sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Paternidade sócio-afetiva se sobrepõe à biológica

Paternidade sócio-afetiva se sobrepõe à biológica e não pode ser anulada. O entendimento é do juiz Luís Antônio de Abreu Johnson, da Comarca de Lajeado, Rio Grande do Sul, que negou pedido de homem que pretendia desconstituir a paternidade.
Dez anos se passaram desde o nascimento da filha até o ajuizamento da ação. Segundo o juiz, houve convivência, troca, afeto e a menina foi apresentada à sociedade como filha e ele como pai dela. Assim, para o juiz, foi criada a ideia de pertencimento.
Segundo a filha, o pedido deveria ser julgado improcedente, já que o autor sabia que a menina não era sua descendente biológica e mesmo assim a registrou por vontade própria.
Ao avaliar o caso, o juiz considerou que houve larga convivência no grupo familiar e a solicitação objetiva, na verdade, era deixar de sustentar a garota.
Johnson assinalou que os artigos 1601 e 1064 do Código Civil estabelecem que a paternidade pode ser contestada em caso de erro ou falsidade do registro. No entanto, no caso em tela, não se está diante nem de erro nem de falsidade do registro, já que existe a paternidade socioafetiva entre o autor e a filha, concluiu. Com informações da Assessoria de Imprensa do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Processo 017/110.000.058.977

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Pena máxima do crime define competência no concurso de jurisdições

A pena máxima, e não a mínima, é que deve ser levada em consideração para determinar a gravidade do crime e servir de critério para definir onde se dará o julgamento quando ocorre concurso de jurisdições. Esse foi o entendimento da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que não conheceu de habeas corpus impetrado em favor de réu acusado de formação de quadrilha, peculato, corrupção e extorsão, entre outros crimes.

O concurso de jurisdição ocorre quando o réu é acusado de crimes cometidos em locais sob jurisdição de juízos diferentes, mas de mesmo nível. Segundo o artigo 78, inciso II, do Código de Processo Penal, o julgamento será onde foi cometido o crime de pena mais grave.

O réu estaria envolvido em esquema de corrupção no Detran do Rio Grande do Sul, desmontado na chamada Operação Rodin. Após a denúncia, a ação penal passou a correr na 3ª Vara Federal de Santa Maria.

No habeas corpus, a defesa alegou que a vara federal seria incompetente para julgar, pois entre os crimes imputados ao réu estaria o de extorsão, com pena de quatro a dez anos, prevista no artigo 158 do Código Penal (CP). A defesa alegou que essa seria a acusação mais grave e como, hipoteticamente, tal delito foi cometido em Porto Alegre, o julgamento deveria ocorrer nesta comarca.

Vulgarização do HC

A ministra Laurita Vaz, relatora do processo, considerou inicialmente que o habeas corpus não deveria ser conhecido por estar substituindo recurso ordinário. A ministra apontou que o STJ e o Supremo Tribunal Federal (STF) têm entendido que o aumento das hipóteses de admissibilidade desse instituto legal tem levado ao seu desvirtuamento. Essa “notória vulgarização” do habeas corpus, segundo ela, “tem abarrotado os tribunais pátrios, em especial o STF e o STJ”.

O STJ, ela também destacou, deve alinhar suas decisões com os julgados do STF sobre o tema, que estão em “absoluta consonância com os princípios constitucionais” como o do devido processo legal e da economia processual. Para não haver prejuízo ao paciente, em caso de habeas corpus substitutivo apresentado antes dessa nova posição dos tribunais, admitiu-se a possibilidade de concessão da ordem de ofício, em situações nas quais o constrangimento ilegal seja evidente. Porém, disse a ministra Vaz, não é este o caso dos autos.

Delito mais grave

A ministra observou que, conforme se alegou no pedido de habeas corpus, entre os crimes pelos quais o réu foi acusado está o de extorsão, com pena mínima de quatro anos, a mais alta entre as penas mínimas dos delitos atribuídos a ele. Porém, a pena máxima para extorsão (dez anos) é menor que a de outros crimes, como peculato-desvio (artigo 312 do CP), corrupção passiva (artigo 317) e corrupção ativa (artigo 333), todos com pena de dois a 12 anos. Esses crimes teriam sido cometidos em Santa Maria, portanto a jurisdição é desta comarca.

“Com efeito, a gravidade do delito, para fins penais, é estabelecida pelo legislador. Por isso, tem-se por mais grave o delito para o qual está prevista a possibilidade de, abstratamente, ser conferida a pena maior”, afirmou a relatora. Se o legislador previu a possibilidade de uma sanção mais alta a um delito – concluiu a ministra –, é por considerá-lo de maior reprovabilidade.

Laurita Vaz ponderou que pode causar surpresa o fato de a extorsão, caracterizada por elementos como a violência e a grave ameaça, ter pena menor do que a corrupção ativa ou a passiva. Porém, ela observou, há razão para isso. “O delito de corrupção pode ter circunstâncias tão diversas que o legislador inferiu que, em hipóteses muito danosas, deve ser muito mais rigidamente apenado”, disse ela.

Com base nesse entendimento, a Quinta Turma concluiu que a competência é do juízo do lugar onde foi cometido o crime de pena máxima mais alta, e, por não verificar ilegalidade flagrante no processo, não conheceu do pedido de habeas corpus.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

ANO DE POPULISMOS - Garantias sofreram recuo em 2012, dizem criminalistas


Por Rafael Baliardo


O ano de 2012 foi sombrio para o Direito Penal em geral e para o campo dos direitos fundamentais em particular. A avaliação é de advogados criminalistas e estudiosos do sistema penal brasileiro ao comentar o artigo publicado pelo advogado Márcio Thomaz Bastos na revista Consultor Jurídico, em que Bastos faz um “balanço crítico” das práticas penais neste ano no país. O advogado alertou para o recuo dos direitos fundamentais em razão de “uma vaga repressiva que embala a sociedade brasileira".
O artigo de Márcio Thomaz Bastos foi citado pela Folha de S. Paulo desta quarta-feira (26/12). AFolha destacou as observações do advogado quanto à prevalência do "sentimento de desprezo pelos direitos e garantias fundamentais" frente à logica de facilitação das condenações sob a justificativa de se fazer Justiça.
Para advogado criminalista Leônidas Scholz, conselheiro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e membro do Conselho de Prerrogativas da OAB-SP, o artigo publicado pela ConJur alerta para uma tendência preocupante nas práticas penais no Brasil. “Com ponderação e objetividade, o texto faz um alerta a respeito dessa inclinação para facilitar condenações”, avalia Scholz. “Tendência essa confirmada pela Suprema Corte do país. É grave”, lamenta.
O advogado Jair Jaloreto, especialista em crimes financeiros e de lavagem de dinheiro, também admite que, em 2012, foi consolidado o recuo de garantias fundamentais no campo da persecução penal. “Entendo que principalmente no julgamento da Ação Penal 470 [o processo do mensalão] houve uma relativização do princípio da presunção de inocência”, avaliou. "E penso que alguns julgadores, não só no STF, mas também em instâncias inferiores, se preocuparam demais com a opinião pública no desempenho da persecução penal, o que é muito perigoso”, disse.
Jaloreto também observou a dificuldade da opinião pública em diferenciar a figura do advogado da do seu cliente e de entender que o direito à defesa é intocável. “Houve episódios em que ocorreu a pré-condenação do advogado, como no caso do próprio Dr. Márcio Thomaz Bastos, atacado por assumir a defesa do Carlinhos Cachoeira”, recordou Jaloreto.
O professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) Filipe Schimidt Fialdini disse que o ano de 2012, encabeçado pelas condenações do julgamento do mensalão, foi marcado não só pelo enfraquecimento do direito de defesa, mas de outros princípios caros às garantias fundamentais. “Foram desconsiderados vários princípios, como a própria presunção de inocência e mesmo a ideia de contraditório, além de ter se dado maior valor a provas produzidas meramente em delegacias”, disse Fialdini.
“Foi um ano de populismos. Um ano em que se enfraqueceu o princípio da presunção de inocência em favor da ideia de se punir políticos e figurões. O Direito Penal, porém, não tem o papel de servir de veículo para enfraquecer garantias individuais”, observou. “O Direito Penal não serve para justificar atos de vingança, mas justamente também para assegurar os direitos individuais. Infelizmente, as pessoas não se dão conta disso até serem acusadas e julgadas. Não quero nem pensar como serão os próximos anos. Penso naquele juiz de primeiro grau que já seguia nessa direção, agora então endossado pelo Supremo Tribunal Federal, a situação ficou muito complicada”, disse Fialdini.
Tendência global“É um movimento mundial, não ocorre somente no Brasil”, observa o advogado e professor Luiz Flávio Gomes sobre o fenômeno do cerceamento do direito defesa em todo o mundo. Para Gomes, com o aumento da violência em nível global e em razão do decorrente cenário de complexidade em todo o mundo, que aumenta a sensação de insegurança e incerteza, a opinião pública passou a ansiar por “respostas imediatas” que, não raro, “atropelam as garantias fundamentais conquistadas pelo Estado de Direito”.
“[O artigo] faz um balanço equilibrado desse fenômeno. É feliz em sua síntese do preocupante quadro em que vivemos de crecescente cerceamento do direito de defesa. Tome como exemplo a decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos, que reconheceu que, na França, advogados são obrigados a delatar seus clientes caso suspeitem que ele estejam envolvidos com lavagem de dinheiro”, lembrou o professor.
Gomes lança em janeiro lança o livro “Populismo Penal Midiático”, pela editora Saraiva, que aborda justamente o cenário em que “juízes cedem cada vez mais frente ao atropelo de direitos e garantias”.
“No julgamento do mensalão, que foi um "telejulgamento, tivemos a figura do “telerrelator” e a do “telerrevisor”, que falavam diretamente à opinião pública. E essa influência da mídia é com frequência negativa”, avaliou. “O mundo jurídico tem que dar uma resposta a esse fenômreno sob pena de assistirmos a um grave recuo dos direitos fundamentais”, alertou. Gomes disse ainda que a tendência favorável às condenações pode ser verificada no fenômeno do "aumento das penas", muitas vezes discrepantes em relação ao crime julgado.
O artigo de Thomaz Bastos reconheceu que, este ano, o Direito Penal sofreu um retrocesso no sentido das teses que prevaleceram, na visão do advogado criminalista David Rechulski . “O princípio constitucional do in dubio pro reo, que prevalece em qualquer país civilizado, não pode ser relativizado ou fragilizado. Pois, à medida que isso acontece, ocorre a quebra da segurança jurídica. A pena que atinge a um inocente perturba de modo muito mais grave a ordem social do que a eventual não-responsabilização de alguém que tenha potencialmente cometido um crime”, disse Rechulski.
Para o advogado o princípio do in dubio pro reu não pode ser posto em segundo plano nem mesmo em relação ao “interesse da maioria”. “É um princípio sacrossanto do Direito Penal. Nada deve se sobrepor a ele”, postulou.

