terça-feira, 30 de agosto de 2011

O esvaziamento da Lei Maria da Penha, a interpretação pelos Tribunais e os limites do legislador

Por Marcelo Bertasso

Quando veio ao mundo, em 07 de agosto de 2006, a Lei nº 11.340/2006, mais conhecida por “Lei Maria da Penha”, trazia em seu bojo um artigo que dizia o seguinte:

Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995.

O artigo continua na lei, mas o significado que dele se extrai mudou muito desde seu surgimento.

A Lei Maria da Penha foi criada com o nítido propósito de conferir aos crimes praticados no âmbito das relações domésticas um tratamento diferenciado, mais gravoso em certos aspectos, a fim de eliminar – ou ao menos atenuar – o traço de violência que marca o contexto doméstico de boa parte das famílias brasileiras.

Nesse passo, o art. 41 da citada lei tinha uma missão muito própria: evitar que aos delitos cometidos no âmbito das relações domésticas fossem aplicadas normas de cunhos despenalizador e voltadas ao tratanento de crimes de menor potencial ofensivo. Em outras palavras, o art. 41 da Lei Maria da Penha quis dizer, em letras garrafais, que os crimes que envolvem violência doméstica não podem ser considerados de menor potencial ofensivo.

O texto do artigo é bem claro: aos crimes cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher não se aplicam as disposições da Lei nº 9.099/1995. Como o legislador não fez exceção, a leitura da norma leva à conclusão de que nenhum instituto previsto na Lei dos Juizados Especiais se aplica aos delitos cometidos mediante violência doméstica.

No entanto, gradativamente, a interpretação que o Judiciário tem emprestado ao art. 41 da Lei Maria da Penha vai esvaziando seu conteúdo.

Primeiro foi em relação à espécie de ação penal. O art. 88 da Lei nº 9.099/1995 dizia que a ção penal referente ao delito de lesões corporais leves seria condicionada à representação da vítima. Com o advento do art. 41 da Lei Maria da Penha, essa norma restou afastada dos crimes cometidos mediante violência doméstica, daí a conclusão de que o tipo penal de lesões corporais praticadas no âmbito das relações domésticas se processaria mediante ação penal pública incondicionada.

Não foi essa, porém, a conclusão do STJ. Depois de indas e vindas, e forte divergência entre a 5ª e a 6ª Turmas daquela Corte, a 3ª Seção colocou fim à questão, em acórdão assim ementado:

RECURSO ESPECIAL REPETITIVO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. PROCESSO PENAL. LEI MARIA DA PENHA. CRIME DE LESÃO CORPORAL LEVE. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA. IRRESIGNAÇÃO IMPROVIDA.
1. A ação penal nos crimes de lesão corporal leve cometidos em detrimento da mulher, no âmbito doméstico e familiar, é pública condicionada à representação da vítima.
2. O disposto no art. 41 da Lei 11.340/2006, que veda a aplicação da Lei 9.099/95, restringe-se à exclusão do procedimento sumaríssimo e das medidas despenalizadoras.
3. Nos termos do art. 16 da Lei Maria da Penha, a retratação da ofendida somente poderá ser realizada perante o magistrado, o qual terá condições de aferir a real espontaneidade da manifestação apresentada.
4. Recurso especial improvido.
(REsp 1097042/DF, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministro JORGE MUSSI, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 24/02/2010, DJe 21/05/2010)

A partir disso, portanto, uma vírgula foi acrescida ao art. 41 da Lei Maria da Penha: nos crimes cometidos mediante violência doméstica não se aplicam as regras da Lei nº 9.099/1995, exceto a do art. 88.

Mais recentemente, outra exceção à regra foi adicionada, novamente pelo STJ. Em 14 de dezembro de 2010, a 6ª Turma entendeu que, aos crimes cometidos mediante violência doméstica, é possível a aplicação da suspensão condicional do processo, medida despenalizadora prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/1995. Eis o que noticiou o informativo 460 daquele tribunal:

LEI MARIA DA PENHA. SURSIS PROCESSUAL.

Trata-se de habeas corpus em que se discute a possibilidade de oportunizar ao MP o oferecimento de proposta de suspensão condicional do processo (sursis processual) nos feitos vinculados à Lei Maria da Penha. A Turma, por maioria, concedeu a ordem pelos fundamentos, entre outros, de que, na hipótese, tendo a inflição da reprimenda culminado na aplicação de mera restrição de direitos (como, em regra, é o caso das persecuções por infrações penais de médio potencial ofensivo), não se mostra proporcional inviabilizar a incidência do art. 89 da Lei n. 9.099/1995, por uma interpretação ampliativa do art. 41 da Lei n. 11.340/2006, pois tal providência revelaria uma opção dissonante da valorização da dignidade da pessoa humana, pedra fundamental do Estado democrático de direito. Consignou-se que, havendo, no leque de opções legais, um instrumento benéfico tendente ao reequilíbrio das consequências deletérias causadas pelo crime, com a possibilidade de evitar a carga que estigmatiza a condenação criminal, mostra-se injusto, numa perspectiva material, deixar de aplicá-lo per fas et nefas. Precedentes citados do STF: HC 82.969-PR, DJ 17/10/2003; do STJ: REsp 1.097.042-DF, DJe 21/5/2010. HC 185.930-MS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 14/12/2010.

Assim, o art. 41 da Lei Maria da Penha foi novamente reescrito: nos crimes cometidos mediante violência doméstica não se aplicam as regras da Lei nº 9.099/1995, exceto as dos arts. 88 e 89.

Longe de se analisar o acerto ou erronia das decisões transcritas, o que se pretende neste post é apenas discutir e repercutir uma questão das mais interessantes: como o Judiciário pode dar a uma norma uma interpretação que se distancie tanto do que a lei textualmente diz? De fato, se a lei diz “isto é quadrado” e o julgador afirma que na verdade o legislador quis dizer que aquilo era redondo é porque há algum problema nos processos de criação e aplicação da lei.

Diz um antigo brocardo que in claris cessat interpretatio. Ou seja, quando a lei é clara, cessa a atividade de interpretação: basta ao julgador aplicar o que diz literalmente o texto normativo. Seguindo essa lição, diziam os antigos que o juiz era a boca da lei: nada mais fazia do que repetir o que o legislador havia colocado na lei.

A doutrina moderna, considerando as lições acima carcomidas pelo tempo e encerradoras de uma figura de juiz preso e impossibilitado de exercer a justiça de forma plena, passou a construir outros modelos interpretativos que permitissem ao aplicador da norma construir um significado do que consta no texto legal, calcado em elementos outros que são acrescidos à lei. Buscava-se, assim, dar maior liberdade ao julgador no que concerne ao resultado da interpretação, permitindo-se-lhe, assim, chegar a conclusões que extrapolem o simples enunciado legal. A atividade de interpretação ganhou uma feição criativa.

Atualmente, não são poucas as decisões judiciais que se valem desses métodos, de modo que o julgador acaba exercendo um papel complementar, dando um outro colorido à norma. Assim, a jurisprudência vai ganhando força e exercendo papel de destaque no próprio processo de criação do direito – não é à toa que, volta e meia, leis sejam editadas trazendo para o direito positivo entendimentos já consagrados pelos tribunais.

Apesar disso, o julgador jamais pode perder de vista que, mesmo interpretando a norma empregando os métodos mais sofisticados, jamais pode chegar a um resultado que contrarie expressamente o que o texto primitivo da lei diz. Se isso ocorre, é porque algo no processo interpretativo deu errado.

Cabe observar, nesse ponto, que, a despeito de ser considerada ultrapassada, a técnica da interpretação literal – e seu consectário, plasmado no brocardo in calris cessat interpretatio – traz em si uma clara mensagem de respeito à figura do legislador. Ao se prender ao simples significado da lei, o julgador reconhece que, em sua função, está sempre jungido à decisão política tomada por aquele que é o responsável de editar as normas. Ao Judiciário resta a função de aplicá-las, nunca se dissociando, em suas conclusões, do que disse o legislador.

Nessa óptica, o Judiciário somente pode se negar a aplicar a lei quando ela viole a Constituição, de modo que, nesse caso, o afastamento de aplicação da lei se dá com base em sua invalidade.

Quando, porém, o julgador, sob o pretexto de aplicar determinada norma, chega a resultado que contrarie expressamente a lei empregada sem lhe declarar a insconstitucionalidade, está-se diante de um grave problema.

Primeiro, porque há nítida falha de comunicação: ao legislador cabe criar a norma jurídica, fazendo-o através da promoção de amplo debate sobre a matéria e nela inserindo a vontade estatal, sempre visando atingir determinado fim. Nesse contexto, a mensagem que o legislador manda através da norma deve chegar aos destinatários com conteúdo fiel à sua origem. Se o julgador aplica a norma de forma diferente, é porque a mensagem, em algum ponto do caminho, se perdeu ou foi corrompida.

Segundo, porque a obtenção de um resultado díspar é situação de exceção e não se coaduna com o ideal de previsibilidade que se espera do sistema judicial. O exemplo citado acima ilustra bem esse ponto: milhares de juízes, ´país afora, aplicando textualmente o disposto no art. 41 da Lei Maria da Penha, deixaram de oferecer aos réus de ações por crimes cometidos violência doméstica o benefício da suspensão condicional do processo. O STJ, porém, ao atribuir um novo significado à norma, significado esse que se desvia de alguma forma do que diz o texto puro da lei, insere um elemento de imprevisibilidade no sistema. A se adotar o novo entendimento, a grande maioria das condenações proferidas até aqui deverá ser anulada para que se ofereça a suspensão condicional do processo aos réus, o que gerará consequências bastante conhecidas, dentre elas o retardamento de processos, retrabalho e sobrecarga dos órgãos jurisdicionais, além da sempre indesejada prescrição de alguns feitos.

O terceiro aspecto desse problema – e em minha visão o mais grave – diz respeito aos limites de atuação do legislador. A Lei Maria da Penha era claríssima em dizer que não se aplicariam aos crimes cometidos mediante violência doméstica as normas da Lei nº 9.099/1995. A suspensão condicional do processo foi criada por essa lei. Logo, aos crimes cometidos mediante violência doméstica não se aplicaria a suspensão condicional do processo.

A mensagem do legislador não poderia ser mais evidente. No entanto, o julgador, sem declarar a inconstitucionalidade da norma, construiu outro significado para a mensagem recebida e surge daí a dúvida: se o legislador realmente quiser fazer valer sua vontade de afastar dos crimes cometidos no âmbito das relações domésticas o benefício da suspensão condicional do processo, o que deverá ele fazer? Editar nova lei repetindo o que já havia dito? Editar outra lei esclarecendo e reforçando a mensagem, até mesmo de forma mais direta, dizendo textualmente: aos crimes cometidos mediante violência doméstica não se aplica o benefício da suspensão condicional do processo? Que garantias ele terá de que o Judiciário novamente interpretará sua mensagem de forma diversa?

O cerne do problema consiste em definir até onde o legislador pode ir no que concerne ao tratamento penal dado a certos delitos e, por outro lado, até onde o julgador pode modificar o significado original do texto criado pelo legislador.

Como certeza, resta apenas a conclusão: uma interpretação válida jamais pode levar a um resultado que contrarie o texto expresso da norma interpretada.

A observância dessa singela regra, sem dúvida, evitaria que o conteúdo da lei se esvazie já no processo de sua aplicação pelo Judiciário e afastaria um grave efeito colateral das formas mais livres de interpretação: elas podem conduzir a qualquer resultado desejado, numa verdadeira loteria jurídica sem compromisso de vinculação com a mensagem explícita da lei.

Tal efeito colaterial gera situação inadmissível: o que diz a lei não importa, mas sim o que o juiz considera ter sido dito pelo legislador. Tal resultado, obviamente, viola princípios fundamentais da Constituição, dentre eles o da separação de poderes.

Conclui-se, portanto, que, por mais que se avance no refinamento de técnicas interpretativas, jamais se pode deixar de lado o claro liame existente entre a atividade do julgador e a mensagem que lhe foi expressada pelo legislador.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

COM A NOVA LEI 12.433/2011, JUÍZES DEVEM REVER DECRETOS DE REMIÇÃO

Com nova lei, juízes devem rever decretos de remição

Por Jayme Garcia dos Santos Junior

A Lei 12.433, de 29 de junho de 2011 deitou pá de cal sobre se os dias remidos pelo trabalho do sentenciado devem ser descontados do total da reprimenda ou tidos como pena efetivamente cumprida, por imprimir ao artigo 128 da Lei 7.210/84 esta redação: “o tempo remido será computado como pena cumprida, para todos os efeitos”.

A mesma Lei 12.433 fez surgir, porém, outra controvérsia. Agora pelo texto que recebeu o artigo 127 da Lei de Execução Penal, qual seja: “em caso de falta grave, o juiz poderá revogar até 1/3 (um terço) do tempo remido, observado o disposto no artigo 57, recomeçando a contagem a partir da data da infração disciplinar”. Cumprida, adjetivo – e esta a classe gramatical da palavra usada na Lei 12.433, porque ela acompanha um substantivo (pena) -, tem, nos léxicos, o significado de realizada, executada, acabada.

