sábado, 29 de março de 2014

Meio-irmão só tem direito à partilha de bens do próprio pai

A divisão de bens entre os herdeiros em que um deles é filha apenas do pai deve ser feita somente em relação a metade correspondente ao patrimônio do progenitor. Assim decidiu a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça ao julgar ação declaratória de nulidade de negócio jurídico em que a meia-irmã, que não recebeu herança, pedia a divisão dos bens.
O pai dos herdeiros junto com a esposa doou aos filhos comuns três imóveis, e não restou nenhum outro bem para inventariar. Acontece que o pai dos herdeiros teve uma outra filha em outro relacionamento e ela não recebeu nenhum bem após morte de seu pai. Ela, então, entrou com ação para discutir se tem legitimidade para pleitear a anulação da doação de imóveis feita aos outros irmãos e a validade da doação.
Os herdeiros disseram que metade dos imóveis foi doada pela mãe, por isso, a irmã paterna não tem legitimidade para pleitear a declaração de nulidade. Em relação à metade doada pelo pai, os herdeiros alegaram que a invalidez do negócio vale apenas para a parte que excedeu à de que ele poderia dispor. Afirmaram que a fração devida à irmã paterna é de 6,25% de cada um dos imóveis doados.
Para a ministra Nancy Andrighi, a liberdade de doação do pai limita-se à metade de todo o patrimônio que foi doado aos meios-irmãos. A outra metade, de acordo com a ministra, é prerrogativa da mãe e somente seus filhos têm direito a esta parte da herança.
Sendo assim, a ministra entendeu que a irmã paterna tem direito apenas a 12,5% do patrimônio doado pelo pai ou 6,25% da integralidade dos bens doados pelo casal. Como a doação era de três imóveis, dos dois deles que foram alienados pelos herdeiros com autorização judicial, 6,25% do preço bruto da venda deve ser entregue à irmã paterna — excluídos comissão de corretagem, IPTU ou qualquer outra pendência.
Em relação ao terceiro imóvel, a ministra decidiu que o bem deve ser levado à colação no processo de inventários, para que, reservada a metade doada pela viúva aos seus próprios filhos, a outra metade deve ser dividida em parte iguais entre os quatro herdeiros, ou seja, incluindo a irmã paterna.
Clique aqui para ler a decisão. Recurso Especial 1.361.983

quinta-feira, 27 de março de 2014

Declaração de insignificância vale para débitos até R$ 20 mil

A valor de referência para a aplicação do princípio da insignificância é R$ 20 mil —mínimo fixado pelo Ministério da Fazenda para o ajuizamento das execuções fiscais. Com base ness entendimento, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu Habeas Corpus a um morador de Foz do Iguaçu (PR) acusado do crime de descaminho por trazer mercadorias para o país de forma irregular.
No Habeas Corpus, a defesa do acusado questionava decisão do Superior Tribunal de Justiça que afastou o princípio da insignificância em razão de o tributo supostamente devido superar o limite de R$ 10 mil previsto na Lei 10.522/2002. Sustentava que valor a ser observado deveria ser o fixado pelas Portarias 75/2012 e 130/2012 do Ministério da Fazenda, que alteraram para R$ 20 mil o limite mínimo para ajuizamento da execução fiscal.
Ao votar pela concessão do HC, o relator, ministro Luiz Fux, observou que se firmou nas duas Turmas do STF o entendimento de que o princípio da insignificância é aplicado quando o valor do tributo não recolhido for inferior a R$ 20 mil, como fixado pelas portarias ministeriais. “Me curvo, num colegiado, à vontade da maioria”, afirmou.
Em razão da inadequação da via processual, a Turma julgou extinta a ordem, mas deferiu o HC de ofício, vencido o ministro Marco Aurélio. Com informações da Assessoria de Imprensa dos STF.
HC 118.067

