sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A nova lei sobre guarda compartilhada (ou alternada) obrigatória

A Lei da Guarda Compartilhada (ou alternada) obrigatória - Análise crítica da lei 13.508/2014 - Parte I
Fonte: Migalhas.
Para esta segunda coluna do Migalhas resolvi tratar da nova legislação relativa à guarda compartilhada, promulgada ao final de 2014. Penso ser muito importante, neste momento, aprofundar a abordagem do preceito emergente, o que será feito em dois textos. Conforme tenho destacado em aulas e exposições sobre o assunto, parece-me que o novo diploma tende a intensificar os conflitos familiares nos próximos anos, gerando ainda mais problemas.
Como é notório, após cuidar da separação judicial e do divórcio, o Código Civil de 2002 elenca as regras referentes à "Proteção da Pessoa dos Filhos". Sobre esse tema, a codificação material traz disposições importantes, em especial nos seus arts. 1.583 e 1.584. Tais artigos foram profundamente modificados pela lei 11.698, de 13 de junho de 2008. Sucessivamente, houve nova alteração por meio da lei 13.058, de 22 de dezembro de 2014, originária do projeto de lei 117/2013, denominada por alguns como Lei da Guarda Compartilhada Obrigatória. O projeto aprovado modificou outros comandos da codificação privada, mas aqui vamos nos ater aos citados arts. 1.583 e1.584 do Código Civil.
Voltando a momento anterior ao Código Civil de 2002, a lei 6.515/1977 estabelecia a influência da culpa na fixação da guarda. De início, o art. 9.º da Lei do Divórcio prescrevia que, no caso de dissolução da sociedade conjugal pela separação judicial consensual, seria observado o que os cônjuges acordassem sobre a guarda dos filhos. No caso de separação judicial fundada na culpa, os filhos menores ficariam com o cônjuge que não tivesse dado causa à dissolução, ou seja, com o cônjuge inocente (art. 10, caput). Se pela separação judicial fossem responsáveis ambos os cônjuges, os filhos menores ficariam em poder da mãe, salvo se o juiz verificasse que tal solução pudesse gerar prejuízo de ordem moral aos filhos (art. 10, § 1.º). Sendo verificado pelo juiz que os filhos não deveriam permanecer em poder da mãe nem do pai, seria possível deferir guarda a pessoa notoriamente idônea, da família de qualquer dos cônjuges (art. 10, § 2.º, da Lei do Divórcio).
No sistema da redação original do Código Civil de 2002, preceituava o art. 1.583 que, no caso de dissolução da sociedade conjugal, prevaleceria o que os cônjuges acordassem sobre a guarda de filhos, no caso de separação ou divórcio consensual. Na realidade, a regra completava a proteção integral da criança e do adolescente consagrada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990). Não havendo acordo entre os cônjuges, nos termos da redação original da codificação material, a guarda seria atribuída a quem revelasse as melhores condições para exercê-la (art.1.584 do CC/2002). O parágrafo único deste comando legal enunciava que a guarda poderia ser atribuída a terceiro, se o pai ou a mãe não pudesse exercê-la, de preferência respeitada a ordem de parentesco e a relação de afetividade com a criança ou o adolescente.
Percebe-se que o Código Civil de 2002, em sua redação original, mudou o sistema anterior de guarda, uma vez que a culpa não mais influencia na determinação do cônjuge que a deterá, ao contrário do que constava do art. 10 da Lei do Divórcio, norma revogada tacitamente pela codificação privada, diante de incompatibilidade de tratamentos. Assim, constata-se que não houve qualquer impacto da Emenda do Divórcio (EC/2010) sobre a guarda, eis que a culpa já não mais gerava qualquer consequência jurídica em relação a tal aspecto.
A expressão melhores condições, constante da redação originária do art. 1.584 doCC/2002, sempre foi como uma cláusula geral. E para preenchê-la a doutrina nacional reiteradamente propunha o atendimento do maior interesse da criança e do adolescente. Nesse contexto, Maria Helena Diniz, com base na doutrina francesa, sempre apontou a existência de três critérios, três referenciais de continuidade, que poderiam auxiliar o juiz na determinação da guarda, caso não fosse possível um acordo entre os cônjuges. O primeiro deles seria o continuum de afetividade, pois o filho deve ficar com quem se sente melhor, sendo interessante ouvi-lo, sempre que isso for possível. O segundo é o continuum social, pois a criança ou adolescentedeve permanecer onde se sente melhor, levando-se em conta o ambiente social, as pessoas que o cercam. Por fim, cabe destacar o continuum espacial, eis que deve ser preservado o espaço do filho, o "envoltório espacial de sua segurança", conforme ensina a professora Titular da PUC/SP1. Justamente por esses três critérios é que, geralmente, quem já exercia a guarda unilateral sempre teve maiores chances de mantê-la. Até então a guarda unilateral com regulamentação de visitas era a única opção prevista expressamente em lei
Reafirme-se que com a edição da lei 11.698, de 13 de junho de 2008, as redações dos arts. 1.583 e 1.584 do CC/2002 sofreram alterações substanciais. De início, o art. 1.583, caput, passou a expressar que a guarda será unilateral ou compartilhada. Assim, seguindo o clamor doutrinário, a lei passou a consagrar, expressamente, a última modalidade de guarda. Nos termos legais, a guarda compartilhada é aquela em que há a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. O § 1.º do art. 1.583 define a guarda unilateral como a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua. Esses diplomas não sofreram qualquer mudança com a lei 13.058/2014.
Porém, determinava o § 2.º do art. 1.583 do CC/2002 que a guarda unilateral seria atribuída ao genitor que revelasse as melhores condições para exercê-la, o que era repetição da anterior dicção do art. 1.584 do CC/2002. Todavia, o preceito foi além, ao consagrar alguns critérios objetivos para a fixação dessa modalidade de guarda, a saber: a) afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar; b) saúde e segurança; c) educação. Tais fatores estavam na linha dos parâmetros expostos por Maria Helena Diniz, o que demonstrava que a lei apenas confirmava o que antes era apontado pela doutrina nacional.
Com a lei 13.058/2014 o diploma passou a estabelecer que "na guarda compartilhada, o tempo de custódia física dos filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos". Em suma, nota-se que os critérios antes mencionados foram retirados, com a revogação dos três incisos do art. 1.583, § 2º, da codificação privada; o que não nos parece salutar.
Ademais, com o devido respeito ao pensamento contrário, a este colunista a novel legislação traz outros sérios problemas. O principal deles é a menção a uma custódia física dividida, o que parece tratar de guarda alternada e não de guarda compartilhada. Continuamos a seguir a ideia de que a guarda alternada é aquela em que o filho permanece um tempo com o pai e um tempo com a mãe, pernoitando certos dias da semana com o pai e outros com a mãe. A título de exemplo, o filho fica sob a custódia do pai de segunda a quarta-feira; e da mãe de quinta-feira a domingo. Essa forma de guarda não é recomendável, eis que pode trazer confusões psicológicas à criança, como bem desenvolve a juspsicanalista Giselle Câmara Groeninga em sua tese de doutorado defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Como ela destaca, a guarda alternada acaba por privilegiar mais o que os pais vêem como seus direitos, "sem considerar os seus reais efeitos para o desenvolvimento da criança"2.