Pena executada, acabada, cumprida é pena finda e, como tal, não pode gerar qualquer consequência. A remição, portanto, tornou-se verdadeira causa de extinção da punibilidade, um perdão de parte da pena. Assim, o juiz, ao declarar, pelo trabalho ou estudo, remida uma quantidade de dias da pena do sentenciado, libera-o daquele período de resgate da segregativa, reconhecendo como satisfeita determinada parcela da pena.

Na esteira do raciocínio, a contradição entre os artigos 127 e 128 da Lei de Execução Penal é flagrante. O primeiro autoriza o magistrado, na hipótese de cometimento de falta grave pelo sentenciado, a invalidar até um terço de algo que, pela inteligência do segundo dispositivo, não mais existe. Em outras palavras, o legislador quer permitir a ressurreição do nada.

Opostos que são, aos comandos normativos não se dá existir cada qual em sua substância, prevalecendo, por mais benéfico aos sentenciados, o artigo 128, inclusive de aplicação retroativa, por força do artigo 5º, incisão LV, da Constituição da República, e artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal. Logo, a remição perde o caráter condicional, vale dizer, a sua mantença não mais se subordina à acomodação do sentenciado em bom comportamento.

Nasce morto, por esta forma, o artigo 127. E o legislador, com sua tecnicidade de pouco esmero, subtrai da autoridade judiciária instrumento valioso para exigir ordem e disciplina nos estabelecimentos carcerários, pois, como já ponderou o lúcido desembargador Jarbas Mazzoni, “o benefício da remição foi criado como forma salutar de política criminal, para retirar os condenados da ociosidade do cárcere, premiando os bons presos e funcionando como um termômetro na disciplina interna dos presídios” (TJSP, Ag. 257.919-3/5-00, 1ª Cam., rel. des. Jarbas Mazzoni, j. em 21-9-1998, v.u., RT, 760/602, apud MARCÃO, Renato, Curso de Execução Penal, 5ª Ed., 2007, S. Paulo, Ed. Saraiva, p. 175).

Não é só. O legislador, ao deitar fora o requisito subjetivo, quer para a conquista dos dias remidos, quer para sua permanência no patrimônio do sentenciado, esvazia a remição de sua concepção teleológica – justamente o que a tornava, no dizer de Maria da Graça Morais Dias, um instituto completo, “pois reeduca o delinquente, prepara-o para sua reincorporação à sociedade, proporciona-lhe meios para reabilitar-se diante de si mesmo e da sociedade, disciplina sua vontade, favorece a sua família e sobretudo abrevia a condenação, condicionando esta ao próprio esforço do codnenado” (A redenção das penas pelo trabalho. Breve notícia de um sistema. RT 483/251, apud MIRABETE, Julio Fabbrini, Execução Penal, 9ª Ed., 2000, S. Paulo, Ed. Atlas, p. 426).

Vem ainda como efeito prático da peça legislativa, nocivo à sociedade, a redução do prazo para alcance das progressões de regime, do livramento condicional, da comutação de penas e do indulto, bem como do intervalo de permanência no cárcere, uma vez que o juiz da execução tem o dever e a competência para “aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado” (artigo 66, inciso I, Lei de Execuções Penais). Logo, nos processos em curso, ele precisará rever seus decretos de perda do tempo remido pela prática de falta grave, além de determinar o refazimento dos cálculos de liquidação, para o cômputo dos dias remidos como sanção efetivamente cumprida, e as duas providências implicam, necessariamente, na diminuição do total da pena.

Conseguirá o legislador, destarte, liberar novas vagas, através do esvaziamento de prisões, mas não atingir o desígnio maior da execução penal, estampado no artigo 1º da Lei de 7.210/84 - “proporcionar condições para harmônica integração social do condenado e do internado”.

Jayme Garcia dos Santos Junior é juiz da Vara de Execuções Criminais de Guarulhos (SP).

LEI DE ALIENAÇÃO PARENTAL COMPLETA UM ANO COM ACERTOS

Por Regina Beatriz Tavares da Silva

Dá-se o nome de alienação parental às estratégias do pai ou da mãe que desejam afastar injustificadamente os filhos do outro genitor, ao ponto de desestruturar a relação entre eles (Regina Beatriz Tavares da Silva, Curso de Direito Civil, vol. 2, Direito de Família, 41ª ed., São Paulo, Saraiva, 2011, p. 418).

Diz-se “injustificadamente” porque nem todos os atos de um pai ou de uma mãe contrários ao outro genitor podem ser havidos como alienação parental. Casos há em que a convivência do pai ou da mãe com os filhos torna-se perversa, quando é dever do outro genitor tomar todas as medidas legais cabíveis para proteger o filho.

A expressão “Síndrome da Alienação Parental” foi cunhada por Richard Gardner, psiquiatra americano, em 1985, para a qual sugeriu a seguinte definição: “A Síndrome da Alienação Parental é uma desordem que se origina essencialmente do contexto da disputa pela guarda dos filhos. Sua primeira manifestação é a campanha de denegrir um genitor, uma campanha que não possui qualquer justificativa. Ela resulta da combinação de inculcações feitas por um genitor que realiza programação (lavagem cerebral) e as contribuições da própria criança para transformar o genitor-alvo em vilão. Quando um real abuso parental e/ou uma negligência estão presentes, a animosidade da criança pode ser justificada, e então a explicação da Síndrome da Alienação Parental para a hostilidade da criança não é aplicável.” (Richard Gardner, The Parental Alienation Syndrome, 2. ed., Cresskill, NJ: Crea­tive Therapeutics, Inc., 1998, p. 19/22)

As estratégias da alienação parental vão desde a limitação injustificada do contato da criança com o genitor alienado até o induzimento da criança em escolher um ou outro dos pais. Passam também por punições sutis e veladas quando a criança expressa satisfação ao relacionar-se com o genitor alienado, pela revelação de segredos à criança a reforçar o seu senso de cumplicidade. Evita-se mencionar o nome do genitor alienado dentro de casa, limita-se o contato da família com o genitor alienado, entre outros atos perversos. Ainda, instiga-se a criança a chamar o genitor alienado pelo seu primeiro nome (e não pai ou mãe), encoraja-se a criança a chamar o padrasto ou a madrasta de pai ou de mãe e abrevia-se o tempo da visitação.

Os casos mais comuns de alienação parental associam-se à ruptura dos laços conjugais, em que existe um inconformismo do alienador em relação ao alienado quanto ao rompimento da relação de casamento ou de união estável. Daí decorre o espírito de emulação ou de vingança que lamentavelmente leva à prática de alienação parental.

As crianças alienadas apresentam distúrbios psicológicos como depressão, ansiedade e pânico. Também a tendência suicida pode manifestar-se nesses menores. Sua baixa autoestima evidencia-se, do que decorrerão outros problemas na fase adulta, como as dificuldades de estabelecer uma relação estável.

Diante da gravidade do comportamento que dá ensejo à alienação parental, é motivo de comemoração o marco de um ano da promulgação da Lei nº. 12.318, de 26 de agosto de 2010, cuja origem é o Projeto de Lei n. 4.053/2008, de autoria do deputado Regis de Oliveira, que prescreve a regulamentação legal específica das sanções aplicáveis à alienação parental, como estipulação de multa, alteração da guarda e suspensão ou perda do poder familiar.

Interessante notar que essa Lei enquadra entre as formas de alienação parental a mudança de domicílio para locais distantes, sem justificativa, visando dificultar a convivência do outro genitor.

A Lei n. 12.318/2010, em seu art. 2º, traz uma definição do que possa vir a ser considerado como alienação parental pelos magistrados em ações versando sobre a guarda de filhos: “Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este”.

Neste um ano da nova Lei, os Tribunais pátrios prestigiaram a inovação legislativa, aplicando a norma com o fito de afastar a alienação parental (TJSP. Apelação nº 990.10.217.441-7, 4ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Natan Zelinschi de Arruda, j. 11.11.2010; TJRS. Agravo de Instrumento nº 70043065473, 8ª Câmara Cível, Rel. Des. Ricardo Moreira Lins Pastl, j. 14.07.2011; TJMG. Agravo de Instrumento nº 1.0024.09.644906-1/003, 1ª Câmara Cível, Rel. Des. Eduardo Andrade, j. 12.04.2011).

Outros julgados que trataram da alienação parental constam dos comentários ao artigo 1.584 no Código Civil comentado, de coordenação desta Autora (Regina Beatriz Tavares da Silva [coord.], Código Civil comentado, 8ª ed., São Paulo, Saraiva, 2012, no prelo).

Espera-se que o Poder Legislativo continue a aprovar leis que efetivamente protejam a família.

Regina Beatriz Tavares da Silva é advogada titular do escritório Regina Beatriz Tavares da Silva Sociedade de Advogados, coordenadora e professora dos cursos de especialização no GVlaw – FGV, e dos Cursos de Especialização em Direito de Família e das Sucessões da ESA – OAB/SP, presidente da Comissão de Direito de Família do IASP, doutora e mestre em Direito Civil pela USP.

CELERIDADE JUDICIAL EXIGE CAUTELA

Por Sebastião Gilberto Mota Tavares

Alguns acontecimentos recentes – novos casos de grupos de extermínio em partes do país dantes insuspeitas, a dificuldade na punição dos crimes de colarinho branco, abusos, servidores públicos flagrados em casos suspeitos etc. – nos fizeram guindar lateralmente dos temas que, costumeiramente, vínhamos escrevendo. Tais explosões de violências, crimes e “impunidade” merecem análise que, muito embora não seja das mais abalizadas, tenta esforçar-se para chegar ao mínimo necessário à discussão. Diante de casos tão publicamente divulgados, não poderíamos, mesmo diante de nossa indiscutível limitação, deixar de esposar nossa opinião.

Talvez bom começo seja fixar e realçar fenômeno que tem seguido o Direito desde meados da década de 1980; e seguido, não apenas no Brasil, mas por todas as latitudes possíveis, tornando-se fenômeno verdadeiramente mundial. No Brasil, particularmente, teve sensível recrudescimento, seja porque saímos de período de exceção político-institucional que, de certa maneira, “tolhia” a capacidade de normatização dos vários aspectos da vida social ou, quando menos, determinava os aspectos sobre os quais era possível legislar, seja porque passamos a adotar pressuposto de que tudo há de ser resolvido pela lei. Falamos do fenômeno, na falta de melhor termo, da inflação legislativa, consubstanciado na inimaginável, multifacetária e abismal produção de leis realizada pelos parlamentos de praticamente todos os estados nacionais da contemporaneidade.

Desde a série que começou em 1946, já se vão, afora leis complementares, decretos e emendas constitucionais, mais de 12 mil leis, cuja velocidade de elaboração aumentou assustadoramente, como dito acima, nos últimos vinte anos. Lembremo-nos de que, nas Academias de Direito até os idos de 1960-70, não tínhamos muito a preocupação de consultar códigos ou poucas leis extravagantes “atualizados”. O universo de estudo que tínhamos estava restrito aos clássicos Códigos – Civil e Processual Civil, Penal e Processual Penal, Comercial e CLT, passando, dependendo da desenvoltura do professor, pelos clássicos Códigos de Obrigações e pelo Anteprojeto de Código Civil – e por algumas poucas leis específicas, como o Estatuto da Terra e este, ainda assim, dependendo da grade curricular da respectiva Faculdade. Juridicamente – e note-se: não estamos falando dos aspectos políticos, institucionais e cívicos, mas apenas do jurídico –, Brasília, salvo em alguns casos específicos – como na votação da instituição da dissolução do casamento no Brasil, que acabou se transmudando na instituição da separação judicial (EC n. 09/1977) –, era algo tão distante que simplesmente passava bem ao largo de nosso espectro qualquer menção a Ela, no sentido de saber o que “estava ocorrendo em Brasília” de importante para o Direito.

