se deu com suporte em prova eivada pelo vício da ilicitude, não podendo subsistir, ante a aplicação da "teoria dos frutos da árvore envenenada" (artigo 157, parágrafo 1°, Código de Processo Penal)”, pontuou.
O juiz conclui que não há razões para a continuidade da ação penal, em relação aos crimes de descaminho e de falsidade ideológica, por conta da falta de “elementos representativos da materialidade delitiva”.
O raciocínio se aplica também ao delito de quadrilha. “Não configurados os delitos para os quais pretensamente a quadrilha se formara, não há que se falar na prática do delito de quadrilha”, diz.
“Se o material probatório que instrui a denúncia é nulo, contaminada está igualmente a decisão que a recebe”, finaliza.
Para o advogado Augusto Fauvel de Moraes, que defende um dos réus, a decisão respeitou o direito do cidadão assegurado pelo artigo 5º da Constituição, segundo o qual “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.
Segundo ele, o Fisco, ao obter dados bancários por meio da quebra ilegal do sigilo de seu cliente, utilizou uma prova sem validade jurídica.
Histórico da operaçãoEm outubro de 2009, a Receita Federal, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal deflagraram a operação poseidon, para cumprimento de mandados de busca e apreensão nas cidades de São Paulo e Vitória.
A investigação, originada em procedimento fiscal da Alfândega de Vitória, sugeriu a existência de uma organização criminosa que praticava fraudes no comércio exterior, com ênfase na interposição fraudulenta de empresas e no subfaturamento na importação de carros de luxo e motocicletas.
As investigações apontaram que o mentor e principal beneficiário da fraude seria um tradicional revendedor de veículos importados na cidade de São Paulo, que, por meio do esquema, reduzia drasticamente seu desembolso com o pagamento dos impostos incidentes sobre a importação e sobre as vendas no mercado interno, obtendo lucros maiores e concorrendo deslealmente com importadores e comerciantes que operam dentro da lei.
Cerca de 212 automóveis e 100 motocicletas teriam sido nacionalizados irregularmente entre 2006 e 2009. De acordo com a Receita Federal, o volume de tributos sonegados na importação e no mercado interno, incluindo as multas, chegou a R$ 41 milhões.
Por essas ações, os participantes do esquema passaram a responder a processos pelos crimes de formação de quadrilha, descaminho, contra a ordem tributária e contra o sistema financeiro, entre outros.
Clique aqui para ler a decisão.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

STJ diz não haver organização criminosa antes de 2012

A organização criminosa não pode ser usada como crime antecedente da lavagem de dinheiro antes das leis de 2012 e 2013, que incluíram o conceito no Código Penal brasileiro. A tese, presente em acórdão publicado na última segunda-feira (5/5) pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, contraria o entendimento mais corriqueiro na corte: até então, os ministros costumavam reconhecer a organização criminosa com base na Convenção de Palermo, da qual o Brasil é signatário.
O novo entendimento fez a 6ª Turma trancar um processo que acusava um casal de São Paulo de lavagem de dinheiro por fatos ocorridos em 2006 — antes, portanto, das leis 12.694/2012 e 12.850/2013. Só continuará a tramitar a acusação por falsidade ideológica.
Ao avaliar Recurso em Habeas Corpus no dia 24 de abril, o colegiado considerou “inviável a responsabilização criminal [dos réus], visto a atipicidade da conduta narrada na exordial acusatória, pois, à época dos fatos, [era] carente a descrição normativa do que seria compreendido por organização criminosa”. A decisão foi unânime.
O pedido foi feito pelos advogados Gustavo Cambauva e Rubens Contador Neto, do escritório Cambauva & Contador. Eles recorreram contra acórdão da 2ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça paulista, que negara o trancamento. “A decisão é importante porque abriu um precedente no STJ, com reflexo em outros processos em andamento”, afirma Cambauva.
A própria ministra Maria Thereza de Assis Moura, relatora do caso, diz em seu voto que havia entendimento contrário na 6ª Turma. O colegiado reconhecia que a organização criminosa já estava definida no ordenamento jurídico pelo Decreto 5.015/2004, que ratificou a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, conhecida como Convenção de Palermo. Tese semelhante foi adotada pela 5ª Turma, como no HC 171.912.
No Supremo Tribunal Federal, a atipicidade já havia sido reconhecida pela 1ª Turma no julgamento do HC 96.007 — envolvendo o casal Sonia e Estevam Hernandes, da Igreja Renascer —, quando o ministro Marco Aurélio avaliou não ser possível aplicar a hipótese prevista no artigo 1º, inciso VII, da Lei 9.613/1998. O dispositivo fixava a organização criminosa como um dos crimes antecedentes necessários para caracterizar a lavagem de dinheiro — todos acabaram revogados. O mesmo dispositivo foi usado para acusar o outro casal, agora do caso levado ao STJ.