Dois desses direitos dos pais, notoriamente egoísticos, podemos destacar de imediato. O primeiro é o de reduzir ao máximo os encontros com o antigo consorte, o que é facilitado pela existência de dois lares. O segundo diz respeito aos pleitos de redução ou exoneração de valores alimentícios, o que vem ocorrendo perante o Poder Judiciário sob a vigência da nova lei.
Em verdade, a nova norma até pode parecer bem intencionada, sob o argumento de trazer a ideia de igualdade parental, superando o modelo monista da guarda unilateral. Porém, ela verdadeiramente esconde em seu conteúdo uma armadilha jurídica, como um Cavalo de Tróia Legislativo. A propósito, conforme destacado por Waldyr Grisard Filho na última Revista Informativa do IBDFAM, ainda em comentários ao projeto que gerou a lei, "a norma projetada não só mantém vivos alguns dos velhos equívocos à sua atribuição como ressuscita outros, de nefasta memória, como a guarda alternada, nunca disciplinada em nosso ordenamento jurídico. Assim, a guarda compartilhada permanece na berlinda"3.
Pertinente lembrar que a guarda alternada é também chamada de guarda do mochileiro, pois o filho sempre deve arrumar a sua mala ou mochila para ir à outra casa. Não se trata de um mito, mas de uma realidade que deve ser mais profundamente debatida. Se existem estudos de psicanalistas e juristas que apontam não existir problema na alternância de lares; também existem outros relevantes trabalhos que afirmam o contrário, como o da professora Giselle Groeninga, aqui exposto. Se há séria divergência, especialmente em aspectos meta-jurídicos, melhor seria não mudar a lei, ou pelo menos debater a então proposta legislativa mais profundamente, o que não ocorreu. Efetivou-se uma tentativa de solucionar o problema da prevalência da guarda unilateral com a instituição generalizada da guarda alternada, o que é lamentável.
Continuamos a afirmar que a alternância de guarda e de lares é altamente inconveniente, pois a criança perde seu referencial, recebendo tratamentos diferentes quando na casa paterna e na materna. O problema não diz respeito a gênero, mas a espaço e a convivência social. Qual será a turma de amigos do filho? Onde ele irá desempenhar as atividades complementares, esportivas e intelectuais, para a sua formação? Estudará na escola próxima a qual dos lares? Conviverá mais com os filhos dos amigos do pai ou da mãe? Como irá trabalhar psicologicamente as informações recebidas nos dois ambientes? Em grandes cidades e em situações concretas de pais que moram em municípios distintos a nova lei é praticamente inaplicável.
Acrescente-se que o equívoco foi percebido pelo Professor José Fernando Simão, que participou da audiência pública no Senado Federal de debate do então projeto de lei n, 117/2013. Conforme artigo publicado ao final de 2014, pontua o jurista:
"Este dispositivo é absolutamente nefasto ao menor e ao adolescente. Preconiza ele a dupla residência do menor em contrariedade às orientações de todos os especialistas da área da psicanálise. Convívio com ambos os pais, algo saudável e necessário ao menor, não significa, como faz crer o dispositivo, que o menor passa a ter duas casas, dormindo às segundas e quartas na casa do pai e terças e quintas na casa da mãe. Essa orientação é de guarda alternada e não compartilhada. A criança sofre, nessa hipótese, o drama do duplo referencial criando desordem em sua vida. Não se pode imaginar que compartilhar a guarda significa que nas duas primeiras semanas do mês a criança dorme na casa paterna e nas duas últimas dorme na casa materna. Compartilhar a guarda significa exclusivamente que a criança terá convívio mais intenso com seu pai (que normalmente fica sem a guarda unilateral) e não apenas nas visitas ocorridas a cada 15 dias nos finais de semana. Assim, o pai deverá levar seu filho à escola durante a semana, poderá com ele almoçar ou jantar em dias específicos, poderá estar com ele em certas manhãs ou tardes para acompanhar seus deveres escolares. Note-se que há por traz da norma projetada uma grande confusão. Não é pelo fato de a guarda ser unilateral que as decisões referentes aos filhos passam a ser exclusivas daquele que detém a guarda. Decisão sobre escola em que estuda o filho, religião, tratamento médico entre outras já é sempre foi decisão conjunta, de ambos os pais, pois decorre do poder familiar. Não é a guarda compartilhada que resolve essa questão que, aliás, nenhuma relação tem com a posse física e companhia dos filhos"4.
Sabe-se que o desenvolvimento do ser humano desde os anos iniciais de vida demanda muito tempo e muita dedicação. Empenho, disciplina e esforço são palavras de ordem para os pais, havendo exigências sobre as figuras paternas e maternas que não eram realidade no passado. Já é difícil a construção de laços afetivos sociais, internos e externos, em um lar apenas. Imaginem em dois. A sociedade contemporânea exige papéis dos pais como se fossem Super-homens e Mulheres-Maravilhas, quando a realidade nos coloca muito distantes das fantasias de super-heróis.
Repise-se que a guarda compartilhada ou guarda conjunta representa a hipótese em que pai e mãe dividem as atribuições relacionadas ao filho, que irá conviver com ambos, sendo essa sua grande vantagem. Esse é o conceito que permanece no art.1.583, do Código Civil, como antes exposto. Todavia, há uma total contradição da norma ao estabelecer, no § 3º do mesmo diploma, a ideia de divisão de moradias, comum na alternância da guarda. O paradoxo também pode ser retirado do inciso II do art. 1.584 da própria codificação, ora modificada, ao enunciar que a guarda compartilhada poderá ser decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe. Distribuir o tempo de convívio igualmente é comum na guarda alternada. Para sanar o conflito existente na própria lei, talvez a solução futura seja fixar a verdadeira guarda compartilhada, sem considerar a alternância de lares que o comando introduziu.
Expostas essas ideias e conceitos, fica a reflexão final deste texto: a lei 13.508/2014 é uma norma sobre guarda compartilhada obrigatória ou uma lei sobre guarda alternada obrigatória? Tenho respondido pelo segundo enquadramento. Por isso o título desta coluna, a demonstrar um dos dois principais problemas do preceito emergente. O segundo problema, a obrigatoriedade propriamente dita, será abordado no nosso próximo artigo.
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1DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Volume 5. Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 28ª edição, 2010, p. 347-348.
2GRONENIGA, Giselle Câmara. Direito à convivência entre pais e filhos: análise interdisciplinar com vistas à eficácia e sensibilização de suas relações no Poder Judiciário. Tese de doutorado. Acesso em 11 de fevereiro de 2015.
3GRISSARD FILHO, Waldyr. A guarda compartilhada na berlinda. Revista do IBDFAM n. 18. Belo Horizonte: IBDFAM, Janeiro de 2015, p. 12.
4SIMÃO, José Fernando. Guarda compartilhada obrigatória. Mito ou realidade? O que muda com a aprovação do PL 117/2013. Acesso em 28 de novembro de 2014.
Flávio Tartuce é doutor em Direito Civil pela USP. Professor do programa de mestrado e doutorado da FADISP - Faculdade Especializada em Direito. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito Privado da lato sensu da EPD - Escola Paulista de Direito, sendo coordenador dos últimos. Professor da Rede LFG. Diretor nacional e estadual do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família. Advogado e consultor jurídico em São Paulo