O quadro mudou drasticamente. Demos guinada diametralmente oposta. Saímos de restrito leque para arco tão amplo que pode perpassar seguramente todas as doze casas do firmamento zodiacal em céu estrelado. As leis se sucedem como se estivéssemos diante, para lembrar do clássico filme de Charlie Chaplin Modern Times (Tempos Modernos) no qual se enrosca pelas engrenagens e catracas de maquinismo que incessantemente não para de funcionar, em linha de produção que exige a feitura de uma lei a cada hora. O fenômeno da inflação legislativa é de tal monta que mudamos nosso comportamento na Faculdade: temos que estar constantemente vendo o diário oficial, rabiscando os Códigos e leis e fixando datas limites para consideração das alterações realizadas: “a prova abrangerá até o capítulo ‘X’ com as alterações legais realizadas até o dia ‘Y’”. Até mesmo nos concursos públicos o estabelecimento de data limite para que as alterações legislativas caiam no concurso é estabelecida, criando o contrassenso de dada norma ser aplicada pelos juízes já empossados mas não o ser por aquele que deseja sê-lo. O problema é tão grave que, quem não estiver devidamente “atualizado”, lendo o diário oficial todos os dias como se fosse periódico jornalesco, corre o risco de enveredar por cenas de hilaridade coletiva: alguém pode lançar blefe ao Advogado na audiência asseverando que o dispositivo no qual está se baseando já fora revogado há coisa de dois dias…

Em absoluto, estamos defendendo qualquer coisa que siga pela linha da eternidade. Obviamente, sabemos, desde lições iniciais dos cursos jurídicos, que não existe lei que seja dotada de sempiternidade. O Direito segue a sociedade e, se esta cambia, naturalmente, deverá cambiar o Direito. Na verdade, a mudança não é o problema, mesmo porque, debalde, tentaríamos defender a sua improcedência. O problema e o que nos preocupa é a cultura da “rapidação” de nossos dias e sua inevitável inflexão sobre e no Direito: tudo tem que ser rápido e instantâneo à semelhança dos bits computacionais. Se abrimos o computador e este demora cinco segundos além dos normais, ficamos impacientados e crendo que decorreram séculos. Idem quando, no foro trabalhista, demoramos cinco minutos mais: deixamos o filho à sorte de ônibus, táxis e vans e almoçamos hambúrguer no carro enquanto nos dirigimos ao foro estadual para outra audiência. Ibidem quando vamos ao banco saldar dada conta e o cash, ao consignar “sua operação está sendo processada”, “processa” por longos cinco minutos quando o normal é “processar” quase instantaneamente. Cinco minutos! Perda de cinco minutos é impensável em cultura que venera a “rapidação”. Sob prisma eminentemente temporal, podemos dizer que a Humanidade, enquanto em outros séculos andava calmamente, no Século XX passou a correr freneticamente. E nada indica ou está a indicar que o Século XXI será diferente. Muito ao revés, estaremos nos dirigindo ao superlativo da instantaneidade: antes mesmo de fazer, já teremos que ter feito… Antes mesmo de ir, já temos que ter ido… Antes mesmo de ser, já temos que ter sido…

Ora, a “rapidação” causa profundos estragos ao Direito. Assim como ocorre nos demais campos de nossa vida cotidiana, não temos tempo a perder e a norma tem que sair e sair de qualquer maneira. O resultado é que nunca chegamos ao ideal: chegamos apenas ao possível. A lei passa a ser elaborada no pressuposto de que, como foi elaborada dentro do que foi possível fazer e não dentro da racionalidade técnica que se exige para mexermos no sistema jurídico, terá que passar necessariamente por reformas futuras, para retirar suas “falhas” e “brechas”. Isto causa outro problema decorrente: a primeira versão da lei é, em verdade, um balão de ensaio através do qual poderemos verificar os “resultados” – ou, melhor diríamos, “estragos”? – provocados pela primeira versão da lei. Às vezes, a publicação da lei serve apenas para confirmar o que se dizia quando de sua elaboração: “Está vendo! Eu não disse que isto não daria certo!” O princípio da continuidade das leis, em face da “rapidação”, torna-se tão robusto quanto pintura feita sobre a água: a lei não nasce mais para a estabilidade e segurança jurídicas, mas para ser necessária e futuramente corrigida, de preferência, através de medidas provisórias – e criamos outro grotesco problema.

Exemplos não faltariam por todo o Direito, mas nos fixemos no espectro penal: até hoje, os juízes não se entenderam acerca da mescla de tipos penais realizada pela Lei n. 12.015/2009 quanto aos crimes contra a liberdade sexual; para nós, e obviamente poderemos estar equivocados, a atual lei contra tóxicos – Lei n. 11.343/2006 –, ao descriminalizar o consumo próprio de qualquer droga, ainda que preveja a “pena” de advertência, legalizou o seu consumo, pelo que não vemos porque haver tanta celeuma quando se discute sobre a liberação, por exemplo, da maconha. Ora, pelo texto legal, o consumo próprio da maconha já está legalizado e liberado! Mais: a mesma lei manda que o consumidor seja apresentado ao juiz, o que, muito dificilmente, na prática, é feito, pois tal consumidor é apresentado mesmo ao delegado; ao confrontarmos os atuais dispositivos do Código Penal e do ECA, encontramos algumas incongruências: o namorado (ou a namorada) pode levar a namorada adolescente (ou o namorado adolescente) menor de catorze anos, desde que com a sua aquiescência (art. 217-A do CP), a certa casa de tolerância para, com ela (ou ele), praticar conjunção carnal ou outro ato libidinoso, mas, contraditoriamente, não pode tirar foto dela (ou dele) para colocá-la no porta-retrato, pois incorreria no tipo do art. 240 do ECA. Notemos a incongruência: alguém (homem ou mulher) pode levar, segundo o CP, outro alguém para casa de tolerância com a sua aquiescência, fazer com esse alguém tudo o que for possível fazer na relação puramente carnal homem-mulher, mas não pode, pela norma proibitiva do art. 240 do ECA, tirar simples foto do (a) seu (a) consorte para pôr no seu quarto! Aliás, pelo tipo do art. 241-B, o simples “pôr no quarto” a fotografia é também crime…

Continuemos com a argumentação utilizando o mesmo exemplo: os tipos penais supra referidos do Código e do ECA pressupõem ou não o consentimento do (a) adolescente como seu elemento subjetivo? A aquiescência? Dito de outra maneira: é ou não elemento subjetivo daqueles mencionados tipos penais a concordância do (a) adolescente? Se respondermos afirmativamente, então, quer o sujeito passivo concorde ou não, haverá crime. Ocorre que, se assim pensarmos, cairemos no absurdo de dizermos que ninguém mais pode namorar menor de catorze anos, pois havendo ou não concordância deste ou desta, haverá crime. Para nós, precisamente porque sabemos que, pelos idos que correm, o namoro ocorre, às vezes, bem antes dos catorze anos, respondemos que a concordância não é elemento subjetivo do tipo e, portanto, desde que haja, não haverá os crimes dos artsigos 217-A do CP e 240 e 241-B do ECA por atipicidade da conduta. E isto para não falar da grande celeuma que se avizinha com a entrada em vigor da Lei n. 12.403/2011, que alterou as prisões cautelares em matéria processual penal.

Em todos esses casos, parece que o legislador do CP não é o mesmo que o do ECA ou o do Código de Processo, tal a falta de continuidade entre umas coisas e outras. É como se o legislador de certa norma desconhecesse completamente a existência de outra que, com a norma alterada, possui profunda ligação. Aliás, no caso da Lei n. 12.403/2011, relembre-se que temos projeto de Código de Processo Penal tramitando no parlamento…

Toda essa babel legislativa é consequência direta da “rapidação” no Direito e dos malefícios e danos que lhe causam. Se podemos verberá-la em outros campos do Direito, devemos fazê-lo com maior agudeza no Direito Penal, pois isto causa notáveis admoestações na interpretação, aplicação e integração da lei penal. Sobretudo porque causa frontal conflito real – não meramente aparente – entre os princípios de segurança pública (que exigem a punição e o encarceramento dos criminosos) e os princípios do direito penal mínimo (que promovem exatamente o contrário, a saber, a punição e o encarceramento mínimos dos criminosos, estabelecimento de penas alternativas etc.).

Na confluência desses dois princípios que norteiam o legislador penal hodiernamente, as normas, em virtude das pompas e circunstâncias que perpassam o mundo jurídico e do ritualismo que cerca qualquer instituição – e o Parlamento não poderia ser diferente –, continuam sendo apresentadas entre plumas e paetês. E o Povo, cansado de tanta incoerência, de normas assistemáticas e ametódicas e de tatear no escuro, começa cada vez mais a fazer aquilo que nunca mais fez na história dos estados modernos: justiça com as próprias mãos. Sob esse específico ponto de vista e sem fazer qualquer juízo de valor, não há diferença ontológica entre o lixamento popular do criminoso e a milícia que o massacra. Em ambos está o mesmo pressuposto: a inflação legislativa, já exausta de tanto prometer e não cumprir, deixará o Povo entre as armas e pedras de policiais e meliantes e as rosas dos sepultamentos…

Sebastião Gilberto Mota Tavares é procurador da Fazenda Nacional, mestre em Direito pela UF-PE, escritor e assessor jurídico na Câmara dos Deputados.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

COMO DIFERENCIAR CULPA E DOLO EVENTUAL NOS ACIDENTES

Por Luiz Flávio Gomes

Incontáveis "acidentes" de trânsito ocorridos nos últimos tempos estão sendo enquadrados como dolo eventual. Nessa categoria entraram: o caso do carro Porsche em São Paulo, o caso da nutricionista que atropelou um rapaz na Vila Madalena (SP), o caso do ex-deputado paranaense que matou duas pessoas em Curitiba etc. Nenhum desses casos ainda foi julgado pelo Tribunal do Júri, a quem compete (finalmente) dizer se efetivamente houve ou não dolo eventual.

O motorista que conduz seu veículo em alta velocidade, só por isso já está atuando de forma dolosa? Quem dirige embriagado, só por isso já deve ser enquadrado no dolo eventual?

Dolo eventual ocorre quando o agente prevê o resultado, aceita-o (assume o risco de produzi-lo) e atua com indiferença frente ao bem jurídico lesado. Três são as exigências do dolo eventual: previsão do resultado, aceitação e indiferença. O dolo eventual não pode ser confundido com a culpa (consciente ou inconsciente), visto que nesta o agente não aceita o resultado nem atua com indiferença frente ao bem jurídico.

Uma outra diferença marcante entre tais conceitos é a seguinte: no crime culposo o agente se soubesse que iria matar alguém não teria prosseguido na sua ação. No dolo eventual o agente, contrariamente, mesmo sabendo que pode matar alguém prossegue no seu ato, porque esse resultado lhe é indiferente, ou seja, se ocorrer, ocorreu (tanto faz acontecer ou não acontecer, visto que lhe é indiferente a lesão ao bem jurídico).

Vulgarmente se diz que a distinção entre a culpa consciente e o dolo eventual está nas expressões: "danou-se" e "que se lixe" (ou que se dane), respectivamente.

Teoricamente não é complicado distinguir um instituto do outro. Na prática, no entanto, a questão não é tão simples, visto que nem sempre contamos com provas inequívocas do dolo eventual.

Se um terceiro diz para o motorista (que está participando de um racha) que ele pode matar pessoas e ele diz que “se matar, matou”, “se morrer, morreu”, sem sombra dúvida está comprovado o dolo eventual. Mas nem sempre (ou melhor: quase nunca) temos essa prova no processo. Daí a dificuldade de enquadramento da conduta.

Se enquadrada a conduta como dolosa a competência para o julgamento do caso é do Tribunal do Júri (que julga os crimes dolosos contra a vida). Quando desde logo o juiz instrutor não vislumbra nenhuma pertinência em relação ao dolo eventual, cabe desde logo desclassificar a infração, retirando-a do Tribunal do Júri.

Havendo um mínimo de justa causa (provas), compete ao juiz proferir a decisão de pronúncia. Depois, é da competência do Tribunal do Júri a conclusão final se o fato se deu mediante culpa (consciente ou inconsciente) ou dolo eventual.

Este, aliás, foi o posicionamento que fundamentou a negativa do pedido de Habeas Corpus no HC 199.100-SP (4/8/2011), pela 5ª Turma do STJ, de relatoria do ministro Jorge Mussi.

De acordo com a conclusão do Tribunal da Cidadania, a competência que a Constituição Federal atribuiu ao Tribunal do Júri garante que a avaliação aprofundada das provas seja feita em plenário. Por esta razão, a conclusão de que se houve por parte do acusado culpa (consciente ou inconsciente) ou dolo eventual há de ser feita pelo Júri.

O paciente do writ acima referido foi pronunciado por ter causado a morte da vítima porque, supostamente, estando embriagado, dirigia em alta velocidade tendo se envolvido em acidente fatal.

Como se sabe, a pronúncia é a decisão que leva o acusado a julgamento perante o Júri, tendo o juiz se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação (art. 413, CPP). E para que o fato seja julgado pelo Tribunal do Júri é necessário que o crime seja doloso contra a vida (art. 5º, inc. XXXVIII, CF/88).

INDICAÇÃO DE BEM À PENHORA NÃO AFASTA IMPENHORABILIDADE

A indicação de bem à penhora pelo devedor não implica renúncia ao benefício da impenhorabilidade prevista na Lei 8.009/90. O texto protege imóveis considerados bem de família e os móveis que o guarnecem.

O entendimento foi aplicado pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar recurso em que um executado no Rio Grande do Sul questionava a penhora de um televisor. A pena foi pedida em ação movida pela Caixa Econômica Federal. Tanto a primeira quanto a segunda instância garantiram a penhora do aparelho, afastando o benefício descrito na Lei 8.009/90. O STJ, no entanto, revogou a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

Segundo o relator do recurso, ministro Luis Felipe Salomão, a TV e outros "utilitários da vida moderna", em regra, são impenhoráveis quando guarnecem a residência do devedor. Independente de ser essencial ou não à vida da família, a televisão não é
"item suntuoso", como obras de arte e adornos de luxo — cuja alienação judicial é permitida. A indicação do bem a penhora pelo devedor, portanto, segundo Salomão, não implica na renúncia ao benefício da impenhorabilidade.

De acordo com o ministro, a jurisprudência do STJ protegem bens que fazem parte da residência do devedor, como TVs, rádios, fornos de microondas, computador e impressoras. A proteção cai, no entanto, se houver mais de um desses itens na casa do réu. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.

REsp 875.687

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

ADOÇÃO DIRETA AINDA É MUITO COMUM NO PAÍS, APESAR DA RESTRIÇÃO DA NOVA LEI DE ADOÇÃO

FONTE: FOLHA DE SÃO PAULO

Quando decidiram adotar uma criança, Edirlene, 48, e Sergio Diniz, 49, se cadastraram na Justiça e passaram por entrevistas, estudos psicológicos, sociais e econômicos. Um ano e três meses depois, o casal de Niterói (RJ) sequer havia sido chamado para conhecer uma criança.

