quarta-feira, 28 de novembro de 2012

TRIBUNAL DO JÚRI E A LINGUAGEM CORPORAL

Em sustentações orais, alegações iniciais, alegações finais e inquirições de testemunhas, esquecer um argumento fundamental é uma falha imperdoável. Todos os advogados e promotores sabem disso. Portanto, os menos calejados pelo tempo de profissão fazem o óbvio: levam anotações para o julgamento. "Isso ajuda e, ao mesmo tempo, atrapalha", diz o advogado e professor de Direito Elliott Wilcox, editor do TrialTheater. O mais importante é manter contato visual com a plateia na audiência, sejam jurados, desembargadores ou ministros.
As reações dos jurados no Tribunal do Júri, quando o advogado ou promotor se dirige a eles constituem a única fonte de informação confiável sobre o que está funcionando bem e o que não está na argumentação. Assim é na inquirição de testemunhas. Sejam as reações visíveis ou mal perceptíveis, são elas que indicam ao advogado ou promotor que o argumento é forte ou fraco, que perguntas e respostas na inquirição chamam a atenção dos jurados ou não, o que ficou claro e o que deixou dúvidas, em que pontos é preciso insistir e de que pontos se deve desistir, diz Wilcox.
Profissionais que atuam no Tribunal do Júri (e nos tribunais superiores) devem aprender a ler as comunicações não verbais dos jurados e dos desembargadores e ministros. Mas, ninguém consegue fazer isso com a cabeça enterrada em anotações. "Eles estão dizendo para você acelerar ou reduzir a marcha de sua apresentação? Estão acompanhando bem seu raciocínio ou estão confusos — ou mesmo entediados? Eles querem que alguma coisa seja melhor explicada ou repetida? Se você está de olho em suas anotações, nunca vai saber", afirma o professor.
"Você precisa persuadir os jurados ou juízes, não o papel em suas mãos. Portanto, maximize o tempo de contato visual com eles e minimize o tempo de conferência particular com seu bloco de anotações", recomenda.
A recomendação vale para o processo de inquirição de testemunhas porque os jurados o observam os inquiridores o tempo todo. E reagem, conforme ele reage, mesmo que inconscientemente. Se o inquiridor mostra que dá importância à testemunha, porque está prestando a devida atenção a ela, em vez de para um papel, os jurados tendem a assumir que a testemunha é importante. E vice-versa. Se o inquiridor se concentra em suas anotações enquanto a testemunha fala, os jurados tendem a minimizar o que ela fala, independentemente de sua real importância.
"Quando você olha para suas anotações, em vez de fazer contato visual com a testemunha e com os jurados, isso não é apenas rude. Manda uma mensagem à audiência de que você não se importa com o que a testemunha está falando e que suas respostas não têm valor", diz Wilcox.
Para evitar o envio de mensagens erradas para a audiência, o profissional deve, primeiramente, passar uma vista rápida em suas anotações, depois levantar os olhos, para fazer contato visual, antes de fazer a pergunta. Durante a resposta, deve prestar atenção na testemunha e, ao mesmo tempo, observar discretamente os jurados, em busca de reações. Terminada a resposta, pode caber uma rápida e sutil expressão não verbal, que denota aprovação ou reprovação, enquanto consulta novamente as anotações, se for necessário.
"O fato de você prestar atenção no depoimento da testemunha, encoraja os jurados a fazerem a mesma coisa. Só não a olhe fixamente, porque pode embaraçá-la ou deixá-la nervosa", recomenda.
Alguns advogados e promotores escrevem todas as perguntas que vão fazer em inquirições diretas ou cruzadas. Mas não as levam ao tribunal. Fazem isso para memorizar as perguntas e organizar o raciocínio, mas nunca as decoram palavra por palavra. O texto decorado faz o profissional ficar perdido quanto há uma intervenção da outra parte, do juiz, de um desembargador ou quando a resposta de uma testemunha é totalmente inesperada — ou não há resposta. A sequência do "script" vai por água abaixo.
A melhor anotação, diz o professor, é de palavras-chave — aquelas que servem apenas para disparar o raciocínio e, consequentemente, toda a lógica da linha de inquirição ou de sustentação. Wilcox dá um exemplo de anotação ruim: "Senhor Johnson, o senhor pode nos dizer desde quando conhece o réu e em que circunstâncias o conheceu?"
Se o objetivo é estabelecer que a testemunha é boa, porque conhece suficientemente o réu e suas atividades, para poder falar sobre ele, basta anotar: "Conhece o réu?". Se o objetivo é desqualificar a testemunha, por seus laços de amizade com o réu, basta anotar: "É amigo?". É como uma lista de compras.
Muitas vezes, as palavras-chave são "batidas" o suficiente para cumprir o seu papel de lembrar (ou de não deixar passar em branco) uma questão importante. Para disparar uma linha de inquirição, basta anotar: "sangue no carro"; "sequestro"; "cárcere privado"; "estrangulamento"; "cachorros"; "ocultação de cadáver"; "executor"; "mandante" — todas elas são o suficiente para encadear inquirições.
De preferência, as palavras-chave devem ser legíveis em um relance de olhos. Também de preferência, devem ser digitadas, em forma de lista, em corpo suficientemente grande, em vez de escritas à mão. E seguindo uma regra de edição jornalística, devem ser escritas em caixa alta e baixa, conforme necessário, nunca em letras maiúsculas, cuja leitura é mais difícil.
"A conclusão é óbvia", diz Wilcox. "Quanto menor e mais simples forem suas anotações, maior será a sua liberdade para atuar no tribunal do júri ou para fazer uma sustentação oral em um tribunal superior".

Fidelidade partidária é assunto de interesse público

No julgamento conjunto dos Mandados de Segurança 22.602, 22.603 e 22.604, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a regra de fidelidade partidária é “um corolário jurídico lógico e necessário do sistema constitucional positivado” (MS 26.604, rel. Min. Cármen Lúcia). Lastreado nesse entendimento, o Tribunal Superior Eleitoral editou a Resolução 22.610 de 2007, que disciplina o processo de perda de cargo eletivo por desfiliação sem justa causa. Assim, o mandatário infiel, que é eleito graças ao partido e com verbas públicas do fundo partidário e propaganda eleitoral gratuita, perde o mandato caso não prove a existência de hipóteses especialíssimas de justa causa. A saber: I) incorporação ou fusão do partido; II) criação de novo partido; III) mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário; e IV) grave discriminação pessoal.
Essas decisões foram um passo crucial para a efetivação do ideal constitucional de uma democracia verdadeiramente representativa, na qual o voto e a confiança do eleitor não sejam perdidos em meio ao troca-troca fisiológico. Hoje, contudo, esses avanços estão ameaçados por um recuo precoce da Justiça Eleitoral. Há a proposta de alteração da Resolução TSE 22.610 (Processo administrativo 1028-87/DF, Rel. Original Min. Arnaldo Versiani, cujo mandato recentemente se findou, atualmente com pedido de vista da ministra Luciana Lóssio), que pretende excluir a competência da Procuradoria Regional Eleitoral, da Procuradoria Geral Eleitoral e de terceiros interessados para a propositura de ações de perda de mandato dos políticos “infiéis”.
Caso a proposta seja aprovada, a fidelidade partidária passaria de “corolário” do sistema constitucional, regra necessária à soberania popular e à probidade do sistema político, a ser mera faculdade dos partidos, assim transformados em detentores absolutos do mandato popular, para dele dispor ao sabor das conveniências. Ficaria mais evidente que, apesar do uso de verbas públicas (via Fundo Partidário) com as quais os infiéis foram eleitos, os partidos podem tratar os mandatos de modo privado, sem a fiscalização da Procuradoria Regional Eleitoral ou da Procuradoria Geral Eleitoral.
Contudo, os entendimentos do STF e do TSE estabeleceram que a fidelidade partidária não é meramente do candidato ao partido político, senão do partido político ao povo. O fundamento essencial da decisão do nosso Tribunal Constitucional foi o de que, no sistema político brasileiro, o mandato representativo é uma delegação do poder político feita pelo povo ao partido, não ao candidato. Assim, como deixou claro a ministra Cármen Lúcia, o mandato é do partido não porque o candidato tenha que se vincular ao partido. “É que o eleitor tem de fazê-lo impreterivelmente, não podendo escolher quem bem entender ou quem entender de lançar a sua candidatura sem vínculo partidário” (MS 26.604, rel. Min. Cármen Lúcia fls. 190). A ideia de que “o mandato é do partido” corresponde a outra ideia, mais fundamental, segundo a qual “o mandato é do povo, que o delega ao partido, ficando este obrigado ao povo”. Não é um assunto meramente privado, entre o mandatário eleito e seu partido de origem, podendo este último livremente dispor.
Outro motivo para considerar a fidelidade partidária assunto de interesse público diz respeito ao financiamento hoje misto das campanhas: o eleito se elegeu usando o partido (não há candidatura avulsa no Brasil, sem vínculo partidário), verbas públicas que são repartidas aos partidos, como são os casos das verbas do Fundo Partidário e ainda o tempo da propaganda eleitoral gratuita.
Em matéria de interesse público e indisponível — como a da fidelidade partidária —, a legitimidade do Ministério Público é patente. Como se sabe, a este órgão incumbe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput, da Constituição Federal). Além disso, a Lei Complementar 75/93 garante a atuação ministerial em todas as fases e graus de jurisdição do processo eleitoral, e o Código de Processo Civil, em seu artigo 82, inciso III, estabelece a intervenção do MP em todas as ações que tratem de matéria de interesse público. O Tribunal Superior Eleitoral já consolidou o entendimento de que esse arcabouço institucional é plenamente aplicável ao Ministério Público Eleitoral. Julgado recente, de abril deste ano, evidencia essa posição. Na ocasião, foi reformado acórdão do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo que negou legitimidade à Procuradoria Regional Eleitoral para propor ações pelo desvirtuamento de propaganda partidária gratuita. Afirmou a relatora no TSE que “Assim, embora presente o interesse de natureza privada (interna corporis) das agremiações partidárias especificamente na propaganda partidária há prevalência do interesse público” (Respe 598.132/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, decisão monocrática em 26/04/12).
Ademais, ainda que sejam entidades de direito privado, os partidos políticos recebem recursos públicos do fundo partidário e devem prestar contas à Justiça Eleitoral, estando seu funcionamento parlamentar vinculado à lei (artigo 17 da Constituição Federal). Permitir que eles disponham livremente do mandato eletivo cuja titularidade detém, ensejando indesejáveis trocas de favores entre partidos e candidatos a depender das conveniências políticas do momento, seria, nas palavras da ministra Cármen Lúcia, “fazer tábula rasa dos princípios, como o da soberania popular, o da representação mediante a imprescindível e decisiva participação dos partidos políticos, dentre outros, e das regras que ordenam a matéria aqui cuidada” (MS 26.604, fls. 188). Por esses motivos que a redação originária da Resolução 22.610/07 sobre a legitimidade do MP deve ser mantida.
Por fim, um defensor da alteração proposta poderia, mesmo após os argumentos acima defendidos, afirmar que os partidos vêm cumprindo sua responsabilidade para com o eleitor e fazendo valer, de fato, sua titularidade sobre os mandatos dos migrantes. Mas essa não seria uma descrição correta do que hoje ocorre. O fato de que um partido recém-criado tenha cogitado incluir em seu estatuto a garantia de que não buscaria o mandato de seus filiados que resolvessem aderir a outros partidos (trata-se aqui da noção de “janela de infidelidade”, ou de “partido trampolim”, como se vê na notícia “PSD oficializará ‘trampolim’ no estatuto”, jornal Folha de São Paulo, caderno Poder, 06/05/2011) é emblemático. A atual dinâmica dos atores políticos em torno da fidelidade partidária mostra que a regra da fidelidade nem sempre tem sido levada a sério.
Só neste ano, no estado de São Paulo, são 97 decisões de procedência em ações propostas pela Procuradoria Regional Eleitoral. Se considerarmos que a atribuição do Ministério Público surge somente após o prazo para o partido formular o pedido (que é de 30 dias após a desfiliação), fica evidente o desinteresse partidário em fazer valer a fidelidade. Caso a proposta de alteração da Resolução 22.610/07 já tivesse sido aprovada, teríamos em São Paulo 97 infiéis sem justa causa, eleitos com dinheiro público, a desmoralizar, com a devida vênia, o sistema político-partidário. Nos demais estados, os números também são significativos. Apenas para citar dois exemplos, na Bahia, foram 20 ações da Procuradoria procedentes, em Sergipe, 33. As Procuradorias Regionais Eleitorais de todo o Brasil demonstram o acerto da redação atual da Res. 22.610/07.
À guisa de conclusão, defendo que a fidelidade partidária não é uma concessão aos partidos políticos. É uma regra do sistema político que visa aproximá-lo cada vez mais do ideal de plena representação partidária dos diversos interesses de uma sociedade plural. Permitir que apenas os partidos possam fazer valer a regra é como dizer que os partidos são detentores dos mandatos políticos caso queiram que assim seja. Ora, mandatos políticos não são disponíveis. Ou o sistema representativo é partidário, ou não. Se é, então os mandatos, mais que direitos, são deveres a serem imputados aos partidos, e a fidelidade partidária é regra a ser zelada por todos, em especial pelo Ministério Público que tem o dever constitucional — artigo 127 da CF — de assegurar o interesse público.
André de Carvalho Ramos é procurador regional eleitoral do estado de São Paulo, professor de Direito Internacional e Direitos Humanos da Faculdade de Direito da USP, doutor e livre-docente em Direito Internacional.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