Lavagem de dinheiro e a teoria da "cegueira deliberada"

Nesses vastos anos de advocacia criminal e de academia, temos acompanhado de perto a expansão do Direito Penal no Brasil. Em verdade, as leis penais vêm sendo utilizadas para resolver de forma rápida anseios da população em relação à segurança pública — resposta essa perfeitamente cabível para tempos de imediatismo. Um dos pontos muito criticados pelos brasileiros era a impunidade dos poderosos que cometiam os chamados crimes de colarinho branco, por ficarem à margem da justiça. Diante de tal alegação, surgiu então a interpretação jurisprudencial sobre teorias estrangeiras sem que houvesse uma análise profunda, o que acarretou em um transplante de órgãos em sujeitos incompatíveis, se assim nos permitem reduzir o ocorrido[1].
Uma das teorias literalmente transplantadas é o que denominamos de cegueira deliberada — ou Willful (Wilful, em inglês britânico) Blindness[2]. Em apertada síntese, a doutrina referida propõe a equiparação, atribuindo os mesmos efeitos da responsabilidade subjetiva, dos casos em que há o efetivo conhecimento dos elementos objetivos que configuram o tipo e aqueles em que há o “desconhecimento intencional ou construído” de tais elementares. Extrai-se tal conclusão da culpabilidade, que não pode ser em menor grau quando referente àquele que, podendo e devendo conhecer, opta pela ignorância.[3]
Acompanhamos a utilização da teoria no julgamento da Ação Penal 470[4]. À época, levando-se em conta o precedente mais acertado da Suprema Corte norte-americana, o Supremo Tribunal Federal divergiu dos EUA na aplicação da teoria, uma vez que, não basta, para a corte suprema deste último “a escolha deliberada do agente em permanecer ignorante a respeito de todos os fatos, quando possível a alternativa”, devendo, em verdade, haver “atos deliberadamente voltados à manutenção da ignorância[5].
Se a doutrina da cegueira deliberada fosse utilizada da maneira proposta pelo STF, estaríamos diante de um imbróglio jurídico, já que uma pessoa não escolhe saber sobre um ilícito, e tal escolha iria contra os dois outros princípios apontados pelo Supremo. Ao exigir indiferença quanto ao “conhecimento”[6], já se parte desse pressuposto, logo, desnecessária a utilização da teoria da cegueira deliberada, uma vez que, havendo conhecimento, não há porque equiparar-se a alegação à assunção de risco. O que uma pessoa escolhe é confirmar ou não uma desconfiança que possui, e daí que os atos de evitar tal confirmação é que podem ser levados à equiparação de dolo eventual aplicando-se a teoria aqui descrita.
Talvez uma das principais teses do escalão superior investigado na operação lava jato seja o desconhecimento do que vinha ocorrendo. De que não era possível saber que os contratos eram superfaturados e que, após isso, os valores obtidos eram reciclados e aproveitados pelos envolvidos no esquema. Ou seja, que toda essa operação servia para macular a origem delitiva dos valores obtidos ilicitamente, fato esse que se traduz no delito de lavagem de dinheiro.
O problema é que, ao contrário da posição da Suprema Corte americana, o entendimento do 2º Circuito de Nova Iorque[7] optou por excluir a necessidade de demonstração por parte da acusação de “atos positivos voltados a evitar o conhecimento”. Logo, a tese do desconhecimento pode ser equiparada à assunção do risco, ou seja, o sujeito que ignora deliberadamente a origem delitiva dos valores obtidos assume o risco de cometer o delito de lavagem de dinheiro.
A teoria da cegueira deliberada, seguindo-se seus níveis de aplicação sobreditos, equipara a alta desconfiança ao conhecimento, abrindo caminho ao dolo. Em nosso ordenamento, a modalidade aplicada seria então o dolo eventual (o sujeito assume o risco) quando considerou seriamente e aceitou como altamente provável que o dinheiro tinha sua origem num delito previamente realizado. Dentro dessas hipóteses se incluem os comportamentos de “cegueira” ou “ignorância” deliberada e permitem que se condenem os sujeitos que não tomaram a devida cautela quando deveriam ter se informado sobre os fatos que estavam sob sua responsabilidade.
Admitindo-se o dolo eventual na lavagem de dinheiro, posição esta que parece estar sendo assumida em razão da alteração ocorrida em 2012, permite-se a aplicação do dolo eventual aos sujeitos que deixam de se informar e assumem o risco de praticar o delito. Porém, isso não significa que todos que tinham conhecimento serão responsáveis, pois cada caso deverá ser analisado individualmente. As declarações de alguns investigados de que não sabiam do que estava ocorrendo nos contratos superfaturados cai por terra quando aplicada a lei de lavagem de dinheiro e a teoria da cegueira deliberada.
Diante do exposto, com novos posicionamentos adotados nos EUA e com a posição adotada no acórdão da Ação Penal 470, julgamos prudente uma nova análise das teses de desconhecimento utilizadas no Brasil, eis que podem ser revertidas e colocadas no campo da ignorância deliberada. Em verdade, empresários, políticos e diretores estão vivendo a aurora de um novo grau de comprometimento, que passará a exigir maior controle não somente de suas atividades, mas de tudo que ocorre no governo ou organização.

