domingo, 30 de junho de 2013

Celeridade na apuração é a melhor resposta à corrupção

*Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S.Paulo do dia 29 de junho de 2013.
Parece que virou moda. Agora não basta mais que a conduta seja criminosa, o que, por definição, já é algo ruim e nocivo. É preciso um "plus": o rótulo de hediondo, como se os outros crimes fossem adoráveis ou coisa parecida.
A medida, aprovada pelo Senado, além de ineficaz, traduz um oportunismo político inacreditável. Não que se deva ter alguma condescendência com a corrupção. A questão é outra.
Quando, em julho de 1990, principalmente em razão dos inúmeros sequestros, editou-se a Lei dos Crimes Hediondos com vistas à imposição de um tratamento processual, penal e penitenciário mais rigoroso, esperava-se um descenso nesse tipo de criminalidade.
Para tanto, impediu-se o juiz de conceder fiança e liberdade provisória, isto é, o direito de o acusado aguardar o desfecho da ação penal em liberdade. Elevaram-se as penas de diferentes delitos e, por fim, revogou-se o direito de o condenado, mesmo que de bom comportamento, passar de um regime penitenciário rigoroso para um mais brando como o semiaberto ou o aberto.
Na verdade, com essas medidas, queria-se aplacar uma voz que é forte nos meios policiais e num certo tipo de imprensa que dizia: "A polícia prende e o juiz solta".
Passados mais de 20 anos da vigência da Lei dos Crimes Hediondos, verifica-se que, embora não tenha resolvido a problemática da elevação dos níveis da criminalidade violenta, ela serviu unicamente para calar ou acalmar aqueles setores da opinião pública que pensam que o crime aumenta ou diminui em razão de penas mais altas e de um maior rigor carcerário.
A constatação do erro dessa visão não decorre de uma ideologia humanista. Fala em favor disso a simples observação dos fatos noticiados pelos jornais no dia a dia.
Agora, a cada novo escândalo, a falta de efetividade do Estado em termos práticos é "compensada" com a edição de leis. Cria-se uma espécie de modelo álibi. Repete-se a estratégia dos governos Collor e Fernando Henrique Cardoso. No último, ampliou-se o rol dos crimes hediondos e, o que é pior, de uma maneira desastrosa (incluindo-se, para se ter uma ideia, até a fraude em cosméticos, como se tivessem a mesma importância que remédios).
Desvia-se, com isso, a atenção do que é o essencial: a vontade política no combate à corrupção e a necessidade do aprimoramento dos controles administrativos mais rápidos e eficazes.
Em 9 de julho de 2009, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado realizou uma importante audiência pública para discutir a colocação da corrupção no rol dos crimes hediondos. Estiveram presentes representantes da Associação Nacional dos Procuradores da República, Associação dos Magistrados Brasileiros e da Ordem dos Advogados do Brasil. Todas as entidades foram contrárias à ampliação do rol dos crimes hediondos.
Naquela oportunidade, o subprocurador-geral da República, Eugênio Aragão, que é também professor da Universidade de Brasília, lembrou que a expressão crimes hediondos ("heinous crime") foi utilizada pela primeira vez no Tribunal de Nuremberg, que julgou os criminosos nazistas pelas atrocidades praticadas durante a Segunda Guerra Mundial. Com propriedade, ele lembrou: "Crime hediondo é um crime que afeta um número enorme de vítimas. Não são crimes quaisquer. Banalizar essa expressão faz mal ao direito penal".
A melhor resposta que se possa dar à corrupção não é uma nova lei, mas o aprimoramento dos mecanismos de controle e a celeridade na apuração dos crimes. Fora daí, o que se vê é uma manobra diversionista. 
Alberto Zacharias Toron é advogado criminal, mestre e doutor em Direito pela USP e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

sábado, 29 de junho de 2013

Constituição de 1988 é a "última tigela de leite"