É preciso provar prejuízo com retenção de CTPS


A demora de uma empresa em devolver a carteira de trabalho de um candidato que desistiu do emprego durante os procedimentos contratuais não gerou indenização por danos morais a serem pagos ao trabalhador, porque ele não provou ter sofrido prejuízos com o atraso. Ao julgar o caso, a 5ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho mudou decisão da instância regional, que concedera a indenização ao autor.
O trabalhador se candidatou a uma vaga na função de repositor de mercadorias em um supermercado da DMA Distribuidora, em Linhares (ES), para ganhar R$ 621. Entregou seus documentos em 13 de maio de 2011 e, depois de fazer os exames admissionais, foi informado que deveria fazer um treinamento numa loja do supermercado em Vitória — situação que o faria arcar com as despesas de deslocamento, que seriam posteriormente ressarcidas.
Nesse meio tempo, segundo o autor, ele conseguiu uma melhor colocação de trabalho em uma empresa de construção civil, para ganhar R$ 800, sem precisar ter gastos, e necessitava apresentar documentação. Com isso, ele desistiu da vaga na DMA, solicitando-lhe a devolução da sua Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS).
Ele então foi informado que sua carteira tinha seguido para Belo Horizonte, onde é a sede da empresa, para as anotações de registro do contrato de trabalho. Por isso, de acordo com a empresa, houve demora na devolução da CTPS. O preposto da DMA confessou que a carteira somente voltou para Linhares em 11 de junho de 2011, um mês depois de sua entrega e mais de dez dias depois da desistência do emprego pelo autor.
Na verdade, a carteira só foi entregue em audiência na Vara do Trabalho de Linhares, em 21 de julho de 2011, após o trabalhador ajuizar reclamação trabalhista, em que pleiteou indenização por danos morais, pedido que foi julgado improcedente. O autor recorreu, então, ao Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região, que reformou a sentença. Para isso, o Tribunal Regional baseou-se no artigo 29 da Consolidação das Leis do Trabalho, que estipula prazo para devolução da CTPS, e na Constituição da República, que garante ao ofendido indenização em caso de dano moral.
Ao frisar a impossibilidade da retenção do documento pelo empregador, o TRT ressaltou que, ao reter a carteira, a DMA cerceou o direito do trabalhador de promover seu sustento de forma legalizada e reconhecida. Por essa razão, condenou a empresa a pagar indenização por danos morais de R$ 2 mil, com juros e correção monetária a partir da publicação do acórdão.
Por meio de recurso ao TST, a DMA alegou que o trabalhador não apresentou nenhuma prova do prejuízo sofrido em decorrência da retenção da CTPS. A empresa conseguiu comprovar divergência jurisprudencial, no caso, levando os ministros da 5ª Turma a examinar o mérito da questão.
No julgamento do caso, que aconteceu no último dia 11, o relator do recurso de revista, ministro Guilherme Augusto Caputo Bastos, enfatizou que o Tribunal Regional, com base em fatos e provas, registrou taxativamente que apesar do atraso na entrega da CTPS, o autor não comprovou qualquer prejuízo decorrente disso. E destacou que, em relação à argumentação do trabalhador, não havia comprovação de que ele perdeu uma colocação na construção civil, de salário mais elevado, por causa da demora na devolução da CTPS pela DMA.
Assim, com a constatação expressa no acórdão regional de que não foi comprovado o dano sofrido pelo autor nem o nexo causal, o ministro concluiu que a DMA "não está obrigada a reparar o dano". Os ministros da 5ª Turma, então, diante desse contexto, deram provimento ao recurso de revista da empresa para afastar a compensação por danos morais. Com informações da Assessoria de Imprensa do TST.
RR – 58700-89.2011.5.17.0161

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

EXAME DE DNA É INCONTESTÁVEL PARA ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL

“Diante dos princípios constitucionais da verdade real e da dignidade da pessoa humana, a insegurança nas relações de parentesco deve ceder diante do dano decorrente da permanência de registro meramente formal”. O entendimento é da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que decidiu não reformar a anulação de registro de paternidade.
Após assumir a paternidade do filho de uma mulher, o autor da ação ficou sabendo que não fora parceiro exclusivo dela durante o breve período em que se relacionaram. Duvidando da paternidade, resolveu fazer teste de DNA. Ficou comprovado que ele não era o pai. Houve, assim, o vício na declaração de vontade.
A desembargadora Claudia Telles, relatora do caso, asseverou que, “diante do resultado incontestável do exame genético, não se pode pretender impor ao apelado o dever de assistir pessoa reconhecidamente destituída da condição de filho, retirando-lhe o direito de negar a paternidade”.
Por não haver indícios de convivência entre as partes, ela afastou a alegação de paternidade sócio afetiva. A desembargadora entendeu que, “nesse contexto, imperioso concluir que o ato de reconhecimento de paternidade em questão é passível de anulação por vício de consentimento”.
Segundo ela, “certo é que a manutenção de um vínculo de paternidade a toda força impede a criança de conhecer seu verdadeiro estado de filiação, direito personalíssimo, nos termos do art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o que representa flagrante afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana”. Para a desembargadora, "ao se admitir a permanência do vínculo, conforme pretendido pelo recorrente, estar-se-ia, de forma transversa violando igualmente o princípio da dignidade da pessoa humana, retirando-lhe a oportunidade de perseguir sua origem biológica, direito igualmente assegurado pela Constituição da República”.
Clique aqui para ler a decisão

Menos que público, mais que privado: os direitos transindividuais na jurisprudência do STJ

Os interesses coletivos e difusos sempre estiveram presentes na vida em sociedade. Entretanto, conforme a realidade social foi se tornando mais complexa, principalmente por conta das mudanças surgidas após a Revolução Industrial – como o surgimento dos conflitos de massa –, os chamados “interesses ou direitos transindividuais” ficaram mais evidentes.

Segundo o professor Pedro Lenza, “em decorrência das novas relações que marcaram a sociedade do final do século XIX e durante todo o século XX, a tradicional dicotomia estanque, rigidamente bifurcada, representada pela divisão do direito em dois grandes ramos – público e privado – não mais consegue abarcar as novas relações advindas com as transformações vividas pela sociedade moderna” (Teoria Geral da Ação Civil Pública).

No Brasil, a proteção dos interesses transindividuais, relacionados ao meio ambiente, ao consumo e a outros bens e direitos, legitimou-se com a Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) e, posteriormente, foi ampliada pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90).

Ações

Tanto a ação civil pública, como a ação popular, são instrumentos para defesa de tais direitos. Entretanto, a primeira tem abrangência maior. Segundo o ministro João Otávio de Noronha, integrante da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o cabimento da ação civil pública não prejudica a propositura da ação popular, nos termos do caput do artigo 1º da Lei 7.347.

“Ambas convivem no sistema pátrio, diferindo-se, basicamente, quanto à legitimidade ativa, porquanto, quanto ao objeto, tutelam praticamente os mesmos interesses, sendo a popular apenas mais restrita que a civil pública”, mencionou o ministro no julgamento do Recurso Especial (REsp) 224.677.

Economia processual

De acordo com a ministra Nancy Andrighi, da Terceira Turma do STJ, “as ações coletivas surgiram com o intuito de racionalizar a atividade judiciária e promover a isonomia entre os jurisdicionados”.

O ministro Humberto Gomes de Barros (já falecido) compartilhava o mesmo entendimento. “As ações coletivas foram concebidas em homenagem ao princípio da economia processual. Com apenas uma decisão, o Poder Judiciário resolve controvérsia que demandaria uma infinidade de sentenças individuais. Isso faz o Judiciário mais ágil”, afirmou no julgamento do Mandado de Segurança 5.187.

Para o ministro, outra vantagem é que a substituição do indivíduo pela coletividade torna possível o acesso dos “marginais econômicos” à Justiça e, dessa forma, “o Poder Judiciário aproxima-se da democracia”.

Nem público nem privado

Os interesses transindividuais ou metaindividuais não são públicos, nem individuais ou privados, ou seja, fazem parte de uma terceira categoria. Pertencem a grupos de pessoas ligadas por vínculos fáticos ou jurídicos. Além disso, caracterizam-se pela transcendência sobre o indivíduo; têm natureza coletiva ampla e não se restringem a nenhum grupo, categoria ou classe.

De acordo com o Código de Defesa do Consumidor (CDC), abrangem os interesses difusos (de pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato), os coletivos (de pessoas determinadas – grupo, categoria ou classe – ligadas entre si, ou contra outras, por relações jurídicas) e os individuais homogêneos (de pessoas ligadas por um evento de origem comum).

Ao longo dos anos, o STJ resolveu várias demandas acerca das ações usadas na defesa dos interesses transindividuais, relacionadas a legitimidade, alcance, prazo prescricional, competência para julgamento, entre outros. Também firmou jurisprudência que orienta os operadores do direito sobre a interpretação mais justa para a defesa desses interesses. Confira alguns casos.

Legitimidade
“O Ministério Público ostenta legitimidade para a propositura de ação civil pública em defesa de direitos transindividuais”, afirmou o ministro Luiz Fux no julgamento do REsp 1.010.130.

Em 2003, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) ajuizou ação civil pública contra uma concessionária de energia elétrica, para que a empresa fosse obrigada a emitir faturas com dois códigos de barra, correspondentes aos valores da conta de energia e da contribuição de iluminação pública.

Para o juízo de primeiro grau, a matéria era de ordem tributária e, por essa razão, não poderia ser discutida em ação civil pública. Na apelação, o MPMG sustentou que a pretensão tinha natureza consumerista e não tributária.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) deu provimento ao recurso, pois reconheceu o direito do contribuinte de optar pelo pagamento dos valores de forma unificada ou individual. No recurso especial, a companhia afirmou que o MPMG não teria legitimidade para a propositura da ação.

Esfera individual

Segundo o ministro Luiz Fux, relator do recurso especial, as ações relacionadas a interesses individuais homogêneos, como a do caso específico, participam da ideologia das ações difusas.

“A despersonalização desses interesses está na medida em que o Ministério Público não veicula pretensão pertencente a quem quer que seja individualmente, mas pretensão de natureza genérica, que, por via de prejudicialidade, resta por influir nas esferas individuais”, explicou Fux.

Para o ministro, o simples fato de o direito ser supraindividual, já o torna indisponível, o que é suficiente para legitimar o Ministério Público para o ajuizamento da ação.

No julgamento do REsp 1.264.116, a Segunda Turma do STJ reconheceu a legitimidade da Defensoria Pública para ajuizamento de ação civil pública em defesa de interesses individuais homogêneos. De acordo com o ministro Herman Benjamin, relator do recurso especial, cabe ao órgão a proteção de qualquer interesse individual homogêneo, principalmente aqueles associados aos direitos fundamentais.