PROTESTO DE TÍTULO - Ação cautelar de protesto exige prova de relação jurídica

Não preenche os requisitos legais a petição inicial de medida cautelar de protesto, que pretende interromper prazo prescricional para cobrança de dívida, quando ausente documento que comprove a existência de relação jurídica entre as partes. Com esse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça negou provimento a Recurso Especial interposto pela Caixa Econômica Federal.
De acordo com a ministra Nancy Andrighi, relatora do Recurso Especial, o protesto é um ato de jurisdição voluntária. Apesar disso, ela explicou que o juiz tem o poder de denegar a medida se não estiverem presentes os pressupostos legais. “Nessa hipótese, poderá o interessado renovar o pedido se, mais tarde, esses pressupostos se verificarem”, afirmou.
A relatora explicou também que, entre os pressupostos legais, deve estar presente, além do interesse processual, o legítimo interesse — condição indispensável mesmo no âmbito da jurisdição voluntária.
Segundo a ministra Nancy Andrighi, na medida cautelar de protesto, o interesse decorre, quase sempre, da necessidade ou utilidade da medida. “Assim, devem ser sumariamente indeferidos por falta de legítimo interesse os protestos formulados por quem não demostra vínculo com a relação jurídica invocada ou que se mostrem desnecessários frente aos próprios fatos descritos na petição inicial”, afirmou.
Ela mencionou que, após o magistrado de primeiro grau verificar que a cópia do contrato hipotecário não constava na ação, a CEF foi intimada para emendar a petição inicial, com a juntada do documento. Entretanto, permaneceu inerte. Por essa razão, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região entendeu que a instituição financeira deixou de demonstrar seu legítimo interesse no ajuizamento da ação.
“Assim, tendo em vista que não houve suficiente demonstração de elementos de prova acerca da relação jurídica apta a justificar a medida pleiteada, não é possível vislumbrar quaisquer vícios no acórdão atacado, tampouco violação do artigo 867 do CPC”, concluiu a ministra Nancy Andrighi.
No caso, para preservar um direito seu, garantido em contrato de financiamento habitacional, a Caixa Econômica ajuizou ação cautelar de protesto contra uma cliente, pretendendo interromper o prazo prescricional para cobrança de parcelas devidas.
Em primeira instância, o magistrado indeferiu a petição inicial e extinguiu o processo, em razão da ausência da cópia do contrato hipotecário – documento essencial para comprovar a existência de relação jurídica entre as partes.
A CEF recorreu ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que negou provimento à apelação. Em seu entendimento, “embora a natureza do protesto interruptivo da prescrição não exija fato material probante, ao menos, relação jurídica deve ser demonstrada”.
No Recurso Especial, a CEF alegou violação do artigo 867 do Código de Processo Civil (CPC), segundo o qual “todo aquele que desejar prevenir responsabilidade, prover a conservação e ressalva de seus direitos ou manifestar qualquer intenção de modo formal, poderá fazer por escrito o seu protesto, em petição dirigida ao juiz, e requerer que do mesmo se intime a quem de direito”.
Argumentou que a prova da relação jurídica existente entre as partes é desnecessária, pois, segundo ela, a medida cautelar de protesto constitui ato jurídico unilateral de comunicação, de cunho administrativo. Afirmou que o objetivo do protesto é apenas cientificar o devedor da intenção do credor de cobrar a dívida. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
REsp 1200075

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Crimes de colarinho branco terão novo paradigma

O julgamento da ação penal 470 (mensalão) pelo STF protagonizou uma importante quebra de paradigma na Justiça brasileira no julgamento dos crimes de colarinho branco.
Ele reconheceu a responsabilidade, em algumas das acusações, de quem não executou os atos ilícitos diretamente, mas deu as diretrizes ou a retaguarda necessária a permitir que tais atos ilícitos fossem efetivamente praticados.
Provar não significa demonstrar se algo aconteceu ou não, mas sim o convencimento quanto à correção do que se afirma ter acontecido.
A frequente alegação de desconhecimento de uma atividade ilícita e criminosa ou a alegação de que não se queria prejudicar ninguém, por parte do presidente de uma organização ou de alguém do quadro de direção, ganhou um novo capítulo no julgamento da ação penal 470.
Menos pelo sentimento de indignação que as práticas criminosas geraram, mas mais pela qualidade do raciocínio lógico e argumentativo desenvolvido pelos ministros.
O dirigente de uma instituição financeira ou de uma grande empresa, ao mesmo tempo em que não lhe é razoavelmente exigível o conhecimento sobre absolutamente tudo que se passa internamente de forma detalhada, tem, por sua posição e natureza da função, a possibilidade de um conhecimento qualificado.
Isso ocorre por exigência da própria natureza do negócio e principalmente pelas diferentes responsabilidades que tal dirigente assume perante outros interessados, como o cliente, os seus investidores, os órgãos de controle e regulação.
Quando tais dirigentes são investigados por atos ilícitos cometidos por meio da empresa, bem como reconhecida a correlação entre os procedimentos internos violados de forma sistemática e o nível de responsabilidade dos mesmos dirigentes, tem-se aí um dado concreto a legitimar um juízo provisório de responsabilidade.
Não se está a pregar a responsabilidade direta do dirigente pela atividade criminosa em razão da sua posição, mas sim reconhecer que a sua posição o coloca em situação diferenciada por força da qualidade e nível de conhecimento que possui em relação ao seu negócio.
Assim, naquelas situações apuradas que colocam em risco o próprio negócio, o seu agir, a sua adesão à atividade criminosa, se faz não somente por meio de uma ação, mas também pela omissão, no sentido de não coibir e, assim, validar o que poderia ter sido evitado.
Por um lado, é correta a afirmação de que a responsabilização não se faz por presunção. Mas, por outro, também é correta a afirmação de que a verdade, enquanto convencimento e juízo de probabilidade, forma-se a partir de qualquer dado de realidade -seja a posição que se ocupa, o nível de responsabilidade, o poder de decisão, a forma como se viabiliza um negócio e a forma como o protege.
A condenação dos dirigentes de uma instituição financeira na ação penal 470 pelo STF revela esse novo olhar sobre a própria prova, a legitimar a ideia ou a verdade sobre um fato não como um mecanismo estático e matemático, mas dinâmico e proporcional a cada realidade que se julga.

Fabio Ramazzini Bechara é promotor de Justiça e secretário-executivo do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado no Estado de São Paulo. É doutor em direito pela USP.