Tema pacificadoA relatora afirmou que o STF firmou posicionamento sobre o tema no julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão. Após “debates ardentes”, nas palavras da ministra, o Supremo considerou, no julgamento de Embargos Infringentes, que “seria incabível apropriar-se da definição do crime de quadrilha para delimitar a consistência da famigerada organização criminosa”.
Para o advogado Antonio Pitombo, autor de trabalho de doutorado sobre o assunto, a mudança faz sentido diante da nova lei sobre organização criminosa, que conceituou esse tipo de crime. “Se houve uma nova lei para apresentar o conceito, isso significa que no passado não existia”, afirma. “Aquela interpretação do STJ de que a Convenção de Palermo poderia caracterizar o crime no Direito brasileiro era uma ‘ajeitada’, sem pé nem cabeça. Só vira crime no Direito brasileiro aquilo que passa por lei ordinária no Congresso, não por decreto nem por convenção internacional.”
O processo julgado pela 6ª Turma teve início após uma operação do Ministério Público investigar suspeitas de sonegação fiscal e lavagem de dinheiro em uma indústria de bebidas em Jaú, no interior paulista. O casal foi um dos réus mesmo sem integrar a cúpula administrativa nem trabalhar na empresa. A mulher é filha do dono da empresa e foi acusada porque o pai morava num imóvel que estava no nome dela.
Segundo a denúncia, isso colocava ela e o marido no suposto esquema e ainda corresponderia a falsidade ideológica, como se ela fosse “laranja” no registro da propriedade. A defesa afirma que a acusação não faz sentido, porque a matrícula foi feita em cartório com verificação oficial e a cliente tem o direito de conceder a posse a quem quiser. Com a decisão do STJ, cabe ao Ministério Público fazer propostas para a suspensão condicional do processo, já que a pena mínima para o crime de falsidade ideológica é de um ano.
Clique aqui para ler o acórdão.
RHC 38.674

terça-feira, 6 de maio de 2014

Financiamento da segurança pública precisa de atenção

Assunto que sempre está na ordem do dia, a questão da violência, e por consequência da segurança pública, tem sido objeto de maior destaque nas últimas semanas, em que se tem observado um — no mínimo aparente — aumento da criminalidade. Crimes que têm chocado a população, greves de policiais, situação prisional degradante em alguns estados e sucateamento de órgãos de investigação: o noticiário foi farto nos últimos dias em más notícias na área da segurança pública, e nos obrigam a pensar mais sobre o assunto.
Trata-se de tema que envolve inúmeros aspectos e áreas do conhecimento humano, e, portanto, de grande complexidade não só na sua compreensão, mas também e principalmente na busca das melhores soluções para resolver as inúmeras e relevantes questões que ele suscita.
E como usualmente acontece pouco se aborda o aspecto que é, regra geral, o mais importante: o financeiro.
A segurança pública é “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”, nas claras palavras do artigo 144 da Constituição. Uma das mais importantes atribuições de todo e qualquer Estado Democrático de Direito, pois não há como se alcançá-lo e mantê-lo sem que se garanta a preservação da ordem pública e incolumidade das pessoas e do patrimônio, funções que nossa Constituição lhe atribui. Função essencialmente de Estado e bem público com características de indivisibilidade e não especificidade, a segurança pública deve ser garantida diretamente pelo poder público, e pouco se pode contar com a colaboração do setor privado e terceiro setor.
Essas razões colaboram para torná-la um serviço caro — muito caro. Os direitos têm custos, como bem ressaltaram Stephen Holmes e Cass Sustein em sua clássica obra (The cost of rights, 2000), e a segurança pública é um de seus exemplos mais evidentes.
A segurança pública, se analisada de forma abrangente, constitui-se em um sistema bastante complexo, pois, além de incluir os órgãos que a compõe mencionados no artigo 144 da Constituição da República (polícias federais, civis, militares e corpo de bombeiros), também envolvem o Poder Judiciário, Ministério Público, Força Nacional, Guardas Municipais, assim como todo o sistema de administração penitenciária.[1] Poderes, órgãos e instituições, que, como se pode ver, pertencem aos vários entes da federação. Um direito que não se consegue implementar por uma ou poucas ações governamentais, mas por um conjunto de várias políticas públicas que devem se coordenar e complementar para atingir seu objetivo.
Um sistema que, como se pode ver, precisa alcançar resultados mediante a coordenação de entes federados e poderes independentes em todo o país. E, mesmo dentro de um mesmo Poder de um ente da federação, exige a ação conjunta de órgãos sob comandos diferentes. Veja-se, no âmbito do Poder Executivo Federal, as várias polícias (comum, rodoviária, ferroviária), e nos Poderes Executivos dos Estados, as polícias civil e militar.
Multiplicidade de comandos, órgãos e orçamentos, cuja cooperação é fundamental para atingir o objetivo maior de atender a necessidade pública de mais segurança e menos violência.