“Sua legitimidade ad causam [para a causa] não se guia, no essencial, pelas características ou perfil do objeto de tutela (critério objetivo), mas pela natureza ou status dos sujeitos protegidos, os necessitados (critério subjetivo)”, afirmou.

Edital

Na origem, a Defensoria Pública moveu ação civil pública contra regra de edital de processo seletivo da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), que previa, como condição para a inscrição de interessados, a participação no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), além de exigir nota média mínima.

Em primeira instância, o juízo afirmou que, ao contrário do que ocorre nas ações individuais, nas quais a Defensoria pode atuar em todas as áreas, desde que a parte seja hipossuficiente, o órgão teria legitimidade para propor ação civil pública somente para proteção do consumidor, da criança e do adolescente.

“Nos termos do artigo 1º da LACP, a ação civil pública destina-se exclusivamente à proteção de interesses difusos e coletivos, mas não de individuais homogêneos”, disse a magistrada.

Direito à educação

Segundo o ministro Herman Benjamin, “o direito à educação, responsabilidade do estado e da família, é garantia de natureza universal e de resultado, orientada ao ‘pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade’, daí não poder sofrer limitação no plano do exercício, nem da implementação administrativa ou judicial”.

Para o relator, seria incompatível com a missão “tão nobre e indeclinável” do direito à educação interpretar as normas que o asseguram de maneira restritiva. Além disso, ele lembrou que é sólida a jurisprudência do STJ que admite a proteção dos interesses individuais homogêneos pelos legitimados para a propositura da ação civil pública.

Energia elétrica
De acordo com o artigo 82, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor, além do MP, a União, os estados, os municípios e o Distrito Federal, as entidades e órgãos da administração pública direta e indireta e as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano têm legitimidade para a defesa dos interesses transindividuais dos consumidores.

No julgamento do REsp 1.002.813, a Terceira Turma do STJ entendeu que o dispositivo mencionado “deve sempre receber interpretação extensiva, sistemática e teleológica, de modo a conferir eficácia ao preceito constitucional que impõe ao estado o ônus de promover, na forma da lei, a defesa do consumidor”.

No caso julgado, a Comissão de Defesa do Consumidor da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro ajuizou ação civil pública contra uma concessionária de energia elétrica, que pretendia substituir os antigos relógios, tradicionais medidores de energia, por medidores eletrônicos (chips).

Personalidade jurídica

O juízo de primeiro grau extinguiu o processo, considerando a ilegitimidade ativa da comissão para a propositura da ação civil pública. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro também negou provimento à apelação.

Segundo a ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso especial no STJ, “no que concerne à defesa dos interesses transindividuais, o critério para a aferição da legitimidade do agente público não deve ser limitado à exigência de personalidade jurídica ou mesmo ao rigorismo formal que reclama destinação específica do órgão público para a defesa dos interesses tutelados pelo CDC”.

Alcance

Em dezembro de 2011, a Corte Especial do STJ discutiu acerca do alcance dos efeitos da sentença coletiva. No REsp 1.243.887, o ministro Luis Felipe Salomão afirmou que “os efeitos e a eficácia da sentença não estão circunscritos a lindes geográficos, mas aos limites objetivos e subjetivos do que foi decidido, levando-se em conta, para tanto, sempre a extensão do dano e a qualidade dos interesses metaindividuais postos em juízo”.

A sentença proferida na ação civil pública ajuizada pela Associação Paranaense de Defesa do Consumidor (Apadeco) condenou o Banco Banestado ao pagamento de expurgos inflacionários sobre cadernetas de poupança de todos os poupadores do estado do Paraná que tinham contas em cadernetas de poupança na instituição financeira, entre junho de 1987 e janeiro de 1989.

Em razão da decisão, um dos clientes ajuizou execução individual na comarca de Londrina (PR) para receber a satisfação do que foi decidido na ação coletiva.

Limites territoriais

O Banestado interpôs recurso especial contra o cliente, no qual sustentou que os limites territoriais da sentença não poderiam ser todo o território do Paraná, mas somente o território de competência do órgão prolator da decisão, ou seja, a comarca de Curitiba.

Ao analisar o recurso, a Corte Especial entendeu que o alcance determinado pelo magistrado de primeiro grau não poderia ser alterado em execução individual, “sob pena de vulneração da coisa julgada”.

“A limitação contida no artigo 2º-A, caput, da Lei 9.494/97, de que a sentença proferida ‘abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator’, evidentemente não pode ser aplicada aos casos em que a ação coletiva foi ajuizada antes da entrada em vigor do mencionado dispositivo, sob pena de perda retroativa do direito de ação das associações”, afirmou Salomão.

Prazo prescricional

“A ação civil pública e a ação popular compõem um microssistema de tutela dos direitos difusos, por isso que, não havendo previsão de prazo prescricional para a propositura da ação civil pública, recomenda-se a aplicação, por analogia, do prazo quinquenal previsto no artigo 21 da Lei 4.717/1965.” Esse foi o entendimento da Quarta Turma no julgamento do REsp 1.070.896.

Na origem, o Instituto Brasileiro de Defesa do Cidadão (IBDCI) ajuizou ação civil pública contra o Banco do Brasil, visando o pagamento, aos poupadores com conta na instituição financeira, das diferenças decorrentes dos denominados “expurgos inflacionários” referentes aos Planos Bresser e Verão (planos econômicos que geraram grandes desajustes às cadernetas de poupança).

Em primeira instância, o juízo julgou os pedidos improcedentes, sob o fundamento de que a demanda estaria fundada apenas no CDC, “que não se aplica aos contratos celebrados anteriormente à sua vigência”.

Cinco anos

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina negou provimento aos recursos, mas por fundamento diferente. Aplicou o prazo prescricional de cinco anos para o ajuizamento da ação civil pública.

No recurso especial interposto no STJ, o Ministério Público de Santa Catarina pretendia que fosse reconhecido o prazo de 20 anos, em razão da ausência de previsão específica quanto ao prazo prescricional na Lei 7.347.

Segundo o ministro Luis Felipe Salomão, relator do recurso especial, “ainda que o artigo 7º do CDC preveja a abertura do microssistema para outras normas que dispõem sobre a defesa dos direitos dos consumidores, a regra existente fora do sistema, que tem caráter meramente geral e vai de encontro ao regido especificamente na legislação consumerista, não afasta o prazo prescricional estabelecido no artigo 27 do CDC [cinco anos]”.

Competência
Em dezembro de 2011, a primeira Seção do STJ analisou conflito de competência para o julgamento de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público de Alagoas (MPAL) contra o Partido Socialista Brasileiro (CC 113.433).

O MPAL pretendia que o partido político parasse de degradar o meio ambiente com pichações ou qualquer tipo de pintura nas edificações, muros ou monumentos urbanos.

O juízo comum entendeu pela sua incompetência para o julgamento da ação civil pública, pois, para ele, como a matéria tinha relação com propaganda política, cabia à atuação da Justiça Eleitoral. Entretanto, o juízo eleitoral suscitou o conflito e remeteu o processo ao Tribunal Regional Eleitoral, que o encaminhou ao STJ.

Natureza difusa

De acordo com o ministro Arnaldo Esteves Lima, relator do conflito de competência, a Justiça Eleitoral não tem competência para o julgamento da ação civil pública, uma vez que não estaria em discussão nenhuma matéria relacionada a direitos políticos, inelegibilidade, sufrágio, partidos políticos, normas eleitorais e processo eleitoral.

“A pretensão ministerial na ação civil pública, voltada à tutela do meio ambiente, direito transindividual de natureza difusa, consiste em obrigação de fazer e não fazer e, apesar de dirigida a partidos políticos, demanda uma observância de conduta que extravasa período eleitoral, apesar da maior incidência nessa época, bem como não constitui aspecto inerente ao processo eleitoral”, afirmou o relator.

“Vigiar e punir” ou “participar e defender”?