domingo, 25 de novembro de 2012

Como Woody Allen explicaria a teoria do domínio do fato

Em Noivo neurótico, noiva nervosa (1977), há uma cena (assista aqui) em que Woddy Allen e Diane Keaton aguardam na fila do cinema. Atrás deles, há um sujeito daqueles inconvenientes que fala alto, compulsivamente, como se fosse um grande especialista, uma espécie de crítico-geral, conhecedor de todos os assuntos. Em poucas frases de efeito, ele consegue criticar Fellini, citar seus filmes, compará-lo com Samuel Beckett, invocar a questão das visões de mundo e concluir que tudo é influência da televisão, referindo a teoria do filósofo canadense Marshall McLuhan, famoso por ter elaborado a ideia de “aldeia global”. Tudo isto para exibir sua “cultura” à sua acompanhante e a todas as pessoas da fila.
Alllen não aguenta tanto pedantismo e passa a discutir com o sujeito. E joga-lhe na cara que, na verdade, ele não faz ideia do que Marshall McLuhan diz.
“Ah é?”, responde o chato. “Por acaso dou uma disciplina na Universidade de Columbia chamada TV, Mídia e Cultura. E acho que minhas ideias sobre o prof. McLuhan têm grande validade.”
“Você acha? Engraçado, pois eu tenho o prof. McLuhan bem aqui”, replica Allen, que então busca o filósofo em pessoa (que estava escondido atrás de um cartaz) e o traz à cena para esclarecer a situação.
“Ouvi o que disse”, diz McLuhan ao pedante, “você não sabe nada sobre meu trabalho. Considera que toda a minha falácia está errada. É incrível como deixaram você dar aula de alguma coisa”.
Depois de ganhar a disputa, Allen olha, então, para a câmera — isto é, para nós — e diz: “Se a vida fosse fácil assim...”
Tal cena vem ao caso em razão da discussão em torno da aplicação da teoria do domínio do fato Supremo Tribunal Federal durante o julgamento do processo do mensalão. Todo mundo sabe que essa teoria foi fundamental na determinação da autoria de crimes por personagens importantes do escândalo. E todos sabem também que o seu principal teórico foi o jurista alemão Claus Roxin.
Desde então, discutia-se se a tese de Roxin teria sido bem ou mal interpretada pelo Supremo. Alguns diziam que a teoria era adequada e consistente para os fatos; outros, que ela foi invocada de forma casuística e distorcida, para justificar condenações sem provas e satisfazer o clamor punitivo da população e/ou da imprensa.
Foi então que estes últimos produziram um “momento Woody Allen no Direito”: invocaram, como argumento infalível de autoridade, as palavras do próprio jurista alemão, supostamente dizendo que a teoria do domínio do fato fora mal aplicada no caso do mensalão.
Com efeito, na semana passada (11/11), a Folha de São Paulo publicou entrevista com Roxin (leia aqui), que esteve no Rio de Janeiro, onde participou de um importante evento internacional. Na redação da reportagem, deu-se a entender que o jurista estava a par do julgamento e que contestara a aplicação que o Supremo Tribunal Federal deu à sua doutrina.
Logo em seguida, órgãos de imprensa anunciaram que a defesa de José Dirceu procuraria obter parecer do próprio Roxin para fundamentar um recurso a ser interposto contra a condenação. Tudo isto como se Roxin fosse dirigir-se à Suprema Corte brasileira da mesma maneira que McLuhan fez com o chato: “Você não sabe nada sobre a teoria do domínio do fato. É incrível como deixaram você julgar alguma coisa.”
O único problema é que, após a publicação da entrevista e sua circulação nos principais veículos de comunicação do país, o emérito penalista alemão, através de seus alunos brasileiros — os professores Luís Greco, Alaor Leite e Augusto Assis —, emitiu uma nota (leia aqui), a fim de esclarecer ao público os equívocos divulgados pela Folha de São Paulo.
Conforme alerta Roxin, as respostas concedidas aos entrevistadores referiam-se apenas a aspectos gerais da teoria do domínio do fato por ele formulada em décadas de estudos. Todavia, para sua surpresa e desgosto, as respostas divulgadas foram transformadas em uma manifestação concreta sobre a aplicação de sua teoria ao caso do mensalão.
Primeiro: de início, Roxin adverte acerca da imprecisão do título conferido à notícia — “Participação no comando do mensalão tem de ser provada, diz jurista” — que se mostra ambíguo, pois sugere que sua manifestação se referisse ao processo julgado pelo Supremo Tribunal Federal, o que não é verdade.
Segundo: o renomado penalista recusa a autoria de frase, a ele atribuída na matéria — onde consta “Roxin diz que essa decisão precisa ser provada, não basta que haja indícios de que ela possa ter ocorrido” —, cujo teor entende, inclusive, ser juridicamente duvidoso. Além disso, esclarece que a última declaração divulgada na entrevista (acerca da necessária independência dos juízes diante da opinião pública) foi posta fora de contexto, dando a entender que a integridade do Supremo Tribunal Federal estaria comprometida no caso do julgamento do mensalão. Na verdade, a resposta de Roxin era a uma pergunta que lhe fora dirigida pelo professor Grandinetti, que lhe pediu para deixar uma mensagem aos futuros juízes, pois o evento ocorria na Escola da Magistratura.
Terceiro: como se isto não bastasse, o professor de Munique nega que tenha manifestado qualquer “interesse em assessorar defesa de Dirceu”. A fim de que não restem quaisquer dúvidas, Roxin declara, expressamente, que não foi procurado pelos réus ou seus representantes. Registra, ainda, que tampouco tem qualquer interesse em participar do processo e que se recusaria a emitir um parecer sobre o caso, que sequer conhece por completo e sobre o qual não tem nenhum interesse científico.
Como se sabe, no campo da ciência do Direito e, igualmente, da legislação, sofremos com o modo como importamos teorias e institutos jurídicos dos Estados Unidos e, sobretudo, da Europa sem os cuidados necessários e adaptações exigidas à realidade brasileira. Se a independência separou, politicamente, a colônia da metrópole, isto permanece válido nos dias de hoje. Ainda somos reféns de uma cultura eurocentrista.
Desde o poder moderador em pleno constitucionalismo liberal, passando pelo controle difuso de constitucionalidade das leis sem o efeito vinculante, pelas noções de cláusulas gerais, normas programáticas e reserva do possível, até a tendência neoconstitucionalista e a propagada teoria jurídica de Robert Alexy — que defende o uso da ponderação como técnica a ser empregada diante da colisão de princípios —, são cada vez mais recorrentes as apropriações teóricas indevidas que são feitas em terrae brasilis.
Nesta mesma linha, inúmeros são os exemplos dos “argumentos de autoridade” invocados, frequentemente, para legitimar políticas públicas, decisões judiciais, teses e dissertações acadêmicas, etc.
O episódio promovido pela Folha de São Paulo acerca da (in)devida aplicação da teoria do domínio do fato, de Claus Roxin — e, aqui, não adentrarei na discussão ideológica —, pode ser considerado, seguramente, um dos maiores micos jornalísticos dos últimos tempos. Mais do que isso: trata-se de um mico da doutrina penal nacional.
Isto porque, na verdade, o principal recado que Roxin deixou na resposta enviada por seus alunos é que ele “não está em condições de afirmar se os fundamentos da decisão são ou não corretos, sendo esta uma tarefa que incumbe, primariamente, à ciência do Direito Penal brasileira”. No fundo, foi uma maneira educada de dizer: “Vocês não têm uma doutrina, não têm professores, não têm juristas, não têm alguém que possa desenvolver suas próprias ideias e tirar suas próprias conclusões?”
O que poderíamos responderíamos a isso? Que temos uma “doutrina” que está preocupada apenas em “esquematizar”, “platificar” e “simplificar” o Direito? Que temos professores, sim, mas eles se dedicam a ensinar macetes para a aprovação em concursos? Que ainda temos juristas, mas eles andam tão acostumados a repetir o que dizem os tribunais que quando é caso de se questionar sobre a adequação da atuação de uma Corte Suprema, a sua ciência se mostra insuficiente?
Em suma: temos problemas, uma porção deles, por sinal. E só cabe a nós resolvê-los. De nada adianta esperar pela intervenção ex machina de um jurista estrangeiro. No máximo ele nos constrangerá a perceber que a vida simplesmente não é tão fácil assim...
André Karam Trindade é doutor em Teoria e Filosofia do Direito (Roma Tre/Itália), mestre em Direito Público (Unisinos) e professor universitário.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Admitida reclamação sobre cabimento de danos morais pela inscrição do nome de devedor sem prévia notificação

O ministro Villas Bôas Cueva admitiu o processamento de reclamação apresentada por um consumidor contra decisão de turma recursal que entendeu que a falta de notificação prévia sobre a inserção de nome em lista de inadimplentes, por si só, não configuraria dano moral. O ministro concedeu liminar para suspender a decisão, até o julgamento final da reclamação pela Segunda Seção, por considerar que, em um juízo de cognição sumária, o entendimento da turma recursal diverge da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O consumidor ingressou no juizado especial requerendo indenização por danos morais, pelo fato de não ter sido notificado previamente da inscrição em cadastro de inadimplentes. O juízo de primeiro grau concedeu o pedido.

CDC

O entendimento do juiz foi integralmente reformado pela Segunda Turma Recursal Mista do Mato Grosso do Sul ao fundamento de que a falta de notificação prévia da inscrição de nome em cadastro de proteção de crédito, por parte da entidade mantenedora do banco de dados, não configura danos morais. Para o órgão julgador, o interessado deveria demonstrar os transtornos causados pela medida, que não se confundiriam com o mero dissabor.

Irresignado, o consumidor ajuizou reclamação no STJ pleiteando a reforma do julgado. Alega que a decisão da turma recursal contraria entendimento reiterado na Corte, no que tange ao direito de indenização por danos morais na hipótese de indevida inscrição do nome de inadimplentes em cadastros sem a devida comunicação prévia por escrito ao devedor, conforme interpretação do artigo 43, parágrafo 2º, do Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Divergência jurisprudencial

Ao analisar o caso, o ministro Villas Bôas Cueva destacou que cabe reclamação quando as decisões de juizados especiais contrariam a jurisprudência do STJ consolidada em súmulas ou teses adotadas no julgamento de recursos repetitivos.

Para o ministro, em uma análise preliminar do caso, há divergência jurisprudencial no tocante à questão da falta de comunicação sobre a inscrição de nome em cadastro de proteção ao crédito. A título de fundamentação, citou o Recurso Especial 1.083.291, submetido ao rito dos recursos repetitivos, nos termos do artigo 543-C do Código de Processo Civil, no qual ficou assentado que a falta de prévia notificação ao consumidor enseja o direito de compensação por danos morais.

Diante dos fatos narrados, o magistrado admitiu o processamento da reclamação e deferiu a liminar para suspender a decisão, determinando que a turma recursal preste informações.