quarta-feira, 26 de março de 2014

Lei de Lavagem dá nova dimensão ao crime tributário

Recentes alterações legislativas e decisões judiciais colocaram os crimes tributários em um novo contexto Este fenômeno — que ainda não pode ser compreendido em todo seu impacto prático, e mesmo teórico — merece atenção dado que a política criminal em face destes delitos foi alterada, não tanto por mudanças em seus contornos, mas por transformações nos crimes que os podem acompanhar.
Os crimes tributáros — nome que costuma identificar as figuras descritas nos artigos 1o e 2o da Lei 8.137/90 e artigos 168-A, 334 (caput, segunda parte) e 337-A do Código Penal — têm a peculiaridade da possibilidade de extinção de punibilidade[1] sempre que pago o valor lançado, a qualquer tempo, mesmo que após o trânsito em julgado da decisão condenatória[2]. Assim, pago o débito, inviável a punição ou a execução da pena.
Essa largo espectro da extinção de punibilidade coloca os crimes tributários em uma situação diferente da dos demais crimes antecedentes da lavagem de capitais quanto à punibilidade do crime antecedente, uma vez que, no seu caso específico, é possível aguardar o andamento do processo penal para decidir pela melhor oportunidade estratégica para pagar o débito.
Esse contexto foi alterado, porém. Em primeiro lugar, pela nova redação da Lei de Lavagem de Dinheiro, aprovada em 2012, que incluiu todas as infrações penais como antecedentes do delito de lavagem de dinheiro. Se, antes, a ocultação ou dissimulação de bens provenientes de apenas alguns crimes era considerada como relevante, agora o escamoteamento do produto de qualquer delito (ou contravenção penal) pode caracterizar a lavagem. Isso vale para os crimes tributários.
Com isso, todos os bens originados ou economizados em virtude da prática de crimes tributários podem ser considerados objeto de lavagem de dinheiro, se ocultados ou mascarados. Mas o objeto material sobre o qual recai a lavagem de dinheiro será apenas aquela parcela sonegada, nunca a totalidade do valor (base de cálculo) que gera a obrigação fiscal[3].
A questão relevante aqui é a extensão da extinção da punibilidade dos crimes tributários quando seu produto for ocultado com a finalidade de reinserção posterior na economia com aparência lícita. Ainda que o debate seja apenas inicial, é possível indicar que, nestes casos, a extinção da punibilidade afeta apenas o delito tributário, deixando intacto o crime de lavagem de dinheiro, uma vez que este tem autonomia e, segundo o artigo 2o, parágrafo 1o, da Lei 9.613/98, a extinção da punibilidade do crime antecedente não afeta a do crime de lavagem.
Desta feita, é possível que o pagamento do débito fiscal afaste apenas a punição pelo delito tributário, sem qualquer efeito no delito de lavagem de dinheiro. Evidentemente, isso apenas acontecerá nos casos em que reconhecida — ou investigada — uma conduta típica de lavagem do produto do crime tributário.
Uma vez que o objeto material do crime de lavagem é o produto econômico do crime antecedente e que o crime tributário somente se considera consumado — concorde-se ou não com tal assertiva — e, portanto, “sonegado” um certo montante, quando do lançamento definitivo do tributo (Súmula Vinculante 24 do STF). Incabível, antes disso, a instauração de inquérito policial, a promoção de medidas cautelares, ou de ação penal para apuração de lavagem de dinheiro enquanto não for definitivo o lançamento, salvo se houver indicativo de outra infração antecedente. Importa também destacar que, se considerarmos o valor previsto no artigo 20 da Lei 10.522/2002 como parâmetro de insignificância nos crimes tributários, a sonegação até essa quantia será atípica e a parcela sonegada não será objeto de lavagem de dinheiro, mesmo que constatada a ocultação posterior.
No entanto, caracterizado o fato típico (consumado, portanto) do crime tributário, seguido por algum ato de ocultação ou dissimulação indicado no artigo 1o da Lei 9.613/98, o pagamento do débito decorrente de conduta inicial tem impacto reduzido, uma vez que não afasta completamente a persecução penal, mas apenas aquela parte referente ao crime tributário, podendo, eventualmente, implicar em causa de redução da pena do crime de lavagem, a depender do que se entenda seja o bem jurídico protegido para fins do artigo 16 do Código Penal.
Por outro lado, recente decisão do STF revelou de forma ainda mais clara o limitado papel da extinção da punibilidade pelo pagamento na seara dos crimes conexos aos delitos em questão. Trata-se do HC 90. 757 onde o relator, o ministro Celso de Mello, em decisão monocrática, reconheceu que o pagamento afeta a punibilidade do crime tributário, mas não a do eventual delito de bando ou quadrilha, a ele relacionado.
Vale destacar, por oportuno, que diferentemente de outros importantes precedentes da mesma corte que confirmaram a impossibilidade de imputação automática do crime do artigo 288 na pura criminalidade de empresa[4][5], nesse caso não se tratava de mera imputação de crime de quadrilha em criminalidade de empresa, mas, sim, de grupo formado por dirigentes de empresas e agentes a ela externos — inclusive funcionários públicos — para a prática reiterada de crimes tributários.
Desta forma, se, no caso concreto, ao lado do crime tributário for constatada a prática do delito previsto no artigo 288 do Código Penal, este manterá intacta sua materialidade mesmo que o primeiro tenha sua punibilidade extinta, uma vez que são autônomos e subsistem independente da integridade das condições de punibilidade do outro.
Não deixa de ser paradoxal que o mesmo legislador que, desde a década de 60, tem mantido uma política puramente arrecadatória quanto à punibilidade do crime tributário — como curtos e esporádicos espaços temporais nos quais o pagamento nenhum efeito teve sobre a punibilidade —, agora sinalize com a total irrelevância do pagamento ou do parcelamento quanto a eventual crime ulterior de lavagem, o que não deixa de causar incômodo naqueles casos em que a imputação se dirige novamente contra o autor do crime tributário.
Enfim, a nova redação da Lei de Lavagem de Dinheiro, e o reconhecimento dos limites da extinção de punibilidade aos crimes conexos ou relacionados, dá uma nova dimensão ao delito tributário. A limitação dos efeitos do pagamento a apenas estes últimos, deixando intocada a materialidade da lavagem de dinheiro, implica dizer que não é mais somente a “razão fiscal” que está a reger a reação punitiva à prática de crimes tributários.
[1] Quanto ao crime de descaminho, v. recente acórdão do STJ nos autos do RE 1.376.031, DJe 17/02/2014, indicando possível mudança de entendimento naquela e. Corte, da qual, com o devido respeito, discordamos.
[2] V. STJ, RE 1.234.696, DJe 03/02/2014.
[3] . Sobre a admissibilidade da quota tributária como bem, ver Blanco Cordero, El delito de blanqueo, Cap.IV, 6.5.2.2.1. Importa destacar que há estudos apontando a impropriedade de considerar o valor economizado como produto da lavagem nos crimes fiscais. Nesse sentido, SALOMÃO NETO, Eduardo, in Boletim Levy & Salomão Advogados, http://www.levysalomao.com.br/publicacoes/Boletim/sonegacao-fiscal-e-lavagem-de-dinheiro-um-casal-disfuncional, acessada em 8 de agosto de 2013.
[4] Vide, por todos, STF, HC 92.499, DJe 18/04/2012.
[5] Cf. ESTELLITA, Heloisa. Criminalidade de empresa, quadrilha e organização criminosa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009; e, nesta publicação online, artigo subscrito por ESTELLITA e GRECO: http://www.conjur.com.br/2013-set-14/definicao-organizacao-criminosa-progresso-legislacao.