A importância da advocacia criminal é diretamente proporcional à tendência repressiva do Estado. Nunca o esforço do advogado criminalista foi tão importante como agora. É o que nos revela o balanço crítico dos acontecimentos que marcaram a vida do Direito Penal, neste ano que passou.
Desde que a democracia suplantou o regime de exceção, em nenhum momento se exigiu tanto das pessoas que, no cumprimento de um dever de ofício, dão voz ao nosso direito de defesa. Mas é na firmeza da atuação profissional desses defensores públicos e privados que a Constituição deposita a esperança de realização do ideal de uma liberdade efetivamente igual para todos.
Se em 2012 acentuou-se a tendência de vigiar e punir, o ano que se descortina convida a comunidade jurídica a participar do debate público e a defender, com redobrada energia, os fundamentos humanos do Estado de Direito. O advogado criminalista é, antes de tudo, um cidadão. Agora é convocado a exercer ativamente a sua cidadania para evitar uma degeneração autoritária de nossas práticas penais, para além da luta cotidiana no processo judicial.
Não é de hoje que o direito de defesa vem sendo arrastado pela vaga repressiva que embala a sociedade brasileira. À sombra da legítima expectativa republicana de responsabilização, viceja um sentimento de desprezo pelos direitos e garantias fundamentais. O “slogan” do combate à impunidade a qualquer custo, quando exaltado pelo clamor de uma opinião popular que não conhece nuances, chega a agredir até mesmo o legítimo exercício da “liberdade de defender a liberdade”, função precípua do advogado criminalista.
O papel social dos advogados, que a Constituição julga indispensável, vem sendo esquecido. Não é raro vê-los atacados no legítimo exercício de sua profissão. Uns têm a palavra cassada pela intolerância à divergência inerente à dialética processual. Outros são ameaçados injustamente de prisão, pela força que não consegue se justificar pela inteligência das razões jurídicas. Nada disso é estranho à prática da advocacia.
Ocorre que, em 2012, a tendência repressiva passou dos limites. Ameaças ao exercício da advocacia levaram ao extremo a “incompreensão” sobre o seu papel social numa sociedade democrática. Alguns episódios dos últimos meses desafiaram os mais caros postulados da defesa criminal. Refletir sobre as águas turbulentas que passaram é fundamental para orientar a ação jurídica e política que tomará corpo no caudal do ano que vem - em prol da moderação dos excessos de regulação jurídica da vida social.
Um desses diabólicos redemoinhos nos surpreendeu em agosto, com a pretendida supressão do habeas corpus substitutivo. A Primeira Turma do STF considerou inadequado empregar a mais nobre ação constitucional em lugar do recurso ordinário. O precedente repercutiu de imediato nos tribunais inferiores, marcando um perigoso ponto de inflexão na nossa jurisprudência mais tradicional.
Nenhum dos argumentos apresentados mostrou-se apto a restringir o alcance desse instrumento fundamental de proteção da liberdade. Ao contrário, revelaram uma finalidade pragmática de limpeza de prateleiras dos tribunais. A guinada subordinou a proteção da liberdade a critérios utilitários, como se conveniências administrativas pudessem se sobrepor às rigorosas exigências de garantia do direito fundamental.
O habeas corpus foi forjado em décadas de experiência na contenção de abusos de poder. A Constituição indicou que sua aplicação é ampla, abolindo as restrições outrora impostas pelo regime de exceção. Abriu caminho para que a jurisprudência reafirmasse a primazia do valor da liberdade.
O posicionamento dominante na época do regime autocrático, todavia, ressurge nos dias de hoje. Em pleno vigor da democracia, o retrocesso aparece sob o singelo pretexto de desafogar tribunais.
Porém, a abolição do habeas substitutivo dificultará a reparação do constrangimento ilegal. Hoje, não são poucas as ordens de libertação concedidas pelo Supremo, evidenciando a grande quantidade de ilegalidades praticadas e não corrigidas. Por isso, a sua supressão perpetuará inúmeros abusos.
O recurso ordinário, embora previsto constitucionalmente, não é tão eficaz como o habeas para coibir o excesso de poder. A começar por suas formalidades, que são muito mais burocráticas se comparadas às do remédio constitucional. Convém não esquecer que a utilização deste como via alternativa para reparação urgente de situações excepcionais foi fruto de uma necessidade do cidadão, ao contrário da sua pretendida eliminação.
A recente modificação da Lei de Lavagem de Dinheiro também abriu um novo flanco para os abusos. O texto impreciso expõe o legítimo exercício profissional a interpretações excessivas. Por trás da séria discussão sobre os deveres profissionais na prevenção da lavagem de dinheiro, esconde-se muitas vezes a vontade de arranhar o direito de defesa dos acusados.
Há quem acuse o advogado de cometer um ilícito, quando aceita honorários de alguém que responde a processo por suposto enriquecimento criminoso. O claro intuito desse arbítrio é evitar que os réus escolham livremente seus advogados. Restringe-se a amplitude da defesa atacando os profissionais que, “por presunção de culpabilidade”, recebem “honorários maculados”, mesmo que prestem serviços públicos e efetivos.
Em afronta à própria essência da advocacia e em violação ao sigilo profissional e à presunção de inocência, acaba-se criando uma verdadeira sociedade de lobos, na qual todos desconfiam de todos. Para alguns, o advogado deveria julgar e condenar seus próprios clientes. Diante de qualquer atividade “suspeita”, deveria delatá-los, sob pena de participar ele mesmo do crime de lavagem de dinheiro supostamente praticado por quem procurou o seu indispensável auxílio profissional.
Convém lembrar que o advogado atende e defende com lealdade quem lhe confia a responsabilidade de funcionar como o porta-voz de seu legítimo interesse. Não deve emitir, ou mesmo considerar, sua própria opinião sobre a conduta examinada, mantendo um distanciamento crítico em relação ao relato que lhe é apresentado.
Atentos à criminalidade que se sofistica para dar aparência de licitude a recursos obtidos de forma criminosa, nunca fomos contrários à discussão sobre ajustes nos deveres profissionais de algumas atividades reguladas. Contudo, a nova situação não pode servir de desculpa para proliferação de um dever geral de delação ou para devassar conteúdos legitimamente protegidos pelo sigilo profissional.
A advocacia criminal pauta-se pela confiança que o cliente deposita no seu defensor, colocando em suas mãos o bem que lhe é mais caro: sua própria liberdade.
Outro desafio contemporâneo à advocacia é a confusão entre o advogado e seu cliente. O preconceito é tão antigo quanto a nossa profissão. O que muda é o grau de consciência social que uma determinada época tem a respeito do valor do devido processo legal. No início do ano, ao defender um de meus clientes, sofri essa odiosa discriminação.
Na ditadura, os defensores da liberdade corríamos riscos e perigos pessoais ao questionar o valor jurídico dos atos de exceção. Na vigência do regime democrático, o pensamento autoritário encontrou na velha confusão entre advogado e cliente um meio de suprimir a liberdade com a qual ainda não se acostumou a conviver. A ignorância e a má-fé sugerem que ou o advogado defende um réu inocente ou ele é cúmplice do suposto criminoso.
Nada mais impróprio. A culpa só pode ser firmada depois do devido processo legal. Nunca antes. É um retrocesso colocar em questão esse dogma do Direito conquistado pela modernidade. Enquanto a confusão persistir, devemos repetir sem descanso que o advogado fala ao lado e em nome do réu num processo penal, zelando para que seja tratado como um ser humano digno de seus direitos constitucionais.
A Reforma do Código Penal também é sintomática dessa tendência repressiva. Elaborada por notáveis juristas e enviada em junho para o Congresso, importa conceitos do direito estrangeiro, sem a necessária adaptação à nossa realidade jurídica. Outros institutos essenciais, como o livramento condicional, são suprimidos. Além disso, eleva as penas corporais para diversos delitos e deixa passar a oportunidade de corrigir falhas técnicas já de todos conhecidas.
Outro sinal dos tempos é a inovação da jurisprudência superior na interpretação de alguns tipos penais, bem como a mudança de postulados do Processo Penal. Assistimos a um retrocesso de décadas de sedimentação de um Direito Penal mais atento aos direitos e garantias individuais. Quando se trata de protegê-los, não pode haver hesitações. Rompidos os tradicionais diques de contenção, remanesce o problema de como prevenir o abuso do “guarda da esquina”, como diria um velho político mineiro, às voltas com histórico desvio de rota na direção da repressão sem freios.
Também notamos uma tendência a tornar relativo o valor da prova necessária à condenação criminal, neste ano “bastante atípico”. Quando juízes se deixam influenciar pela “presunção de culpabilidade”, são tentados a aceitar apenas “indícios”, no lugar de prova concreta produzida sob contraditório. Como se coubesse à defesa provar a inocência do réu! A disciplina da persecução penal não pode ser colonizada por uma lógica estranha, simplesmente para facilitar condenações, nesse momento de reforço da autoridade estatal, sem contrapartida no aperfeiçoamento dos mecanismos que controlam o seu abuso.
A tendência à inversão do ônus da prova no processo penal também coloca em questão a tradicional ideia do “in dubio pro reo”, diante da proliferação de “presunções objetivas de autoria”. Tampouco a dosimetria da pena pode ser uma “conta de chegada”.
Quanto mais excepcionais os meios, menos legítimos os fins alcançados pela persecução inspirada pelo ideal jacobino da “salvação nacional”. Tempos modernos são esses em que nós vivemos. Em vez de apontar para o futuro, retrocedem nas conquistas civilizatórias do Estado Democrático de Direito.
Nesses momentos tormentosos, é saudável revisitar os cânones da nossa profissão. Como ensinava Rui Barbosa, se o réu tiver uma migalha de direito, o advogado tem o dever profissional de buscá-la. Independentemente do seu juízo pessoal ou da opinião publicada, e com abertura e tolerância para quem o consulta. Sobretudo nas causas impopulares, quando o escritório de advocacia é o último recesso da presunção de inocência.
É necessário reafirmar os princípios que norteiam o Direito Penal e lembrar, sempre que possível, que a liberdade do advogado é condição necessária da defesa da liberdade em geral. A advocacia criminal, desafiada pela ânsia repressiva, deve responder com firmeza. Alguns meios de resgatar o papel que cumpre na efetivação da justiça estão ao alcance da sua própria mão.
O primeiro passo deve ser investir num esforço pedagógico de esclarecimento social acerca da relevância do papel constitucional do advogado criminalista. Ele não luta pela impunidade. Também desejamos, enquanto membros da sociedade, a evolução das instituições que tornam possível uma boa vida em comum. Somos defensores de direitos fundamentais do ser humano, em uma de suas mais sensíveis dimensões existenciais: a liberdade de dar a si mesmo a sua regra de conduta.
Cabe a nós zelar pelas garantias dos acusados e pela observância dos princípios básicos do Direito Penal do Estado Democrático de Direito, contra as tentações do regime excepcional que não deve ser aplicado nem mesmo aos “inimigos na nação”.
É nosso dever de ofício acompanhar a repercussão do julgamento que pretendeu abolir o habeas corpus substitutivo, manifestando-nos sempre que possível para demonstrar os prejuízos desse regresso pretoriano. A fim de restabelecer o prestígio da ação constitucional, também se faz necessária a continuidade de seu manejo perante todos os tribunais.
Especificamente com relação às distorções que uma interpretação canhestra da nova lei de Lavagem de Dinheiro pode instituir, é importante registrar que a imposição do “dever de comunicar” não pode transformar os advogados em delatores a serviço da ineficiência dos meios estatais de repressão. É contrário à dignidade profissional ver no advogado um vulgar alcaguete.
É evidente que essa condição não torna a advocacia um porto seguro para práticas de lavagem de dinheiro, nem assegura a impunidade profissional. Apenas permite o livre exercício de uma profissão essencial à Justiça.
Deve ser louvada a recente decisão do Conselho Federal da OAB, segundo a qual “os advogados e as sociedades de advocacia não têm o dever de divulgar dados sigilosos de seus clientes que lhe foram entregues no exercício profissional”. Tais imposições colidem com normas que protegem o sigilo profissional, quando utilizado como instrumento legítimo indispensável à realização do direito de defesa.
Ainda assim se faz necessário o constante aprimoramento das regras éticas de conduta profissional. Em paralelo, sugere-se a formulação de códigos internos aos próprios escritórios de advocacia, com orientações, ainda que provisórias, acerca dessas boas práticas, no intuito de resguardar os advogados que se vêm diante da indeterminada abrangência da nova lei repressiva.
Esses “manuais de boas práticas” devem ser elaborados com vistas também a regulamentar uma nova advocacia criminal que hoje se apresenta. A consultoria vem ganhando espaço cada vez maior na área penal, em razão do recrudescimento das leis penais, seja pela proliferação de regras de compliance que regulam a atividade econômica. Para que haja segurança também na prestação desse serviço, é imprescindível uma regulamentação específica.
“Participar e defender”, em 2013, é a melhor maneira de responder aos desafios lançados pelo espírito vigilante e punitivo exacerbado no ano que passou. É renovar, como projeto, a aposta na democracia e na emancipação, contra as pretensões mal dissimuladas de regulação autoritária da vida social.
A repressão pura e simples não é suficiente para dar conta do problema da criminalidade. Embora a efetiva aplicação da lei ajude a aplacar o sentimento de insegurança, o Direito Penal não deve ser a principal política pública.
Outras linhas de atuação política devem ser prestigiadas. Pode-se pensar no controle social sobre o Estado, por meio do aprofundamento das políticas de transparência. Elas ganharam novo impulso com a promulgação de uma boa Lei de Acesso à Informação, que está longe de realizar todas as suas potencialidades de transformação criativa.
A prestação de contas de campanha em tempo real foi um avanço inegável. Uma medida discreta, mas eficaz, entre outras que podem ajudar a prevenir o espetáculo do julgamento penal.
Deve-se mencionar também a necessidade mais premente e inadiável de nossa democracia: a reforma política, com ênfase no financiamento público das campanhas eleitorais.
Enquanto o habeas ainda resiste, não podemos deixar de aperfeiçoar mecanismos de controle de abusos de autoridade. A esfera da privacidade e da intimidade das pessoas também carece de maior proteção jurídica.
Nossos servidores públicos ainda esperam um sistema de incentivos na carreira que recompense o maior esforço em favor dos interesses dos cidadãos.
A simplificação de procedimentos administrativos e tributários, ao diminuir as brechas de poder autocrático, pode desarrumar os lugares propícios à ocorrência da corrupção que nelas se infiltra.
É legítimo travar com a sociedade um debate aberto sobre os meios para a plena realização do pluralismo de ideias e opiniões.
Enfim, a educação para a cidadania, numa democracia segura dos valores da cultura republicana, é tema que deve ocupar mais espaço na agenda política de um país que não quer viver apenas sob a peia da lei punitiva.
Na encruzilhada em que se encontra o Direito Penal brasileiro, os desafios lançados pelo ano que passou só tornam mais estimulante a nobre aventura da advocacia criminal. A participação democrática e a defesa dos direitos humanos continuam apontando a melhor direção a seguir. As dificuldades de 2012 só enaltecem a responsabilidade do advogado, renovando suas energias para enfrentar as lutas que estão por vir.
Como anotou um prisioneiro ilustre, a inteligência até pode ser pessimista, mas continuamos otimistas na vontade de viver um ano mais compassivo.