Prova testemunhal é urgente e pode ser antencipada

Como se sabe, a Lei 11.719/2008 alterou alguns dispositivos do Código de Processo Penal relativos à suspensão do processo, emendatio libelli, mutatio libelli e aos procedimentos. A alteração legislativa, porém, deixou de esclarecer o que deveria ser considerada como prova urgente, para efeito de produção antecipada.
Após entendimentos jurisprudenciais e doutrinários diversos, tentando resolver a questão, o Superior Tribunal de Justiça, equivocadamente, editou súmula tratando do assunto, que recebeu o número 455 e tem o seguinte enunciado: “A decisão que determina a produção antecipada de provas com base no artigo 366 do CPP deve ser concretamente fundamentada, não a justificando unicamente o mero decurso do tempo”. Entre os processos que serviram de precedentes para a nova súmula está o Habeas Corpus 67.672, relatado pelo ministro Arnaldo Esteves Lima. No caso, o ministro relator considerou que não ficou demonstrado o risco de a prova não poder ser produzida mais tarde no processo. O ministro afirmou que apenas as provas consideradas urgentes pelo órgão julgador podem ter sua produção antecipada. Para o ministro, afirmações genéricas não são suficientes para justificar a antecipação. Outro Habeas Corpus que serviu como precedente foi o 111.984, de relatoria do ministro Felix Fischer. No caso, o acusado não compareceu aos interrogatórios e não constituiu advogado. Foi decretada a produção antecipada de provas, com a consideração de que essas seriam imprescindíveis para o processo. O ministro, entretanto, apontou que o artigo 366 do CPP deve ser interpretado levando-se em conta o artigo 225 do mesmo código. Para o magistrado, a antecipação da prova não é obrigatória, devendo ser exceção e não automática. Também foram usados como base para a nova súmula o Eresp 469.775, o HC 132.852, o HC 45.873, entre outros.
Ocorre que mesmo após aquele enunciado, a 5ª Turma do próprio Superior Tribunal de Justiça manteve decisão que negou pedido de Habeas Corpus em favor de um homem acusado pela suposta prática do crime de atentado violento ao pudor. A defesa pretendia revogar a produção antecipada de provas. A decisão foi unânime. O Ministério Público requereu a produção antecipada de provas. O juiz de primeiro grau indeferiu o pedido e suspendeu o processo e o curso da prescrição, já que o acusado não foi localizado. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso e a 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo deu provimento ao pedido para determinar a produção antecipada de prova testemunhal. Em seu voto, o ministro Jorge Mussi, relator, destacou que, à primeira vista, a colheita de prova por antecipação pode representar redução da garantia constitucional de ampla defesa, já que não será dada ao acusado a oportunidade de se defender. Entretanto, o relator ressaltou que, no caso de prova testemunhal, a questão gera alguns debates acerca da urgência na sua colheita, devido a possível esquecimento dos fatos pelos depoentes durante o período em que o processo permanece suspenso. “A memória humana é suscetível de falhas com o decurso do tempo, razão pela qual, por vezes, se faz necessária a antecipação da prova testemunhal com base no artigo 366 do CPP, mormente quando se constata que a data dos fatos já se distancia de forma relevante, para que não se comprometa um dos objetivos da persecução penal, qual seja, a busca da verdade dos fatos narrados na denúncia”, afirmou o ministro. Segundo ele, o deferimento da realização antecipada de provas não traz prejuízo para a defesa, já que, além de o ato ser realizado na presença do defensor nomeado, caso o acusado compareça ao processo futuramente, poderá requerer a produção das provas que julgar necessárias para a tese defensiva. Desde que apresente argumentos idôneos, poderá até mesmo conseguir a repetição da prova produzida em antecipação. (Fonte: BRASIL. STJ — Últimas Notícias. Processo não divulgado em razão do sigilo, 5ª. Turma, relator: Ministro Jorge Mussi. Disponível: http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=107740. Acesso em 20 de nov. 2012).
Irrepreensível tal decisão.
Ora, além das perícias que, evidentemente, adequam-se ao conceito de prova urgente, devemos fazer uma interpretação analógica (artigo 3º, CPP), aplicando-se o artigo 92, in fine do Código de Processo Penal (“inquirição de testemunhas e de outras provas de natureza urgente”). Por este dispositivo, parece-nos que a prova testemunhal é sempre considerada urgente.
Aliás, Aury Lopes Jr. e Cristina Carla Di Gesu afirmam que “o delito, sem dúvida, gera uma emoção para aquele que o testemunha ou que dele é vítima. Contudo, pelo que se pode observar, a tendência da mente humana é guardar apenas a emoção do acontecimento, deixando no esquecimento justamente o que seria mais importante a ser relatado no processo, ou seja, a memória cognitiva, provida de detalhes técnicos e despida de contaminação (emoção, subjetivismo ou juízo de valor).”[1]
Obviamente que tais provas deverão ser produzidas com a prévia notificação do Ministério Público ou do querelante e do defensor nomeado pelo juiz, sem prejuízo de uma reinquirição em momento posterior, quando a marcha processual for retomada com o acusado presente e o seu defensor constituído. A observância do contraditório é de rigor, sob pena da prova ser considerada ilícita. O que não se deve é arriscar-se a ouvir as testemunhas arroladas na peça acusatória após cinco ou dez anos, depois do retorno do réu. Evidentemente que não se pode exigir deste depoente a firmeza (possível) que se espera do depoimento de uma testemunha.
Neste mesmo sentido:
“A prova testemunhal, por sua própria natureza e dispensado específicos argumentos, justifica a antecipação, porque, notoriamente, o mero decurso do tempo prejudica sua eficácia, com a memória sendo prejudicada pelo avançar dos dias, em detrimento da apuração da verdade real. Antever-se prejudicialidade ao direito de defesa do réu com a antecipação da prova oral é mero exercício de adivinhação. Primeiro, sequer se sabe se a prova será prejudicial ou não à defesa. Pode ser colhido depoimento que interesse à própria defesa. E, ainda que o depoimento seja, em tese, prejudicial à defesa, não se sabe se ele, por si, terá o condão de determinar eventual condenação do réu” (TJDF — 1ª T. — Recl. 2008.00.2.010868-0 — rel. Mário Machado — j. 08.01.2009 — DJU 03.02.2009).
Portanto, em que pese o entendimento cristalizado no referido enunciado do Superior Tribunal de Justiça, continuamos defendendo que a prova testemunhal é urgente para os efeitos do artigo 366 do Código de Processo Penal, tal como sempre foi em relação à suspensão do processo em razão de questão prejudicial (artigo 92), sempre se respeitando o devido processo legal (contraditório) e a possibilidade de reinquirição, na forma dos artigos 196 e 616 do Código de Processo Penal (mutatis mutandis).

[1] “Prova Penal e Falsas Memórias: Em Busca da Redução de Danos”, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 14.
Rômulo de Andrade Moreira é procurador-geral de Justiça adjunto para Assuntos Jurídicos na Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria-Geral de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. É professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador (Unifacas), na graduação e na pós-graduação (especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público).

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Quebra de sigilo bancário sem autorização é nula

Desde a edição da Lei Complementar 105/2001, a Receita Federal do Brasil tem adotado um expediente no mínimo absurdo em seus atos fiscalizatórios: a quebra do sigilo bancário do contribuinte sem prévia autorização judicial.
Em uma análise superficial, a lei poderia ser interpretada como uma lei garantidora de direitos, mas em verdade, trata-se de uma lei que viola frontalmente os direitos fundamentais do contribuinte.
Tal norma prevê que as intituições financeiras são obrigadas a informar determinadas movimentações financeiras para o Fisco, independentemente de decisão judicial, chancelando uma violação frontal aos direitos fundamentais.
As instituições que são obrigadas a prestar tais informações, são muitas, conforme previsto no artigo 1º, parágrafo 1º da referida lei complementar, dentre elas os bancos, corretoras de câmbio, sociedades de crédito, administradoras de cartão de crédito, sociedades de arrendamento mercantil, cooperativas de crédito, associações de poupança e empréstimo, bolsas de valores e de mercadorias e futuros, por exemplo. Frise-se que o conceito é tão dilatado, que até mesmo as empresas de factoring estão incluídas na lei.
Como já dito, uma leitura desatenta, pode gerar a ilusão de que a lei complementar em questão é favorável ao contribuinte, obrigando as pessoas nela elencadas ao dever de sigilo, vedando a divulgação de informações obtidas até mesmo pela natureza de sua atividade.
Por outro lado, a própria lei pondera a restrição, para casos reputados como graves, como a prática de crimes por exemplo, sobretudo pela existência de um bem maior.
§ 3º Não constitui violação do dever de sigilo:
I — a troca de informações entre instituições financeiras, para fins cadastrais, inclusive por intermédio de centrais de risco, observadas as normas baixadas pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central do Brasil;
II — o fornecimento de informações constantes de cadastro de emitentes de cheques sem provisão de fundos e de devedores inadimplentes, a entidades de proteção ao crédito, observadas as normas baixadas pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central do Brasil;
III — o fornecimento das informações de que trata o § 2º do art. 11 da Lei nº 9.311, de 24 de outubro de 1996;
IV — a comunicação, às autoridades competentes, da prática de ilícitos penais ou administrativos, abrangendo o fornecimento de informações sobre operações que envolvam recursos provenientes de qualquer prática criminosa;
V — a revelação de informações sigilosas com o consentimento expresso dos interessados;
VI — a prestação de informações nos termos e condições estabelecidos nos artigos 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º e 9 desta Lei Complementar.
Não entraremos na seara do direito penal, uma vez que não objeto do presente trabalho, mas o legislador não se limitou a mitigar o sigilo somente nos casos da práticas de crimes, estendendo a possibilidade de acesso às informações acerca da movimentação bancária para quaisquer contribuintes.
Frise-se que mesmo no tocante à prática criminosa, a atividade jurisdicional é fundamental para a efetivação da violação ao princípio constitucional da privacidade.
Ocorre que, na forma do artigo 5º da referida lei complementar, as instituições financeiras elencadas anteriormente são obrigadas a informar à administração tributária da União as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços. Dentre as operações financeiras que devem ser informadas sem a intervenção judicial, estão arrolados depósitos à vista e a prazo, inclusive em conta de poupança, pagamentos efetuados em moeda corrente ou em cheques, emissão de ordens de crédito ou documentos assemelhados, resgates em contas de depósitos à vista ou a prazo, inclusive de poupança, contratos de mútuo, descontos de duplicatas, notas promissórias e outros títulos de crédito, aquisições e vendas de títulos de renda fixa ou variável, aquisições de moeda estrangeira, operações com cartão de crédito e operações de arrendamento mercantil.
Como se pode ver, por meio desse dispositivo, a autoridade fiscal passa a ter acesso as informações de movimentação financeira do contribuinte, sem a autorização prévia do Poder Judiciário. Tal situação viola claramente o direito fundamental ao sigilo bancário.
Na tentativa de dar um ar de legalidade às quebras de sigilo, a lei traz o seguinte dispositivo:
"§ 2º As informações transferidas na forma do caput deste artigo restringir-se-ão a informes relacionados com a identificação dos titulares das operações e os montantes globais mensalmente movimentados, vedada a inserção de qualquer elemento que permita identificar a sua origem ou a natureza dos gastos a partir deles efetuados."
Ora, tal dispositivo busca em verdade, limitar a atuação da fiscalização. No entanto, o sigilo profissional já está previsto no artigo 198 do CTN, sendo desnecessária qualquer outra limitação.
Acima do sigilo bancário está o direito constitucional à intimidade e privacidade do indivíduo. É teratológica a norma em comento, pois o contribuinte é constrangido por ter suas despesas, seu perfil de consumo e seus hábitos expostos para terceiros sem qualquer fundamento jurídico, mediante uma mera liberalidade da Receita Federal.
Segundo Milton Fernandes, o direito à intimidade é referente ao modo de ser da pessoa, que consiste na exclusão do conhecimento, de outros, de tudo a que ele se refira.[1]
O ordenamento jurídico brasileiro garante o direito à proteção da esfera íntima da pessoa. Vejamos o tratamento constitucional, previsto no artigo 5º:
"X — são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".
Assim, estamos diante de uma garantia constitucional, que somente poderá ser restringida por decisão judicial fundamentada ou, nas hipóteses previstas no ordenamento jurídico, pelas comissões parlamentares de inquérito.
Antonio Ramos de Vasconcelos, aborda o direito à intimidade frente ao sigilo bancário: “A quebra de sigilo bancário, fiscal ou telefônico, atividade que se reveste de extrema gravidade jurídica e cuja prática pressupõe, necessariamente, a competência do órgão judiciário ou legislativo que a determina, só deve ser decretada, e sempre em caráter de excepcionalidade, quando existentes fundados elementos de suspeita que se apóiem em indícios idôneos, reveladores de possível autoria de prática delituosa por parte daquele que sofre a investigação penal, competência realizada pelo Estado. A relevância da garantia do sigilo, que traduz uma das projeções realizadoras do direito à intimidade, impõe, por isso mesmo, cautela e prudência na determinação da rupturada esfera de intimidade que o ordenamento jurídico, em norma de salvaguarda, pretendeu subordinar a cláusula de reserva constitucional.”[2]
Percebe-se de forma clara que a violação do sigilo bancário toca na intimidade do contribuinte, o que somente pode ocorrer em situações extremas, como na investigação da prática criminosa, na persecução penal, que é a ultima ratio do Direito.
O envio de informações de depósito por instituições bancárias à Receita Federal de forma indiscriminada, sem autorização judicial, viola a intimidade do indivíduo. Mesmo diante de um ilícito criminal, há necessidade de decisão fundamentada, conforme previsto na Carta Magna.
É indiscutível que as despesas e as receitas obtidas pelo contribuinte fazem parte da intimidade e da sua privacidade, pois representam os desejos de cada indivíduo. Neste sentido, Celso Bastos: "Todas as despesas ordinárias feitas pelo cidadão comum em sua vida cotidiana devem ser consideradas parte de sua vida privada, familiar ou doméstica e, portanto, protegidas contra interferências a despeito de qualquer pretexto. Desde as condutas mais corriqueiras como as compras efetuadas em um supermercado para manutenção da família, quanto aquelas outras moralmente reprováveis, como presentes ou jóias compradas e dadas a quem presta ao homem serviços de natureza extraconjugal, tudo está abarcado pelo manto da proteção à vida privada, familiar ou doméstica... O direito à intimidade e à vida privada representa aspiração universal, cabendo aos Estados a responsabilidade de sua tutela, pouco importando os sistemas políticos que orientam sua ação."[3]
Ademais, o sigilo é imprescindível para o deslinde das relações financeiras ou mesmo para as relações entre particulares.
Frise-se que não há uma defesa do sigilo absoluto no presente estudo, mas tão somente do sigilo como direito fundamental do indivíduo, sendo plenamente possível tal quebra, com autorização do Poder Judiciário, desde que os demais valores envolvidos sejam suficientemente importantes para tal violação.
Em outras palavras, caso haja o confronto entre o direito ao sigilo e uma outra garantia fundamental também importante, caberá ao juiz ponderar acerca a preponderência do princípio a ser aplicado.
No entanto, a fiscalização não é um valor constitucional tão importante quanto o núcleo de garantias fundamentais, de modo que a ponderação deve sempre tender para a aplicação do dever de sigilo, devendo o Fisco buscar outros meios de satisfazer sua atividade, mas não invadindo a esfera individual do contribuinte.
Como se não bastasse, a segurança jurídica é um outro princípio violado quando o acesso às informações financeiras do contribuinte é liberado sem restrições ou pela atuação do Judiciário.
Quanto ao princípio da segurança jurídica, vejamos o posicionamento de Humberto Ávila:
“Em suma, o exame minucioso dos seus fundamentos permite concluir que a constituição protege todas as dimensões da segurança jurídica, atribuindo-lhe, pelo modo e pela insistência com que prevê os seus independentes fundamentos, elevada importância como princípio constitucional protetivo do indivíduo e destinado a garantir um estado de confiabilidade e de calculabilidade do e pelo ordenamento jurídico, baseado na sua cognoscibilidade.
Todas essas constatações são de extrema importância tanto para a compreensão do conteúdo do princípio constitucional da segurança jurídica como para delimitação da sua eficácia. A Constituição, repita-se, não apenas protege a segurança jurídica — ela a superprotege. Esta superproteção está intimamente conectada com o princípio do Estado de Direito tanto na sua dimensão formal, que visa a regrar e repartir o poder do Estado, quanto na sua dimensão material, que se destina a limitar o exercício do poder por da proteção dos direito fundamentais.”[4]
Percebe-se que com a quebra do sigilo, ainda que indireta, pelo envio das informações pelas instituições financeiras à Receita Federal, além de violada a privacidade e a intimidade, também é violada a segurança jurídica.
A confiança do contribuinte na atividade estatal se esvai com a atuação arbitrária do poder público.
Cristalina é, portanto, a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade do envio de informações sobre movimentações financeiras dos contribuintes à Receita, sem a intervenção jurisdicional, ao passo que viola a segurança jurídica, a privacidade, a intimidade e a confiança do contribuinte.