[1] Lênio Streck vem defendendo acertadamente aqui na ConJur a necessidade da volta da doutrina, atualmente amordaçada e mera repetidora das decisões dos tribunais. Deixou-se de criar um estudo sobre determinado ponto no Direito Penal, havendo uma inversão no ciclo natural, que trazia doutrinariamente do exterior uma questão e a adaptava ao Brasil, para então ser incorporada na jurisprudência, e, ao final, na legislação pertinente.
[2] Também chamada de Ostrich Instruction, que, em tradução literal, significa as “instrução da avestruz”, remetendo ao ato do animal de esconder sua cabeça quando em situação de perigo. A teoria tem origem nas cortes inglesas, principalmente no caso Regina v. Sleep, no qual o juri condenou o réu por estar em posse de produtos navais que estavam marcados com símbolo que deixava clara a propriedade do governo. O júri entendeu que o acusado não detinha conhecimento da marca, mas possuía “razoáveis meios” de obter o conhecimento. Muito embora a decisão fora reformada, tal julgamento deu início ao uso da teoria nas cortes do sistemaCommon Law. IRA P. ROBBINS. The Ostrich Instruction: deliberate ignorance as a criminal mens rea, 81 J. CRIM. L. & Criminology, n. 191, p. 196, 1990.
[3] RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. La responsabilidad penal del testaferro en delitos cometidos a través de sociedades mercantiles: problemas de imputación subjetiva. InDret. Revista para el Análisis del Derecho, Barcelona, n. 3, jul. 2008. Disponível em: .
[4] “Para configuração da cegueira deliberada em crimes de lavagem de dinheiro, as Cortes norte-americanas têm exigido, em regra, (i) a ciência do agente quanto à elevada probabilidade de que os bens, direitos ou valores envolvidos provenham de crime, (ii) o atuar de forma indiferente do agente a esse conhecimento, e (iii) a escolha deliberada do agente em permanecer ignorante a respeito de todos os fatos, quando possível a alternativa.”
[5] First, the defendant must subjectively believe that there is a high probability that a fact exists. Second, the defendant must take deliberate actions to avoid learning of that fact. These require- ments give willful blindness an appropriately limited scope that sur- passes recklessness and negligence. Global-Tech Appliances, Inc. v. SEB S.A.
[6]  Partir do pressuposto do conhecimento torna inócua a aplicação da teoria da cegueira deliberada, que busca justamente equiparar o alto grau de desconfiança aliado a atos voltados à obtenção da certeza ao próprio conhecimento, levando-se à utilização do dolo eventual. O nome da teoria da cegueira deliberada também é de “conscious avoidance”, ou seja, abstenção do conhecimento/consciência, em uma rápida tradução.
[7] United States v. Fofanah;

No caso do juiz que dirigiu carro de Eike, vence a desmoralização e o ridículo

[Editorial publicado originalmente no jornal Folha de S.Paulo desta quinta-feira (26/2) com o título O arbítrio faz escola]
Embora a situação venha mudando aos poucos, persiste a percepção geral de que a Justiça no Brasil favorece os ricos, reservando-se aos mais pobres os rigores da lei.
Mas o inverso também acontece. A perseguição demagógica e o abuso de poder ganham estímulo quando o acusado, além de rico, é famoso e se destaca pelos hábitos ostentatórios de consumo.
Ninguém representa melhor tal gênero de personagem do que Eike Batista, que surge agora vitimado pelos exageros do juiz federal Flávio Roberto de Souza.
Extravasando do estrito cumprimento de sua função — a qual determina que mantenha no âmbito dos autos a sua opinião sobre o processo —, o magistrado já fizera declarações bombásticas a respeito do julgamento que conduzia.
Das palavras fora de hora o juiz passou aos atos fora de expediente. Foi flagrado dirigindo o Porsche Cayenne de Eike Batista. O luxuoso carro esportivo havia sido apreendido em meio a uma operação cinematográfica que chegou até a residência de Luma de Oliveira, ex-mulher do empresário.
Noticia-se ademais que um piano branco, também de propriedade de Eike Batista, encontra-se no condomínio em que mora o juiz.
No caso do Porsche, o magistrado argumenta que julgou melhor guardá-lo em sua garagem do que deixá-lo exposto a "riscos de dano" em outros ambientes. Mas sair com o carro pelas ruas do Rio, mesmo que para abrigá-lo na garagem, não deixa de representar desprezo a riscos como os de colisão, assalto ou até multa injustificada.
Nessa última situação, talvez Flávio Roberto de Souza confiasse que poderia imitar seu colega João Carlos Corrêa, que decidiu prender por desacato uma fiscal de trânsito numa blitz da Lei Seca; a agente dissera que juiz não é Deus.
O arbítrio faz escola, como se vê. A decisão de dirigir um Porsche até o próprio condomínio valeria uma demissão sumária, caso tivesse sido tomada pelo manobrista de uma casa noturna ou pelo vigia de um estacionamento.
O caso do juiz Flávio de Souza está sob análise do Tribunal Regional Federal do Rio — que examina pedido anterior dos defensores de Eike, no sentido de que seja afastado do julgamento — e clama por avaliação rigorosa do Conselho Nacional de Justiça. A desmoralização e o ridículo, seja como for, já podem proclamar ganho de causa.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Vítimas do abuso de autoridade conseguem indenização por danos morais