Os dois resolveram então partir para a adoção direta, também chamada de dirigida ou consensual -vetada pela nova lei da adoção, em vigor há quase um ano. E conseguiram.

Não há dados nacionais, mas casos como o de Edirlene e Sérgio existem aos montes, apesar da legislação.

Pela nova lei, as adoções só podem ocorrer para pais pretendentes e crianças disponíveis no CNA (Cadastro Nacional de Adoção).

Na prática, isso não ocorre, como comprova o casal do Rio de Janeiro. Ao saber que uma mulher queria doar as gêmeas que esperava, os dois fizeram a adoção direta.

Há nove meses, são pais de duas meninas que entraram para a família "direto da maternidade". "Não foi rejeição [da mãe biológica]. Foi doação por amor", diz Edirlene, explicando que a família que fez a doação não tinha condições financeiras.

A situação das crianças está legalizada desde junho.

Essas adoções diretas acabam legalizadas graças a algumas brechas existentes na lei. Uma delas é quando um juiz entende que há vínculo afetivo entre pretendentes à adoção e criança.

Demora

Especialistas ouvidos pela Folha dizem que a demora no trâmite do CNA leva pretendentes a procurarem mães que não querem ou não podem criar os filhos.

"Não há dados oficiais sobre o tema", diz Helen Sanches, presidente da ABMP (Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e Juventude).

Porém, em Lages (SC), onde atua como promotora, ela calcula que metade das adoções ocorra dessa forma.

Capitais da região Norte registram índices ainda maiores. Em Rio Branco (AC), a psicóloga Rutilene Tavares, da Vara da Infância, estima que 95% das adoções sejam consensuais.

As mães, diz Rutilene, doam diretamente seus filhos porque acham que, caso entreguem as crianças para a Justiça, elas serão presas.

"É um misto de pobreza e cultura em que mães pobres entregam seus filhos porque não podem cuidar", conta a psicóloga da Vara da Infância Evelyn Carvalho, sobre Macapá (AP).

Exigências

"Muitos adotam bebês direto com as mães porque no CNA o perfil de crianças disponíveis é diferente do que se procura", diz a diretora do Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância, Irene Rizzini.

Dados do CNA mostram que enquanto 38% dos habilitados querem crianças brancas e 77% esperam que elas tenham até três anos de idade, a maior parte (45%) é parda e poucas (9%) têm menos de três anos.

Dar mais agilidade ao processo, democratizar o acesso às adoções e evitar que as crianças passem mais do que dois anos em abrigos são alguns dos objetivos do CNA.

A PRISÃO TEMPORÁRIA MERECE CRÍTICAS CONSIDERAÇÕES

Por Pierpaolo Cruz Bottini

Recentes e rumorosas operações da Polícia Federal suscitaram inúmeras discussões sobre a adequação e a forma das prisões cautelares. Somadas à recente aprovação de lei que transformou o marco legal desses institutos, temos um tema que merece análise detida.

Pela legislação atual, existem apenas três situações nas quais o cidadão pode ser preso antes do final do processo e do trânsito em julgado da sentença condenatória: (i) prisão temporária (Lei 7.960/89), (ii) prisão em flagrante (CPP, art. 301), (iii) prisão preventiva (CPP, art. 312), sem contar as conduções coercitivas, que alguns consideram prisão.

A prisão em flagrante ocorre nas hipóteses em que o agente (i) está cometendo a infração penal ou acaba de cometê-la; (ii) é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; (iii) é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.

A prisão preventiva somente pode ser decretada diante das hipóteses previstas no 312 do CPP, ou seja, (i) para garantia da ordem publica ou econômica, (ii) por conveniência da instrução penal, (iii) para assegurar a aplicação da lei penal, sempre que não for cabível qualquer das outras cautelares penais.

Por fim, a prisão temporária. Essa modalidade de prisão foi instituída pela Lei 7.960/89, que prevê seu cabimento (i) quando imprescindível para as investigações do inquérito policial; (ii) quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade; (iii) quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos crimes previstos na mesma lei, como homicídio doloso, roubo, extorsão, etc. A medida somente será legítima diante da constatação da extrema necessidade e terá a duração de 5 dias, prorrogáveis por mais 5 dias, e em se tratando de crimes hediondos, de 30 dias prorrogáveis por igual período.

É a prisão temporária que merece as mais críticas considerações por parte da doutrina processual porque seus pressupostos, ou são os mesmos que autorizam a decretação da prisão preventiva, ou não se justificam diante de um sistema jurídico que se fundamenta na presunção de inocência — ou da não culpabilidade como preferem alguns.

Tal constatação independe da tormentosa questão sobre a necessidade da verificação de um ou de todos os critérios apontados na Lei 7.960/89 para a prisão temporária, vez que em relação a todos — isolados ou em conjunto — é possível a mesma critica.

O primeiro critério para a temporária é a constatação de que a prisão é imprescindível para a investigação.

Uma das hipóteses de imprescindibilidade é negativa, quando se detecta que a liberdade do investigado turba a investigação, seja pela supressão de provas ou evidências, seja pela intimidação de testemunhas ou outros agentes relevantes para o esclarecimento dos fatos (peritos, etc). Nesse caso, a prisão é imprescindível, mas sua natureza será preventiva (CPP, art.312) e não temporária.

Mas há quem apresente outras duas hipóteses em que a temporária seria imprescindível para a investigação sem que haja indícios de turbação da prova por parte do investigado — situação em que não seria possível a decretação da prisão preventiva: (i) quando da expedição de mandados de busca e apreensão, para assegurar seu cumprimento sem comunicação entre os réus no momento da diligência que comprometessem a operação, (ii) para ouvir o réu ou obrigá-lo a participar de atos de investigação (reconstituições, por exemplo).

Tais situações não justificam a prisão. Na primeira hipótese, basta a organização de operações simultâneas de busca e apreensão, sendo necessário destacar que a restrição de liberdade por 5 dias não é necessária para assegurar o sucesso das diligências. A segunda hipótese sequer merece comentários, vez que o indiciado tem o direito de permanecer calado ou de ser ouvido a qualquer tempo, e de participar de atos da investigação se quiser, vez que não é obrigado a produzir prova contra si. Assim, e não faz sentido privar alguém de liberdade para forçá-lo a exercer seu direito, seja ele qual for. “Não se prende alguém para que exerça uma faculdade” dispôs o STF em uma oportunidade (HC 95.009), e em outra apontou que “não faz sentido a manutenção da prisão para a mera finalidade de obtenção de depoimento” (STF, HC 91.386).

Aqui vale a lição de Lopes Jr.: “É importante não esquecer que o suspeito também está protegido pela presunção da inocência e, principalmente, pelo nemo tenetur se detegere, ou seja, não está ele obrigado a praticar nenhum ato de prova que lhe posse prejudicar (...) Assim, é ilegal a prisão temporária que, com fundamento na ‘imprescindibilidade para as investigações do inquérito policial’, pretende disponibilizar o corpo do suspeito para que dele disponha a autoridade policial” (O novo regime jurídico da prisão processual, liberdade provisória e medidas cautelares diversas, 2ª Ed. Rio de Janeiro, Lumen, 2011, p.150).

A segunda hipótese de temporária pode ocorrer — segundo a lei — quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade.

A falta de endereço fixo não pode — por si — justificar a prisão de alguém, a não ser que venha acompanhada de elementos que demonstrem sua concreta intenção de fuga ou de não submissão à lei penal, caso em que seria aplicável a preventiva e não a temporária. Ademais, de nada adiantaria a prisão temporária nesses casos, vez que a restrição de liberdade pelo prazo previsto em lei não transformaria a situação do indiciado, que muito provavelmente continuará sem residência fixa após o período máximo legal de 10 dias.

A ausência de elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade é critério para a decretação de prisão preventiva, nos termos do novo parágrafo único do artigo 313 do Código Penal, incluído pela Lei 12.403/11, razão pela qual não cabe falar em temporária também aqui.

Por fim, a última hipótese de prisão temporária: quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos crimes previstos na Lei 7.960/89. É evidente que as fundadas provas de autoria e participação somente autorizam a prisão após o trânsito em julgado da condenação, ou seja, pela presunção de inocência é inconstitucional a privação de liberdade apenas por fatos ainda pendentes de decisão judicial.

Assim, isolados ou em conjunto, os critérios para a temporária ou justificam a prisão preventiva — ou outras cautelares penais — ou não se sustentam pela presunção da inocência, razão pela qual o instituto parece carecer de legitimidade frente ao sistema jurídico pátrio.

Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.

BOA-FÉ PROTEGE O CONSUMIDOR INADIMPLENTE, DECIDE STJ

Por Rodrigo Haidar

A Justiça não pode tratar da mesma forma o consumidor que tem boa-fé e o golpista. Depois de quitar 31 das 36 parcelas de um financiamento de veículo, não é razoável que o consumidor tenha o carro apreendido porque deixou de pagar cinco prestações. A financeira, nestes casos, deve buscar outras formas de cobrança, como a execução judicial do débito, em vez de requerer a busca e apreensão do automóvel.

Por três votos a um, este foi o entendimento fixado pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Com base no voto do ministro Luis Felipe Salomão, a maioria dos ministros decidiu que, nestes casos, o Judiciário deve aplicar a teoria do adimplemento substancial. Ou seja, como a maior parte da dívida foi paga, a financeira não pode buscar a reintegração de posse do bem financiado — seja ele um carro ou um eletrodoméstico.

De acordo com Salomão, relator do processo, o consumidor pagou “86% da obrigação total e mais R$ 10.500,44 de valor residual garantido”. Logo, “o descumprimento contratual é inapto a ensejar a reintegração de posse”. Para o ministro, a busca e apreensão do bem é medida desproporcional diante do substancial cumprimento do contrato.

O ministro ressaltou que a decisão não significa “que a dívida não paga desaparece, o que seria um convite a toda sorte de fraudes”. Mas o meio buscado pela financeira para garantir o pagamento não combina com a extensão da dívida, de 14% do valor do bem financiado. “Pode, certamente, o credor valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, como, por exemplo, a execução do título”, afirmou Luis Felipe Salomão.

O papel da Justiça nestes casos, segundo o ministro Salomão, é ponderar a gravidade da inadimplência. “A faculdade que o credor tem de simplesmente resolver o contrato, diante do inadimplemento do devedor, deve ser reconhecida com cautela, sobretudo quando evidente o desequilíbrio financeiro entre as partes contratantes”.

A decisão foi tomada em recurso movido pela BBV Leasing Brasil contra um cidadão gaúcho que deixou de pagar as últimas cinco parcelas do financiamento de seu carro. A financeira perdeu a ação em primeira e em segunda instâncias, e recorreu ao STJ. Por três votos a um, a 4ª Turma rejeitou o recurso e manteve as decisões da Justiça do Rio Grande do Sul.

Para o advogado e professor de Direito do Consumidor Rodrigo Francelino Alves, “a decisão é um avanço e resguarda o consumidor de abusos praticados com freqüência por instituições financeiras”. De acordo com o advogado, “a teoria do adimplemento substancial não admite a extinção do negócio quando o inadimplemento se refira a parcela de menos importância do conjunto de obrigações do devedor”. Ou seja, se aplica quando o descumprimento do contrato é insignificante em relação ao que já foi cumprido pelo consumidor.

Ainda de acordo com Francelino Alves, a teoria do adimplemento substancial deve ser aplicada de acordo com o caso concreto. Sempre nas hipóteses em que a extinção do contrato resulte em mais danos do que a permanência de sua execução.

sábado, 20 de agosto de 2011

MAGISTRADOS NÃO PODEM RENUNCIAR AO DIREITO DE SEGURANÇA

Por Marcus Vinicius Furtado Coêlho

Os 21 tiros contra a magistrada carioca foram, em verdade, 21 golpes contra o Estado de Direito. Tal atentado evidenciou a situação lastimável de fraqueza do Estado brasileiro diante da força e da violência que assassinaram uma magistrada em função do seu ofício.

A OAB sempre propugnou pela manutenção das prerrogativas dos magistrados, tal qual da advocacia, como inerentes ao respeito ao ser humano e aos postulados constitucionais. A própria soberania do Estado houve ameaçada. Se a falta de segurança é grave, a existência de força particular mais forte que o próprio Estado é o princípio do fim.

A ideia mais rudimentar de Estado deve, no mínimo, conceber a substituição do direito de autodefesa por autoridade soberana externa que tutele os direitos. Toda a concepção de Estado se resume na ideia de ordenar os cidadãos sob instituições capazes de afastá-los do caos.

O Estado de Direito, além disso, deve garantir o fim da “lei do mais forte” em nome da Justiça. O único meio de atingir a justiça é segundo o devido processo legal que presume, ao menos, julgamento segundo regras legítimas por juiz competente e independente.

Algumas cartas constitucionais – como a Alemã e a Suíça – chegam a especificar que não há devido processo legal sem juiz independente, tal a necessidade deste aspecto para a realização daquele. No Brasil, tal exigência está albergada na afirmação constitucional, segundo a qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (artigo 5º, inciso LIV da Constituição Federal/88).

Ora, como há juiz independente se nem mesmo a sua integridade física é garantida pelo Estado? Nem sequer falamos em garantia à não perseguição ou em respeito à autoridade necessária ao cargo, mas à sua integridade física que é a mínima proteção necessária ao exercício do mister.