Não é de se surpreender que o financiamento deste serviço público fundamental seja caro, complexo e difícil de ser planejado e gerenciado, o que só reforça a necessidade de que sejam priorizados estes aspectos.
Tendo em vista que todos os entes da federação participam na segurança pública, seus custos se espalham pelos inúmeros orçamentos públicos, órgãos e respectivos programas governamentais, tornando difícil, se não impossível, saber precisamente quanto do dinheiro público lhe é destinado. Mas algumas informações permitem constatar a elevada dimensão desses gastos.
Expressivas quantidades de recursos são vinculados à segurança pública por meio de vários fundos orçamentários. No âmbito federal, destacam-se o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) e o Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN)[2], cujos montantes, para este ano de 2014, são da ordem de 500 milhões de reais cada um, gerenciados pelo Ministério da Justiça. Isto representa apenas uma parcela muito pequena do que se gasta, pois estes recursos são basicamente destinados à capacitação e qualificação de servidores, modernização e reequipamento dos órgãos de segurança pública e administração penitenciária dos demais entes da federação e financiamento de programas voltados à redução da violência, não incluindo, portanto, aquela que é a despesa mais representativa — o pagamento de pessoal.
Há ainda programas específicos no orçamento federal voltados à segurança pública, como o Programa Nacional de Segurança Pública (Pronasci)[3], importante fonte de transferências voluntárias destinadas a financiar projetos para os entes subnacionais, em regime de cooperação federativa.
A função segurança pública, no orçamento federal para 2014, prevê gastos na ordem de R$ 8,5 bilhões, e é importante ressaltar que a maior parte dos serviços relacionados à segurança pública está nos orçamentos dos estados, que administram as polícias civis e militares estaduais.
No estado de São Paulo, que tem o maior orçamento entre os estados-membros de nossa federação, para se ter uma ideia, só na Secretaria da Segurança Pública, principal responsável pelos programas nesta área, na qual estão as polícias civil e militar, tem orçamento de quase R$ 18 bilhões para este exercício de 2014. Se somados aos R$ 4 bilhões destinados à Secretaria da Administração Penitenciária, perfazem um montante de R$ 22 bilhões. Mas não é só. Programas também importantes para a proteção da sociedade redução da violência estão em outros órgãos, como a Secretaria da Justiça, que administra o Programa Estadual de Direitos Humanos, o de Perícia Judicial, o de Modernização da Fundação Casa e o de Atenção ao Adolescente e de Integração das Medidas Sócio-educativas de Internação e Semiliberdade, o que permite acrescentar mais R$ 1,5 bilhão a essa conta. Ou seja, o estado de São Paulo destina anualmente em torno de R$ 25 bilhões para tentar assegurar à população uma sociedade com ordem pública e sem violência. É praticamente equivalente aos gastos de toda a cidade do Rio de Janeiro, a segunda maior do país, cujo orçamento municipal para este ano de 2014 é da ordem de R$ 27 bilhões. E mesmo assim não consegue atingir os objetivos esperados nem remunerar adequadamente seus policiais.
Considerando-se que a segurança pública no estado de São Paulo conta com a participação do governo federal, não só na transferência de recursos, mas também na atuação direta, por meio dos órgãos federais, como a polícia federal, sem esquecer das ações a cargo dos municípios do estado, muitos dos quais dispõe de guardas municipais e outros órgãos e serviços que atuam para colaborar na redução da violência, chega-se à conclusão de que os valores mencionados estão longe de representar os reais gastos públicos nessa área, que são muito maiores.
Algo precisa ser feito, pois, apesar dessa quantidade fantástica de dinheiro público, o que se vê muitas vezes em todo o país são delegacias mal equipadas, presídios em situação lastimável e policiais sem equipamentos adequados para exercer a função. Policiais que, na maior parte dos órgãos e entes da federação, são mal remunerados, o que se é de lamentar, pois, mais do que em outras profissões, colocam sua vida em risco ao cumprir suas funções.
E, dada a variedade e quantidade de órgãos e entes da federação envolvidos, não há como se generalizar haver má gestão de recursos certamente presentes em boa parte dos órgãos, como ocorre em toda a administração pública, mas sem dúvida com exceções.
Muito há que se fazer. Tramita no Congresso Nacional projeto de lei regulamentando o artigo 144, parágrafo 7º, da Constituição, voltado a organizar a segurança pública e garantir a eficiência de suas atividades, por meio da criação do “Sistema Único de Segurança Pública (SUSP)”, e, apesar de todos os fatos e acontecimentos recentes, pouco se debate o assunto.