Lei 4.898/65, que pune o abuso de autoridade, completa 50 anos em 2015. Ela regula o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal contra autoridades que cometem abusos no exercício de suas funções.
O extenso rol das condutas consideradas abusivas é apresentado nos artigos 3º e 4º da lei, que se aplica a qualquer pessoa que exerça cargo ou função pública, de natureza civil ou militar.
O Estatuto do Servidor (Lei 8.112/90) e a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92) também constituem importantes instrumentos para coibir práticas ilícitas por parte de agentes policiais e demais servidores que abusam do poder conferido pelo cargo.
Nos últimos três anos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou diversos casos de abuso de autoridade cometido por policiais.
Prisão ilegal
O cidadão vítima de abuso de autoridade pode buscar indenização por dano moral na Justiça. Foi o que aconteceu com um homem que participava de culto religioso em um terreiro no estado do Maranhão. Por volta de 1h do dia 6 de janeiro de 2008, três policiais militares o abordaram de forma truculenta, questionando de quem era a bicicleta que usava.
Após os policiais lhe darem voz de prisão sob a alegação de desacato, o homem foi levado para a delegacia, onde passou a noite encarcerado. Às 7h, foi posto em liberdade, mas sem a devolução de todos os seus pertences. Não foram devolvidos a bicicleta, que era de sua filha, e R$ 20 que estavam em sua carteira.
Por conta da conduta abusiva dos policiais, o homem ajuizou ação por danos morais e materiais contra o estado do Maranhão. Em primeiro grau, a juíza concluiu que havia comprovação de que a prisão foi ilegal, tendo em vista a falta do auto de prisão e da instauração dos procedimentos previstos no Código de Processo Penal. E prisão ilegal é abuso que deve ser indenizado.
O estado do Maranhão foi condenado a pagar R$ 15 mil a título de indenização por danos morais e R$ 339,73 por danos materiais. A apelação foi rejeitada e a Segunda Turma do STJ negou todos os recursos do estado, que ficou mesmo condenado a indenizar o cidadão preso ilegalmente (AREsp 419.524).
Prova dispensada
Abordagem policial feita com excesso é abuso comum nas ruas e tema recorrente nos tribunais. Segundo a jurisprudência do STJ, essa é uma situação de abuso de autoridade que gera dano moral, sem a necessidade de comprovar prejuízo concreto. A corte considera que os transtornos, a dor, o sofrimento, o constrangimento e o vexame que a vítima experimenta dispensam qualquer outra prova além do próprio fato (REsp 1.224.151).
Dentro do possível, o valor da reparação deve ser capaz de compensar o dano sofrido e, ao mesmo tempo, inibir a repetição da conduta. Para a Justiça, R$ 40 mil foi o valor razoável para atender a esses propósitos no caso de um motorista que, ao parar no semáforo, foi abordado por policiais militares do Ceará que o retiraram do veículo puxando-o pela camisa. Os parentes que estavam com ele também sofreram constrangimento.
Na sentença, ao decidir pelo direito à indenização, o juiz afirmou que "a ação abusiva, desastrosa e irresponsável por parte dos policiais militares quando da abordagem ao autor, no dia 20 de março de 2002, está suficientemente caracterizada e feriu gravemente a moral do promovente, ou seja, os valores fundamentais inerentes à sua personalidade, intimidade, paz e tranquilidade”.
A condenação nesses casos recai sobre o estado, em nome do qual atuavam os servidores que cometeram o abuso; posteriormente, pode o estado ajuizar a chamada ação regressiva contra os agentes, para que arquem com o prejuízo causado aos cofres públicos.
Prisão preventiva
A Primeira Turma decidiu em fevereiro de 2014, no julgamento do ARESp 182.241, que a prisão preventiva e a subsequente sujeição à ação penal não geram dano moral indenizável, ainda que posteriormente o réu seja absolvido por falta de provas.
Em caso dessa natureza, a responsabilidade do estado não é objetiva. Para haver indenização, é preciso comprovar que os seus agentes (policiais, membros do Ministério Público e juízes) agiram com abuso de autoridade.
Por falta dessa demonstração, uma mulher que ficou 17 meses presa preventivamente e depois foi absolvida por falta de provas não conseguiu ser indenizada.
Ajuda abusiva
A autoridade que “quebra um galho” e deixa de cumprir a lei também comete abuso passível de punição. Um agente da Polícia Federal foi demitido do cargo por facilitar a entrada de mercadorias no país sem o pagamento do imposto devido.
Ele intercedeu junto à fiscalização aduaneira do Aeroporto Internacional de Guarulhos para liberar as mercadorias de três pessoas, avaliadas, no total, em quase R$ 500 mil.
Demitido após processo administrativo disciplinar (PAD), recorreu ao STJ na tentativa de anular a punição. Afirmou, entre outras coisas, que já respondia a ação de improbidade administrativa pelos mesmos atos e que não poderia ter sido punido com demissão em âmbito administrativo.
A Primeira Turma manteve a demissão. Os ministros concluíram que não houve nenhuma ilegalidade no processo. Além disso, o PAD e a ação de improbidade, embora possam acarretar a perda do cargo, têm âmbitos distintos, diante da independência entre as esferas criminal, civil e administrativa (MS 15.951).
Abuso do chefe
Policial também é vítima de abuso de autoridade. Um policial rodoviário federal que atuava no Rio Grande do Sul sofreu perseguição de seus superiores e conseguiu indenização por dano moral.
Para a Justiça, a perseguição e o prejuízo para o servidor ficaram comprovados. Em 2002, seu superior distribuiu memorando a outros chefes e seções informando que havia colocado o servidor à disposição porque ele estaria causando problemas de relacionamento com colegas.
Nenhuma unidade no estado quis receber o policial, que nunca teve condenação em prévio processo administrativo disciplinar. Ele acabou sendo removido para o Rio de Janeiro, mas o ato foi anulado em mandado de segurança.
“Pelos fatos incontroversos, depreende-se que a atuação estatal, materializada pela remoção irregular, perseguições funcionais e prejuízos à honra e à reputação do policial rodoviário federal, extrapolou efetivamente o mero aborrecimento, sendo forçoso reconhecer a ocorrência de dano moral, visto que presentes os requisitos da responsabilidade civil: conduta ilícita, dano e nexo de causalidade”, concluiu o ministro Marco Aurélio Bellizze, relator do recurso da União que foi negado pela Quinta Turma do STJ (Ag 1.195.142).
Prazo para punir
A Primeira Turma julgou o recurso (REsp 1.264.612) de um policial federal que, em outubro de 2004, invadiu o local onde a faxineira de seu sogro estava trabalhando, deu-lhe voz de prisão e algemou-a com o objetivo de forçá-la a confessar o furto de uma filmadora. A ação civil pública por ato de improbidade administrativa foi ajuizada pelo Ministério Público quase quatro anos depois do fato, em maio de 2008.
A questão jurídica discutida no caso foi o prazo da administração para punir o servidor público. O relator, ministro Napoleão Nunes Maia Filho, afirmou que a pretensão da administração de apurar e punir irregularidades cometidas por seus agentes – em conluio ou não com particulares – encontra limite temporal no princípio da segurança jurídica, de hierarquia constitucional, porque os administrados não podem ficar indefinidamente sujeitos à instabilidade do poder sancionador do estado.
Por essa razão, aplica-se o instituto da prescrição, que tem a finalidade de extinguir o direito de ação em virtude do seu não exercício em determinado prazo. O artigo 23, inciso II, da Lei de Improbidade Administrativa define que as ações podem ser propostas dentro do prazo prescricional previsto em lei específica para faltas disciplinares puníveis com demissão, que é de cinco anos.
Já o artigo 142, parágrafo 2º, do Estatuto do Servidor prevê para as infrações disciplinares que também constituem crime os prazos de prescrição previstos na lei penal – que, na época dos fatos, estabelecia dois anos para os crimes de abuso de autoridade. Em 2010, com a alteração do inciso VI do artigo 109 do Código Penal, o prazo passou a ser de três anos.
No caso, a conduta do policial foi enquadrada na lei de improbidade, e não houve recebimento de ação penal em razão de acordo feito com o Ministério Público, a chamada transação penal. Como não havia ação penal em curso, a Primeira Turma negou o pedido de aplicação do prazo prescricional do Código Penal e manteve o de cinco anos.