domingo, 23 de março de 2014

Quebra de sigilo pelo Fisco sem ordem judicial é inconstitucional

A quebra do sigilo bancário para fins de fiscalização de obrigações tributárias é inconstitucional, porque conflita com a Constituição Federal. Assim entendeu o Tribunal Regional Federal da 3ª Região ao determinar a suspensão da exigibilidade de crédito fiscal no valor de R$ 16 milhões cobrado em auto de infração lavrado por omissão de rendimentos. Ao acessar os dados bancários do contribuinte para verificar receitas não declaradas, a Receita Federal não pediu ordem judicial, quebrando o sigilo bancário sem autorização, o que, segundo o tribunal, é conduta inconstitucional.
Uma empresa de importação e exportação de cosméticos foi o alvo da cobrança. Ela entrou com ação contra a União pedindo a nulidade de auto, que impunha multa referente a Imposto de Renda. Segundo o tributarista Augusto Fauvel, representante da empresa, a decisão do TRF-3 abre precedente para que os contribuintes atuados por omissão de rendimentos com base na movimentação bancária, em informações do Coaf e na CPMF contestem as cobranças, caso as consultas a esses dados tenha sido feita sem ordem judicial. 
Após ter seu pedido de liminar negado pelo juízo da 1ª Vara Federal da Justiça Federal da Subseção Judiciária de São Carlos (SP), a empresa de importação e exportação interpôs Agravo de Instrumento ao tribunal, alegando que houve quebra de seu sigilo bancário sem qualquer decisão judicial. Segundo a empresa, toda a exigência fiscal foi lançada com base apenas nos dados obtidos com a quebra do sigilo, "sendo efetuado lançamento de ofício referente ao ano-calendário 2010 no valor de R$ 16 milhões”, relata o voto do relator do caso, desembargador Nery Júnior.
O desembargador afirmou entender que o sigilo bancário não é absoluto e que sua quebra deveria ser vista em termos de exceção e não de regra, sujeitando a atuação dos agentes fiscais e demais autoridades administrativas ao critério da razoabilidade, submetendo-se os responsáveis, nos casos de quebra do sigilo fora das hipóteses previstas em lei, à pena de reclusão. Ele lembrou a posição antiga do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto. A corte entendeu que o sigilo bancário não é um direito absoluto e deve ceder diante do interesse público, do interesse social e do interesse da Justiça, desde que observado o critério da razoabilidade.
“Assim, a meu ver, as instituições bancárias deveriam prestar à Secretaria da Receita Federal informações sobre as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços, mantendo os documentos dispensados nas operações correntes dos mesmos, sem incorrer em qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade”, afirmou.
Entretanto, segundo o desembargador, recentemente houve uma mudança de entendimento, com a qual ele concorda, no sentido de que a quebra do sigilo bancário para fins de fiscalização de obrigações tributárias conflita com a Constituição.
Ele reconheceu o perigo da demora na decisão, tendo em vista a inscrição do débito em dívida ativa e a cobrança judicial, e decidiu que, a princípio, a cobrança do crédito é indevida. E deferiu a antecipação dos efeitos da tutela recursal.
Clique aqui para ler a decisão. 
Agravo de Instrumento 0000386-20.2014.4.03.0000

"Projeto do Código Penal inviabiliza sistema penitenciário"