Há que se dar maior atenção e avançar nas discussões sobre o financiamento da segurança pública, a fim de buscar soluções que fujam da solução simplista de maior aporte de recursos, que nesse caso é ainda mais difícil de viabilizar, dado o expressivo volume de dinheiro envolvido. Debater a prioridade nas políticas públicas de prevenção, afinal melhor é não haver violência, mas sem descuidar da repressão, pois sem ela a impunidade impera e corrompe todo o sistema. Conveniência, oportunidade, legalidade, interesse, extensão de participação da iniciativa privada e do terceiro setor, especialmente na área da proteção à criança e adolescente e administração penitenciária; forma de financiar a construção e manutenção de presídios, com a utilização de instrumentos como parcerias público-privadas ou outros meios de contratação; realização de audiências por videoconferência para evitar os custos de deslocamento de detentos; penas alternativas, diminuindo os custos do encarceramento; enfim, há muitas despesas cuja possibilidade de redução precisa ser avaliada, a fim de verificar se são adequadas e viáveis para dar mais qualidade ao gasto público na área da segurança pública.
Se bem gerenciados, os recursos destinados à segurança pública estão entre os mais bem aplicados, pois os custos da violência são imensuráveis. Mortes de inocentes, sensação de insegurança, impunidade, falta de liberdade e tranquilidade, são prejuízos que não tem preço.

[1] E nem incluo as Forças Armadas, que ao se responsabilizar pela defesa nacional, poderiam ser consideradas em uma interpretação “lato sensu” da segurança pública.
[2] Este último recentemente completou 20 anos de existência, tendo sido criado pela Lei Complementar 79, de 7 de janeiro de 1994.
[3] Previsto na Lei 11.530, de 24 de outubro de 2007, alterada pela Lei 11.707, de 2008.

Falta de prequestionamento não pode impedir admissão de HC

O Superior Tribunal de Justiça não pode exigir, como condição para conhecimento de Habeas Corpus contra acórdão de Apelação, que a matéria tenha sido previamente discutida em instância inferior se a suposta ilegalidade questionada resultou de julgamento em 2º Grau. Com esse entendimento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu HC de ofício a um condenado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região por crime tributário.
Segundo o ministro Rogerio Schietti Cruz, do STJ, a exigência de prequestionamento para evitar supressão de instância implicaria “negar a própria essência do Habeas Corpus”. O placar da votação na corte foi de dois votos a dois. Diante do empate, prevaleceu a decisão favorável ao réu.
No TRF-1, a defesa impetrou, sem sucesso, Recurso Especial para anular o julgamento. O tribunal argumentou que as supostas nulidades não haviam sido debatidas e não foram apresentados Embargos de Declaração. Os ministros do STJ adotaram o mesmo entendimento e indeferiram o pedido.
Schietti acrescentou que não se deve confundir o requisito do prequestionamento, “imprescindível para o conhecimento do Recurso Especial”, com a supressão de instância, algumas vezes apontada pelo STJ como razão para não conhecimento de HC.
Ainda segundo o ministro, o prequestionamento não pode ser exigido no caso, pois a ilegalidade se configurou não a partir dos debates do TRF-1, mas com a realização do próprio julgamento “sem a observância das regras que homenageiam os princípios do contraditório, da ampla defesa e da publicidade dos atos processuais”.
Portanto, a exigência de prequestionamento com o intuito de prestigiar as instâncias ordinárias deixaria a defesa sem saída, ressaltou Schietti. “Como exigir a impetração na origem se a autoridade coatora é o próprio tribunal?”, questionou. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Validação de união estável suspende prescrição trabalhista

por: BRUNO LEE
Baseado no artigo 199, inciso I, do Código Civil, que prevê alteração no prazo prescricional quando houver condição suspensiva, o Tribunal Regional da 15ª Região acolheu prejudicial de mérito e afastou os efeitos da prescrição bienal para casos de acidente de trabalho em recurso movido por uma viúva com o intuito de obter indenizações.
Segundo os autos, o companheiro da reclamante morreu em um acidente de trânsito, em 30 de junho de 2009, quando ia para o trabalho em um carro de propriedade do seu empregador. Em 3 de agosto do mesmo ano, a viúva ingressou com ação para reconhecer sua união estável com o morto. O pedido foi atendido em 19 de julho de 2011 e transitou em julgado no dia 8 de agosto do mesmo ano.
No dia 4 de maio de 2012, a viúva ingressou com o pedido de indenização por danos morais e materiais. A 1ª Vara do Trabalho de Jundiaí extinguiu a ação com resolução de mérito baseada no artigo 269, inciso IV, do Código de Processo Civil, que diz “haverá resolução de mérito quando o juiz pronunciar a decadência ou a prescrição”.
O juízo de origem afirmou que o pedido da reclamante para reconhecimento de sua união estável com o morto não se amoldou àquelas previsões legais contidas nas normas dos artigos 197, 198 e 199, do Código Civil, pelo que o prazo prescricional no caso teria fluído por completo.
Em sua decisão, o relato do recurso, desembargador Gerson Lacerda Pistori, reconheceu que, para casos relacionados com acidente e doença de trabalho, boa parte da doutrina e da jurisprudência têm entendido que o prazo prescricional nos casos de danos morais e materiais, deve corresponder ao previsto no artigo 7º, inciso XXIX, da Constituição.