O tratamento metafórico de temas importantes para a vida do cidadão (como por exemplo a Constituição) é, entre outras coisas, uma maneira "não ortodoxa" de refletir sobre o poder, o direito, a justiça e sobre os institutos que os permeiam.
Em artigo anterior [1] tivemos a oportunidade de abordar pelo menos 8 espécies de metáforas vinculadas de alguma forma a esses mesmos temas [2] possibilitando algumas incursões interpretativas.
Neste pequeno texto com pretensões meramente reflexivas (e a reflexão segundo pensamos representa a chave e o cadeado para uma emancipação - ainda que seja uma "pseudoemancipação") reputamos interessante ressaltar famosa construção linguística de Calmom de Passos no sentido de que a Constituição de 1988 teria sido a "última tigela de leite" dentro do contexto mais abrangente das seguintes linhas:
"deliberadamente nossa elite sempre manteve o povo inculto, consciente de que o “não saber” é a forma mais decisiva de incapacitação que fragiliza o dominado.  Por força disto, ela sempre foi generosa no enunciar garantias, liberdades, e  direitos, mas sempre com a sabedoria da raposa que convidou a cegonha para almoçar com ela e pôs na mesa uma tigela rasa cheia de leite.
A cegonha, coitada, mal conseguia molhar a ponta de seu bico, enquanto a raposa, usando sua língua como colher, bebia o leite com fartura e gosto.  Nossa elite, até hoje, em todos os arranjos políticos  institucionalizados nos séculos de nossa história, tem agido como a raposa.
A última tigela de leite foi a Constituição de 1988. E a partir dela nós, juristas, e principalmente os juizes, nada mais temos feito que iludir o povo brasileiro, desmobilizando-o para a luta política, sob o engodo de que a Direito é a via da emancipação e os tribunais as portas do paraíso." [3]
Esta reflexão metafórica parece ser complementada com aquela outra que afirma, na esteira de Lampedusa, que tudo deve mudar para que continue exatamente da maneira como está, mais especificamente, que enxerga no "reformismo" o mais lúcido conservadorismo, pois estaria disposto a sacrificar os anéis em troca de manter os dedos, contrastado pelo conservantismo rigoroso que despreza a reforma se arriscando a perder os dedos em troca de um apego indiscriminado aos anéis. [4]
Este encadeamento referido na parte final do parágrafo anterior se vincula de certa maneira com a última parte do artigo anterior [5] que se encerra com a sugestão de uma outra pergunta "sobre quem controlaria o anel que a todos controla" em clara alusão ao cenáculo desenvolvido por J. R. Tolkien nas tramas "trilógicas" de "O Senhor dos Anéis" e de "O Hobbit".
Aliás, segundo o Ministro da Justiça, o "povo" é "o senhor da Constituição" [6], fazendo soar similar até mesmo este tipo de nomenclatura, sendo irrecusável a comparação (Senhor dos Anéis = Senhor da Constituição?)
Talvez fosse útil fazer um paralelo sobre o texto de Murice Joly dos Diálogo no inferno entre Maquiavel  e Montesquieu [7], mas este espaço não seria suficiente para tratar de ambos os temas concomitantemente e além disso — certamente —existem articulistas mais aptos do que este para uma tal imbricação, se é que ela seria possível sem constrangimentos epistemológicos.
Em todo o caso parece interessante refletir sobre as "raposas e a oferta da tigela rasa de leite" e sobre as "reformas anunciadas" (manter os dedos ou os anéis?)  e falo especificamente das recentes reações governamentais sobre as "vozes das ruas", em que se chegou até a propor uma "constituinte" para tratar de reforma política em que propôs uma série de "pactos republicanos" para a melhoria dos serviços públicos.
Já vimos esse(s) filme(s) e estes modelos de anel!
Enquanto não houver um ato fático que priorize verbas opulentas para a educação, tirando-a do estado "famélico" em que se encontra, com uma gestão participativa popular dos recursos e fiscalização efetiva dos investimentos, estaremos sendo convidados a tomar algum leite em tigela rasa ladeados por raposas.
Enquanto não houver efetiva valorização dos profissionais de todos os níveis de/da educação, e em todos os níveis da federação, com infra-estrutura de primeiríssima linha, com investimentos em ensino, pesquisa e extensão, incentivos a pesquisadores brasileiros e tecnologia,  estaremos sendo convidados a tomar algum leite em tigela rasa ladeados por raposas.
Enquanto não houver a efetiva implementação do Imposto Sobre Grandes Fortunas, inserido inaceitavelmente como mero "conselho constitucional" ou"mera promessa constitucional não cumprida" no artigo 153, inciso VII, da Constituição Federal, sendo bastante oportuno que se implementem discussões praticas para a deliberação e posterior aprovação dos Projetos de Lei engavetados no Congresso Nacional (e.g. na Câmara dos Deputados: PLP 277/2008, PLP 130/2012 entre outras), e que sua destinação seja integralmente voltada para a Educação, estaremos sendo convidados a tomar algum leite em tigela rasa ladeados por raposas.