A nova legislatura do Congresso Nacional, com diversos projetos de interesse da advocacia em pauta, permitirá ao Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) a retomada de seu protagonismo na atuação acadêmica e política. É com essa expectativa que o advogado Técio Lins e Silva, candidato único à presidência do IAB, encara os próximos dois anos. A eleição, marcada para a próxima quarta-feira (26/3), deve confirmá-lo à frente da entidade mais antiga da advocacia. Fundado para ser a casa de cultura do advogado, o instituto acaba de completar 170 anos.
Diretor-adjunto das duas últimas gestões, Técio quer tornar mais efetiva a vocação do IAB como produtor de pareceres técnicos para comissões do Congresso. Vê na coincidência com a agenda legislativa uma oportunidade para a entidade voltar a influir nas questões da ordem jurídica. “Os Códigos são fundamentais para a vida do advogado. E a próxima legislatura será riquíssima nesse aspecto”, afirma, listando os Códigos Civil, Comercial e de Processo Civil e Penal, além da Lei de Mediação e Arbitragem e a Lei de Execução Penal, que estarão tramitando simultaneamente.
Outro projeto que também deve merecer atenção do IAB é o da Reforma do Código Penal (PLS 236/2012), atualmente no Senado e que passou por diversas modificações nas mãos do relator Pedro Taques (PDT-MT). Para Técio, que participou da comissão de juristas que formulou o anteprojeto, o texto, que já era “duro”, ficou “inviável”. “Se aprovado como está, o sistema penitenciário vai explodir”, resume. Na sua avaliação, ao derrubar a descriminalização do usuário de drogas e a extinção da punição para pequenos furtos — originalmente, o texto previa o ressarcimento à vítima como condição para a extinção da pena —, o projeto atende ao “pior clamor midiático, o do 'prende, mata e esfola'”.
Embora tenha se formado em 1968, Técio conta seu tempo de profissão a partir do ingresso na Faculdade Nacional de Direito (hoje, Universidade Federal do Rio de Janeiro), quatro anos antes, quando começou “a andar pelos corredores do fórum”. Sua estreia no Tribunal do Júri aconteceu em 1965. Recém-formado, já defendia presos políticos perante o Superior Tribunal Militar.
Ao longo dessas cinco décadas, firmou-se como um dos mais respeitados criminalistas do país. Foi conselheiro da OAB-RJ e do Conselho Federal, e ocupou uma cadeira no Conselho Nacional de Justiça entre 2007 e 2010. A experiência foi transformada no livro Do Outro Lado da Tribuna, lançado quando retomou a advocacia.
A função executiva não é novidade para Técio. Nos anos 1980, foi presidente do Conselho Federal de Entorpecentes (1985-87) e secretário estadual de Justiça (1987-90), cargo que dividiu com o de procurador-geral da Defensoria Pública do RJ. De sua autoria, o projeto de emenda à Constituição estadual que criou o cargo serviu de base ao texto adotado pela Constituição de 1988.
Em 1990, candidatou-se ao Senado pelo PSDB. Obteve 1 milhão e 200 mil votos, mas viu a vaga ficar com o antropólogo Darcy Ribeiro. Hoje, agradece. “Se fossem duas vagas eu teria sido senador, o que teria mudado meu destino. Com um mandato de oito anos, eu teria me desviado da advocacia”, especula.
Aos 68 anos, Técio presidirá uma entidade que reúne cerca de 1.400 filiados, incluindo juízes e ministros dos tribunais superiores, que compõem o quadro de membros honorários. Para ele, a luta pelas prerrogativas dos advogados continua mais necessária e difícil do que nunca. “Curiosamente, o que você vai ouvir dos advogados militantes é que está cada vez mais difícil advogar, ser ouvido, ter acesso. Vivíamos numa ditadura, não havia Habeas Corpus, havia tortura, mas o advogado era respeitado”, compara.
Leia a entrevista:
ConJur — Ao apresentar sua candidatura à presidência do Instituto dos Advogados Brasileiros, o senhor disse que contará com uma “diretoria executiva não estatutária”. Como será isso?Técio Lins e Silva — Nossa diretoria é formada por presidente, secretário, tesoureiro e diretores-adjuntos. É uma diretoria pequena, com funções estatutárias definidas. Mas quando se está numa empresa, ninguém pergunta se o diretor é estatutário ou não. Vi que era preciso agrupar um número maior de pessoas na direção do IAB, e assim fazer com que o Instituto avance mais, não fique centralizado em torno de meia dúzia de pessoas. Até porque, todos nós temos vida intensa na advocacia, ninguém dispõe de tempo integral para se dedicar ao instituto. Essas diretorias aumentarão a capacidade de trabalho do IAB. O diretor cultural terá, por exemplo, o apoio de uma diretoria específica que vai colaborar na parte acadêmica, planejando os cursos e convênios. Vamos pensar grande, buscando convênios com entidades nacionais e internacionais.
ConJur — A ideia é resgatar a vocação acadêmica do IAB?Técio Lins e Silva — Nos últimos quatro anos, o instituto já saiu um pouco daquele silêncio em que estava para uma atividade mais ostensiva. O IAB tem muita história, foi precursor da OAB. Tanto que nos anos 1930, quando a OAB foi fundada, ele era chamado de “o instituto da Ordem”. O IAB tem 170 anos, era frequentado por Dom Pedro II, firmou-se como uma casa de cultura. Depois, a Ordem assumiu o papel de representação de classe e o Instituto manteve sua posição de academia.
ConJur — Mas a atuação acadêmica do IAB não acaba ganhando um viés político?Técio Lins e Silva — Tradicionalmente, o instituto oferece pareceres nos temas que mexem na ordem jurídica. As diversas comissões, ligadas a Direito Civil, Penal e outros, se reúnem e submetem ao plenário determinado parecer sobre uma matéria legislativa. Esse parecer é enviado ao Congresso Nacional para colaborar com a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. O problema é que, com o tempo, eles acabam se perdendo na avalanche de outros pareceres que são enviados ao Congresso. Então é preciso fazer mais do que o parecer, é preciso atuar para que ele se torne conhecido, aceito e respeitado, e influa nas questões da ordem jurídica. Os Códigos são fundamentais para a vida do advogado. E a próxima legislatura será riquíssima nesse aspecto, com a entrada em pauta de assuntos fundamentais para a advocacia. Temos o Código Civil, Comercial, os Códigos de Processo Civil e Penal, a Lei de Mediação e Arbitragem e a Lei de Execução Penal. E essa vocação é do instituto. Recentemente, a Comissão de Direito Penal do IAB elaborou um substitutivo do Código de Processo Penal e o encaminhou ao deputado Miro Teixeira (Pros-RJ), que já o apresentou na Câmara dos Deputados.