[1] Fernandes, Milton. Direito à intimidade. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 1977, p.99.
[2] Vasconcelos, Antonio Ramos de. Proteção Constitucional do Sigilo Bancário, Fiscal e Telefônico in Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, nº 214, 1996, p.5.
[3] BASTOS, Celso. Estudos e Pareceres: direito público, constitucional, administrativo, municipal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. pp. 62-65.
[4] Ávila, Humberto. Segurança Jurídica: entre permanência, mudança e realização do direito tributário. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2012. pp. 248-249
Gabriel Quintanilha é advogado no Rio de Janeiro, sócio do escritório Gabriel Quintanilha Advogados, professor de Direito Tributário e de Planejamento Tributário do IBMEC, FGV e da pós-graduação CEDAP/UFF e coordenador acadêmico da Hub Desenvolvimento Profissional. Exerceu o cargo de Subsecretário de Fazenda do Município de São João de Meriti.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Lewandowski e Barbosa: o cachimbo entorta a boca


Caricatura: Carlos Costa - Jornalista [Spacca]



“A aula do prof. Dr. Enrique Ricardo Lewandowski no mestrado de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da USP deveria terminar às 19 horas daquela calorosa sexta-feira, 23 de março de 2007. Mas os alunos que o cercam ao final da palestra não têm pressa em sair, apesar da sala abafada no segundo andar. São perguntas e comentários de uma plateia que acompanhou atenta a preleção. Ministro do Supremo Tribunal Federal, Lewandowski não revela cansaço, apesar de haver enfrentado os percalços de um vôo desde Brasília no começo da tarde – nesse período de esperas provocadas pela crise aérea. Atento, sorri para uma aluna, atende a um professor assistente, ouve algum comentário, indica uma leitura, recebe congratulações. Finalmente se dirige para as escadas – sua agenda ainda prevê uma entrevista.
“No andar de baixo, há uma hora era esperado pela equipe de reportagem de uma revista jurídica da cidade de Osasco, para uma conversa sobre temas da atualidade. O editor, o repórter e a fotógrafa estavam acomodados na sala da Congregação, um espaço solene em que impera uma tela representando o criador dos cursos jurídicos no Brasil, D. Pedro I. Nas paredes da sala, desfilam os nomes dos juristas que passaram pela direção da ‘Escola das Arcadas’ – e apenas eles parecem não se incomodar com o calor sufocante desse espaço solene. 
Porte atlético, alto, Lewandowski desce o último lance de escada e aperta a mão de um bedel: ‘Há quanto tempo não lhe vejo, tudo bem?’. Figura carismática, cumprimenta amável a senhora do café, e oferece água aos repórteres, pedindo mais um minuto de paciência, pois tem de atender a um professor da PUC-SP, que o esperava na sala ao lado. Finalmente a entrevista inicia. O ministro responde aos repórteres da revista, que começam perguntando sobre sua trajetória.
Esse texto foi a abertura de um perfil que publiquei há cinco anos, e vem agora à memória neste momento em que Lewandowski é visto pelo público e por colunistas como a “encarnação do mal” por suas posturas no julgamento da Ação Penal 470, o popular mensalão. Foi vaiado nas eleições, evita estar em evidência. Mas outro dia, em sala de aula, uma aluna do curso de pós-graduação lato sensuem jornalismo da Cásper Líbero, advogada, alertou-me para um fato: o ministro continua, no fundo, a agir como advogado. Como diz o ditado, o hábito do cachimbo entorta a boca.
A cena descrita no início desse texto ocorria doze meses após a posse de Lewandowski no STF. Ele havia entrado pelo quinto constitucional para o desembargo do Tribunal Paulista, deixando uma destacada carreira de 16 anos (1974-1990) como advogado – a que se seguiram 22 anos como magistrado (16 como desembargador e seis como ministro do STF).
Nos tempos de advogado e professor, foi assessor jurídico na Assembleia Legislativa do estado, secretário de governo e de assuntos jurídicos de São Bernardo do Campo, adquirindo experiência administrativa na presidência da Emplasa, Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano, criada em 1975 para cuidar do planejamento da Grande São Paulo. Resultado disso é que seu gabinete no STF adota o Sistema de Gestão da Qualidade, baseado nas normas da família ABNT NBR ISO 9000, como se pode conferir no site do Supremo.
“A entrada pelo quinto é difícil, pela própria concorrência prévia na OAB ou no Ministério Público”, explicava o então presidente da Academia Paulista de Magistrados, o falecido Antonio Carlos Viana Santos. O candidato, no caso de advogado, tem de passar pelo filtro da OAB, depois pela triagem do tribunal, e finalmente passar pelo crivo do Executivo. Lewandowski concordou na época. “O ingresso no Judiciário pelo quinto constitucional é uma entrada pela porta da frente: tem de ter dez anos de prática profissional, notório saber jurídico, aferido pela Ordem ou pelo MP, e passar pelo crivo do Tribunal e do Executivo. Mas a participação dos magistrados ingressos pelo quinto é um fator de oxigenação para o Judiciário. Para mim, a passagem pela advocacia foi fundamental para me preparar para a judicatura”, concluía então.
Vencer aquele desafio não representara grande problema para o então jovem advogado. Ele vinha há muito se preparando para novas empreitadas, acumulando títulos. Formado em Ciências Políticas e Sociais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1971, graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de São Bernardo em 1973. “Fui jovem no auge da guerra fria”, comenta: “Quis estudar Ciências Sociais para entender o mundo, e fiz Direito porque queria nele interferir”.
O mestrado em Direito veio em 1980, com a dissertação “Crise institucional e salvaguardas do Estado”, na USP. Ele é mestre em Relações Internacionais pela Fletcher School of Law and Diplomacy, da Tufts University. Em 1982, tornou-se doutor em Direito pela USP com o trabalho “Origem, estrutura e eficácia das normas de proteção dos Direitos Humanos na ordem interna e internacional” – editado em livro pela Forense em 1984. A livre docência ele defendeu em 1994.Tanto o mestrado quanto o doutorado foram orientados pelo professor Dalmo de Abreu Dallari, a quem sucedeu na titularidade do curso de Teoria Geral do Estado na USP. Lá, criou, tempos depois, a disciplina de Direitos Humanos. Foi essa bagagem que trouxe para o Judiciário, quando, em 1991, ingressou no hoje extinto Tribunal de Alçada Criminal.
No STF, Lewandowski se destacou na defesa da Lei da Ficha Limpa nas eleições de 2010, e no papel de presidente garantiu a sua aplicação no Tribunal Superior Eleitoral. Do mesmo modo, votou pela sua constitucionalidade no STF. Outro destaque foi a proibição do nepotismo. A extensão da proibição aos demais Poderes da República foi adotada após os ministros julgarem um recurso extraordinário em que o Ministério Público do Rio Grande do Norte contestava decisão do Tribunal de Justiça do mesmo estado que vetara a aplicação da resolução aos Poderes Legislativo e Executivo do município de Água Nova, interpretando que a resolução do CNJ deveria ser aplicada apenas no Judiciário. Relator da matéria, Lewandowski votou contra a contratação, por parte do município, de um motorista, irmão do vice-prefeito. Por sua iniciativa, propôs a votação da súmula vinculante que estabelece a proibição da contratação de familiares de até terceiro grau por parte dos órgãos dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário).
Agora, no julgamento do Mensalão, como a grande imprensa já havia condenado os mensaleiros antes que a primeira testemunha do caso fosse ouvida, tudo o que não coincidisse com essa posição foi apresentado como aberração. Daí colocarem o ministro Lewandowski nessa condição. Do ponto de vista jurídico, no entanto, sua atuação é importante, pois mostrou que as coisas podem ser vistas de mais de uma maneira. E do ponto de vista político, sua importância foi legitimar o julgamento, permitindo que o processo não se transformasse num linchamento.
Em contraponto, o atual presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa, aplaudido relator do mensalão, tem longa trajetória na Promotoria. Também com sólida formação acadêmica, é doutor e mestre em Direito Público pela Universidade de Paris-II (Panthéon-Assas), onde seguiu extenso programa de doutoramento (1988-1992), de que resultaram três diplomas de pós-graduação. Cumpriu também o programa de Mestrado em Direito e Estado da Universidade de Brasília (1980-1982), obtendo o diploma de Especialista em Direito e Estado. Professor licenciado da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde ensinou Direito Constitucional e Direito Administrativo, foi Visiting Scholar (1999-2000) no Human Rights Institute da Columbia University School of Law.
No campo profissional, sua trajetória foi construída nos 19 anos de Ministério Público Federal (1984-2003), com atuação em Brasília (1984-1993) e Rio de Janeiro (1993-2003). Antes, chefiara a Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde (1985-1988) e advogou no Serviço Federal de Processamento de Dados (1979-1984), após servir na chancelaria do Ministério das Relações Exteriores (1976-1979), tendo trabalhado na Embaixada do Brasil em Helsinki, Finlândia.
Ou seja, embora este texto tente lançar uma luz para entender algumas reações da alma de advogado de Lewandowski no julgamento do mensalão, também ajuda a entender por que o ministro Joaquim Barbosa de certo modo repete seu habitus de promotor. Como diz um sagaz observador, o relator encampou quase todas as teses da Procuradoria-Geral da República, limitando seu voto a repetir a denúncia. Quase duas décadas de Ministério Público também moldaram seu modo de ser. Repetindo, o uso do cachimbo entorta a boca.
Carlos Costa é jornalista, professor da Faculdade Cásper Líbero e editor da revista diálogos & debates.