domingo, 23 de dezembro de 2012

A morosidade do Poder Judiciário afeta a todos

O ano de 2012 foi bastante movimentado para a defesa da concorrência, sobretudo face à implementação de uma lei nova que mudou totalmente alguns pontos, e no tocante ao controle dos atos de concentração. Apesar do noticiário ter sido abundante, cumpre lembrar que saímos de um sistema de controle posterior dos atos para o sistema adotado em quase todo o mundo, ou seja, de controle prévio. Isto significa, para começar, que os atos devem antes ser aprovados para depois ser implementados. Fica claro que isto inverte o incentivo: antes o ato era apresentado e a pressa de aprová-lo devia ser da autoridade, sendo que agora a pressa e a iniciativa devem ser das partes interessadas. Há também uma outra importante e curiosa consequência: as restrições antes eram, na sua maioria, comportamentais — isto é, a aprovação era condicionada a determinadas obrigações de fazer ou não fazer, de verificação normalmente muito complicada — e atualmente são, na sua maioria, estruturais (por exemplo, obrigação de vender determinada área da empresa resultante de fusão, com o objetivo de evitar danos à concorrência).
Um dos receios da comunidade era o prazo excessivo que a autoridade tem para aprovar ou rejeitar um ato de concentração: 330 dias, sem especificação de prazos menores para casos simples ou de fácil solução. O primeiro teste da agência, todavia, no sentido da celeridade e da resposta ágil para a comunidade foi satisfeito e as aprovações têm ocorrido em tempo economicamente viável.
O que virá?
Mas 2013 pode nos levar a novos caminhos, apesar da comunidade estar confiante na manutenção da boa velocidade de solução dos casos mais simples.
Condutas (Cartéis e outras)
É no campo das condutas que queremos dar mais atenção nesta brevíssima análise cujo foco é prospectivo, sempre tendo em vista os pontos que podem se tornar problemáticos.
Prova e seu ônus
Com efeito, há alguns pontos que precisam de atenção das autoridades, como, para começar, o tratamento das provas e de seu ônus. Declarações que às vezes são vistas no sentido de que as partes acusadas devem provar que não tiveram as condutas a elas imputadas não são mais aceitáveis, até porque não se pode imputar ônus de prova negativa, considerada “prova diabólica”, que fere o devido processo legal. É preciso, assim, muita atenção para a produção da prova.
Testemunhas
Outro ponto que merece atenção é a obrigação criada pela lei de apresentar os nomes das testemunhas de defesa quando da apresentação da mesma. Há aqui uma extraordinária diferença de tratamento entre acusação e defesa, pois a acusação poderá inovar em sua prova sem que a defesa possa apresentar testemunhas posteriores para contrariar o que a acusação tiver apresentado. Isso certamente será objeto de grandes disputas judiciais, até porque existe aí uma possível violação constitucional.
Prova emprestada
Também é importante compreender melhor o mecanismo da chamada prova emprestada, pelo qual a prova produzida em um processo só pode ser aproveitada em outro processo se as mesmas partes estão nos dois processos, sendo claro que uma prova não pode ser usada contra a parte que não participou — ou teve a oportunidade de participar — de sua produção.
Multas
A imposição de multa, levando em conta uma tabela de atividades econômicas — conforme resolução emitida pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica —, também precisa ser esclarecida, sob o risco de levar a enormes distorções. As autoridades entendem que o percentual (máximo de 20%) não deve ser aplicado sobre o faturamento do infrator no mercado em que se deu a infração, mas sim sobre o faturamento do infrator no mercado mais geral (descrito pela mencionada resolução como área de atuação) dentro do qual o mercado relevante em questão está inserido. Pode ocorrer que a multa seja mais elevada do que todo o faturamento de vários anos do infrator no mercado em que se deu a infração. Neste caso, até a vedação constitucional da expropriação pode ser invocada.
Outra questão importante no que se refere a multas é a dosimetria, para a qual não existe uma regra palpável. As multas mais recentes aplicadas pelo Cade levaram seus valores aos limites; na ocasião, o máximo era de 30% do faturamento no ano anterior ao da abertura do processo — ou seja, o máximo permitido pela lei —, tudo corrigido monetariamente. Hoje temos limite mais baixo, que vai de 0,1 a 20% da área de atuação dos infratores.
Quando todos entendiam que a área de atuação era o mercado em que se dava a infração, o Cade emitiu uma Resolução definindo áreas de atividade que podem levar a enormes distorções. Assim, para citar mera hipótese, se uma indústria de bebidas — cervejas e refrigerantes — cometer uma infração no que diz respeito a um produto de poucas vendas (por exemplo água tônica), a multa ocorrerá sobre todo o seu faturamento em todos os refrigerantes e todas as cervejas produzidas no ano em questão. De fato, a água tônica é classificada, na referida resolução, como “fabricação de bebidas alcoólicas e não alcoólicas”. É preciso entender que aí existe uma enorme discrepância entre a infração e a punição; é mais ou menos como condenar alguém a 30 anos de prisão por ter furtado uma única batata.
Poder Judiciário
E finalmente, entre as questões que nos devem preocupar no ano de 2012 está a questão do Poder Judiciário. Como a Constituição Federal prevê que qualquer ato da Administração por ser levado ao Poder Judiciário, assim também ocorre com as decisões proferidas pelo Cade. Todavia, não existem Varas especializadas em matéria concorrencial, sendo que os tribunais têm a faculdade de criá-las.
Também não dispositivos — como na França — que permitam que os processos sejam revisados apenas pelas segundas Instâncias dos Tribunais, o que faz com que qualquer revisão tenha de ser feita desde a primeira instância, na prática repetindo-se a instrução feita na esfera administrativa. Isso não pode ser alterado.
Obviamente temos também a bem conhecida morosidade do Poder Judiciário, mas isso é algo que afeta a todos.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Decisão de Barbosa reforça jurisprudência do Supremo

o rejeitar o pedido de execução imediata da pena dos 25 réus condenados na Ação Penal 470, o processo do mensalão, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, reforçou a jurisprudência da corte, segundo a qual ninguém deverá ser preso enquanto houver a possibilidade de recurso para discutir a condenação. Salvo, claro, em casos excepcionais.
O presidente do STF citou expressamente a decisão tomada pelo plenário do tribunal em 5 de fevereiro de 2009, no Habeas Corpus 84.078. A decisão, por sete votos a quatro, pacificou o entendimento de que condenados só podem ser presos depois do trânsito em julgado da condenação. O fundamento da maioria dos ministros foi o inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal, que estabelece o princípio da presunção de inocência.
No julgamento de 2009, o ministro Joaquim Barbosa foi vencido, ao lado do ministro Menezes Direito e das ministras Ellen Gracie e Cármen Lúcia. Barbosa defendeu, à época, que é “viável a execução da pena privativa de liberdade depois de esgotadas as duas instâncias ordinárias de jurisdição”. Segundo seu voto, “decisões proferidas pelo juízo de primeiro e/ou segundo graus de jurisdição, no sentido da condenação do réu, devem ser respeitadas e levadas a sério, pois os órgãos judiciários prolatores de decisões de mérito são presumidamente idôneos para o ofício que lhes compete exercer”.
O atual presidente também sustentou que o Supremo deveria admitir a possibilidade “da execução provisória da pena privativa de liberdade, contra a qual estejam pendentes de julgamento, apenas, os recursos excepcionais”. Em sua decisão monocrática desta sexta-feira (21/12), o ministro lembrou o fato, mas seguiu a orientação fixada pelo Supremo.
Para o decano do Supremo, ministro Celso de Mello, a decisão de Barbosa “foi correta e adequada aos padrões da jurisprudência do STF”. No caso, a decretação da execução antecipada ou a prisão preventiva seriam mais problemáticas levando em conta que há parlamentares condenados.
“A Constituição Federal estabelece que deputados e senadores só podem ser presos em flagrante delito ou na prática de crime inafiançável. Não cabe prisão preventiva contra parlamentar", explica o ministro. Celso de Mello diz que "não esperava outra decisão" e que Barbosa "agiu de maneira correta".
A decisão de Joaquim Barbosa também foi elogiada pelo ministro Marco Aurélio: “Reforça o princípio da não culpabilidade, que vale também para o Supremo. A Constituição submete a todos, inclusive ao Supremo, seu guardião maior. Não há ainda o acórdão confeccionado e não me parecia haver motivos para a preventiva. Logo, seria uma execução açodada, temporã e, portanto, precoce da pena. Com a decisão, se reafirmou a jurisprudência do Supremo”.
Marco Aurélio também disse ter ficado “surpreso” com o pedido feito pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel. “Na segunda-feira, o ministro Celso de Mello tentou discutir a execução antecipada e o procurador-geral disse que precisaria pensar mais. Aí, na quarta-feira apresenta o pedido”, observou. Para o ministro, a decisão de Barbosa homenageia a máxima de que “os meios justificam os fins, e não os fins justificam os meios”.
Apesar de criticar o julgamento do processo do mensalão, o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, que defende ex-dirigente do Banco Rural José Roberto Salgado, também elogiou a decisão:“Em um processo tão cheio de equívocos e peculiaridades, essa é uma decisão proferida em consonância com os princípios do direito penal e a jurisprudência da Suprema Corte”.
Possibilidade de recurso
Advogados afirmam que o ministro Joaquim Barbosa decidiu com coerência em relação ao seu posicionamento no HC 84.078, que prestigiou o princípio da presunção de inocência. Isso porque, na ocasião, Barbosa disse que a pena poderia ser executada quando estivessem pendentes de julgamento apenas os recursos excepcionais.
No caso da Ação Penal 470, o Supremo é a única instância ordinária, e somente depois de esgotada a jurisdição do próprio Supremo se poderia cogitar de aplicar a tese da execução antecipada. Na decisão desta sexta, Barbosa observou que ainda há a possibilidade de recursos no processo do mensalão.
O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, defendeu que, por se tratar de decisão do Supremo, não caberia mais discussão na causa. Gurgel defendeu que os chamados embargos infringentes não são cabíveis no processo. Por isso, a decisão teria o caráter de “definitividade”, mesmo sem a publicação do acórdão. “Quando exercida em única instância, a jurisdição do Supremo Tribunal Federal prescinde do trânsito em julgado para que a sua decisão possa ser considerada definitiva”, sustentou o procurador-geral da República.
Joaquim Barbosa rejeitou o argumento. “A questão relativa ao cabimento ou não de embargos infringentes em caso de condenação criminal em que há, no mínimo, quatro votos absolutórios ainda vai ser enfrentada pelo Pleno desta corte, não se podendo, por ora, concluir pela inadmissibilidade desse recurso”, afirmou o presidente do Supremo.
O ministro também disse que aliado a isso, os chamados efeitos infringentes dos embargos de declaração são, ao menos em tese, possíveis de ocorrer. Assim, podem levar à modificação da decisão. Esse fato, para Barbosa, “afasta a conclusão de que o acórdão condenatório proferido pelo Supremo Tribunal Federal em única instância seria definitivo”. Trocando em miúdos, ainda cabe recurso. Logo, a execução da pena não pode ser antecipada.
Clique aqui para ler a decisão de Joaquim Barbosa na AP 470.
Clique aqui para ler o pedido da PGR na AP 470.
Clique aqui para ler o acórdão do HC 84.078.