ConJur — Essa atuação será feita com a OAB Nacional?Técio Lins e Silva — Sem dúvida. Essa semana a OAB criou duas comissões, de Acompanhamento Legislativo e de Legislação, que vão fazer esse trabalho nos assuntos que interessam aos advogados. Vamos fazer um acordo para atuar em conjunto, porque a vocação para o exame dessas matérias e oferta de pareceres técnicos é do IAB. Tanto que a OAB do Rio de Janeiro anunciou a doação para o IAB de toda a sua biblioteca, porque entendeu que a vocação acadêmica é do Instituto. A OAB vai para o front, faz o corpo-a-corpo no Congresso. O IAB faz a defesa acadêmica.
ConJur — O senhor integrou a comissão de juristas que formulou o anteprojeto do novo Código Penal. Como avalia as mudanças feitas no Senado?Técio Lins e Silva — Com todo respeito aos senadores ilustres que integram a comissão especial, o projeto que foi aprovado no Senado é um monstro. O texto, que já era duro, ficou inviável, encarcerador. Se aprovado como está, o sistema penitenciário vai explodir. Tirou-se do anteprojeto todas as tentativas de reduzir o encarceramento.
ConJur — Poderia dar um exemplo?Técio Lins e Silva — Para os pequenos furtos, responsáveis por cerca de 40% da população carcerária, havíamos proposto penas alternativas. Isso foi retirado. Assim como a proposta de ressarcimento à vítima de furto e a consequente extinção da punibilidade. Nós havíamos descriminalizado o uso de drogas, mas isso também foi mudado, e nesse texto o usuário segue sendo criminalizado. Até bullying passou a ser crime. O projeto, enfim, atende ao pior clamor midiático, o do “prende, mata e esfola”. Esse clamor ignorante da Lei de Talião, da vingança, de propor a pena de prisão como um instrumento de controle social. Isso é um equívoco! Está provado que esse endurecimento não adianta nada. O jurista alemão Rudolf von Ihering dizia, há mais de 100 anos, que a história da pena é a história de sua constante abolição. Basta olhar para a história da humanidade para ver que a pena teve uma trajetória de humanização. Antes não existia pena, só o castigo violento. O sujeito roubava, corta a mão; falava mal, corta a língua; estuprava, corta o órgão genital. Depois veio a pena de morte, exibida em praça pública. Na Inglaterra é a forca. Na França, a Madame Guillotine inventa a guilhotina. Nos EUA, a tecnologia inventa a câmara de gás e a cadeira elétrica. São espetáculos midiáticos para divulgar que não vale a pena o crime, é a pena como prevenção da criminalidade. Antigamente, a pena era a tortura porque não havia cadeia. Ninguém cumpria pena. Até que no final da Idade Média veio o clamor humanitário do Iluminismo, no sentido da humanização do castigo criminal. A humanidade cria a pena privativa de liberdade. Não se tortura nem se mata mais. Tira-se a liberdade, e o corpo do condenado não é mais exibido na praça pública, mas escondido atrás dos muros. E assim, todos pensam: “daquele lado estão os maus, eu sou bom”.
ConJur — Mesmo prevista na Lei de Execução Penal, 30 anos depois as penas alternativas ainda são pouco adotadas pelo Judiciário. Por quê?Técio Lins e Silva — A questão é que o juiz não aplica. Mas ele é membro da sociedade como todos nós, um cidadão comum, com a diferença que fez concurso e agora tem o poder de dispor da liberdade das pessoas. De resto, ele assiste aos mesmos canais de TV e lê os mesmos jornais que influenciam a todos nós. É uma questão cultural. A Lei de Execução Penal procura derrubar um pouco os muros, oferecer alternativas. O futuro é a pena alternativa. A pena privativa de liberdade está no fim. Não será para nossa geração, mas para as próximas. Eu não tenho a menor dúvida disso. Esse discurso do combate ao crime é da Idade Média, ele anda para trás na história. A única luz que essa discussão acende é a da marcha ré da história.
ConJur — Qual a sua avaliação dos mutirões carcerários promovidos pelo CNJ?Técio Lins e Silva — São fundamentais. O início desse trabalho eu acompanhei como conselheiro, na gestão do ministro Gilmar Mendes. Se você entrar em qualquer cadeia do Brasil vai encontrar preso com pena vencida. Como secretário de Justiça do Rio, encontrei muitos nessa situação. A cada dia encontrávamos um caso novo.
ConJur — Mas o clamor popular por condenações mais duras também é forte. Será que a sociedade brasileira reconhece a importância de humanizar o sistema prisional?Técio Lins e Silva —A opinião pública já admite que a brutalidade do encarceramento não é justa. Seja pelas mortes no presídio de Pedrinhas, no Maranhão, com aquelas cenas horrorosas de cabeças cortadas, seja pelo massacre do Carandiru. Hoje, a sociedade tem uma compreensão da violência medieval das prisões, mas também quer que aumente a repressão. É uma coisa meio esquizofrênica, mas no geral a sociedade já admite medidas que diminuam esse sofrimento carcerário. Por isso, fico com pena de o governo estar perdendo essa oportunidade de ouro de avançar na questão penitenciária.
ConJur — “Oportunidade de ouro”?Técio Lins e Silva — Quando fui secretário de Justiça do Rio, de 1987 a 1990, respondia por todo sistema penitenciário estadual, pois ainda não existia a Secretaria de Administração Penitenciária. Naquela época, qualquer iniciativa para melhorar o sistema causava uma gritaria: “para que gastar dinheiro para melhorar vida de bandido, tem que melhorar escola, hospital etc.” Havia um apelo muito maior para que não houvesse investimento na área penitenciária. Hoje é diferente. A situação é tão dramática que começa a aumentar a adesão da opinião pública.