O texto diz que “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social a ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho”.
Pistori diz ainda que para as hipóteses de acidente de trabalho, o início da contagem desse prazo prescricional deve ser a data em que ocorreu o evento danoso. “Todavia, especificamente no presente caso, a data do acidente de trabalho não deve ser considerada para fins de contagem do prazo prescricional.” A tese foi defendida pelo advogado Artur Gustavo Bressan Bressanin.
O desembargador cita dois motivos para justificar seu entendimento. Primeiro, a autora da ação não foi vítima direta do acidente. Segundo, a ideia de que, para a viúva, o principal interesse após o acidente era reconhecer a união estável com o morto. Pois, só assim, ela poderia ser vista como dependente e, então, postular direitos previstos em lei.
“Nessa lógica, o período em que a reclamante promoveu e aguardou a solução de sua ação para reconhecimento da união estável post mortem com a pessoa do de cujus deve ser vista e entendida como típica condição suspensiva para seu pleno exercício dos direitos aqui reivindicados, tal como prevê a regra do artigo 199, I, do Código Civil”, escreveu.
“Assim, só depois de 8 de agosto de 2011 [data em transitou em julgado o pedido de reconhecimento de união estável] é que começou a fluir o prazo prescricional de dois anos estampado na disposição do 7º, XXIX, da CF/1988”, concluiu o desembargador.

Processo eletrônico não pode comprometer direitos

por: FABIO SOARES DE MELO
O artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal de 1988, estabelece que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
O processo administrativo tributário decorre das divergências provenientes da relação Fisco e contribuinte, sendo que, de um lado, encontra-se o Fisco, que almeja o recebimento de determinada quantia considerada como devida, decorrente do descumprimento de obrigação principal e/ou acessória; e, de outro, o contribuinte, que argumenta a impossibilidade de sua exigência.
Destarte, a temática jurídica em questão compreenderá o exame dos relevantes aspectos jurídicos atinentes ao processo tributário eletrônico, em razão das fases de tramitação, observância aos princípios pertinentes às lides processuais e aos direitos assegurados aos contribuintes.
Princípios do processo tributário eletrônicoO sistema jurídico apresenta rigidez em sua hierarquia normativa, de forma que as normas jurídicas inferiores encontram fundamento de validade nas normas jurídicas superiores até que se alcance a da CF/88, de maneira que a unidade do ordenamento deriva da relação de interdependência e irradiação de efeitos decorrentes das aludidas normas jurídicas.
Entendemos que os princípios compreendem mandamentos de obrigatória observância, fundamentos basilares a serem seguidos de forma irrestrita, comandos imperativos a serem respeitados por todo e qualquer intérprete, e premissas fundamentais que não admitem quaisquer fracionamentos ou mitigações. Em outras palavras, os princípios abrangem proposições relevantes que têm o intuito de servir de base a determinada ordem de conhecimento sobre a qual se fundamenta a intelecção das normas jurídicas; e verdadeiros vetores que devem ser seguidos tanto pelo legislador quanto pelo aplicador das normas jurídicas, matrizes e pilares essenciais ao ordenamento jurídico e ao sistema processual. Parece-nos evidente que a violação de determinado princípio apresenta-se com maior gravidade à transgressão de uma norma, resultando em graves consequências ao sistema jurídico.
É evidente que o sistema processual revela-se por princípios que conferem relação de segurança e de equilíbrio às partes litigantes (Fisco e contribuinte), de forma que seja garantida a proteção de seus respectivos direitos. E são inúmeros os princípios aplicáveis ao processo tributário.
A CF/88 estabelece princípios norteadores das atividades exercidas pela Administração Pública que, de maneira geral, informam o Direito Administrativo, constituindo o intitulado “regime jurídico administrativo”. Nesse sentido, o artigo 37, da Carta Política de 1988 determina que, verbis: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...).”
O processo tributário encontra-se submetido à observância de relevantes princípios e direitos das partes litigantes (Fisco e contribuinte), quais sejam: legalidade, contraditório, ampla defesa, devido processo legal, duplo grau de jurisdição, segurança jurídica, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, interesse público, proporcionalidade, razoabilidade, motivação, verdade material, celeridade e gratuidade.
Especificamente com relação ao processo tributário na modalidade eletrônica, nos parece relevante a observância, em especial, dos princípios da ampla defesa, devido processo legal, publicidade, eficiência, motivação, verdade material e celeridade.
Ampla defesa: O princípio da ampla defesa, previsto no artigo 5º, inciso LV, da CF/88, decorre do princípio do devido processo legal (due process of law) inerente à Constituição dos Estados Unidos da América[1], por meio do qual impera a ideia de que as partes litigantes percorram o processo de forma justa (fair procedure). A observância do princípio da ampla defesa garante aos contribuintes o exercício do direito da defesa de seus interesses de forma incondicional e irrestrita, não sendo admitidas quaisquer limitações, restrições, mitigações, fracionamentos ou amputações.