JUSTIÇA AFASTA PENHORA DE BEM COMPRADO COM BOA-FÉ

TST afasta penhora de caminhão comprado com boa-fé

Um pecuarista que comprou um caminhão penhorado para pagamento da dívida trabalhista do antigo proprietário conseguiu mudar a decisão que tornava o bem indisponível. A 7ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho acolheu o recurso de revista proposto por ele e afastou a penhora sobre o veículo por considerar que aquisição correu de boa-fé.
O comprador alegou que não havia nenhuma restrição à transferência no prontuário do veículo no Detran quando do fechamento do negócio. Na ação que ajuizou para evitar perder o bem (embargos de terceiro), ele afirmou que comprou o caminhão em maio de 2003, antes da declaração da sua indisponibilidade, determinada em juízo em janeiro de 2004.
Os embargos de terceiro tem por finalidade a liberação de bens indevidamente apreendidos, em procedimento judicial, pertencentes ou na posse de terceiros que não fazem parte do primeiro processo.
O pecuarista sustentou que adquiriu o caminhão de uma pessoa que o possuía desde 2001. O vendedor tinha uma procuração do primeiro proprietário que lhe conferia amplos poderes para dispor do veículo da forma como quisesse, inclusive para vendê-lo. Ele tinha ainda certificado de registro de propriedade do veículo e autorização de transferência.
O Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (RS), ao julgar o caso, considerou que houve fraude à execução, pois a ação trabalhista tinha sido ajuizada em 1999. Para o colegiado, o pecuarista teria adquirido o veículo de má-fé. Nos casos de fraude, o ato praticado não surte efeito em relação à execução movida, e o bem pode ser penhorado normalmente. De acordo com a decisão do tribunal regional, é como se, para a execução, a venda não tivesse ocorrido.
Para o ministro Douglas Alencar Rodrigues, relator do recurso no TST, nesse caso específico “não há como ser reconhecida a existência de fraude à execução” diante do desconhecimento pelo atual proprietário da indisponibilidade do veículo penhorado.
De acordo com o relator, o Superior Tribunal de Justiça vem adotando, em relação aos veículos automotores, entendimento semelhante ao adotado para os bens imóveis. De acordo com essa jurisprudência, a fraude não é presumível a partir da transferência da propriedade do veículo após a citação da execução, mas sim quando houver o registro da pendência de ação contra o proprietário no Detran.
Para o ministro, não tendo sido registrado gravame sobre o veículo junto ao Detran antes da alienação, e não havendo prova da má-fé do comprador, não há como reconhecer a fraude. A decisão foi unânime. Com informações da assessoria de imprensa do TST.
Processo: RR-517-66.2012.5.04.0351.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

EDUCAÇÃO - Crianças menores de seis anos não podem ser matriculadas no ensino fundamental

Crianças com menos de seis anos não podem ser matriculadas no ensino fundamental. Com base nesse entendimento, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reformou acórdão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região que admitiu o acesso de crianças menores de seis anos de idade ao ensino fundamental em Pernambuco.
A decisão que aceitou a matrícula de menores de seis anos, mediante comprovação de capacidade intelectual por meio de avaliação psicopedagógica, foi tomada em julgamento de Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Federal contra os critérios fixados nas Resoluções 1 e 6 do Conselho Nacional de Educação (CNE).
Os dispositivos estabelecem que, para ingressar na primeira série do ensino fundamental, a criança deverá contar com seis anos de idade completos até o dia 31 de março do ano a ser cursado.
O juiz determinou a suspensão das resoluções e autorizou a matrícula de menores de seis anos em todas as instituições de ensino fundamental do país. A União recorreu ao TRF-5, que manteve a sentença, mas limitou sua eficácia ao estado de Pernambuco.
As duas partes recorreram ao STJ. A União sustentou, entre outros pontos, que a fixação da idade mínima para ingresso no ensino fundamental é atribuição do CNE, que a adoção da idade cronológica como critério é totalmente legítima e que as resoluções foram expedidas após a estudos e audiências públicas. O MPF alegou que a sentença deveria ter validade em todo o território nacional, e não apenas em Pernambuco.
Ministro Sérgio Kukina disse não haver ilegalidade em idade mínima de 6 anos.
STJ
Legalidade
Em seu voto, o ministro Sérgio Kukina, relator dos recursos, ressaltou que o artigo 32 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/96) é claro ao afirmar que o ensino fundamental obrigatório, com duração de nove anos, gratuito na escola pública, inicia-se aos seis anos de idade.
Para o relator, a simples leitura do dispositivo mostra que não há ilegalidade nas resoluções do CNE que impedem o acesso de crianças abaixo desse limite ao ensino fundamental.
“A insofismável circunstância de que a criança, após a data de corte (31 de março), pudesse completar seis anos ainda ao longo do ano letivo não indica desarmonia ou afronta ao aludido artigo 32, até porque o artigo 29 da mesma LDB, de forma coerente, estabelece que o ciclo etário alusivo ao antecedente ensino infantil abarca crianças de ‘até seis anos de idade’, evitando indesejado hiato etário que pudesse acarretar prejuízo aos infantes”, afirmou o ministro em seu voto.
De acordo com Kukina, o critério cronológico não foi definido aleatoriamente, já que foi precedido de diversas audiências públicas e sugestões de especialistas. Para ele, o critério não é ilegal nem abusivo. Além disso, enfatizou o ministro, o Poder Judiciário não poderia acolher o pedido do MPF porque estaria invadindo a competência do Poder Executivo na tarefa de definir diretrizes educacionais no âmbito do ensino fundamental. Com a decisão, ficou prejudicado o recurso do MPF, que pretendia ampliar o alcance da sentença. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
Clique aqui para ler a íntegra da decisão do STJ.
REsp 1.412.704

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Denúncia deve detalhar como acusados contribuíram para o crime