ConJur — O senhor foi convidado para integrar a recém-criada Comissão Especial de Garantia do Direito de Defesa da OAB. A luta pelo direito à ampla defesa continua?Técio Lins e Silva — Continua. Cada vez mais intensa, mais necessária e mais difícil. Curiosamente, o que você vai ouvir dos advogados militantes é que está cada vez mais difícil advogar, ser ouvido, ter acesso. Vivíamos numa ditadura, não havia Habeas Corpus, havia tortura, mas o advogado era respeitado. A primeira vez que eu entrei para visitar um preso foi no quartel da Polícia do Exército da Rua Barão de Mesquita, no Pelotão de Investigações Criminais, onde foi morto o deputado Rubens Paiva. Ainda estudante de Direito, entrei para visitar um amigo de faculdade preso sem processo, e fui recebido pelo capitão Hilton Paula Portela. Lembro dele reclamando que meu pai (o criminalista Raul Lins e Silva Filho) o chamara de torturador — e de fato ele era —, mas nem por isso dificultou minha visita. Hoje, entrar numa cadeia para visitar um preso comum é a coisa mais complicada do mundo.
ConJur — Os advogados têm enfrentado muita dificuldade nesse sentido?Técio Lins e Silva — Muita. E não estou falando apenas de visita a clientes em presídios. Hoje eu tenho mais dificuldade, por exemplo, para falar com um ministro de Corte superior do que eu tinha para falar com os ministros do Superior Tribunal Militar, durante a ditadura. Todos recebiam os advogados. Eu falava com o então ministro do STM Ernesto Geisel [presidente militar entre 1974 e 1979], um homem irascível que eu nunca vi sorrir, como não falo com ministros do STJ ou do STF, alguns, inclusive, do quinto constitucional. O presidente do STF não recebe advogado, violando a Constituição e agredindo o seu papel de magistrado. Hoje, os advogados sofrem mais do que naquele tempo.
ConJur — Com a experiência de ter defendido presos políticos na ditadura militar, o senhor certa vez disse que hoje os perseguidos são outros. Quem são eles?
Técio Lins e Silva — Os que não estão no poder ou aqueles que foram eleitos inimigos por quem está no poder. Varia. Houve uma época em que o principal perseguido era o do colarinho branco, com a disseminação do ódio ao rico e ao bem-sucedido. Tudo bem, eu não tenho nenhum apreço pelas malandragens do capitalismo. Mas, em certo momento, os homens que trabalham no mercado de capitais foram eleitos inimigos. É a mesma lógica do “pão e circo”, dessa vez alimentando o imaginário popular para perseguir pessoas ricas.
ConJur — Sua trajetória ficou marcada também pela criação da Defensoria Pública no estado do Rio, tida como modelo para o país. Como foi essa história?Técio Lins e Silva — Eu era secretário de Justiça do estado do Rio (1987-90) quando nós criamos a Defensoria Pública nos moldes como ela é hoje, como uma instituição independente, com orçamento e chefia institucional própria. Foi por meio de uma emenda constitucional de minha iniciativa, em 1987, durante o governo Moreira Franco. Portanto, antes da Constituinte de 88 a Constituição do estado do Rio já havia sido modificada para criar a Defensoria Pública. Esse modelo foi copiado pela Constituição Federal. Assim que foi promulgada a lei estadual, eu levei ao governador o nome de um defensor público de minha confiança para assumir o cargo de Procurador-Geral da Defensoria Pública. Mas aí ele me disse, “quem pariu Mateus que o embale”, e me nomeou. Acabei acumulando a função com a secretaria de Justiça, e assim montei toda a estrutura física dessa nova instituição.
ConJur — Como foi a aprovação na Constituinte?Técio Lins e Silva — Lá, o lobby do Ministério Público trabalhou violentamente contra. O presidente da Constituinte, o deputado Ibsen Pinheiro (PMDB-RS), escondia o fato de ser membro do MP. No processo constituinte, em que eu fui com os defensores levar as sugestões para introdução dessas regras na Lei Orgânica, percebi logo que o Ibsen era promotor. Ele nos mandava falar com parlamentar que não tinha nada a ver com o processo, tentava nos jogar para escanteio. Ao final, a lei foi aprovada, mas esvaziaram a figura da chefia institucional da Defensoria, tirando a qualificação de “Procurador-Geral”. Ora, quem comanda os assuntos do Estado? O Procurador-Geral do Estado. Assim como existe o Procurador da Justiça. É natural. E a Defensoria Pública, mais do que os outros, têm procuração, age por procuração dos pobres e carentes da sociedade. Eu fui Procurador-Geral da Defensoria Pública, mas não durou muito. Quando veio a primeira lei orgânica, foi retirado o nome e puseram Defensor Público Geral, que é um nome feio. Quando a emenda foi feita na lei estadual, o Procurador-Geral de Justiça do Rio enviou um ofício ao governador reclamando e pedindo para mudar o nome, que durou uns três anos, até a aprovação da lei. Mudaram por puro preconceito.
ConJur — Após cinco décadas de advocacia, a paixão continua a mesma?Técio Lins e Silva — Tenho 50 anos de foro criminal. Comecei a andar pelos corredores do fórum em 1964, quando iniciava na faculdade de Direito. Estreei no Tribunal do Júri em 1965, e, em 1968, no Tribunal Militar, defendendo presos políticos. São 50 anos ralando, com os mesmos sonhos. Às vezes, confesso que dá uma certa agonia, um certo desânimo. As dificuldades só não são piores por causa do meu exercício profissional, isto é, como estou há muito tempo nisso — e me considero um advogado relativamente em extinção, porque vivo exclusivamente da clientela —, sou conhecido e acabo tendo facilidades. Uma delas é ser recebido pelo juiz. Mas isso não me satisfaz, porque é um privilégio que eu constato não ser extensível a toda a categoria. A maioria tem dificuldades elevadas à quinta potência. Isso entristece, mas também são razões para continuar com a boca no trombone.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Lei que tipifica organização criminosa não elimina incertezas