Ao contribuinte que sofrera imputação de acusação fazendária deve ser assegurado todos os meios e recursos inerentes ao exercício de uma defesa de forma ampla, não podendo jamais se admitir que as alegações e os argumentos firmados na esfera do processo administrativo tributário não lhe seja apresentado. Da mesma forma, é inaceitável que se promova a juntada de elementos concernentes às acusações fiscais sem que esteja assegurado o exercício da sua defesa.
Tal princípio tem por finalidade conferir ao contribuinte a possibilidade de demonstrar e comprovar seus argumentos de fato e de direito, em virtude das acusações fiscais irrogadas pelas autoridades fazendárias, de forma a conferir legitimidade ao procedimento adotado que teria sido praticado em descompasso com os comandos legais e normativos vigentes, válidos e eficazes.
O exercício da ampla defesa se perfaz pela concessão, pelos julgadores tributários, da possibilidade que o contribuinte examine os autos, apresente defesa, interponha recursos, manifeste-se acerca das provas e demais elementos trazidos ao processo pela parte contrária, apresente considerações sobre diligências e promova a realização de sustentação oral de suas razões, dentre outros. Caso contrário, a inobservância ao princípio da ampla defesa, em qualquer fase processual, por meio de restrições à referida garantia constitucional, poderá implicar cerceamento do direito de defesa do contribuinte, maculando determinado ato processual de anulabilidade ou viciando o processo de patente nulidade.
Revela-se imperiosa a observância do exercício da ampla defesa no curso do processo administrativo tributário na modalidade eletrônica, de forma que os meios digitais e suposta celeridade processual não impliquem no “atropelamento” das formas e dos procedimentos concernentes à relevante garantia constitucional.
Devido processo legal: O princípio do devido processo legal (due process of law) consubstancia a observância aos demais princípios consagradores do processo administrativo tributário, uma vez que apenas por intermédio da estrita observância aos princípios informadores do processo administrativo tributário (de natureza constitucional, gerais de natureza administrativa e específicos do processo administrativo tributário) é que restará assegurado o seu fiel cumprimento.
A CF/88, em seu artigo 5º, inciso LIV, enaltece sua aplicação ao processo administrativo tributário, na medida em que este tem por finalidade a exigência do adimplemento de exigência tributária (principal ou acessória), ao estipular que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Revela-se imperiosa a observância de um processo regular, ordenado e legal, em que seja assegurado ao contribuinte o pleno exercício do seu direito de defesa, mediante o respeito a todos os demais princípios inerentes; caso contrário, restará ilegítimo todo e qualquer processo administrativo tributário que desconsidere o princípio do devido processo legal. A inobservância aos princípios informadores do processo administrativo tributário na modalidade eletrônica, portanto, em última análise, acaba por desrespeitar o princípio do devido processo legal, ou seja, toda vez que determinado princípio relativo ao processo administrativo tributário é violado, por via de consequência, afronta-se o princípio em referência, culminando em vício processual.
Publicidade: O princípio da publicidade exige a publicação do ato administrativo em órgão oficial (Imprensa Oficial) como requisito de sua eficácia – a publicidade não se encontra relacionada à validade do ato administrativo, mas à sua respectiva eficácia, pois, enquanto não publicado, não estará apto a produzir efeitos jurídicos –; e transparência da atuação administrativa, de forma que assegure amplamente o controle da atividade desenvolvida pela Administração Pública por parte dos administrados. Decorre do princípio da publicidade a necessidade de transparência – por meio da qual os atos administrativos devam ser obrigatoriamente motivados –, a qual permite o controle de sua respectiva legitimidade.
Quanto à atuação administrativa inerente aos julgamentos no âmbito judicial, ressaltamos que o artigo 93, inciso X, da CF/88 assevera que “lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o estatuto da magistratura, observados os seguintes princípios (...) as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros”.
No âmbito da SEFAZ/SP, tanto o TIT/SP como as DTJs passaram a publicar todas as suas decisões, intimações, atos e comunicações em geral, por intermédio do Diário Eletrônico, que pode ser acessado pelo sítio da própria SEFAZ/SP, demonstrando modernização, redução dos custos administrativos de publicação, celeridade, transparência, economia na obtenção de cópias e acesso remota aos autos.
Eficiência: O princípio da eficiência tem por finalidade principal a obrigatoriedade de que a atuação da Administração Pública obtenha resultados de forma satisfatória e eficiente. Assim, o princípio em comento obriga que a atividade desenvolvida pela Administração Pública deva ser exercida, nas palavras de Hely Lopes Meirelles, com “presteza, perfeição e rendimento funcional[2]. Portanto, este princípio – introduzido na da CF/88, por intermédio da EC nº 19/98 – ratifica e impõe a qualidade dos atos emanados pela Administração Pública, permitindo sua plena e automática eficácia.