Embora seja admitida a denúncia genérica em crimes de autoria coletiva e em crimes societários, é preciso descrever de que forma os acusados contribuíram para a prática da conduta.
Esse foi o entendimento da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça ao dar provimento a Recurso Ordinário em Habeas Corpus e declarar a inépcia de denúncia contra dois funcionários da Romab Construção, Comércio e Participação.
De acordo com a denúncia do Ministério Público, em 9 de maio de 2014, os funcionários teriam lançado no galpão da empresa substâncias oleosas em desacordo com as exigências estabelecidas em lei. Isso teria causado “poluição em níveis que podem resultar danos à saúde humana”, segundo o órgão.
No dia da audiência especial para o oferecimento da suspensão condicional do processo aos acusados, nenhum dos dois acusados estavam presentes. Um deles não havia sido citado, e o outro não tinha constituído advogado. Apesar disso, a audiência aconteceu e o benefício foi oferecido, com a ressalva de que a proposta não se repetiria.
O acusado que não tinha procurador aceitou a oferta. O outro, não. Após ter sido citado, ele apresentou sua defesa, alegando a inépcia da denúncia, devido à falta de individualização das condutas e à ausência de justa causa, já que o laudo não informava qual substância seria o agente poluidor.
A 38ª Vara Criminal do Rio de Janeiro não concordou com as alegações desse funcionário. Para o juiz de primeira instância, a denúncia atendia aos requisitos formais, e havia justa causa para a Ação Penal. Com isso, ele deu andamento ao processo.
Contra essa decisão, o réu, em conjunto com o seu colega igualmente acusado, impetrou Habeas Corpus ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, mas o mérito dele não foi analisado. Ele então procurou os advogadosRafael Kullmann e João Lins, do Silvio & Gustavo Teixeira Advogados Associados, e recorreu ao STJ. O relator do RHC na corte, ministro Jorge Mussi, entendeu que a denúncia não descrevia com detalhes de que forma os funcionários teriam agido para cometer o crime ambiental.
Além disso, a acusação “sequer aponta a ligação que teriam com a sociedade empresária em questão (se seriam sócios, administradores ou empregados), circunstância que, de fato, impede o exercício de suas defesas em juízo na amplitude que lhes é garantida pela Carta Magna”, argumentou Mussi.
Ele deu provimento ao HC e considerou inepta a denúncia. Os demais ministros da 5ª Turma do STJ seguiram o seu entendimento e absolveram os dois trabalhadores.
Clique aqui para ler a íntegra da decisão do STJ.
Recurso em Habeas Corpus 53.200 

domingo, 22 de fevereiro de 2015

PRIMEIRO DOMINGO DA QUARESMA

O TEMPO SE CUMPRIU: O REINO ESTÁ PERTO

Jesus, logo após o batismo, é conduzido pelo Espírito ao deserto, onde se prepara para a missão e é tentado satanás. O deserto é o lugar de retiro em vista de uma missão, mas também lugar de desafios e de provas. Após a experiência no deserto - a exemplo do povo Israel - e em seguida à prisão de João Batista, Jesus sai do anonimato, dirige-se à Galileia e começa a pregar. "O tempo se cumpriu e o reino de Deus está perto". Essas são as primeiras palavras de Jesus relatadas no Evangelho de Marcos.

Marcos não detalha as tentações de Jesus, apenas diz que ele foi tentado por satanás, por adversário do seu projeto. Jesus, o novo Adão que não sucumbe à tentação da serpente, ensina-nos que é possível vencer as tentações. O Espírito que o levou ao deserto e o fortalece contra a tentação é o mesmo que recebemos no batismo. Diariamente somos desafiados a viver com fidelidade seu projeto. Ao longo da vida, assumimos opções e fazemos escolhas, mostrando até que ponto somos de fato discípulos missionários de Jesus no dia a dia.

O tempo se cumpriu, o reino está próximo e é hora de conversão. Não é mais tempo de espera. Deus vem instaurar seu reino no meio da humanidade. Portanto, é ocasião de agir, já não cabe esperar. Com Jesus chegou a boa notícia para o povo, é momento de aderir ao seu reino. O forte apelo de conversão acompanha a quaresma toda. Pela palavra de Deus, o cristão é convidado continuamente à conversão, ou seja, a mudança de mentalidade e de atitudes. A conversão envolve a pessoa em sua totalidade e determina novo ruma em sua vida.

Ora, o reino inaugurado por Jesus, é algo que não se concretiza de forma mágica nem se impõe de forma violenta. Ele vai acontecendo à medida que nos convertemos a ele e aderimos ao Evangelho. O reino de Deus só estará realizado quando a vida das pessoas estiver conforme o desejo do Pai. Satanás continua sendo o grande obstáculo do reino; Como tentou Jesus, continua tentando a humanidade.

Pe. Nilo Luza. ssp

Receita não pode quebrar sigilo bancário sem autorização judicial

Embora existam regras permitindo que autoridades fiscais tributárias acessem dados de contribuintes em instituições financeiras, quebrar o sigilo bancário sem autorização judicial viola o direito à intimidade e à vida privada garantidos pela Constituição Federal. Com esse entendimento, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região anulou atos de uma autuação da Receita Federal contra uma empresa de transpores de São Paulo.
A companhia foi multada em cerca de R$ 3,2 milhões por presunção de omissão de receitas e foi intimada, em 2012, a comprovar a origem de valores movimentados em conta-correntes. Os advogados Rubens Contador Neto e Gustavo Cambauva, do escritório Cambauva & Contador, apresentaram então Mandado de Segurança alegando que o Fisco conseguiu extratos bancários diretamente com instituições financeiras.
A Receita disse que o acesso a movimentações é correto, autorizado pelo Decreto 3.724/2001, que regulamentou o artigo 6º da Lei Complementar 105/2001, e pela Portaria 180, do mesmo ano. Todas as normas autorizam que o delegado das Delegacias da Receita Federal solicite lançamentos aos bancos quando o exame dos documentos é essencial ao trabalho de auditoria.
O juiz federal Ciro Brandani, convocado para atuar na turma, reconheceu a existência das normas. Apesar disso, julgou que o sigilo bancário só pode ser violado em casos excepcionais e quando autorizado pela Justiça. “Não se veda, em absoluto, à Administração Pública a investigação e apuração de eventuais ilícitos cometidos, desde que sob o crivo do Poder Judiciário, que avaliará a necessidade da medida”, afirmou, sendo acompanhado por unanimidade.
Seguindo o Supremo
O entendimento ainda é controverso pelo país, inclusive no próprio TRF-3. A 1ª Turma da corte, por exemplo, já adotou tese contrária, com base na Lei Complementar 105/2001. No caso analisado, porém, o relator apontou decisão do Supremo Tribunal Federal, que ao analisar Recurso Extraordinário considerou inconstitucional a quebra do sigilo bancário por requisição exclusiva da autoridade administrativa (RE 389.808).
Ainda estão pendentes no STF análises definitivas em Ações Diretas de Inconstitucionalidade sobre o tema, como aponta o juiz federal. Ele escreveu ainda que o ato do Fisco não anula toda a ação fiscal, pois prevalecem atos que tiveram outras origens, além dos dados bancários.
Clique aqui para ler o acórdão.
Processo: 0015152-82.2012.4.03.6100