Jurisprudência relativiza hipossuficiência de alimentado

O artigo 1.699 do Código Civil brasileiro vincula à mudança na situação econômica de quem supre os alimentos condição para alterá-los ou deles se exonerar e, em inverso sentido, para quem os recebe, majorá-los.
Sempre controversa no que tange ao ex-cônjuge ou parceiro (a), a obrigação alimentar, nestes casos, é considerada um ônus injusto no entendimento de quem o fornece. É entendido como um "castigo" à separação, ao divórcio ou ao fim da união estável.
Com tal juízo, consequentemente os ânimos ficam mais acirrados, principalmente porque os alimentos prestados a/ao ex-cônjuge eram deferidos jurisprudencialmente como uma verdadeira "pensão do INSS".
O acórdão, da lavra da Ministra Nancy Andrighi, no RESP 933.355/SP, com o mesmo entendimento do Acórdão na Apelação Cível 70.046.501.383, da 8ª Câmara Cível do TJ-RS, trouxe um novo paradigma à questão, autorizando a exoneração ou a redução dos alimentos pagos, independentemente da alteração no binômio capacidade/necessidade.
Tal jurisprudência lança nova luz sobre a questão, desvinculando da pessoa do ex-cônjuge alimentado o direito a exigir do alimentante verdadeira "aposentadoria", como se o segundo fosse órgão público de previdência.
Deve ser ressaltado, em tais decisões, a valorização do lapso temporal no qual os alimentos são prestados, bem como a capacidade para o trabalho de quem os recebe, pela qual os doutos julgadores adequaram a aplicação da lei ao tempo em que vivemos.
Assim, a figura do alimentado/a, antes considerado com hipossuficiente em relação ao alimentante, foi relativizada, passando a lhe ser exigido, com o novo entendimento, que paga a pensão por lapso temporal suficiente para que revertesse tal situação, se assim não agiu, não deve o alimentante ser penalizado por sua inércia.
O alívio aos prestadores de alimentos, nos novos termos postos pela jurisprudência atual, faz-se sentir a cada decisão exoneratória. Reflete-se sobre as novas ações de separação/divórcio e a dissolução de união estável, balizado o entendimento que os alimentados são agentes das próprias vidas e desvinculando dos alimentantes a responsabilidade sobre o sustento prolongado daqueles.

Isabel Cochlar é advogada, especialista em Direito de Família.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

TRIBUNAL DO JÚRI - Inquirição cruzada deixa advogado testemunhar


Advogados e promotores, no Tribunal do Júri, não se sentam no banco das testemunhas, mas nem por isso deixam de testemunhar. Aliás, são as principais testemunhas do caso, quando descrevem os fatos e apresentam provas aos jurados nas alegações iniciais e, depois, nas finais. Assim, existem pelo menos duas boas oportunidades para testemunharem durante um julgamento. Na verdade, três: a inquirição cruzada é mais uma grande oportunidade para o advogado (ou promotor) apresentar o seu próprio testemunho aos jurados.
Na inquirição cruzada, aquela em que a testemunha arrolada pela outra parte é interrogada, o advogado (ou promotor) pode fazer perguntas "indutoras de resposta" — que, na verdade, têm muito pouco de pergunta. O que se faz é narrar os fatos em frases curtas, com uma pequena pergunta ao final, que serve para pedir a confirmação da testemunha. Na sequência de frases curtas, o advogado (ou promotor) acaba oferecendo um testemunho aos jurados — mesmo que aparentemente indireto. Caberá à testemunha apenas responder "sim" ou "não" ou fazer um movimento com a cabeça com a mesma finalidade.
Assim, cada profissional tem sua chance de oferecer testemunhos aos jurados durante a inquirição direta (a de suas próprias testemunhas) e da inquirição indireta (a de testemunhas da outra parte). Na inquirição direta, os jurados estarão conectados à testemunha e dificilmente se dão conta de que o advogado (ou promotor) está regendo a apresentação. Nos dois casos, o objetivo do profissional é buscar o controle da situação, para que os "testemunhos" sejam convincentes, diz o advogado e professor de Direito Elliott Wilcox, editor do TrialTheater.
Para isso, é preciso uma boa preparação para o julgamento. "O melhor advogado de qualquer contencioso é o advogado que melhor se prepara para o contencioso", diz o professor. No entanto, existem algumas técnicas que podem ajudar o profissional a fazer um bom trabalho na inquirição cruzada. Uma é cortar toda a "gordura" das perguntas indutoras de resposta. Isto é, retirar delas todas as palavras irrelevantes. Palavras em excesso reduzem a força da inquirição, podem criar confusão e, pior, dão uma oportunidade à testemunha alheia para tergiversar em sua resposta, em vez oferecer um "sim" direto.
Eis três exemplos de "gorduras" que podem ser cortadas de uma inquirição direta que pretende ter a força de um testemunho convincente:
1 – AdvérbiosEles diluem o poder da inquirição cruzada porque fornecem à testemunha oportunidades de discordar de suas afirmações/perguntas. Por exemplo, você pode dizer à testemunha: "Você caminhou em direção à praça, afastando-se da cena do acidente". Se você tem a informação certa, não há espaço para discordância. A resposta será "sim".
Mas se você acrescenta um advérbio na formulação da sentença, as coisas mudam. Por exemplo: "Você caminhou rapidamente em direção à praça, afastando-se da cena do acidente". A testemunha pode não gostar do "rapidamente" e dar uma resposta agressiva, que não convém a seu propósito. Afinal, advérbios carregam uma carga de interpretação subjetiva. Podem conter uma conotação pouco agradável, ao contrário de uma informação objetiva (que é diferente de uma informação estritamente objetiva ou possivelmente objetiva).
Se você escrever suas afirmações/perguntas com antecedência, revise o texto e considere cortar todas as palavras terminadas em "mente". Advérbios são fáceis de achar em qualquer texto: eles modificam os verbos, como os adjetivos modificam os substantivos e, portanto, estão sempre por perto de verbos (às vezes, estão muito perto, às vezes consideravelmente perto).
2 – PercepçõesAlguns advogados e promotores tendem a perguntar a testemunhas o que elas perceberam de um acontecimento, em vez de perguntar o que aconteceu. Exemplos:
 "Você viu quando o policial sacou sua arma?"
"Você viu quando o policial apontou o revólver para o suspeito?"
"Você notou se havia alguma coisa na mão do suspeito?
"Você viu quando o policial acionou o gatilho da arma?"
"Você ouviu um único tiro?"
"Você viu quando o suspeito caiu no chão?"
Esse tipo de formulação da pergunta dá maior ênfase ao que a testemunha viu, enquanto o mais importante é definir o que o homem fez. Em outras palavras, os jurados podem ser convencer apenas de que a testemunha é, de fato, uma testemunha dos fatos. Para fortalecer o testemunho, é preciso se focar nos eventos e não nas percepções da testemunha. Refazendo as perguntas, para limitá-las aos fatos:
"O policial sacou sua arma?"
"O policial apontou o revólver para o suspeito?"
"Havia alguma coisa na mão do suspeito?
"O policial acionou o gatilho?"
"Um único tiro foi disparado?"
"O suspeito caiu no chão?"
3 – Pergunta pós-afirmaçãoÉ uma técnica de inquirição cruzada. São perguntas que induzem a resposta, correto?
"Você tinha 30 milhões de ações da SuperMega, correto?"
"Seu melhor amigo é o presidente da empresa, não é verdade?"
"Ele lhe disse para vender todas suas ações em 2 de outubro, certo?"
"Você vendeu todas as suas ações, não foi?"
"Três dias mais tarde, a empresa entrou em falência, correto?"
Usada sem exagero, essa técnica de formular perguntas pode criar um impacto dramático, quando for necessário. Todavia, o uso em excesso, pode ser prejudicial, principalmente quando se repete várias vezes as mesmas coisas ("correto", "correto", "correto"). Parece um "disco furado". A eliminação da pergunta final pode racionalizar a inquirição cruzada. Basta dar à afirmação a entonação de pergunta:
"Você tinha 30 milhões de ações da SuperMega?"
"Seu melhor amigo é o presidente da empresa?"
"Ele lhe disse para vender todas suas ações em 2 de outubro?"
"Você vendeu todas as suas ações?"
"Três dias mais tarde, a empresa entrou em falência?"
Para fazer esse tipo de pergunta, você precisa ter certeza de que a resposta será "sim", conforme esperado — e que um "não" é inesperado. E não o contrário. Ou seja, pode ser contraproducente fazer uma pergunta que provoque a resposta "não", porque isso pode destruir sua autoridade. Imagine perguntar a uma testemunha: "Você gosta de levar vantagem em tudo?".
No caso dos Estados Unidos, há mais um pequeno problema: alguns juízes podem achar que não basta a entonação colocada em uma afirmação para convertê-la em pergunta. Isso se resolve alternando a formulação das sentenças — é útil da para se dar ênfase a determinadas perguntas:
"Você tinha 30 milhões de ações da SuperMega?"
"Seu melhor amigo é o presidente da empresa, correto?"
"Ele lhe disse para vender todas suas ações em 2 de outubro, certo?"
"Você vendeu todas as suas ações, não foi?"
"Três dias mais tarde, a empresa entrou em falência?"
Vale a pena investir em sua qualificação de "testemunha" em um julgamento. Pode ser a diferença entre ganhar e perder um julgamento, diz Elliott Wilcox.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