Poucos meses atrás foi aprovada a Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013, que entre outras coisas introduziu em nosso ordenamento o crime de “organização criminosa”,[i] tipificando a conduta de promovê-la, constituí-la, financiá-la ou integrá-la e apenando-a com reclusão de três a oito anos, além de multa.
Nos termos da nova lei, organização criminosa é (i) a associação de quatro ou mais pessoas, (ii) estruturalmente ordenada, (iii) caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, e (iv) com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos, ou que sejam de caráter transnacional. A definição aberta trazida pela nova legislação, entretanto, merece ser analisada com alguma reserva se considerarmos as consequências práticas que decorrem de sua aplicação nos termos em que instituída.
Embora não se possa precisar cronologicamente quando surgiu, a acepção de organização criminosa está vinculada no imaginário popular à ideia de máfia desde pelo menos o início do século XX, quando se desenvolveu nos Estados Unidos a chamada “teoria da conspiração estrangeira”, fortemente romantizada por produções literárias e cinematográficas até hoje. Desde aquela época, diversas proposições vêm surgindo para tentar explicar de maneira mais concreta o termo, sem que a doutrina tenha chegado a consenso algum ao longo desses mais de cem anos.
Em novembro de 2000, ciente dos prejuízos político-criminais que decorriam da falta de sistematização para tratar da matéria, aprovou a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas o texto do que atualmente se conhece por “Convenção de Palermo”, tratado internacional que busca, em termos gerais, desenvolver estratégia coordenada de combate ao crime organizado que se manifesta em nível global. A Convenção de Palermo não definiu a organização criminosa, mas introduziu conceito, deveras aberto, de “grupo criminoso organizado”, identificado pela associação concertada e duradoura de três ou mais pessoas com o propósito de cometer infrações graves, conforme enunciadas pela própria convenção, e com a intenção de obter algum benefício econômico ou material. Não se tipificou por via desse instrumento a conduta de integrar grupo criminoso organizado, mas se delegou aos Estados signatários a responsabilidade de adotarem as medidas necessárias para que isso ocorresse, observando-se, evidentemente, as particularidades de cada ordenamento.
A despeito da previsão internacional, não instituiu o Brasil o crime de que tratava a convenção até o advento da Lei 12.850/13, relutando a jurisprudência pátria, justificadamente, em admiti-la para preencher hipóteses legais nas quais se fazia referência ao fenômeno sem no entanto defini-lo, como na antiga redação da Lei de Lavagem de Dinheiro, por exemplo.[ii] Em junho de 2012, porém, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu de maneira expressa pela impossibilidade de se aplicar o conceito trazido pelo tratado internacional, por entender que a existência de tipo penal pressupõe observância ao processo legislativo ordinariamente empregado na sua criação, o que não ocorre quando o Brasil simplesmente ratifica tratado internacional.[iii] A discussão foi novamente realizada, desta vez pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Ação Penal 470, sem que a conclusão se alterasse. Com essa jurisprudência, parecia se consolidar no cenário jurídico nacional a inaplicabilidade de dispositivos que tratassem da organização criminosa enquanto componente de qualquer infração penal.[iv]
Nesse contexto de incertezas e indefinições, entretanto, determinou-se na Câmara dos Deputados a alteração do regime de tramitação do então Projeto de Lei 6.578/09, que entre outras coisas definia a organização criminosa, para que sua análise fosse realizada com urgência. Isso culminou, pouco depois, na Lei 12.850/13 de que aqui tratamos, a qual praticamente reproduz, sem maiores adaptações, o conceito de “grupo criminoso organizado” da Convenção de Palermo.
Criada a norma penal típica, não mais subsiste o óbice da impossibilidade de se introduzir tipo penal por meio de tratado internacional, mas os inconvenientes da definição aberta da Convenção de Palermo, projetada para uma realidade de crime organizado transnacional, continuam ainda bastante atuais. Transpor para o ordenamento pátrio o tipo trazido pelo tratado de que o Brasil é signatário transformando-o em crime, de fato, significa internalizar sem restrições normas programáticas que exigiam adaptações específicas condizentes com nossa realidade para que fossem aplicadas. Essa postura por certo tem implicações práticas que podem até mesmo inviabilizar a aplicação da nova lei.
O aspecto da “informalidade” consolidado na norma penal, por exemplo, inserido de modo a tornar menos rígida a divisão de tarefas inerente à organização criminosa, acaba por simplesmente descaracterizar a “organização” que se pressupõe em sua estrutura, além de desprezar características concretas que se mostram fundamentais para sua identificação, como a existência de hierarquia e a ordenação empresarial destinada à obtenção de ganhos racionais. Analogamente, a referência a “infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos, ou que sejam de caráter transnacional” também não individualiza aspectos realmente típicos de uma organização criminosa.
O fenômeno associativo não é assim qualificado apenas porque permite o cometimento de infrações penais consideradas graves, mas sobretudo porque possui uma estrutura destinada a delinquir, independentemente da pena que se aplique individualmente a cada crime ou do caráter transnacional que se repute presente. A permanência dessa estrutura, por sua vez, é aspecto que definitivamente não poderia ter deixado de ser mencionado entre as características da organização criminosa, como desacertadamente acabou ocorrendo.
A aprovação da Lei 12.850/13 nos termos em que redigida, enfim, não elimina as incertezas que sempre se fizeram presentes com relação ao conceito de organização criminosa introduzido pela Convenção de Palermo, retrocedendo em termos técnicos por autorizar a subsunção ao tipo de condutas que, no mais das vezes, pouco terão que ver com a realidade que se buscava coibir. Os impactos mais significativos dessa opção legislativa ainda estão por vir, mas não será de se espantar caso a jurisprudência acabe por enquadrar como organização criminosa camarilhas que quando muito se poderiam denominar meras associações delitivas.