por  Rodrigo Haidar
 

Tribunal do Júri É preciso garantir a atenção dos jurados na hora certa

Jurados podem ficar "presos" fisicamente durante horas em um julgamento. Mentalmente, é outra história. Quando menos se espera, pensamentos saem do tribunal sem sequer pedir licença. Vão e voltam, sem qualquer preocupação com o destino do réu, porque assim é a natureza da mente humana. O trabalho do advogado ou do promotor é fazer com que todas as mentes — não só os jurados, "em corpo presente" — estejam no tribunal na hora que mais precisam delas: a da apresentação dos fatos, provas e testemunhos fundamentais do caso.
De uma maneira geral, os jurados tentam prestar atenção em tudo que se desenrola no Tribunal do Júri. Mas não há nada que impeça suas mentes de escapar vez ou outra para as suas próprias vidas. Afinal, muita coisa acontece em julgamentos e não há quem se disponha a tanta concentração. O importante é que os jurados estejam atentos em momentos decisivos. Por isso, o advogado (ou promotor) deve selecionar, antes do julgamento, os pontos-chave de seu caso, os que vão constituir "os momentos decisivos" do julgamento e arquitetar uma estratégia para que eles não escapem à atenção dos jurados.
Quais são os momentos decisivos desse caso? Possivelmente (e imaginariamente) o testemunho do médico é um ponto fundamental, que deve se fixar na mente dos jurados até a hora do veredicto — e, quem sabe, para sempre, de forma que um dia possam contar a história aos netos.
E como se consegue trazer as mentes dos jurados, que podem estar voando por sabe-se-lá-onde, de volta para o tribunal? Com o poder da demonstração, diz o advogado e professor de Direito Elliott Wilcox, editor do TrialTheater. Às vezes, mais que uma demonstração, a melhor estratégia é usar o poder da dramatização — aquilo que uma criança faz quando quer uma coisa e não é atendida: abrir a boca no mundo.
Há que se estabelecer prioridades próprias e nas mentes das pessoas. Mas nenhuma delas escala para o topo da pirâmide das prioridades, até que seja dramatizada. É assim na vida familiar, no círculo de amizades e no ambiente de trabalho — e no dia a dia do Tribunal do Júri. Portanto, a dramatização (ou a demonstração), por simples que seja, é necessária para ganhar a atenção da audiência, nos momentos decisivos. E será melhor ainda se, de alguma forma, a audiência for envolvida na dramatização.
Em seu testemunho (imaginário), o médico vai declarar que um osso do braço da vítima foi quebrado. É um detalhe importante para esclarecer o caso (imaginário). Importante o suficiente para o advogado ou promotor se certificar de que todos os jurados não vão perder esse detalhe e, mais que isso, vão definitivamente mantê-lo em suas mentes. E há que se envolver os jurados. Veja como:
— Que osso do braço foi quebrado, doutor?
— A ulna.
— O senhor pode mostrar aos jurados que osso é esse? [Os jurados vão dar toda sua atenção ao médico.]
— É um osso do antebraço. Estenda seu braço...
— Como, doutor? Assim como em um sinal de positivo? Ou de negativo?
— Como em um sinal de positivo [inesquecível]. Agora toque embaixo do antebraço, mais ou menos perto do cotovelo. Aliás, esse osso também é conhecido como o osso do cotovelo. Ele tem uma aparência de uma chave inglesa.
— E é um osso que se quebra com frequência? Ou seria necessário usar uma espécie de ferramenta, assim como uma chave inglesa...
— Sim, só com um impacto muito forte...
— E a posição do braço tem de ser a de um sinal de positivo para receber esse impacto?
— Mais provavelmente, levantado...
— O senhor pode mostrar para os jurados? Levantado, como?
— Assim, como as pessoas comemoram alguma coisa que deu certo, com o braço dobrado, o punho fechado [e mostra].
É claro que o advogado ou promotor fez o seu dever de casa, conversou com o médico anteriormente, e já sabe tudo sobre o osso ulna. Sua intenção era apenas demonstrar aos jurados a posição do braço da pessoa no momento "x" — e não em outra posição comprometedora. E se certificar de que isso não ser perca no turbilhão de informações que envolvem o julgamento.
Os jurados podem não fazer o gesto de positivo ou de comemoração durante a dramatização. Mas podem mentalizá-lo — ou mesmo fazê-lo, mais tarde, na primeira oportunidade. Ou mesmo checar a cartilagem do nariz (em outro caso imaginário). Veja abaixo um outro exemplo:
— Doutor, o fato de esse material ser macio e esponjoso elimina a possibilidade de ele ter causado esse tipo de ferimento à vítima?
— Não, ele é macio e esponjoso, mas embaixo ele tem um núcleo denso...
— Há uma maneira de o senhor explicar isso melhor aos jurados?
— Sim. Por exemplo: se você apertar a ponta de seu nariz com a ponta do dedo [mostra], primeiro você encontra uma parte macia. Mas, se continuar apertando, vai encontrar a cartilagem, que é dura. É a mesma coisa com esse material que estamos falando.
E se for preciso explicar que a pessoa só sobreviveu graças a um processo de ressuscitação, pode ser feito desta forma:
— Doutor, o que o senhor fez quando atendeu a vítima?
— O que sempre fazemos em primeiro lugar, quando uma vítima está caída no chão: checamos a pulsação, para ver se está viva. Mas não checamos a pulsação no pulso. Medimos a pulsação na artéria carótida...
— O senhor pode mostrar aos jurados como é que se faz isso?
— Na verdade, é fácil [o médico se volta para os jurados]. Coloque o dedo indicador e o dedo médio juntos, assim... bem aqui... [e mostra a concavidade entre a faringe e o músculo grande do pescoço]. É isso... pressione levemente e você vai sentir a pulsação.
— Foi isso que o senhor fez?
— Sim. Senti de imediato que não havia pulsação e iniciei uma reabilitação cardiopulmonar.
A demonstração em si poderia não ter valor algum para o caso. Importante seria o fato de a vítima ter sido deixada inanimada, a sua sorte. O objetivo da dramatização, então, foi apenas o de tornar esse fato inesquecível.
Se o ponto é importante, tem de ser demonstrado. Dramatizando, se necessário, sempre envolvendo, de certa forma, os jurados. Veja mais um exemplo:
— O teste de reflexo do joelho é simples. Posicione suas pernas nessa posição... Bata nesse lugar do joelho... O resultado será este...
O resultado será que os jurados podem se sentir no consultório do médico e não esquecer a demonstração. Alguns jurados poderão se ajeitar na cadeira, enquanto o médico explica a posição correta para o teste. Outro tipo de demonstração que funciona é o de medidas — distâncias, pesos, etc. Saiba como abaixo:
— Que tamanho era a pedra jogada no carro?
— De um tamanho bem aproximado de meu punho fechado... assim [mostra].
— Que distância ele estava de você, quando apontou sua arma?
— Cerca de cinco metros... talvez...
— O senhor diria que, de onde está até o terceiro jurado à direita (não até a porta, etc.).
— O que o senhor quer dizer com a criança era incrivelmente pequena?
— Ela praticamente cabia aqui (coloca as duas mãos abertas, voltadas para cima].
Algumas vezes, uma comparação, auxiliada por uma demonstração, capta a atenção dos jurados. Observe abaixo:
— Existem, no caso, dois tipos de mecanismos, com articulações diferentes. Um deles se articula da mesma forma que os joelhos de uma pessoa. Eles podem fazer as pernas se dobrar e se estender. Mas não girar. O outro é mais parecido com a articulação dos ombros. Elas permitem que a pessoa dobre, estenda e gire os braços. O mecanismo do qual estamos falando é o primeiro. Ele não pode fazer esse movimento giratório...