José Eduardo Soares de Melo[3] pontifica que “a fiscalização que demora para concluir o seu trabalho junto a um empresário prejudica a Fazenda (falta de eventual lançamento), e o próprio contribuinte (insegurança de comprometimento de seu patrimônio). O mesmo ocorre com o processo administrativo lento, que nunca termina, ficando anos nas gavetas para uma solução, causando transtornos às partes litigantes. A Fazenda vê-se impossibilitada ao recebimento do crédito tributário, na hipótese de o contribuinte dilapidar seu patrimônio, cair em insolvência durante o trâmite processual, passando a inexistirem bens suficientes para garantir a execução judicial”.
Com fundamento no princípio da eficiência, citamos a circunstância dos advogados passam a ter acesso aos processos a qualquer tempo, para fins de consulta. Não há, portanto, que se sujeitarem à situação incômoda e desigual (se comparada à liberdade de consulta aos autos conferida à Representação Fiscal) decorrente da necessidade de requisição de vista do processo com a devolução do mesmo em prazo exíguo.
Motivação: Ainda que a motivação não compreenda princípio exclusivo do procedimento administrativo tributário, mas sim de todo o regime jurídico administrativo[4], a legislação de regência atribui-lhe, de forma expressa, especial relevância e aplicabilidade.
O princípio da motivação consiste na obrigatoriedade de que os atos dos agentes da Administração Pública somente estarão aptos a produção de efeitos jurídicos, se estiverem efetivamente fundamentados, mediante a demonstração clara, precisa e detalhada das razões jurídicas que culminam nos seus respectivos entendimentos. Pressupõe a indicação das justificativas dos atos administrativos, fundamentalmente no que concerne aos argumentos de natureza fática e de direito, que compreendem as razões do entendimento exarado (liberdade de persuasão, de convencimento e livre apreciação das provas). Portanto, a motivação consiste na exposição, pela Administração Pública, das razões que levaram à prática de determinado ato administrativo, na explicitação das circunstâncias que, em consonância com as hipóteses normativas, determinaram a prática do ato administrativo.
O ato administrativo deve estar devidamente fundamentado e motivado, de maneira que o administrado se encontre apto a proceder conforme sua disposição ou, ainda, confrontá-lo, sob pena de decretação de nulidade ou anulabilidade, uma vez que o administrado deve ter plena segurança acerca da legalidade de seus atos e sobre a sua consequente proteção jurídica.
A observância ao princípio da motivação, especialmente com relação às decisões proferidas, justifica-se, em síntese, pelas razões seguintes: o julgador tributário, ao motivar sua decisão, demonstra que tomou conhecimento dos elementos constantes do processo (alegações apresentadas pelas partes litigantes, provas carreadas aos autos, etc.), apontando que a decisão proferida abordara, de forma irrestrita, todas as questões compreendidas nos autos; a motivação, como decorrência lógica do princípio da publicidade, permite que os atos praticados nos autos possam ser objeto de acompanhamento (fiscalização) pelos administrados de maneira geral; e para que se torne possível a interposição de peças recursais, mostra-se relevante a motivação da decisão prolatada, de forma a demonstrar os fundamentos dos recursos, legitimidade e interesse recursal.
Entendemos, com a devida vênia, totalmente descabido o seguinte entendimento contido em Acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)[5], a saber: “(...) o órgão judicial, para expressar a sua convicção, não precisa aduzir comentários sobre todos os argumentos levantados pelas partes. Sua fundamentação pode ser suscinta, pronunciando-se acerca do motivo que, por si só, achou suficiente para a composição do litígio”. Isso porque o julgador tributário, ao deixar de apreciar, de forma específica e individualizada, todos os argumentos de natureza fática e de mérito em prestígio a determinada alegação de parte, incorrerá, em nosso sentir, em frontal desrespeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa, cerceando o direito da parte no que tange ao devido processo legal.
No processo eletrônico é imperioso que os meios digitais e a celeridade de sua tramitação não desrespeitem a motivação dos atos administrativos. Exemplo de vantagem do processo tributário eletrônico é a circunstância de permitir, anteriormente à data da sessão de julgamento, que todos os julgadores integrantes da Câmara Julgadora tenham acesso livre e irrestrito à íntegra dos autos, de forma a conferir que, muito antes do julgamento, os julgadores examinem o voto elaborado pelo Juiz/Conselheiro Relator do processo.
Verdade Material: O exercício da busca pela verdade material, por intermédio do exame pormenorizado e da valoração das provas carreadas aos autos pelas partes é sem dúvida um dos mais relevantes no âmbito do processo tributário. Mediante a análise e da respectiva valoração das provas (documentos fiscais, contábeis, contratuais, comerciais, laudos, perícias, diligências, pareceres, opiniões legais, etc.), concomitante aos argumentos de mérito apresentados pelas partes, o julgador tributário se encontra apto a determinar a solução do litígio.