De fato, juiz é um terceiro que deve apontar o direito daqueles que se submetem à sua jurisdição. Se não é independente, não é terceiro. O cidadão não tem julgamento, mas tão somente alguém que diz o que lhe mandam dizer. Não há direito nem justiça, mas arbitrariedade e caos.

Especula-se a existência ou não de pedido da magistrada recentemente assassinada por escolta policial, veículo blindado ou qualquer proteção. Seria necessário? Se é garantia do cidadão ter juiz independente, é preciso que o magistrado requisite garantias que são do jurisdicionado e não suas? Se um juiz trabalha em região sabidamente violenta a julgar criminosos locais temidos e perversos e, não apenas deixa de solicitar proteção policial mas a recusa, o Estado pode aceitar tal recusa? A resposta é não, porque a garantia do cidadão de ser julgado e ver seus pares julgados por magistrado independente é inafastável.

Ainda que aquele magistrado fosse capaz de destemer qualquer ameaça à sua vida, o mínimo risco de intimidação e a simples hipótese de um episódio como o ocorrido não podem ser admitidos pelo Estado.

Os predicamentos da advocacia existem para proteger o cidadão contra o abuso estatal, inclusive do Judiciário. Os predicamentos da magistratura possuem a função relevante de proteger o juiz que cumpre seu mister com exatidão. As garantias não lhe pertencem, mas à sociedade, ao Estado de Direito, e são irrenunciáveis.

A proteção à independência de um magistrado, não lhe pertence nem é privilégio. É garantia do cidadão que sequer pode ser renunciada pelo magistrado, porquanto não lhe pertence. O Estado é omisso quando não garante a segurança do cidadão e do magistrado, calando a democracia.

Marcus Vinicius Furtado Coêlho é Secretário-Geral do Conselho Federal da OAB.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

HABEAS CORPUS SÓ PODE SER USADO QUANDO HÁ AMEAÇA NA LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO

Remédio constitucional usado em favor daqueles que sofrem violência ou ameaça de constrangimento ilegal na sua liberdade de locomoção, o Habeas Corpus não pode ser empregado como forma de impedir a realização de exames de higidez mental. A limitação do poder do instrumento foi feita pelo Superior Tribunal de Justiça, que analisou pedido de um servidor público do Tribunal de Contas de Pernambuco.

O caso foi relatado pelo ministro Teori Zavascki. Ele citou precedentes nos quais ficou também reconhecida a falta de adequação do Habeas Corpus, como no restabelecimento de pagamento de benefício previdenciário, no trancamento de ação de improbidade administrativa e no direito de sigilo no processamento de uma ação judicial.

O servidor conta que sofria assédio moral e psicológico, passando por “ameaças veladas de ser submetido a qualquer momento a exame de sanidade mental, contra sua vontade e sem justa causa” A ordem teria partido do Pleno do TC-PE, no curso de um processo administrativo disciplinar, em 2009. Com informações da Assessoria de comunicação do STJ.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

REQUISITOS DO FLAGRANTE - ORDENAMENTO JURÍDICO NÃO ADMITE PREVENTIVA COMPULSÓRIA

Ordenamento jurídico não admite preventiva compulsória

Por Renato Marcão

Olhando por cima, é até possível falar que as alterações introduzidas pela Lei 12.403, de 4 de maio de 2011, são virtuosas. Esta afirmação, contudo, só poderá ser feita enquanto referência isolada aos novos institutos criados e algumas alterações aos antigos, pois, nas entranhas, o que se constata é mais um diploma legal de péssima qualidade técnica.

As inúmeras impropriedades deste novo regramento estão cuidadosamente tratadas em nosso novo livro, intitulado Prisões Cautelares, Liberdade Provisória e Medidas Cautelares Restritivas.[1]

Por aqui, cuidaremos de refletir sobre a situação a que se encontra lançado o instituto da liberdade provisória no Direito brasileiro, pois, a depender da compreensão de alguns, ou o inciso II do artigo 310 do CPP é inconstitucional, ou é hora de se reconhecer, como pensamos seja correto, que a inafiançabilidade, tratada no artigo 5º, incisos XLII, XLIII e XLIV, da CF, não impede a concessão de liberdade provisória, sem fiança, em todo e qualquer caso.

O novo artigo 310 do CPP
Dispõe o novo artigo 310 do CPP, com a redação da Lei 12.403, de 04 de maio de 2011, que, “ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: I - relaxar a prisão ilegal; II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do artigo 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. Parágrafo único. Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do artigo 23 do Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940 - Código Penal, poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação”.

A obrigatoriedade de relaxar a prisão ilegal já estava prevista no artigo 5º, inciso LXV, e a obrigatoriedade de se conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, no artigo 5º, inciso LXVI, ambos da CF.

Pelo que se conclui do novo artigo 310, ou a prisão é relaxada e o autuado é colocado em liberdade, ou converte-se a prisão em flagrante em prisão preventiva, quando presentes os requisitos legais (artigos 311 a 313 do CPP), ou concede-se liberdade provisória, com ou sem fiança.

As reflexões que seguem estão relacionadas exclusivamente com o tratamento jurídico explicitado pelo legislador em relação ao instituto da liberdade provisória.

Durabilidade da prisão em flagrante
Mesmo antes das modificações impostas pela Lei 12.403/11, sempre entendemos que a prisão em flagrante não poderia ultrapassar o limite temporal que vai de sua efetivação até a comunicação ao juiz competente, providência obrigatória que deve ocorrer nas 24 horas seguintes à prisão-captura.

Esta forma de pensar encontra sua fundamentação no artigo 5º, inciso LXVI, da CF, segundo o qual ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.

Do artigo 5º, LXI, da CF, retiramos autorização para que pessoas possam ser presas em flagrante, mas a interpretação da regra deve ser feita em harmonia com o citado inciso LXVI, do qual se extrai que, após a prisão em flagrante, a pessoa não poderá continuar presa e, portanto, ser levada ao cárcere, se cabível a liberdade provisória, daí a necessidade de análise desta situação jurídico-constitucional já no momento do controle jurisdicional imediato, a demonstrar absoluta impropriedade em se afirmar a possibilidade de que alguém possa permanecer preso por força do flagrante.

Neste momento primeiro do controle jurisdicional, só poderá subsistir prisão se presentes os requisitos da custódia preventiva.

A possibilidade jurídica de alguém sofrer restrições à sua liberdade por força de prisão em flagrante sempre esteve restrita e delimitada no tempo, até porque constitui exceção da exceção, na exata medida em que a liberdade é a regra e a exceção é a prisão mediante ordem prévia de autoridade judiciária, sendo a prisão em flagrante exceção a esta última exceção.[2] Nunca pode ultrapassar o lapso temporal que medeia entre a prisão-captura e sua comunicação ao juiz competente.

Isto sempre esteve muito claro no texto constitucional e também no Código de Processo Penal.

A propósito deste tema, a lúcida visão do ministro Celso de Mello é suficientemente esclarecedora quando afirma:

“Aquele que foi preso em flagrante, embora formalmente perfeito o auto respectivo (CPP, artigos 304 a 306) e não obstante tecnicamente caracterizada a situação de flagrância (CPP, artigo 302), tem, mesmo assim, direito subjetivo à obtenção da liberdade provisória, desde que não se registre, quanto a ele, qualquer das hipóteses autorizadoras da prisão preventiva, a significar que a prisão em flagrante somente deverá subsistir se demonstrar que aquele que a sofreu deve permanecer sob a custódia cautelar do Estado, em razão de se verificarem, quanto a ele, os requisitos objetivos e subjetivos justificadores da prisão preventiva”.[3]

Acrescentamos ao raciocínio acima exposto que: se presentes os requisitos da prisão preventiva, o correto sempre foi sua decretação, e não apenas a manutenção da prisão “por força do flagrante”.

Disso resulta que, a rigor, a contracautela que é a liberdade provisória sem fiança só pode ser manuseada dentro do limite temporal indicado.

Em relação a isso, agora, o legislador foi ainda mais específico, pois o novo artigo 310 do CPP evidencia claramente que o juiz deverá, no momento do controle jurisdicional imediato, trabalhar com as variantes que indica.[4]

Liberdade provisória
Ao tratarmos do tema liberdade provisória, é preciso não confundir gênero com espécie.

Liberdade provisória, em sentido amplo, é o gênero, do qual extraímos as espécies: 1º) liberdade provisória com fiança; e, 2º) liberdade provisória sem fiança.

Não é outra a interpretação que se extrai do artigo 5º, inciso LXVI, da CF, quando diz: “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”.

Não foi por razão diversa, aliás, que a Lei 6.416, de 24 de maio de 1977, introduziu um parágrafo único no artigo 310 do CPP. A ideia foi exatamente permitir a liberdade provisória, sem fiança, para aqueles casos de crimes inafiançáveis.

A distinção está clara, inquestionavelmente delineada, e, por conta disso, até pouco tempo, a discussão era meramente acadêmica, não divergindo os manuais a este respeito.

Sempre admitiu-se que, após efetivada a prisão em flagrante, não sendo caso de relaxamento ou liberdade provisória mediante fiança, era possível a concessão de liberdade provisória sem fiança.

A Constituição Federal, a seu turno, dispõe, no artigo 5º, incisos XLII, XLIII e XLIV,[5] a respeito da inafiançabilidade de determinados crimes, mas isso não implica dizer que estes mesmos crimes não comportam liberdade provisória sem fiança.

Nada obstante esta evidente diferença que há, ainda permanece majoritária a corrente jurisprudencial no sentido de que a inafiançabilidade imposta pela Constituição Federal impede a liberdade provisória sem fiança.[6]

Há quem chegue a afirmar que “o inciso II do artigo 2º da Lei 8.072/90, quando impedia a ‘fiança e a liberdade provisória’, de certa forma incidia em redundância, dado que, sob o prisma constitucional (inciso XLIII do artigo 5º da CF/88), tal ressalva era desnecessária. Redundância que foi reparada pelo artigo 1º da Lei 11.464/07, ao retirar o excesso verbal e manter, tão somente, a vedação do instituto da fiança”.[7]

Para nós, inafiançabilidade é a característica daquilo que não comporta fiança. Se a pretensão do legislador constituinte era dizer mais que isso, deveria dizer que aqueles crimes a que se referiu eram insuscetíveis de liberdade provisória. Mas não disse, e por isso não podemos dar interpretação mais ampla ao dispositivo que impõe restrição ao sagrado direito à liberdade, valor de extração máxima no texto constitucional.

Ademais, como disse o ministro Marco Aurélio, “sendo o Direito uma ciência, há de emprestar-se sentido técnico a institutos, expressões e vocábulos”.[8]

É acertada, portanto, a visão do ministro Celso Limongi quando aponta a distinção que há entre as situações tratadas, para concluir que “a proibição da liberdade provisória com fiança não compreende a da liberdade provisória sem a fiança”.[9]

Liberdade provisória como decorrência do artigo 310
Tudo o que acima afirmamos resulta, agora, evidenciado uma vez mais no artigo 310, inciso II, do CPP.

Para que não se tenha dúvida a respeito, basta imaginar hipótese em que determinada pessoa venha a ser presa em flagrante pela prática de crime hediondo ou qualquer outro inafiançável.

Efetuada a prisão, e lavrado o respectivo auto, deverá ser comunicada ao juiz competente no prazo de 24 horas (artigo 306, parágrafo 1º, do CPP).

Recebendo os autos, nos precisos termos do artigo 310 do CPP, deverá o juiz relaxar a prisão, se for ilegal.

Não sendo ilegal, deverá converter prisão em flagrante em prisão preventiva quando presentes os requisitos legais (artigos 311 a 313 do CPP) e se a tanto provocado, pois não poderá fazê-lo ex officio durante a fase de investigação criminal (artigos 282, parágrafo 2º e 311, ambos do CPP).

Não sendo caso de preventiva, deverá conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, podendo cumular, se for o caso, medida cautelar restritiva prevista dentre as hipóteses do artigo 319 do CPP.

Como se vê, após o momento do controle jurisdicional imediato, somente subsistirá custódia cautelar se ocorrer decretação de prisão preventiva.

Porém, e se após a prisão em flagrante por crime hediondo o juiz verificar que não estão presentes os requisitos da prisão preventiva? Poderá assim mesmo manter o agente preso?

Claro que não. Não subsiste no ordenamento jurídico brasileiro a prisão preventiva compulsória ou obrigatória.

Bem, então, deverá soltá-lo a que título?

Liberdade provisória é claro, pois estamos tratando de hipótese em que não se afigura cabível o relaxamento da prisão.

Ocorre, entretanto, que a Constituição Federal lista crimes que considera inafiançáveis, e, sendo assim, em relação a eles não será possível conceder liberdade provisória mediante fiança, restando, apenas, a possibilidade de liberdade provisória sem fiança, o que demonstra o desacerto em se afirmar que a inafiançabilidade tratada na Carta Magna impede a liberdade provisória sem fiança.

Qualquer forma diversa de interpretação, ainda que bem intencionada, desatende por completo o desejo da Lei.

Dessas reflexões, resultam duas vertentes possíveis: 1ª) ou se reconhece, definitivamente, a possibilidade de liberdade provisória, sem fiança, em relação a todos os crimes inafiançáveis; 2ª) ou se reconhece a inconstitucionalidade do inciso II do artigo 310 do CPP.