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Dos Filhos Socioafetivos e o Direito a Alimentos

Em um passado não muito distante, a legislação brasileira estabelecia inúmeros critérios de diferenciação entre filhos. Tal legislação, hoje considerada preconceituosa, distinguia os filhos, em legítimos, espúrios, adotivos, colocando distinções de direitos entre este e aquele.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, a distinção de direitos e denominações entre os filhos foi superada. Hoje, nos termos do art. 227 § 6º daConstituição Federal, ‘os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. ’
Da leitura de tal dispositivo, observa-se que mesmo com o fim das distinções entre os filhos, os vínculos de parentesco restringiam-se apenas as relações consanguíneas ou adotivas.
Contudo, em 2002, com o advento novo Código Civil, uma nova regra foi estabelecida nas relações de parentesco. O art. 1.593 do novo Código Civil estabeleceu que o parentesco será, natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem.
Conforme SILVA (2013), o legislador ao referir-se à outra origem, em cláusula geral e aberta, elevou a socioafetividade ao patamar de parentesco civil, excluindo a restrição de parentesco a apenas a consanguinidade e adoção.
No final de 2011, o Conselho da Justiça Federal aprovou na V Jornada de Direito Civil, o Enunciado 519 que estabelece “Art. 1.593: O reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai (s) e filho (s), com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais.”
SILVA (2013) acrescenta que o vinculo socioafetivo poderá ocorrer de forma registral, quando o pai, mesmo sabendo não ser seu filho, o registra e o trata como tal durante sua vida ou ainda por afinidade, quando o pai, mesmo não tendo vinculo consanguíneo, nem registrado o filho, cria, ama e o tem como filho por sua vida.
RUZYK (2013) acrescenta que o vinculo socioafetivo se dará com a exteriorização do vínculo de afeto, que possuindo visibilidade social, constitui verdadeiro parentesco.
Outro fator importante a ser observado é o decurso do tempo, único capaz de tornar os vínculos afetivos fortes e duradouros.
Assim, sabendo que os filhos socioafetivos, são verdadeiramente filhos, não se permitindo quaisquer distinções entre eles, é indiscutível, que os mesmos fazem jus ao direito de alimentos, bem como a todos os direitos inerentes aos filhos, tais como, guarda, visitas, hereditários, etc.

PRISÃO PREVENTIVA - Usar prisão para induzir confissão é próprio da mentalidade autoritária

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O tema da prisão preventiva no Brasil exige reflexão. Provocado pela operação lava jato, aliado ao êxito das confissões estampadas pela mídia, o assunto parece gerar uma euforia saneadora, mas suas raízes são mais profundas.
Diz o artigo 312 do Código de Processo Penal: "A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria".
Há dois problemas que merecem atenção: o primeiro diz respeito à extensão que se possa dar aos fundamentos expressos no artigo para a aplicação da prisão preventiva; o segundo, aos seus limites temporais.
Quanto ao primeiro problema, ao modificar os termos do artigo, parece ter possibilitado a interpretação de que o pedido de prisão preventiva possa ter como fundamento a necessidade para se conseguir a confissão do réu ou investigado.
É possível citar quatro pareceres em habeas corpus, quando a Procuradoria Regional da República da 4ª Região defendeu a manutenção da prisão preventiva face à "possibilidade real de o infrator colaborar com a apuração da infração penal".
Os pareceres ministeriais foram subscritos em 21 de novembro de 2014 e enviados ao Tribunal Regional da 4ª Região no dia 25. As respectivas prisões haviam sido feitas em 15 de novembro. Na origem, trata-se de autos em trâmite na 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba.
Em um dos pareceres enviados ao Tribunal Regional Federal, o procurador da República afirma que, "além de se prestar a preservar as provas, o elemento autorizativo da prisão preventiva, consistente na conveniência da instrução criminal, diante da série de atentados contra o país, tem importante função de convencer os infratores a colaborar com o desvendamento dos ilícitos penais, o que poderá acontecer neste caso, a exemplo de outros tantos".
O parecer se baseia na parte do dispositivo que permite a prisão preventiva "para conveniência da instrução criminal". Por tratar-se de um conceito aberto, a conveniência da instrução parece autorizar, de forma abstrata, como causa para a prisão preventiva, forçar o réu a colaborar (leia-se delação premiada).
Fazer da prisão preventiva um instrumento de obtenção de confissão, não só por pressão exercida sobre o preso, mas sobre sua família, é próprio da mentalidade autoritária.
Em 1936, na Alemanha, a criação de uma polícia "defensiva" e "preventiva" foi o ponto crucial para a regulamentação normativa da Gestapo dentro de um "novo" espírito.
O Estado é constituído por um corpo social: o povo. A analogia, então, era clara: assim como o "povo", enquanto um "corpo", pode padecer de enfermidades, do mesmo modo as ações policial e judicial devem assemelhar-se aos cuidados "preventivos" de um médico.
Dentre as prevenções estavam as diferentes formas de "pressão para confessar" da polícia nazista, cuja herança tem levado o mundo atual a proscrever com veemência todas as formas de tortura, inclusive a psicológica. Não por outro motivo a Corte Constitucional alemã tem reafirmado o caráter excepcional da medida, abolindo inclusive a denominação "preventiva".
Quanto ao limite temporal, o Ipea, com dados do Departamento Penitenciário Nacional, mostrou que, em 2011, a população carcerária no Brasil era de 514,7 mil, dos quais 217,1 mil eram presos provisórios, sendo que desses, 37% acabaram soltos. Assusta o tempo sem limitações, a produzir não só superpopulação carcerária, mas injustiças irreparáveis.
As cortes europeias têm limitado o tempo a no máximo seis meses, mesmo no caso de suspeitos de terrorismo. Nesses termos, a invocação de "clamor público" não deve jamais ser confundida com garantia da ordem pública.
A operação lava jato, para ter sucesso em um Estado democrático de Direito, fornece um bom ensejo para que o Judiciário, e o Supremo Tribunal Federal em especial, trace os limites da lei mediante sua competência interpretativa.
É preciso que o faça não com os olhos apenas nos atuais casos de corrupção, mas nas injustiças sociais que uma prisão preventiva sem peias e a "indução" forçada a confissões sob o nome de delação premiada podem provocar, evitando-se, assim, que venham a agravar-se as estatísticas do Ipea.