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Ser ou não ser empresário, eis a questão

A célebre frase "Ser ou não ser, eis a questão" vem da peça “A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca”, de William Shakespeare. Em matéria teatral, “tragédia” é o gênero que expressa o conflito entre a vontade humana e os desígnios do destino. Por uma triste analogia, pode-se dizer que nossa “tragédia” nacional é o conflito permanente entre a atividade empresarial e o Estado. Ainda no campo da analogia, assim como na peça de Shakespeare, onde Hamlet morre no final, o desfecho dessa “tragédia” será a morte do animus empreendedor em nosso país.
A forma como o empresário brasileiro é tratado pelo Estado, em todos os seus níveis de organização, é absurda. Os procedimentos e regulamentos de natureza legal, fiscal, trabalhista e tributária são permeados de uma burocracia que sufoca o crescimento do país e fragiliza o empresário que, na condição de sócio e ou administrador de uma sociedade, que fica à mercê do Estado e de seus mecanismos de “controle”.
Vamos usar como exemplo a terceirização. Prática comum no mundo, ganhou força no Brasil na década de 1990. Após ser amplamente utilizada por empresas de todos os setores em nosso país, nos últimos anos diversas leis, portarias, decisões administrativas e judiciais fizeram o processo de terceirização tornar-se uma iniciativa temerária. Com isso, perdemos muito em competitividade e eficiência.
A empresa (e como veremos mais adiante também o empresário) na maior parte dos casos é responsabilizada pelos atos da empresa contratada, mesmo que tenha tomado todas as precauções possíveis. A súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, em determinado ponto, assim versa sobre o assunto: “Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta”.
Ora, a prova da inexistência de pessoalidade e subordinação é normalmente frágil e desfavorável à contratante. E, nesses casos, certamente a responsabilidade subsidiária recairá sobre a empresa contratante e seus sócios e administradores (os empresários). Isso porque, na esfera trabalhista, a desconsideração da personalidade jurídica é regra e não exceção. Com isso, ainda que o sócio não tenha sequer participado do processo judicial, estará sujeito à penhora de seus bens, notadamente à penhora de valores em contas bancárias. Aliás, essa também é a regra que atualmente vem sendo perseguida pelas Procuradorias federais, estaduais e municipais em todo o país: o (re)direcionamento das execuções fiscais contra os sócios das empresas.
Ao encontro dessa busca perpetrada pelas Procuradorias, o Superior Tribunal de Justiça editou a súmula 435: “Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente”.
Além disso, atualmente o STJ julga se o prazo de prescrição de cinco anos para o redirecionamento de cobranças tributárias a sócios flui partir da constituição do crédito fiscal ou da constatação de fraude ou dissolução irregular da empresa. A última hipótese significa, na prática, um aumento do prazo para cobrança. Eis, portanto, mais um capítulo da “tragédia” empresarial brasileira cujo final provavelmente não será favorável ao empresário.
Por estes e outros motivos é que no índice do Banco Mundial que mede a facilidade em fazer negócios, o Brasil ocupa a 129ª posição entre 183 países (dados de 2010). Certamente, nossa burocracia inibe investimentos, desestimula o empreendedorismo e arruína nossa capacidade competitiva.
Os exemplos acima colocados demonstram a importância de uma análise profunda por todos aqueles que exercem ou pretendem exercer atividades empresariais na qualidade de sócios ou administradores de empresas em nosso país. O planejamento da atividade empresarial é certamente hoje um dos maiores desafios dos advogados que atuam na esfera do Direito Tributário, notadamente no campo da proteção do patrimônio pessoal dos empresários.
Ser ou não ser empresário: eis uma “tragédia” cujo final cabe ao Poder Público, em todas as suas esferas, reescrever para que não termine em morte.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Lei das Cautelares mudou aplicação da Maria da Penha