A primeira linha de pensamento é a acertada, conforme procuramos evidenciar nas reflexões expostas.

Por outro vértice, sustentar que a inafiançabilidade tratada expressamente na Constituição Federal também significa vedação à liberdade provisória sem fiança implicará reconhecer a inconstitucionalidade do novo artigo 310 do CPP quando determina que ninguém permanecerá preso cautelarmente se não estiverem presentes os requisitos da prisão preventiva.


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[1] Editora Saraiva.

[2] Artigo 5º, LXI, da CF: “Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.

[3] STF, HC 94.157/SP, 2ª T., rel. Min. Celso de Mello, j. 10.06.2008, DJe de 28.03.2011.

[4] E que já estavam claras na Constituição Federal e no CPP, a nosso ver.

[5] Artigo 5º da CF: “XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.

[6] “Apesar de o tema ainda não ter sido analisado definitivamente pelo Plenário deste Tribunal, a atual jurisprudência é firme no sentido de que é legítima a proibição de liberdade provisória nos crimes de tráfico ilícito de entorpecentes, uma vez que ela decorre da inafiançabilidade prevista no artigo 5º, XLIII, da Carta Magna e da vedação estabelecida no artigo 44 da Lei 11.343/06” (STF, HC 103.406/SP, 1ª T., rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 24.08.2010, DJe n. 168, de 10.09.2010). No mesmo sentido: STF, HC 104.616/MG, 1ª T., rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 21.09.2010, DJe n. 215, de 10.11.2010; STF, HC 102.715/MG, 1ª T., rel. Min. Dias Tóffoli, j. 03.08.2010, DJe n. 200, de 22.10.2010; STF, HC 101.259/MS, 1ª T., rel. Min. Dias Tóffoli, j. 01.12.2009, DJe n. 22, de 05.02.2010; STF, HC 98.548/SC, 1ª T., rel. Min. Cármen Lúcia, j. 24.11.2009, DJe n. 232, de 11.12.2009; STF, HC 103.399/SP, 1ª T., rel. Min. Ayres Britto, j. 22.06.2010, DJe n. 154, de 20.08.2010; STF, HC 95.671/RS, 2ª T., rel. Min. Ellen Gracie, j. 03.03.2009, DJe n. 53, de 20.03.2009; STF, HC 102.558/PR, 2ª T., rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 09.02.2010, DJe n. 45, de 12.03.2010.

[7] STF, HC 103.399/SP, 1ª T., rel. Min. Ayres Britto, j. 22.06.2010, DJe n. 154, de 20.08.2010.

[8] STF, HC 83.439/RJ, 1ª T., rel. Min. Marco Aurélio, j. 14.10.2003, DJe de 07.11.2003.

[9] STJ, AgRg no HC 111.250/SP, 6ª T., rel. Min. Celso Limongi, j. 19.02.2009, DJe de 16.03.2009. No mesmo sentido: STJ, AgRg no HC 111.250/SP, 6ª T., rel. Min. Celso Limongi, j. 19.02.2009, DJe de 16.03.2009.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

DECISÃO SOBRE EXAME DA OAB AFETARÁ OUTRAS PROFISSÕES

Decisão sobre Exame da OAB afetará outras profissões

Por Carlos Nina

Está sendo aguardado, com justa ansiedade, por centenas de milhares de Bacharéis em Direito e suas famílias, o julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre o Exame de Ordem, previsto para agosto. A repercussão do julgamento, porém, terá significativa conseqüência para inúmeros outros segmentos.

Em artigo anterior, publicado semana passada (Por trás do Exame da Ordem), referindo-me aos principais argumentos dos que defendem a manutenção do Exame, defendi a tese de sua inconstitucionalidade. Por limitações de espaço, não poderia estender-me sobre todos os argumentos, até porque são igualmente falaciosos, simplórios e inconsistentes. Contudo, a importância desse julgamento me compeliu a acrescentar outras considerações sobre o tema, pelos efeitos que a decisão terá sobre os demais conselhos profissionais.

Quando, no ano passado, a convite do Senado, participei de audiência pública sobre o Exame da Ordem e ali defendi sua extinção, alertei para o fato de que, a serem legítimos e constitucionais os argumentos dos defensores do Exame, os demais conselhos profissionais teriam o mesmo direito de criar seus próprios exames. Da mesma forma que as Faculdades formam bacharéis em Direito sem a devida qualificação, diplomam pessoas sem o conhecimento necessário para o exercício de outras profissões, como as de médico, contabilista, economista e, o que é pior, de professor.

Se, portanto, esse argumento prevalecer para a profissão de advogado, deve prevalecer para as demais profissões. Aí estará garantido aos demais conselhos profissionais um filão financeiro desfrutado privilegiadamente apenas pela OAB. Outros conselhos, aliás, já vislumbram essa hipótese, movidos pela mesma razão monetária e não pelo caos educacional que reina nas Faculdades, pois, se fosse por preocupação com a qualificação de seus profissionais, os conselhos tomariam medidas contra as Faculdades, o Ministério de Educação e a União. Não assistiriam inertes a essa orquestração infame contra a esperança. É uma motivação imoral, portanto, mas estaria igualmente amparada no “direito” assegurado à OAB.

A reforçar, porém, esse direito dos demais conselhos profissionais, está outro argumento falacioso dos defensores do Exame. O de que a Faculdade de Direito não gradua advogado, mas Bacharel em Direito. Ora, a Faculdade de Medicina não gradua médico. A de Ciências Contábeis, ipso facto, não forma contabilistas, habilita em Ciências Contábeis. O mesmo se dá com as demais profissões. Esse argumento, portanto, se não é equívoco, ou limitação racional, é má-fé.

Ainda sobre a suposta legalidade do Exame, por estar previsto na Lei 8906/94, deixei de mencionar no artigo anterior que essa norma é posterior à Constituição de 1988, que não prevê nenhuma limitação ao exercício profissional. Logo, por princípio elementar, não pode nenhuma norma criar exigência que conflite com garantia constitucional, inserida, ressalte-se, nos próprios fundamentos da República (artigo 1º da CF).

O argumento de que os Bacharéis em Direito, para serem membros da Magistratura e do Ministério Público, submetem-se a concurso público e, por isso, estaria justificado o Exame de Ordem para exercer a advocacia, além de ser uma falácia, já demonstrada no artigo anterior, é um argumento construído com base em privilégios e discriminação. Primeiro porque o concurso usado como referência é uma exigência prevista na Constituição para cargos públicos, e a advocacia é uma atividade privada. Para a advocacia pública é exigido o concurso público. Assim, por lógica, tal concurso não deveria ser exigido para advogados públicos, porque já teriam sido aprovados no Exame da Ordem, que habilita para a advocacia. O concurso é exigido porque advogado público é cargo público, como o caso de magistrados e membros do Ministério Público.

Se o Exame é condição para a advocacia, por que os membros da Magistratura e do Ministério Público que, ao deixarem essas funções, mesmo que antes não tenham sido advogados, são dispensados do Exame de Ordem? Pelo argumento dos defensores do Exame, deveriam submeter-se a este, porque o concurso que fizeram não foi para a advocacia. A dispensa, portanto, é um privilégio e uma discriminação porque não inclui ex-delegados, escrivães e outros cargos públicos cujo requisito é o de Bacharel em Direito.

É lamentável que toda a discussão do assunto esteja movida pelo corporativismo, pelo interesse econômico, ignorando, por completo, as origens do problema, que são as péssimas condições das Faculdades, das quais são professores advogados e membros dos próprios conselhos e outros órgãos da OAB. É uma espécie de organização criminosa, onde a desídia e a omissão coniventes propiciam os lucros que vão beneficiar os responsáveis por esse estelionato, que tem como vítimas da impiedade, da absoluta falta de sensibilidade, do descaso, da irresponsabilidade e da corrupção, cidadãos de bem que acreditaram no Poder Público, que dedicaram, no mínimo, cinco anos de suas vidas, sacrificando a convivência familiar, o aconchego de pais e filhos, a saúde, a alimentação e as condições pessoais de vida, enfrentando todo tipo de dificuldades para alimentar a esperança de que, ao final, o diploma lhes garantiria uma profissão com a qual pudessem ganhar a vida honestamente.

Ledo engano. Pior, ainda: são endemonizados pela instituição que deveria defender-lhes para lhes assegurar o direito no qual acreditaram.

Tudo isso estará em jogo no julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre o Exame de Ordem. A decisão do STF vai dizer à sociedade brasileira e ao mundo quais os valores que norteiam a mais alta Corte do País.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO POR AGENTES FISCAIS É INCONSTITUCIONAL

A quebra de sigilo bancário por agentes fiscais

Por Jamol Anderson Ferreira de Mello

Questão atualíssima, a despeito de quase dez anos de discussões, concerne à possibilidade ou não de quebra de sigilo bancário por agentes fiscais tributários, sem autorização judicial, desde que no curso de procedimento administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso, visando a apuração de tributos eventualmente não recolhidos pelos contribuintes.

Convém ressaltar, como introdução ao tema, que a Constituição Federal não consagra especificamente a garantia ao “sigilo bancário”. Em verdade, a doutrina acabou por criar tal conceito, como decorrência do sigilo de dados (artigo 5.º, XII, Constituição Federal) e do direito de intimidade (artigo 5.º, X, também da Carta Magna).

Dentro desse contexto, a doutrina e a jurisprudência sedimentaram que somente seria possível a quebra de sigilo bancário por meio de decisão judicial fundamentada. Aliás, por interpretação literal do artigo 5.º, XII, da Constituição vigente, alguns chegaram a defender que mesmo a quebra de sigilo por decisão judicial fundamentada somente seria possível quanto às comunicações telefônicas, não havendo qualquer exceção constitucional ao sigilo de dados, que seria portanto inviolável. Ressalva-se que essa última posição já foi superada.

Porém, com o advento da Lei Complementar 105, de 2001, mais especificamente com a entrada em vigor do seu artigo 6.º, instaurou-se grande celeuma. Dispõe referida norma que:

Art. 6o As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.

O artigo 6.º da Lei Complementar n.º 105/2001 contém uma armadilha. Ao delimitar algumas hipóteses em sede das quais seria cabível a quebra de sigilo bancário, o dispositivo não está a estabelecer limites para um preexistente poder-dever dos agentes fiscais, e sim por criar um indevido e quase ilimitado poder a eles.

A argumentação encontrada na primeira oportunidade pela fiscalização tributária, em especial a Receita Federal do Brasil, para justificar as requisições de informações bancárias, inclusive saldos, depósitos e aplicações financeiras existentes, calcava-se em suposta inexistência de quebra de sigilo, dado que as informações a que teriam acesso as autoridades fiscais não seriam repassadas para terceiros, as autoridades teriam acesso a elas mas isso não representaria violação ao sigilo. Inclusive, quanto a esse ponto, invocou-se o §3.º do artigo 11 da Lei n.º 9.311/96, com redação dada pela Lei n.º 10.174, de 2001, que dispõe:

§ 3o A Secretaria da Receita Federal resguardará, na forma da legislação aplicável à matéria, o sigilo das informações prestadas, facultada sua utilização para instaurar procedimento administrativo tendente a verificar a existência de crédito tributário relativo a impostos e contribuições e para lançamento, no âmbito do procedimento fiscal, do crédito tributário porventura existente, observado o disposto no art. 42 da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996, e alterações posteriores. (Redação dada pela Lei nº 10.174, de 2001)

Com a devida vênia, o sigilo existente abrange apenas o correntista e a instituição bancária, não há como as autoridades fiscais terem acesso às informações bancárias e justificarem que não haveria violação à sigilosidade porque terceiros não tiveram acesso à informação. A própria fiscalização já é terceiro violador da privacidade.

A partir da edição da Lei Complementar 105/2001, o contribuinte ficou refém da fiscalização tributária, especialmente no âmbito federal. Em verdade, com o cruzamento de informações relativas à extinta CPMF e de informações relativas a movimentações bancárias disponibilizadas pelo BACEN com declarações referentes a tributos que os próprios contribuintes oferecem à hoje designada Receita Federal do Brasil, as autoridades fiscais passaram a iniciar procedimentos fiscais cujo fim já era por elas previamente conhecido (autuações fiscais volumosas) e o instrumento para tanto fora escolhido antecipadamente (quebra de sigilo bancário).

O modo de agir da fiscalização é conhecido: o contribuinte recebe uma primeira intimação informando do início do procedimento fiscal (Mandado de Procedimento Fiscal, no caso da Receita Federal do Brasil), após, pedido de remessa de informações bancárias, tais como extratos, saldos, etc., e na sequência, caso não haja colaboração espontânea do contribuinte para o levantamento das informações, é formalizada perante as instituições bancárias com as quais ele mantém contas a chamada “Requisição de Movimentações Financeiras” (RMF), que consubstancia a malfadada quebra de sigilo bancário.

E mais: ao proceder a quebra de sigilo bancário, a fiscalização tributária, especialmente a federal (RFB), considera como omissão de receita ou rendimentos todos os valores em relação aos quais o contribuinte não consiga comprovar para a autoridade fiscal sua origem, valendo-se a fiscalização para tanto do artigo 42 da Lei n.º 9.430, de 1996, que estipula:

Art. 42. Caracterizam-se também omissão de receita ou de rendimento os valores creditados em conta de depósito ou de investimento mantida junto à instituição financeira, em relação aos quais o titular, pessoa física ou jurídica, regularmente intimado, não comprove, mediante documentação hábil e idônea, a origem dos recursos utilizados nessas operações.