Observamos que o exercício da valoração das provas, atualmente, tem-se apresentado com maior relevância do que a discussão acerca do ônus da prova, no sentido de que “o ônus da prova incumbe (...) ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito”, nos termos do artigo 333, inciso I, do CPC, fonte de aplicação subsidiária ao processo administrativo tributário. E tal assertiva confirma-se pela circunstância de que, mais do que se limitar a alegar a quem compete o ônus da prova no âmbito do processo administrativo tributário, mostra-se de maior relevância a demonstração documental (verdade material) do entendimento jurídico arguido pela parte (quer pelo Fisco quer pelo contribuinte). As alegações lastreadas em comprovação documental caracterizam-se por maior efeito valorativo, ao passo que a singela discussão inerente ao ônus da prova (em que pese sua pertinência) acaba por enfraquecer o direito da parte litigante.
No que concerne ao objeto, a instrução do processo administrativo tributário tem por finalidade a incessante busca pela verdade material, de forma que seus meios de instrução possibilitem a formação da convicção acerca da efetiva e real existência do fato tributário, sendo que os meios digitais e a suposta celeridade do processo tributário eletrônico não podem mitigar, suprimir ou fracionar o exame minucioso e detalhado das provas acostadas aos autos pelas partes litigantes (Fisco e contribuinte).
Celeridade: O princípio da celeridade se apresenta como decorrência lógica do princípio da eficiência administrativa, insculpido no artigo 37, da CF/88. Curiosamente, em que pese o processo administrativo tributário encontrar-se submetido ao princípio da eficiência, apenas na esfera do Estado de São Paulo é que o princípio da celeridade encontra expressa previsão legal, nos termos do artigo 2º, da Lei n. 13.457/09. E para que se busque o preciso conceito do princípio em referência, não se mostra relevante tecermos grandes considerações ao seu respeito, pois a celeridade compreende a ideia de que as lides de matéria tributária, no âmbito do processo administrativo tributário, devam ser solucionadas de forma célere, rápida e eficaz.
Por intermédio do princípio da celeridade, a Administração Pública “deve atuar no processo com presteza, de sorte a que esse tenha, como diz o texto constitucional (art. 5º, LXXVIII), duração ‘razoável’ e se assegure a ‘celeridade de sua tramitação’[6]. No entanto, na tramitação do processo tributário eletrônico, ressaltamos que a almejada celeridade processual jamais poderá pressupor o comprometimento da qualidade dos julgamentos, pois é indubitável que a apreciação de processo administrativo tributário, sem a promoção do exame detalhado dos argumentos apresentados pelas partes, bem como a avaliação pormenorizada das provas carreadas aos autos, certamente não produzirá a almejada justiça fiscal, podendo acarretar cerceamento de defesa e inerentes vícios processuais.
No processo tributário eletrônico observamos o cumprimento de diligência determinada em sessão de julgamento, a qual pode ser efetivada quase automaticamente; as publicações e intimações são realizadas de forma mais rápida; o sistema informatizado promove a contagem regressiva do prazo a ser cumprido pelos julgadores tributários de Primeira e Segunda Instâncias administrativas, sendo que, findo aludidos prazos sem a apresentação da Decisão ou de Voto por parte dos julgadores, os autos são automaticamente redistribuídos para distinto julgador.
Em face das considerações alinhadas, entendemos que o processo tributário eletrônico apresenta inúmeras vantagens, especialmente no que tange à celeridade, economia em suas fases de tramitação processual. Contudo, há que se atentar ao fato de que a suposta celeridade e economia processual não desrespeitem os princípios informadores do processo tributário (legalidade, contraditório, ampla defesa, devido processo legal, duplo grau de jurisdição, segurança jurídica, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, interesse público, proporcionalidade, razoabilidade, motivação, verdade material, celeridade e gratuidade), sob pena de implicarem em vícios processuais que possam culminar na nulidade e/ou na anulabilidade na constituição do crédito tributário.

[1] 5ª EC Americana (1787) e 14ª EC Americana (1868).
[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35ª ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2009, p. 98.
[3] in Princípio da Eficiência em Matéria Tributária. Pesquisas Tributárias. Nova Série – 12. Coordenador Ives Gandra da Silva Martins. São Paulo: Co-edição CEU e Editora RT, 2006.
[4] EMERENCIANO, Adelmo da Silva. Procedimentos Fiscalizatórios e a Defesa do Contribuinte. 2ª ed. Campinas: Copola Editora, 2000, p. 206.
[5] Primeira Turma, Agravo de Instrumento n. 169.073/SP, Agravo Regimental, Rel. Min. José Delgado, j. 04.06.98, p. DJU de 17.08.98.
[6] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 497.