"Posição hierárquica não fundamenta o domínio do fato"

A pessoa que ocupa uma posição no topo de uma organização precisa ter emitido uma ordem para que seja condenada pelo crime. O esclarecimento sobre a comentada teoria do domínio do fato foi feito pelo seu principal estudioso, Claus Roxin, em entrevista ao jornal Tribunal do Advogado, da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro.
O professor alemão, de 81 anos, esteve no Brasil na semana passada, momento em que os debates sobre a teoria à qual se dedicou por tanto tempo atingiram o seu auge no Brasil, ao ser aplicada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do mensalão.
“O 'ter de saber' não é suficiente para o dolo, que é o conhecimento real e não um conhecimento que meramente deveria existir. Essa construção de um suposto conhecimento vem do Direito anglo-saxônico. Não a considero correta”, ensina o professor emérito da Faculdade de Munique.
Leia a entrevista concedida ao jornal Tribuna do Advogado:
A teoria do domínio do fato foi citada recentemente no julgamento da Ação Penal 470. Poderia discorrer sobre seu histórico, fazendo uma breve apresentação?
Claus Roxin
A teoria do domínio do fato não foi criada por mim, mas fui eu quem a desenvolveu em todos os seus detalhes na década de 1960, em um livro com cerca de 700 páginas. Minha motivação foram os crimes cometidos à época do nacional-socialismo.
A jurisprudência alemã costumava condenar como partícipes os que haviam cometido delitos pelas próprias mãos — por exemplo, o disparo contra judeus —, enquanto sempre achei que, ao praticar um delito diretamente, o indivíduo deveria ser responsabilizado como autor. E quem ocupa uma posição dentro de um aparato organizado de poder e dá o comando para que se execute a ação criminosa também deve responder como autor, e não como mero partícipe, como rezava a doutrina da época.
De início, a jurisprudência alemã ignorou a teoria, que, no entanto, foi cada vez mais aceita pela literatura jurídica. Ao longo do tempo, grandes êxitos foram obtidos, sobretudo na América do Sul, onde a teoria foi aplicada com sucesso no processo contra a junta militar argentina do governo Rafael Videla, considerando seus integrantes autores, assim como na responsabilização do ex-presidente peruano Alberto Fujimori por diversos crimes cometidos durante seu governo.
Posteriormente, o Bundesgerichtshof [equivalente alemão de nosso Superior Tribunal de Justiça, o STJ] também adotou a teoria para julgar os casos de crimes na Alemanha Oriental, especialmente as ordens para disparar contra aqueles que tentassem fugir para a Alemanha Ocidental atravessando a fronteira entre os dois países. A teoria também foi adotada pelo Tribunal Penal Internacional e consta em seu estatuto.
Seria possível utilizar a teoria do domínio do fato para fundamentar a condenação de um acusado, presumindo-se a sua participação no crime a partir do entendimento de que ele dominaria o fato típico por ocupar determinada posição hierárquica?
Claus Roxin Não, de forma nenhuma. A pessoa que ocupa uma posição no topo de uma organização qualquer tem que ter dirigido esses fatos e comandado os acontecimentos, ter emitido uma ordem. Ocupar posição de destaque não fundamenta o domínio do fato. O 'ter de saber' não é suficiente para o dolo, que é o conhecimento real e não um conhecimento que meramente deveria existir. Essa construção de um suposto conhecimento vem do direito anglo-saxônico. Não a considero correta.

No caso de Fujimori, por exemplo, ele controlou os sequestros e homicídios que foram realizados. Ele deu as ordens. A Corte Suprema do Peru exigiu as provas desses fatos para condená-lo. No caso dos atiradores do muro, na Alemanha Oriental, os acusados foram os membros do Conselho Nacional de Segurança, já que foram eles que deram a ordem para que se atirasse em quem estivesse a ponto de cruzar a fronteira e fugir para a Alemanha Ocidental.
É possível a adoção da teoria dos aparelhos organizados de poder para fundamentar a condenação por crimes supostamente praticados por dirigentes governamentais em uma democracia?
Claus Roxin
Em princípio, não. A não ser que se trate de uma democracia de fachada, onde é possível imaginar alguém que domine os fatos específicos praticados dentro deste aparato de poder. Numa democracia real, a teoria não é aplicável à criminalidade de agentes do Estado. O critério com que trabalho é a dissociação do Direito (Rechtsgelöstheit). A característica de todos os aparatos organizados de poder é que estejam fora da ordem jurídica.
Em uma democracia, quando é dado o comando de que se pratique algo ilícito, as pessoas têm o conhecimento de que poderão responder por isso. Somente em um regime autoritário pode-se atuar com a certeza de que nada vai acontecer, com a garantia da ditadura.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

É possível atirar só para ferir?

Por: Humberto Wendling




O policial realmente precisa reagir contra um ataque criminoso? Ele precisa disparar sua arma contra o delinquente que tenta matá-lo? O policial tem mesmo que matar essa pessoa quando atira nela? Ele não pode ser civilizado, e somente verbalizar com o bandido? Ele não pode apenas mirar nos braços ou nas pernas? A vida do criminoso não seria poupada, se o policial treinasse para atirar em áreas menos letais?



Algumas pessoas imaginam que o policial pode atirar no criminoso “só um pouquinho”. Mas "só um pouquinho" não existe em termos de força letal. Toda vez que alguém pressiona o gatilho, existe uma boa chance de ocorrer um sério ferimento ou a morte. A lei sequer sugere que a legítima defesa (com emprego da força letal) deva ser empregada apenas para ferir e sem qualquer chance de morte.

Entretanto, uma publicação jornalística informou que a polícia do Estado do Rio de Janeiro matou 327%* mais pessoas que a polícia de São Paulo, que tinha o dobro do efetivo. Para um leigo, esse tipo de informação sugere a existência de centenas ou milhares de mortes desnecessárias causadas por policiais psicopatas. Por outro lado, mensagens assim criam a ideia de que TODOS os policiais em TODAS as ocasiões não necessitariam atirar; ou então devessem atirar nos braços e pernas dos agressores durante a aplicação da força letal.

Infelizmente, quando o policial atira contra o bandido, sempre há espaço para se acreditar que ele empregou mais força que o necessário para controlar o agressor que ameaçava sua vida. Então, o policial e até o cidadão, em sua legítima defesa, devem enfrentar as acusações pela intenção de matar, em razão do suposto excesso no emprego da força, muitas vezes avaliada em relação à quantidade de disparos, de perfurações ou pelo ponto de impacto na “vítima” (cabeça e costas, por exemplo).

Obviamente, não se pode esperar total imunidade para aquele que empregou uma arma de fogo para se salvar. Contudo, o mínimo que se deve ter são pessoas altamente capacitadas para uma avaliação técnica da ocorrência, sob o ponto de vista das dinâmicas dos confrontos armados.

O trabalho policial é controlado no mundo inteiro pelos bons policiais (que ficam afastados daqueles maculados), pelas corregedorias e ouvidorias, pelo Ministério Público, por outros órgãos do Estado e pela imprensa. Mas no Brasil parece haver uma aversão ao universo policial, talvez pela avaliação não especializada de dados “estatísticos”, que não alcançam o terror dos conflitos mortais enfrentados pela polícia. Notícias como “A tropa está fora de controle?”; “Em 11 anos, Rio registra 10 mil mortos em confrontos”; “Polícia mata uma pessoa no Brasil a cada cinco horas”; “Policiais militares matam 56,5% mais no Estado de SP”; “Polícias brasileiras usam diariamente munição proibida em guerras”; “Rio de Janeiro: uma polícia que morre muito e mata mais” e “Máquina mortífera” são exemplos de conceitos que sugerem uma polícia assassina e incompetente.

Ao assistir cenas de tiroteios na televisão, você já deve ter ouvido comentários como: “Deviam atirar para assustar!”, “É só atirar na perna!”, “A polícia exagerou!”, “Não precisa mais que dois tiros para resolver o problema!”. Quando civis avaliam, num almoço em família, numa entrevista no telejornal ou num tribunal, as mortes decorrentes de confrontos armados com policiais, essas ideias sem base técnica sempre surgem.

A questão primordial é julgar a reação de um homem tendo como referência conceitos pré-concebidos, preconceituosos, amadores e sem base científica. É o piloto do jogo de computador Flight Simulator julgando as ações de um piloto de caça da Força Aérea! Desse modo, atirar para ferir é ingenuamente considerado um meio razoável ou ideal para interromper um comportamento perigoso que ameaça a vida do policial e do cidadão inocente.

Mas a verdade é que esse tipo de pensamento é resultado do TREINAMENTO DA TV, cujos filmes, seriados e novelas mostram atores encarnando policiais capazes de fazer todo tipo de peripécias para dominar centenas de bandidos. Nos filmes, o policial consegue contar os disparos; acertar a perna ou o braço do bandido, sem atingir um osso ou um vaso sanguíneo importante e/ou conversar com o parceiro no meio do tiroteio. O mocinho é sempre atingido de raspão e no final tudo termina numa bela briga. A questão é que isso reflete a incompreensão sobre a verdadeira face dos tiroteios e gera expectativas fora do comum em relação às habilidades reais de um policial.

Então, por que atirar para ferir não é possível nem desejável no desempenho policial padrão? Acredita-se que atirar na perna ou no braço de um criminoso tende a interromper a agressão, evitando a necessidade de se atirar na cabeça ou no peito, locais onde o resultado morte é mais provável. Ao se exigir apenas a aplicação do menor nível de força necessária para controlar um criminoso, espera-se aparentemente reduzir a probabilidade de disparos considerados excessivos ou intencionalmente mortais.