Necessário salientar que, nesse contexto, a fiscalização não costuma se conformar com declarações, recibos ou informações sobre ingressos em conta-corrente que não representam renda nova. A fiscalização realiza, muitas das vezes, exigências demasiadamente rígidas para classificação do que seria “documentação hábil e idônea” para “comprovação da origem dos recursos”.

E desde a edição da Lei Complementar 105, de 2001, a jurisprudência tem oscilado sobre a constitucionalidade da quebra do sigilo bancário sem autorização judicial, enquanto que a fiscalização tributária foi aperfeiçoando e aumentando gradativamente a utilização de tal ferramenta.

Acontece que recente e importante precedente foi formado em favor dos contribuintes a partir do julgamento do Recurso Extraordinário – RE 389.808/PR, julgado em 15/12/2010. Por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal deu provimento a recurso extraordinário do contribuinte e reconheceu a inconstitucionalidade da quebra de sigilo bancário que não seja realizada por decisão judicial fundamentada (vencidos os Ministros Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ayres Britto e Ellen Gracie). A ementa da decisão assim dispôs:

SIGILO DE DADOS – AFASTAMENTO. Conforme disposto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, a regra é a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção – a quebra do sigilo – submetida ao crivo de órgão equidistante – o Judiciário – e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal. SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS – RECEITA FEDERAL. Conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte.

(RE 389808, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 15/12/2010, DJe-086 DIVULG 09-05-2011 PUBLIC 10-05-2011 EMENT VOL-02518-01 PP-00218)

O voto condutor da decisão, de lavra do Ministro Relator Marco Aurélio, deixa claro que não é dado às autoridades administrativas tolherem o direito constitucional dos contribuintes ao sigilo de dados e à intimidade. A ressalva ao sigilo somente pode ocorrer por decisão judicial fundamentada, não tendo qualquer órgão administrativo poderes para tanto.

Infelizmente, tal decisão foi proferida em sede de recurso extraordinário, que somente faz efeitos entre as partes de determinado processo. Em outras palavras, somente o contribuinte que recorreu ao STF nesse caso específico se beneficiou de tal decisão.

Contudo, tal precedente sinaliza aos contribuintes que o Supremo Tribunal Federal está atento aos direitos e garantias fundamentais, dado que por maioria de votos sinalizou pela inconstitucionalidade da quebra de sigilo bancário realizada nos termos do artigo 6.º da Lei Complementar 105, de 2001. Assim, abre-se o caminho para que todos os contribuintes que vierem a sofrer similar tipo de ofensa aos seus direitos passem a se defender de tal ordem de abusos.

PENHORA EM CONTA CORRENTE

Trata-se de ação de execução, na qual foi penhorada, em conta bancária, quantia referente à restituição do imposto de renda. A devolução do imposto de renda retido ao contribuinte não descaracteriza a natureza alimentar dos valores a serem devolvidos, quanto se trata de desconto parcial do seu salário. É impenhorável o valor depositado em conta bancária, referente à restituição do imposto de renda, cuja origem advém das receitas compreendidas no art. 649, IV, do CPC. A verba relativa à restituição do imposto de renda perde seu caráter alimentar, tornando-se penhorável, quando entra na esfera de disponibilidade do devedor. Em observância ao princípio da efetividade, mostra-se desrazoável, em situações em que não haja comprometimento da manutenção digna do executado, que o credor seja impossibilitado de obter a satisfação de seu crédito, sob o argumento de que os rendimentos previstos no art. 649, IV, do CPC, gozam de impenhorabilidade absoluta. (...)

INTEGRA DO ACÓRDÃO

COMENTÁRIOS:

A decisão é da 3ª T. do STJ e foi relatada pela Minª. Nancy Andrigui. A questão da impenhorabilidade é histórica. A lex poetelia papiria editada antes de cristo pelo Império Romano proibia que o pagamento da dívida fosse pago pelo corpo do devedor, a partir de então a garantia do pagamento das dívidas passaram a recair sobre o patrimônio do devedor. Contudo, subtrair todo o patrimônio do devedor pode ser uma pena excessivamente onerosa e desnecessária. Excluir alguns bens do alcance do credor e da penhora é plenamente justificável. O art. 649 do CPC é a fonte legislativa em nosso ordenamento jurídico que excluiu alguns bens do alcance da constrição. Há ainda a Lei 8.009/1991, que instituiu mais uma impenhorabilidade, que é a do bem de família.

Nessa seara, materialmente, há um limite tênue entre a necessidade de cumprimento das obrigações que cada pessoa assume, aí vale lembrar, que sem o cumprimento das obrigações não há sociedade organizada, de outro lado, existe o sistema capitalista que tanta riqueza gerou nos últimos séculos. Para ele, o estímulo ao consumo e a produção não têm limites e não há nada de errado nisso. Este sistema, contudo, foi criado para tolerar um certo nível de inadimplência aceitável que é decorrente da própria atividade empresarial, cujo pilar de sustentação é a assunção do risco cada vez maior, de um lado, e o lucro cada vez maior, de outro lado, como prêmio ao final. O imperativo do cumprimento das obrigações encontra limite na própria sobrevivência digna do devedor e da sua família, pois aí reside a oportunidade do devedor/consumidor readquirir sua capacidade financeira para honrar compromissos antigos e assumir novos. Esta é a lógica do sistema.

Esta é uma questão que a Minª. Nancy Andrighi bem percebeu, cumprir as obrigações é necessário, contudo, é necessário reservar-se recursos para que o devedor possa viver com dignidade. São elucidativas as palavras da Ministra. Senão vejamos:


«... Todavia, a constatação acima não leva à conclusão de que impenhorabilidade em conta corrente seja absoluta, porque, se assim fosse, como frisei no julgamento do RMS 25.397/DF, de minha relatoria, DJ 03.11.2008, estar-se-ia protegendo situações absurdas em que, por exemplo, o «(...) trabalhador contraia empréstimos para cobrir seus gastos mensais, indo inclusive além do suprimento de necessidades básicas, de modo a economizar integralmente seu salário, o qual não poderia jamais ser penhorado. Considerando que, de regra, cada um paga suas dívidas justamente com o fruto do próprio trabalho, no extremo estar-se-ia autorizando a maioria das pessoas a simplesmente não quitar suas obrigações.».

A interpretação mais correta a se atribuir ao art. 649, IV, do CPC, nessas situações, é aquela que se leve em consideração a ratio legis que norteia o dispositivo, qual seja, a proteção da quantia monetária necessária para a subsistência digna do devedor e de sua família.

O valor excedente ao suprimento de necessidades básicas, encontrando-se depositado em conta corrente, perde o seu caráter alimentar e sua condição de impenhorabilidade e passa a se enquadrar no art. 655, I, do CPC. Esse dispositivo estabelece que a penhora terá como objeto, preferencialmente, dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira.

Dessarte, é possível penhorar os valores depositados na conta corrente do executado, a título de restituição de Imposto de Renda, desde que não haja comprometimento da sua digna subsistência. ...» (Minª. Nancy Andrighi).»

domingo, 14 de agosto de 2011

A MANUTENÇÃO DO EXAME DA ORDEM DOS ADVOGADOS PROTEGE O PÚBLICO DA INCOMPETÊNCIA E DA IGNORÂNCIA

A manutenção do Exame da OAB é essencial ao país

Por Luiz Olavo Baptista

A Constituição Federal dispõe no seu artigo 5º Inciso XIII, que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.

A liberdade de exercício do trabalho, na maioria dos países, em especial nos mais desenvolvidos, é limitada às pessoas qualificadas para isso. De um lado, preserva-se a possibilidade de acesso a toda e qualquer profissão, garantia constitucional ligada ao direito de trabalhar, de outro, as regras que delimitam a eficácia da norma constitucional, e visam à proteção ao público, impondo a aferição das qualificações profissionais.

No Direito, como Medicina, as faculdades (ou universidades) ensinam a disciplina, e depois, em cursos ou outro modo, aprende-se a profissão.

No Reino Unido, ao terminar um curso de Direito, o estudante pode escolher entre preparar-se para ser um Barrister ou um Solicitor. Precisa fazer um curso e submeter-se a um exame, mesmo que tenha concluído uma faculdade.

O mesmo ocorre na França e na Alemanha. Em Portugal, a Corte Constitucional impôs que o exame fosse estabelecido por lei. Nos Estados Unidos, não somente há a exigência do Exame de Ordem, como a do aperfeiçoamento constante dos advogados como condição para exercício da profissão.

Na Espanha, a lei 34/2006 regula o acesso à profissão de advogado, impondo o ensino e aferição do aprendizado. E na Itália, há uma avaliação, similar ao Exame de Ordem, que deve ser feito pelos que tenham um diploma de Direito, após um estágio de, no mínimo, dois anos, nos quais devem ter feito mais de 20 audiências, escrito quatro relatórios, entre outros requisitos. No Japão também se exige o Exame de Ordem e há pouco se aumentou o nível de exigência do mesmo.

Assim, por toda parte há uma clara distinção entre o diploma e a qualificação profissional. No Brasil, muito adequadamente, o Exame é exigido no artigo 8º, IV, da Lei 8.906, de 1994 e como ocorre nos países citados e, em muitos outros, para fazer o Exame de Ordem é preciso ter estudado Direito.

Contra a existência desse requisito legal, perfeitamente constitucional, ergueram-se vozes de candidatos fracassados nos Exames e dos grandes interessados econômicos. Tratam-se das numerosas faculdades privadas, que muitas vezes não cumprem o dever de ministrar um ensino eficiente de Direito, e, ao invés, se concentram com vigor na cobrança de anuidades e outras taxas.

É em auxilio à falácia propalada por esses interessados que um sub-procurador federal opinou que “o diploma é, por excelência, o comprovante de habilitação que se exige para o exercício das profissões liberais. O bacharel em Direito, após a conclusão do curso, deverá, ao menos em tese, estar preparado para o exercício da advocacia e o título de bacharel atesta tal condição”. Diz mais, que “não se pode admitir seja o Exame de Ordem instrumento de seleção dos melhores advogados (critério meritório). Se assim considerado, mais flagrante se tornam a indevida restrição à escolha profissional e o caminho para intolerável reserva de mercado”.

A afirmação de que o diploma de Bacharel é um comprovante de aptitude para o exercício da profissão de advogado não corresponde à realidade. A Constituição não diz que é livre o exercício de qualquer profissão a quem tenha um diploma.

Ela diz claramente que o exercício dessa liberdade é condicionado ao preenchimento dos requisitos da lei para proteger o interesse público.Como em todo o mundo civilizado, hoje as faculdades dão apenas um certificado de que uma pessoa concluiu seu curso de Direito.

O exercício da profissão de advogado – que segundo a Constituição é indispensável à administração da Justiça – pode, pela lei, estar sujeito a um exame que comprove a possibilidade de prestar serviços ao público. O argumento da “intolerável reserva de mercado,” despido de qualquer valor jurídico, não se sustenta porque a Ordem não seleciona os melhores advogados nem limita o acesso à profissão. Ela examina os bacharéis para saber se eles têm as qualificações necessárias para serem advogados, ou seja, para exercer a profissão.

A experiência mostra é que a maioria dos que tem um diploma não o merecia, e nem tem a qualificação necessária para o exercício de uma profissão que deve servir para proteger os cidadãos e garantir-lhes direitos fundamentais. Trata-se do que Bobbio chama de função promocional do Direito. O interesse público por essa promoção aparece em outras normas, como as do artigo 4º da lei 8904/94, e do artigo 307 do Código Penal.

A exigência de uma qualificação adequada em serviços de utilidade pública não existe para criar uma “reserva de mercado”, mas isto sim para proteger o público, em especial as pessoas de menores recursos da incompetência e da ignorância de alguns bacharéis. Causa, assim, certa preocupação que num momento em que se deveria discutir reformas no ensino jurídico para aprofundamento das habilidades relevantes à profissão, seja aventada a possibilidade de retrocesso, transferindo à sociedade o ônus de realizar a primeira triagem daqueles que hão de defender seus mais caros interesses.

Luiz Olavo Baptista é fundador do escritório L.O. Baptista e atua em societário, arbitragem nacional e internacional

sábado, 13 de agosto de 2011

GRATUIDADE PROCESSUAL - BENEFICIADO PODE TER QUE ARCAR COM SUCUMBÊNCIA

Por Emerson Ike Coan

Este artigo versa sobre a possibilidade do controle judicial acerca da verossimilhança da alegação do estado de pobreza para inibição do efeito da outorga da gratuidade processual, quanto à intocabilidade do patrimônio do beneficiado que perde a demanda, com vistas a conferir a reciprocidade na garantia de direitos das partes estabelecida na Lei 1.060/50.

Não é desconhecida do profissional do Foro a concessão da gratuidade processual pelos órgãos judiciários, diante da simples declaração de pobreza ou no máximo de declarações de rendimentos da parte requerente, irreversivelmente na maioria dos casos, como se o benefício fosse amplo e absoluto.