[i] “Art. 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa: Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.” E segundo definição do artigo 1º, §1º: “Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.”
[ii] O antigo artigo 1º, inciso VII, da Lei 9.613/98 incluía entre as condutas que constituíam lavagem de dinheiro o seguinte dispositivo: “Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime: (...) praticado por organização criminosa”.
[iii] Habeas Corpus 96.007, de relatoria do ministro Marco Aurélio, cujo acórdão foi publicado em 8 de fevereiro de 2013.
[iv] Não se discute aqui a Lei 12.694, de 24 de julho de 2012, que definiu organização criminosa para fins processuais.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Família pode ter dois imóveis impenhoráveis

O casal que se separa e ocupa dois imóveis distintos torna ambos os bens impenhoráveis, segundo decisão da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Ao julgar execução envolvendo um morador de Novo Hamburgo (RS), o colegiado avaliou que o fato de um imóvel já estar penhorado quando a ex-mulher passou a ocupá-lo com as filhas não é obstáculo para que elas continuem morando ali.
Conforme o relator do processo, o juiz federal convocado Nicolau Konkel Júnior, a separação originou um novo núcleo familiar, que merece a proteção da Lei. Como o executado permaneceu residindo na primeira residência, esta também não pode ser penhorada, avaliou. “Constata-se que o imóvel constrito serve de residência para a embargante e suas filhas, estando ao abrigo do instituto da impenhorabilidade previsto na Lei 8.009/90.”
O magistrado afirmou que seu voto era baseado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual deve ser afastada a penhora nos casos em que a família resida no imóvel, ainda que tal bem não seja o único desta. Mas ele apontou um requisito importante para a aplicação desse entendimento: “deve ser comprovado que o imóvel seja de moradia, para caracterizá-lo como bem de família”. Segundo Konkel Júnior, a residência ficou comprovada no caso concreto. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRF-4.