A Lei 12.403/11 alterou substancialmente o sistema das cautelares criminais, com repercussão direta na Lei Maria da Penha (LMP), já que o Código de Processo Penal (CPP) se aplica na violência doméstica praticada contra a mulher por expressa disposição dos artigos 12 e 13 da Lei 11.340/06 (LMP). Vejamos.
Finalidade das cautelares x medidas protetivas
As medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha, embora sejam espécies das medidas cautelares criminais, têm finalidade diversa das cautelares previstas no CPP. Os requisitos típicos destas (fumus comissi delicti e periculum libertatis, nos termos dos artigos 282, I e II, e 312 do CPP), não se confundem com os requisitos indispensáveis ao deferimento das medidas protetivas, como lembra o promotor de Justiça Amom Albernaz Pires (2011).
De fato, o novo artigo 282 do CPP, homenageando os elementos do princípio da proporcionalidade, dispõe:
Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a:
I — necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais;
II — adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.
O inciso I do dispositivo deixa claro o objetivo maior das medidas cautelares criminais: garantir o processo. Pretende-se evitar a fuga do acusado (aplicação da lei penal) ou que ele perturbe a investigação ou a instrução criminal. O inciso prevê também a necessidade de evitar “a prática de infrações penais”, mas somente nos casos “expressamente previstos”, ou seja, nas exceções. A regra, portanto, é garantir o resultado do processo, conforme vocação antiga tanto das cautelares criminais quanto cíveis.
Ao contrário, as medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha não são instrumentos para assegurar processos. O fim das medidas protetivas é proteger direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e das situações que a favorecem. E só. Elas não são, necessariamente, preparatórias de qualquer ação judicial. Elas não visam processos, mas pessoas (LIMA, 2011).
A LMP foi expressa quanto a esses objetivos, ao determinar que as medidas visam a “proteção da ofendida, de seus familiares e de seu patrimônio” (art. 19, § 3º), e devem ser aplicadas “sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados” (art. 19, § 2º) e “sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem” (art. 22, § 1º).
Assim, a própria LMP não deu margem a dúvidas. As medidas protetivas não são acessórios de processos principais e nem se vinculam a eles. No ponto, assemelham-se aos writs constitucionais que, como o habeas corpus ou o mandado de segurança, não protegem processos, mas direitos fundamentais do indivíduo.
Portanto, as medidas protetivas são medidas cautelares inominadas que visam garantir direitos fundamentais e “coibir a violência” no âmbito das relações familiares, conforme preconiza o artigo 226, parágrafo 8º, da Constituição da República. Ou, como já sustentado por Didier Jr e Oliveira, representam modalidade de tutela jurisdicional diferenciada que se aproxima das medidas provisionais satisfativas constantes do artigo 888 do CPC, mas que não teriam conteúdo cautelar e prescindiriam do ajuizamento de uma demanda principal (PIRES, 2011).
Assim, a discussão instalada em parte da doutrina, no sentido de perquirir qual a natureza das medidas protetivas, se cíveis ou criminais, é desnecessária, porque pressupõe um processo principal a ser protegido.
Ademais, as medidas protetivas não buscam provar crimes, até porque podem ser deferidas mesmo em sua ausência:
No ponto, também divergem das cautelares penais (busca e apreensão, interceptação telefônica, prisão temporária, etc.), que visam provar a prática de um crime no bojo do processo penal, ou da prisão preventiva, que, embora possa ter como um dos seus requisitos a garantia da integridade das vítimas, só se sustenta se houver indícios suficientes da prática de crime. Ora, as medidas protetivas previstas na LMP não se prestam para provar crimes. Elas podem inclusive ser requeridas mesmo quando não seja praticada infração penal. Basta a ocorrência de alguma das violências domésticas elencadas no art. 7º da LMP, pois a Lei busca enfrentar a violência, que nem sempre terá um tipo correspondente na legislação penal. (LIMA, 2011)
Ausência de contraditório
O art. 282 do CPP dispõe que:
§ 3º Ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo.
Assim, o novo sistema prevê, como regra geral, a oitiva prévia do suspeito antes da aplicação de alguma cautelar, em homenagem ao princípio do contraditório. Ressalva apenas os “casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida”.
Esse dispositivo conflita com a Lei Maria da Penha, que determina a concessão imediata da protetiva, no prazo de 48 horas e independentemente de manifestação prévia do acusado e do próprio Ministério Público:
Art. 18. Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas:
I — conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência; (…)
Art. 19. (…)
§ 1º As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público, devendo este ser prontamente comunicado.
Dessa forma, ao contrário das cautelares gerais, não se aplica o contraditório para a concessão de medidas protetivas, até porque, como vimos, a sua finalidade não é resguardar processos, e sim pessoas, de forma que a oitiva prévia do acusado pode inviabilizar a própria segurança das vítimas.
Nada impede, porém, dependendo do caso, que o juiz determine uma audiência de justificação, na forma prevista no artigo 804 do Código de Processo Civil, para ouvir as partes. Tal audiência não implica intimação prévia do acusado para responder ao pedido, mas apenas para participar do ato.
Medidas protetivas de ofício
O novo artigo 282, parágrafo 2º, do CPP, proíbe a concessão de cautelares de ofício pelo juiz na fase investigatória. Essa regra geral, que aprimora o sistema acusatório no processo criminal, não se aplica às medidas protetivas.
Como vimos, a finalidade das medidas protetivas é diferente das cautelares criminais tradicionais. Enquanto estas visam garantir o processo e ajudar na apuração do crime, aquelas buscam proteger a própria integridade da vítima, em outras palavras, os direitos humanos mais básicos.
Dessa forma, não ofende o princípio acusatório a concessão de medidas protetivas de ofício pelo juiz, pois, no caso, este atua como garante de direitos fundamentais (função basilar do Judiciário), e não como agente direcionado a provar crimes ou resguardar o resultado do processo.
Por isso, nos termos dos artigos 18 e 19 da Lei Maria da Penha, o juiz pode conceder medidas protetivas de ofício no inquérito, sem ouvir as partes e sequer o Ministério Público. Esta disposição afasta a regra geral do atual artigo 282, parágrafo 2º, do CPP, mas mantém íntegro o sistema acusatório.
Ressalve-se, porém, que o juiz não pode conceder de ofício as medidas cautelares do CPP no inquérito, mesmo em defesa da mulher em situação de violência doméstica. O mesmo se diga quanto ao decreto de prisão preventiva, conforme veremos no próximo tópico.
Prisão preventiva de ofício no inquérito
O artigo 20 da Lei Maria da Penha admite a prisão preventiva decretada de ofício pelo juiz tanto no inquérito quanto no processo. No ponto, repetiu a regra então prevista no artigo 311 do CPP.
No entanto, a Lei 12.403/11 mudou essa disposição, vedando ao juiz o decreto de prisão preventiva na fase policial sem o pedido do delegado ou do promotor de justiça, estabelecendo nova redação ao artigo 311 do CPP.
Essa mudança aprimorou o sistema acusatório, quem tem sede constitucional (SILVA, 2010), pois ao juiz deve ser garantida equidistância da fase investigativa, sob pena de ser contaminado pelo lavor persecutório. Imagine-se o decreto de uma prisão cautelar no inquérito com a discordância do Ministério Público. Se o titular exclusivo da ação penal sequer formou sua opinio delicti ou entende desnecessária a prisão, como ficará a garantia do cidadão em ser julgado por um juiz imparcial em eventual processo?
Assim, em que pesem opiniões em sentido contrário, o juiz não pode, no inquérito, decretar de ofício a prisão preventiva nos casos regidos pela Lei Maria da Penha, porque o artigo 20 daquele diploma legal restou parcialmente revogado pelo novo artigo 311 do CPP.
Ressalve-se, porém, a possibilidade de o juiz converter a prisão em flagrante em prisão preventiva, por força do artigo 310, II, do CPP. Esta exceção à regra geral do artigo 311 do CPP, permite ao juiz manter a prisão mediante outros fundamentos (requisitos da preventiva). Vejamos o descortino doutrinário:
Em verdade, na hipótese do art. 310, há houve uma prisão anterior em flagrante, de sorte que o magistrado não esta tomando qualquer iniciativa. A prisão em flagrante já foi realizada por qualquer do povo ou pela autoridade policial e o magistrado, em verdade, apenas verifica se há a necessidade de sua manutenção (…) Na prática, a prisão já ocorreu e o juiz não a decreta, mas apenas verifica se é o caso de manter a prisão ou conceder liberdade. (MENDONÇA, 2011)
A rigor, a análise feita pelo juiz na forma do artigo 310 é uma necessidade para concessão da liberdade provisória, como regra geral, do preso em flagrante. Apenas em hipóteses estritamente necessárias é que se permitirá, como corolário da não concessão de liberdade, a prisão preventiva. O juiz funciona nesse caso como garantidor do direito fundamental da liberdade, de modo que não há ofensa ao princípio acusatório. O que não se permite é que determine a custódia preventiva de quem não está preso por um flagrante legal.
Prisão preventiva independe de medida protetiva anterior
A Lei Maria da Penha possibilitou a prisão preventiva para todos os crimes cometidos em violência doméstica contra a mulher, independentemente da pena máxima cominada, “para garantir a execução das medidas protetivas”. Tal disposição, prevista no artigo 313, III, do CPP, foi mantida pela Lei 12.403/11.
Inobstante a citada finalidade expressa da prisão — “garantir a execução das medidas protetivas” —, a Lei 12403/11 não proíbe seu decreto na ausência de medida protetiva anterior, ou mesmo de seu eventual descumprimento.
De fato, a Lei 12.403/11 admite dois tipos de prisão preventiva: uma, para o caso de descumprimento das cautelares e a ser decretada em “último caso” (art. 282, § 4º, CPP), denominada pela doutrina “substitutiva” ou “subsidiária” (MENDONÇA, 2011); outra, como primeiro recurso (prisão preventiva “originária” ou “autônoma”), desde que não seja “cabível a sua substituição por outra medida cautelar” (art. 282, § 6º, CPP) ou estas “se revelarem inadequadas ou insuficientes” (art. 310, II, CPP).
Dessa forma, essa disposição deve ser observada nos casos da Lei Maria da Penha, admitindo-se o decreto de prisão preventiva (autônoma) desde logo, sob pena de ofensa aos princípios da igualdade e da proporcionalidade, perpassados pelo fundamento da dignidade do ser humano. Não haveria sentido permitir a prisão cautelar para todos os casos e, quando se tratar de violência contra a mulher, subordiná-la a um requisito especial, que pode significar a prática de novas violências, e até o assassinato. Há casos em que somente a prisão, como primeiro recurso, pode debelar um estado de violência, mormente no âmbito familiar, em que os acusados tem privilegiado acesso às vítimas.
Delegado de polícia não pode representar pelas medidas protetivas
O novo artigo 282, parágrafo 2º, do CPP, permite à autoridade policial representar pela decretação de medidas cautelares na fase investigatória. A Lei Maria da Penha, no entanto, somente permite às vítimas e ao Ministério Público requerer medidas protetivas.
Considerando que, mesmo antes da Lei 12.403/11, a lei processual admitia que a autoridade policial representasse por cautelares (prisão preventiva e sequestro de imóveis, p. e), tem-se que a opção do legislador ao aprovar a Lei Maria da Penha foi clara no sentido de não permitir à polícia postular medidas protetivas. Ora, a regra é o pedido das vítimas. Na sua falta, permite-se apenas ao Parquet, como titular da ação penal pública, requerer por ela. Explica-se: o Ministério Público não precisa aguardar o pedido das vítimas e pode, inclusive, requerer medidas contra a vontade delas. Esta é a razão principal do dispositivo. É que a vulnerabilidade própria das pessoas que sofrem violência doméstica, motivo da construção da LMP, não raro as impede de se opor aos(às) agressores(as). O medo ou o sentimento de lealdade vigente na família, aliado à perplexidade perante um ato criminoso praticado por pessoa próxima, paralisa sua reação. Um representante de uma criança (pai ou mãe), por exemplo, pode ser conivente com um ato violento praticado por algum parente. Essa omissão deve ser suprida pelo Estado, que pode determinar, por exemplo, o afastamento do lar de todos quanto coloquem em risco a integridade dos membros da família.
Frise-se que a jurisprudência tem admitido até a abertura de processos contra a vontade das vítimas nos casos em que a representação delas é necessária (vide comentários ao art. 16). Com maior razão, é permitido ao Ministério Público agir na proteção das vítimas, buscando as medidas protetivas por elas recusadas, quando houver indícios de que sua vontade não é livre ou espontânea. (LIMA, 2011)
Dessa forma, a regra geral das medidas cautelares, no sentido de que a autoridade policial pode representar pelo seu decreto, não se aplica aos casos tratados pela Lei Maria da Penha.
Advirta-se, porém, que a autoridade policial pode representar pelas cautelares previstas no CPP, como a monitoração eletrônica, mesmo nos casos de violência doméstica contra a mulher. O que não se admite é que represente pelas medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha. Isso se dá porque, como vimos anteriormente, a função genérica das cautelares do CPP é resguardar a investigação ou o processo; das medidas protetivas, ao contrário, é proteger a integridade das vítimas, não raro, ingressando-se na esfera de sua intimidade, como na determinação de afastamento do lar ou proibição de contato.
Proibição de a autoridade policial fixar fiança
Desde a reforma processual penal de 1977, é vedado à autoridade policial conceder fiança nos crimes considerados mais graves, identificados como aqueles em que se autoriza, em tese, a prisão preventiva (art. 313 e incisos do CPP). Em tais casos, somente o juiz poderá conceder a liberdade ou manter a prisão em flagrante, convertendo-a em prisão preventiva.
Com efeito, dispõe o CPP, em artigo mantido pela Lei 12.403/11:
Art. 324. Não será, igualmente, concedida fiança: (…)
IV — quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312).
Ora, os “motivos que autorizam a prisão preventiva” só estarão presentes nos crimes em que se admite tal cautelar extrema. A análise dos requisitos da prisão preventiva, e sua consequente decretação, é matéria de alçada judicial. Não se admite que outro órgão arbitre fiança, uma vez que sua concessão está vinculada à ausência dos requisitos da prisão preventiva, cuja apreciação compete ao juiz, como corolário da cláusula de reserva jurisdicional prevista no artigo 5º, LXI, da Constituição Federal.
Para os demais crimes, considerados menos graves, pode o delegado conceder fiança, pois a própria prisão preventiva é vedada e nem mesmo o juiz poderia manter a prisão em tais casos.
Com a Lei Maria da Penha, os crimes envolvendo violência doméstica contra a mulher, independentemente da pena prevista, entraram no rol dos que se proíbe a liberdade mediante fiança no âmbito policial. A reforma das medidas cautelares feita pela Lei 12.403/11 não só manteve este entendimento como o reforçou e também o ampliou para impedir a fiança policial quando a vítima de violência doméstica for do sexo masculino, desde que vulnerável (menor, idoso, enfermo ou pessoa deficiente), nos termos do artigo 313, III, do CPP.
De fato, o CPP autoriza a fiança policial apenas para os crimes punidos com pena máxima de quatro anos de prisão, conforme artigo 322. O dispositivo se correlaciona com a atual redação do artigo 313, I, que só admite a prisão preventiva para os crimes com pena superior a quatro anos de prisão. Essa regra geral, consequência lógica do artigo 324, IV, é aplicável para todas as demais hipóteses em que se admite a prisão preventiva, inclusive na violência doméstica, de modo que mesmo nos crimes punidos com pena inferior a quatro anos de prisão se proíbe a fiança na esfera policial.
Assim, o dispositivo previsto no artigo 322, que permite a concessão de fiança pelo delegado nos crimes punidos com pena até quatro anos, não se aplica à violência doméstica, em face das inovações introduzidas no próprio CPP pela Lei Maria da Penha e pela Lei 12.403/11.
Com efeito, todos os crimes punidos com pena até quatro anos de prisão estão agora sujeitos à prisão preventiva, nos termos do aludido artigo 313, inc. III. Logo, não será concedida a fiança se presentes os requisitos da prisão preventiva (art. 324, IV), apreciação a ser feita pelo juiz, nos termos do artigo 311. Na ausência desses requisitos, somente o magistrado deve soltar o acusado, independentemente da fixação de fiança, nos termos expressos do artigo 310, que esclareceu sua função quando se deparar com uma prisão em flagrante:
I — relaxar a prisão ilegal; ou
II — converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou
III — conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
Ao determinar que o juiz pode converter o flagrante em preventiva, o legislador se refere a todos os crimes em que a lei autoriza, em tese, a prisão preventiva, inclusive os praticados em violência doméstica. Se o delegado conceder fiança, por exemplo, num crime de ameaça, impedirá a atuação jurisdicional. Ora, como o juiz converterá um flagrante em prisão se o agente já foi solto com o mero pagamento de fiança na delegacia?
Para além disso, se a lei obrigasse o delegado a fixar a fiança nesses casos, criaria uma situação delicada e constrangedora para esse profissional. É que, quando verificada a periculosidade do acusado ou o risco à integridade da vítima, por exemplo, o delegado teria que soltar o preso, desde que ele tivesse dinheiro para a fiança. Assim, assumiria um ônus e um risco que nem ao Judiciário é conferido, qual seja, o de conceder liberdade quando presentes os requisitos da prisão cautelar.
Esclareça-se que tal entendimento não causa prejuízos aos acusados porque sua prisão deve ser comunicada imediatamente ao juiz e ao promotor, bem como o auto de flagrante deve ser remetido em 24 horas ao juiz e ao defensor público, conforme artigo 306, caput, e seu parágrafo 1º, do CPP.
Sobre o tema, a Comissão Permanente dos Promotores de Justiça da Violência Doméstica (COPEVID)[1] emitiu em 7/12/2011 o seguinte enunciado:
Enunciado nº 6: Nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, é vedada a concessão de fiança pela Autoridade Policial, considerando tratar-se de situação que autoriza a decretação da prisão preventiva nos termos do artigo 313, III, CPP.
Referências Bibliográficas
LIMA, Fausto Rodrigues de. Comentários aos artigos 25 e 26 da Lei Maria da Penha (Da atuação do Ministério Público). In CAMPOS, Carmen Hein de Campos (Organizadora). Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2011.
______ Fiança Policial, violência doméstica e a Lei nº 12.403/2011. Disponível em www.jusnavigandi.com.br, maio/2012.
MENDONÇA, Andrey Borges de. Prisão e outras Medidas Cautelares Pessoais, de acordo com a Lei 12.403/2011. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
PIRES, Amom Albernaz. A Opção Legislativa pela Política Criminal Extrapenal e a Natureza Jurídica das Medidas Protetivas da Lei Maria da Penha. Brasília: Revista do MPDFT, v.1, n. 5, 2011.
SILVA, Edimar Carmo da. O princípio acusatório e o devido processo legal. Porto Alegre: Nuria Fabris Editora, 2010.