Deve ser entendido, porém, que, ao limitar ao mínimo as formalidades para o gozo dos benefícios da gratuidade processual, não pretendeu o legislador afastar o prévio controle judicial, e apenas quis abreviar as providências burocráticas para se permitir a fruição imediata, em homenagem ao princípio constitucional que resguarda o acesso de todos à Justiça. Em suma, apenas quis evitar a demora no acautelamento de direitos, inevitável se continuassem os órgãos públicos incumbidos da investigação do estado de pobreza, como na época em que o atestado em tal sentido era expedido pela autoridade policial, sob sua responsabilidade. Tanto isso é certo que, para evitar o abuso, exigiu a declaração pessoal do interessado, para poder responsabilizá-lo diretamente pela falta de veracidade da afirmação. Daí que não se cuida de prova inequívoca daquilo que é declarado. Ao contrário. Cuida-se de presunção "juris tantum", até prova em contrário, sob pena de pagamento até o décuplo das custas judiciais (parágrafo 1º do artigo 4º de referida lei), não afastada a responsabilidade criminal pela falsa declaração. Não é perdida de vista ainda a imposição da sanção por litigância de má-fé, se constatado o mau uso do instituto com esse intuito de sonegar a verdade e empregar meio ardiloso em prejuízo do Estado e da parte contrária. O que não se admite é o indeferimento de plano, baseado em meras conjecturas (artigo 5º).

Na acepção ampla de despesas processuais (artigo 3º e incisos), a mais vultosa de uma demanda é a contratação de advogado, o que levou o legislador à sua inclusão no benefício da gratuidade, de modo expresso. Não faltou sequer a previsão constitucional para organização do quadro de defensores públicos pelos Estados-membros. Logo, se a parte já comparece por meio de profissional, praticamente ficam esvaziadas as demais obrigações pecuniárias do processo, já que o valor das custas processuais no Brasil é insignificante, no Estado de São Paulo não indo além de 3% da vantagem patrimonial objetivada para todas as fases.

Veja-se que 1% da vantagem patrimonial objetivada pelo processo a título de custas iniciais, mas para o desenvolvimento do processo até a sentença, é, de fato, insignificante, se, diferentemente das circunstâncias sociais de quando editada a Lei em comento, em 1950, exigia-se de quem demandava, por exemplo, indenizações devidas às testemunhas, para ressarcir-lhes a locomoção e a estada, em razão da distância entre as Comarcas e da falta de um transporte coletivo eficiente. Enfim, os atos praticados no curso do processo dependiam de gasto só ao alcance dos ricos e, por isso, as isenções aos ditos necessitados, com o único escopo de facilitar-lhes o acesso à Justiça.

Nunca deve ser esquecido que as custas processuais correspondem ao preço do serviço do Estado prestado ao particular que invoca a tutela jurisdicional, para o qual é muito oneroso. Essa taxação é legal e não contraria o caráter público da função jurisdicional. Ademais, a regularidade dos atos processuais dá-se pela correspondência de sua prática com as disposições legais e será alvo de invalidação, com risco de comprometimento do próprio processo, quando a gravidade da infração ultrapassar os limites tolerados pela lei.

Assiste-se na atualidade a uma litigiosidade incontida por força da cultura da institucionalização de conflitos, produzida pelo ensino jurídico, inclusive, o que torna a Justiça mais um produto à disposição de uma massa consumidora inconsequente e nem sempre acessível aos verdadeiramente miseráveis. Por isso, devem as partes sempre ter em conta a relação de custo e benefício do processo, já que a disponibilidade financeira é relevante pressuposto de demandar e de se defender em Juízo, ainda mais se vislumbrada a produção de prova pericial. Ora, em princípio, se a parte se dispõe a um sacrifício econômico-financeiro para aquisição de uma mercadoria ou para usufruir de um determinado serviço para satisfazer muitas vezes desejos supérfluos e não necessidades básicas de subsistência, idêntico sacrifício deve ser aplicado para custear o processo.

Por exemplo, a alegação do estado de miserabilidade é verossímil quando o fundamento do requerimento está embasado na declaração de pobreza que faz quem se diz doméstica, desempregada, viúva de vítima fatal de acidente de veículo, presumido que fosse o falecido o provedor do lar e é pretendido com a demanda o recebimento de complementação de capital relativo a seguro obrigatório de danos pessoais por acidente de veículos automotores de via terrestre (DPVAT). Também na hipótese de quem se diz vítima de acidente de veículo, em razão do qual sofreu lesões físicas ensejadoras de alegada incapacidade permanente para suas atividades corriqueiras, com pretensão de receber complementação de indenização referente a dito seguro obrigatório, situação ordinariamente a reclamar custosa perícia médica, em tese, a cargo do demandante. Assim, é de se presumir igualmente, pelo menos em caráter provisório, a insuficiência econômico-financeira de a parte fazer frente às custas iniciais do processo, sem prejuízo do seu sustento próprio e o de sua família.

Por outro lado, a rigor, não é presuntivo de situação de pobreza, quem possui profissão remunerada, se dispõe a adquirir um veículo automotor e paga prestações mensais da praxe de mercado, com a pretensão de que sejam consignadas em Juízo. Ainda a título exemplificativo, o "quantum" da indenização por danos morais não é passível de estipulação exata "initio litis", devendo a sua mensuração para a condenação ter em conta o conjunto probatório como critério de julgamento para que seja fixado o mais razoável ou proporcional possível, nem sempre como pleiteado pela parte, considerado o risco natural de serem diminuídos os efeitos da lesão com o tempo, inclusive. Enfim, se a parte tem condições razoáveis, de conformidade com o que é praticado no foro, de estimar a vantagem patrimonial buscada, não lhe é dado escamotear a realidade das coisas baseada apenas em suposições que contrariam um mínimo de bom senso, a fim de criar óbice ao acesso à Justiça a si própria.

Não é descartada a hipótese de diferimento do recolhimento das custas do processo a seu final, diante da verossimilhança da alegação de momentânea impossibilidade de a parte fazer frente àquelas, de acordo com as particularidades do caso concreto. Por exemplo, é caso de diferimento àquele que, embora se declare empresário aposentado, é proprietário de imóvel objeto de demanda de despejo por falta de pagamento e que, por força do inadimplemento dos aluguéis da locação para fins não residenciais, deixou de auferir renda complementar, em sendo o valor das custas iniciais em quantia muito maior que a sua aposentadoria mensal, em virtude do vulto do negócio e das prestações em atraso.

É de rigor, assim, constatar que a Lei dispõe ao longo de seu texto sobre situação econômica de quem, e o considera necessitado, não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família (parágrafo único do artigo 2º), como algo episódico. Estabelece, o que denota ainda mais este caráter temporário, que no curso do processo o evento da miserabilidade jurídica possa suceder às partes, a ponto de prever para estas o incidente próprio para requerimento do benefício (artigo 6º). A parte contrária poderá requerer em qualquer fase do processo a revogação da benesse, desde que prove a inexistência ou o desaparecimento dos motivos autorizadores da concessão (artigo 7º). Ao juiz é dado revogar o benefício no curso do processo, uma vez verificada por outros elementos de prova a falta de veracidade da afirmação do estado de pobreza ou mesmo a cessação dos motivos determinantes da então condição de necessitado (artigo 8º). Entende-se que ninguém quer para si a irreversibilidade da momentânea condição de miserabilidade, a não ser que faça voto de pobreza, algo impossível no contexto da sociedade de consumo coeva, e assim não estaria em Juízo a litigar em razão de patrimônio.

A conclusão inevitável, quando a concessão da benesse desbordar de tais considerações, é que o intuito em postular a gratuidade processual não é outro senão prevalecer dos efeitos jurídicos do estado de miserabilidade jurídica, já que faz intocável, em caso de perda da demanda, o patrimônio do beneficiado que até então for existente, porque a execução das verbas da sucumbência fica suspensa até a comprovação, pela parte contrária, da mudança de fortuna do adversário, o que por certo terá como marco aquele da concessão do benefício, portanto preservados os bens até então existentes.

Isso porque, se é justo que o sistema positivo resguarde o acesso fácil aos seus órgãos judicantes a quem necessite, independentemente de sua condição de fortuna, contudo também não deixa de ser injusto que se crie com o expediente uma prévia indenidade patrimonial em caso de derrota. Enfim, não seria justo que, por simples afirmação unilateral, como é o caso do autor no início do processo, em cômoda condição lastreada em mera presunção, se obrigue o vencedor da demanda à exaustiva pesquisa de patrimônio penhorável do adversário, em evidente posição desvantajosa.

Daí que, quando assim revelada, a pretensão de gratuidade processual, embora venha tendo acolhimento generalizado no foro, é singelamente ilegal, porque importa o fato de que a parte beneficiada o é por puro ato unilateral seu, uma vez que basta afirmar seu estado de miserabilidade jurídica, quando se esquece de que para criar obrigação a outrem de caráter jurídico, isso somente é possível por força de lei ou de convenção. Não é bastante a tanto, pois, a apresentação de declaração de rendimentos da parte requerente. O conjunto probatório, a partir das peculiaridades do caso concreto, é que, por decisão fundamentada, definirá a concessão ou não da benesse, em razão do alegado estado de pobreza.

Precisa ser compreendido que, ao dispor a Lei que a execução dos encargos da sucumbência se suspende até que haja mudança de fortuna, nada mais fez que realçar a circunstância de que não ficava o vencedor prejudicado, se vencido o beneficiado pela benesse em causa, mas que apenas, pela presunção de falta de bens deste, haveria a suspensão da exigibilidade do crédito, para reivindicação futura. A regra assim não veio como favorecimento do vencido, mas para deixar assegurado o direito do vencedor, em face daquele, mesmo que beneficiado pela gratuidade processual. Estabeleceu, assim, uma reciprocidade na garantia de direitos das partes.

Há uma interpretação equivocada dos artigos 11 e 12 da Lei em questão, porque por eles apenas ficou instituído, quiçá pela primeira vez, o instituto da sucumbência, pelo que, quando envolvesse a gratuidade processual, o vencedor passava a ter em face do vencido o direito de haver honorários de advogado arbitrados pelo juiz, o que era inovação e de caráter específico, até porque somente em 1973 foi incorporado em nosso sistema jurídico esse princípio da sucumbência.

Assim é que, no artigo 11, vem a menção de que a parte vencida era obrigada a pagar os honorários de advogado da parte que estava no gozo da benesse, quando fosse vencedora. Era a forma que a lei encontrou para estimular o patrocínio, pelos advogados, dos interesses em juízo de partes miseráveis juridicamente falando. O costume na época era o pagamento prévio da remuneração do profissional.

Também entendeu o legislador que não podia tratar com discriminação a parte que havia litigado com a que gozava de gratuidade processual, e daí haver estabelecido uma reciprocidade na garantia de direitos das partes no art. 12, de sorte que, se é certo que ficava sujeita a pagar os honorários de advogado da parte contrária se fosse vencida, porém ficava com o mesmo direito se fosse vencedora, apenas com a condição de aguardar a mudança de fortuna da que fora vencida. Dispôs que, se no prazo de cinco anos, a contar do trânsito em julgado da sentença, o beneficiado não puder satisfazer tal pagamento, a obrigação ficará "prescrita", com a nota de que não se trata tecnicamente de prescrição, mas de mero prazo de espera, uma vez que se cuida de cumprimento de sentença. Isso a fim de que não só fique o beneficiado indefinidamente sujeito a essa execução, como também o credor seja expedito na satisfação de seu crédito.

O artigo 13 assegura que, se a parte que goza da benesse estiver em condições de satisfazer em parte as custas do processo, assim o ordenará o juiz e rateará os recursos disponíveis aos que tiverem direito ao recebimento. Enfim, a referida Lei instituiu o que é conhecido hoje como princípio da sucumbência, diante da necessidade de remuneração do advogado que viesse a patrocinar os interesses em juízo de pessoa beneficiada pela gratuidade processual, e isso até pela razão de que não deixava margem à recusa da prestação do múnus público, pois era passível de sanção (artigos 14 e 15 e respectivos parágrafos).

Repisando o que foi dito, é preciso lembrar que, em compensação desse trabalho gratuito, ou melhor, sem pagamento prévio, se fosse vencedora a parte beneficiada pela benesse ora tratada, o advogado desta teria o direito de haver honorários à parte vencida que o juiz arbitrasse. Assim precisava estar disposto, porque até então o princípio da sucumbência não se achava acolhido pelo direito positivo pátrio, de modo que cada parte é que suportava os honorários do advogado que contratou para ser defendida em juízo, fosse vencida ou vencedora.

Por isso, o que a Lei em comento fez não foi nada mais que criar o instituto da sucumbência como hoje é conhecido a partir da vigência do Código de Processo Civil de 1973, mas não que estivesse passando carta da alforria aos que litigam sob os auspícios da gratuidade processual de se liberarem do encargo de pagar honorários de advogado da parte contrária. Logo, se ao cabo de uma demanda, a parte que litigou sob os auspícios da gratuidade processual possui bens que possam garantir a execução, não ficará livre do imediato cumprimento de sentença como se a suspensão da execução fosse automática sempre e como se os bens até então tidos se tornassem indenes de expropriação.

Emerson Ike Coan é mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, assistente jurídico de Desembargador no Tribunal de Justiça de São Paulo, mediador e Conciliador Judicial pela Escola Paulista da Magistratura. Mestrando em Comunicação na Contemporaneidade na Faculdade Cásper Líbero, pela qual é Especialista em Teoria e Técnicas da Comunicação. Foi Professor de Linguagem Jurídica na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.