Contudo, estudos conduzidos pela Universidade Estadual de Minnesota, nos Estados Unidos, revelam alguns problemas práticos dessa ideia. Eles explicam algumas das características básicas do movimento corporal em relação ao tempo de reação e aos riscos de acertos e erros durante tiroteios reais.

A análise dos componentes humanos no tempo de reação demonstra que um número de princípios está em operação em todos os tiroteios envolvendo policiais. Estes princípios estão ligados à percepção (ato de ver e entender uma situação), ao processamento (ato de dar sentido àquilo que é visto e tomar decisões com base neste sentido) e à reação (ato de responder ao que é percebido e processado).

Assim, tais estudos indicam que as mãos e braços podem ser as partes móveis mais rápidas e ágeis do corpo humano. Por exemplo, um criminoso pode mover a mão e o antebraço através do corpo num ângulo de 90º em 12/100 de segundo (dobrar o braço para apontar uma arma na linha da cintura, por exemplo). Ele ainda pode mover a mão a partir da coxa até a altura do ombro em 18/100 de segundo (levantar o braço para apontar uma arma na linha do ombro).

Entretanto, um policial comum com uma pistola Glock, pressionando o gatilho o mais rápido que pode, gasta 31/100 de segundo para disparar um tiro, depois de ter percebido uma ameaça. Destes 31/100, 25/100 de segundo são utilizados para perceber a ameaça, processar a informação e enviar um estímulo para o dedo pressionar o gatilho. Os outros 6/100 de segundo são gastos para a ação mecânica de pressionar o gatilho.

Portanto, não há como o policial reagir, enquadrar o alvo, atirar e acertar de modo confiável o braço ou a mão do criminoso que empunha uma arma no tempo disponível e antes que ele mesmo receba o primeiro tiro.

Mesmo que o suspeito mantenha o braço que empunha a arma parado por meio segundo ou mais, um disparo preciso é improvável, pois nestes conflitos raramente os envolvidos estão imóveis.

O braço se move mais lentamente que o antebraço e a mão. Mas ao atirar no braço, existe uma grande chance do policial acertar a artéria braquial ou o centro de massa do suspeito, áreas com alta probabilidade de causar uma fatalidade.

As pernas inicialmente tendem a se mover mais lentamente que os braços. Contudo, as regiões abaixo do tronco até os joelhos são altamente vascularizadas. Caso o policial acerte um grande vaso sanquíneo da perna, o criminoso pode sangrar e morrer em poucos segundos. Então, atirar para ferir pode causar um resultado pior do que o esperado.

Mesmo se o policial acertar a perna de modo não fatal, isso ainda deixa as mãos do bandido livres para atirar, pois sua habilidade para ameaçar a vida do policial não foi definitivamente interrompida. Então, como surgem essas ideias de atirar para ferir? A resposta: “treinamento da TV”.

E se o policial tentar acertar o braço ou a perna do suspeito, porém errar e atingir o tórax? Como a sua verdadeira intenção será julgada? Quem, gozando plenamente de suas faculdades mentais, se tornará um policial num país onde atirar para ferir é o procedimento padrão? Essas ideias possuem um bonito apelo humanitário, mas além do “treinamento da TV”, não resistem quando confrontadas com a realidade.

E a realidade de uma formação policial moderna ensina que a força letal deve ser utilizada com a intenção de interromper, o mais rápido possível, a agressão do suspeito. Querendo ou não, isso ocorre de modo mais confiável se o funcionamento do sistema nervoso central for interrompido (cabeça e medula espinhal) ou se ocorrer intensa hemorragia (coração, órgãos altamente vascularizados, vasos sanguíneos importantes, grande quantidade de perfurações no corpo).

Alguns estudiosos também incluem a destruição da estrutura óssea que dá sustentação ao corpo como outra forma de se incapacitar imediatamente um criminoso violento. Por essas razões, atirar no centro de massa do agressor é considerado o modo mais efetivo para cessar um ataque porque o tórax concentra áreas vitais com os maiores vasos sanguíneos do corpo. E se a consequência de uma falha é a morte, o policial precisa garantir a maior chance de sucesso possível.

A ideia de atirar em áreas pequenas do corpo que se movem rápido, com a intenção de ferir ao invés de cessar imediatamente a agressão criminosa, sugere algumas considerações táticas:

1) O instinto de sobrevivência do policial pode exerce uma forte influência sobre a escolha de uma parte do alvo em particular. Quer dizer, é improvável, ou até mesmo impossível, que o policial sob FORTE ESTRESSE consiga CONSCIENTEMENTE pensar, mirar e atirar nos braços ou pernas do agressor. Além disso, se a vida do policial está sob violenta ameaça, sua primeira e óbvia preocupação é com a própria existência, e não com a preservação da vida do criminoso. Se um bandido aponta uma arma para ele, a última coisa que o policial vai pensar é “Ah! Agora eu vou atirar bem na perna dele!” Desse modo, atirar no centro de massa é um padrão psicológico;

2) Mesmo quando policiais muito bem treinados tentam acertar o centro de massa, muitas vezes eles erram. Portanto, atingir com precisão um braço ou uma perna de um criminoso em movimento é praticamente impossível. Criar a expectativa de um padrão de desempenho impraticável é rídiculo, ainda mais considerando a deficiência do Estado em promover treinamentos regulares para maioria dos policiais. No final das contas, um tiro que erra o alvo ainda pode ferir ou matar um cidadão inocente;

3) Atirar para ferir indica o uso incorreto do equipamento da polícia. Opções menos letais devem ser aplicadas somente com as ferramentas desenvolvidas com esse propósito. Se um policial deliberadamente usa um instrumento ou a força letal para controlar alguém que não representa uma ameaça mortal, então ele está usando a ferramenta errada para o trabalho. A história recente da PMDF mostra um sargento usando uma pistola para golpear um torcedor de futebol. A arma disparou e o torcedor morreu com um tiro na cabeça. Além disso, se um policial atirar no braço ou na perna dessa pessoa, ele pode destruir tecidos musculares, quebrar ou estilhaçar ossos ou destruir a função dos nervos, mutilando essa pessoa para sempre.

Mas como explicar os tiros que são disparados depois que o criminoso é incapacitado? O mesmo estudo da Universidade de Minnesota esclarece essa questão.

Há vinte anos, os policiais americanos eram treinados para ATIRAR e DEPOIS AVALIAR a situação (o comportamento do alvo). Eles disparavam uma ou duas vezes, então paravam para ver o efeito no delinquente. Isso exigia de 25/100 de segundo a 5/10 de segundo, tempo que o suspeito poderia utilizar para continuar atirando, se não tivesse sido incapacitado.

Agora os americanos aprendem a ATIRAR AVALIANDO o comportamento do agressor para determinar o efeito dos tiros à medida que continuam disparando, num processo contínuo. Isso permite que o policial se defenda de modo continuado. Mas, como o cérebro está tentando fazer duas coisas ao mesmo tempo – atirar e avaliar – uma expressiva alteração no comportamento do criminoso deve ocorrer para que o policial possa reconhecer a mudança da situação para interromper os disparos.

Não é preciso grande esforço para reconhecer que a queda do criminoso no chão, após ser atingido, é uma mudança significativa na situação. Porém, analisando a forma como as pessoas caem, outro estudo determinou que são gastos em torno de 1,1 segundos para uma pessoa cair no chão, em razão de um colapso repentino. Isso quando elas são atingidas no centro motor que produz uma imediata perda da tensão muscular. Nesse experimento, ficou demonstrado também que um policial comum consegue disparar quatro tiros em um segundo.

Portanto, enquanto o policial está observando esta mudança, ele ainda estará disparando sua arma se estiver pressionando o gatilho o mais rápido que pode na tentativa de salvar sua vida (instinto de sobrevivência). Neste caso, contando do momento em que o policial percebe a mudança da situação até o tempo em que ele é capaz de processar a informação e enviar um estímulo para cessar o disparo (25/100 de segundo), e somando o tempo necessário para INTERROMPER o ciclo de acionamentos do gatilho (calculado pelos pesquisadores em 6/10 de segundo), tem-se 85/100 de segundo, ou seja, quase um segundo.

Implica dizer que dois ou três disparos adicionais ocorrerão. Então, se o policial estiver reagindo o mais rápido que puder, ele não conseguirá ser veloz o suficiente para interromper a puxada do gatilho. Se ele tivesse que fazer isso de qualquer maneira, a decisão de interromper os disparos deveria ocorrer bem antes de ele perceber a mudança da situação (queda).

Logo, atirar além do momento em que o criminoso foi neutralizado não é, na maioria dos casos, um ato deliberado ou mal intencionado. É um fator involuntário das dinâmicas dos seres humanos. E dado o que a ciência informa sobre encontros armados, atirar para ferir é uma fantasia, cuja exigência poderia estabelecer um padrão de desempenho policial típico de um super-herói, para depois punir criminalmente aqueles incapazes de alcançar tal meta. Basta lembrar que mesmo computadores levam tempo para registrar um dado, processá-lo e apresentar uma resposta.

Para entender a importância deste assunto, é preciso lembrar que policiais podem ser processados por terem disparado suas armas meio segundo antes ou por terem atrasado a interrupção da puxada do gatilho em meio segundo ou, ainda, por terem agido em desacordo com aquilo que um leigo considera “apropriado”.

Então, se você vai se envolver na avaliação do comportamento do policial baseado naquilo que ele fez em uma fração de segundo, é importante entender os limites da capacidade de reação do ser humano e aplicar esses limites de modo científico em se tratando de confrontos armados envolvendo policiais.

Também não há dúvida de que as pessoas que defendem o conceito de atirar para ferir compreendem muito pouco sobre as dinâmicas do corpo humano, a balística, as táticas ou os desafios que os policiais enfrentam nas ruas diariamente. Por isso, algumas instituições descobriram que esses críticos podem compreender melhor a atividade policial se forem convidados para treinamentos de tiro.

Existe outra ideia: deixar que os críticos façam a parte perigosa do trabalho policial para ver se são capazes de agir de acordo com o que pensam!

Finalmente, deve-se perguntar o seguinte: os bandidos realmente precisam reagir contra a ação legítima do Estado? Eles precisam disparar suas armas contra os policiais que apenas tentam prendê-los? Os criminosos realmente precisam matar essas pessoas quando atiram nelas? Eles não podem ser civilizados, e apenas se entregarem aos policiais? Eles não podem apenas mirar nos braços ou nas pernas dos policiais e das vítimas indefesas?

*Fonte: O Globo, com o artigo “Polícia Militar do Rio mata 327% mais que a de São Paulo, que tem o dobro do efetivo”, publicado no site da FENAPEF em 10/03/2008.

Humberto Wendling é Agente de Polícia Federal e Professor de Armamento e Tiro lotado na Delegacia de Polícia Federal em Uberlândia/MG. E-mail: humberto.wendling@ig.com.br