Enquanto não houver uma reforma de certa maneira radical na área de saúde pública, com discussão séria e comprometida sobre os lindes "público-privado", que seja implementada com criatividade institucional genuinamente brasileira com aproveitamento de boas experiências internacionais,  estaremos sendo convidados a tomar algum leite em tigela rasa ladeados por raposas.
Enquanto esta (tal de) reforma política tiver como escopo apenas a troca de dois ou três anéis, com a manutenção intacta dos dedos, sem que ocorra efetiva participação popular em todas as decisões sobre destino de verbas, aditamentos orçamentários e emprego de investimentos,  estaremos sendo convidados a tomar algum leite em tigela rasa ladeados por raposas.
Enquanto tivermos isenção de IPI como incentivo para aquisição de automotivo individual, em clara demonstração de predileção pelo individual em detrimento do público, somado a modelo anacrônico e indiscutido de transporte público sem incentivo a alternativas ou discussões de viabilidades outras que não o incentivo ao consumo e utilização de automóveis individuais, estaremos sendo convidados a tomar algum leite em tigela rasa ladeados por raposas.
Enquanto a opção governamental para discussão de segurança for a segregação entre ricos e pobres, aqueles em condomínios de luxo cercados por muros, grades e circuito interno de TV, e estes nas vias escuras e com agentes da segurança pública mal remunerados e extremamente despreparados, aliado a histórica opção de construção de mais presídios do que escolas, estaremos sendo convidados a tomar algum leite em tigela rasa ladeados por raposas.
Enquanto existir um modelo atual de julgamento de autoridades que cometam atos ilícitos denominado de "privilegiado" ou "por prerrogativa de função" sem que se busquem alternativas sérias e refletidas, enquanto o cidadão comum for julgado por um juiz de primeiro grau e as autoridades da república não, estaremos sendo convidados a tomar algum leite em tigela rasa ladeados por raposas.
Evidentemente existem muitas outras pautas, e este é o momento ideal para suas discussões. Mas existe outra possibilidade: Alguém aceita uma tigela de leite e o convite para rever aquele filme O Direito é a libertação? Temos ainda um brinde consistente em duas entradas pelos umbrais do paraíso da "casa dos pedintes".
Referências
[1] PÁDUA, Thiago Santos . PALAVRAS DE CONSTITUINTE: Constituição é bomba-relógio de alto poder explosivo. Consultor Jurídico (São Paulo. Online), v. digital, p. artigos, 2013. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-jun-25/thiago-padua-constituicao-bomba-relogio-grande-poder-explosivo
[2] Cremos que "metáfora explicada" seria algo - mais ou menos - como "piada explicada", e neste sentido temos o empréstimo do pensamento de Simon Critchley, em que substituímos "humor/piada" por "metáfora":  "Uma piada explicada é uma piada não compreendida. Neste caso, o que pode fazer alguém rir – embora com uma ironia dramática – é a audácia ou a arrogância da tentativa de se escrever uma filosofia do humor." vide: CRITCHLEY, Simon. On Humour. London, New York : Routledge, 2002, p. 2.
Não obstante, tratamos (ainda que de forma esquizofrênica ou oligofrênica) - e mesmo sem afastar certa possibilidade de ocorrência de paralaxe - de: excesso de emendas constitucionais, espécie/forma/duração do/de processo constituinte, conflito ideológico da constituição, duração e forma de resolução dos problemas constitucionais, conexão entre direito/política/ideologia/economia, iminência de problemas constitucionais e urgência temporal de suas soluções, poder e controle do poder.
[3] CALMOM DE PASSOS. JJ. Entrevista para a ACADEMIA BRASILEIRA DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL no projeto "voz dos ilustres", disponível em: http://www.abdpc.org.br/abdpc/entrevista/entrevista_calmon.asp
[4] LYRA FILHO, Roberto. Drogas e Criminalidade. In: COSTA, Alexandre Bernardino et all (Org.) O Direito achado na rua : Introdução crítica ao direito à saúde. / Ale- xandre Bernardino Costa ... [et al.](organizadores) – Brasília: CEAD/ UnB, 2009, p. 157.
[5] Respectivamente números 1 e 2 destas Referências.
[6]  Eis a frase referida, quando o Ministro da Justiça falava sobre plebiscito "O povo deve ser consultado porque é o senhor da Constituição". Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-jun-26/cardozo-diretrizes-reforma-politica-vir-ruas
[7] JOLY, Maurice. Diálogos no inferno entre Maquiavel  e Montesquieu. São Paulo: UNESP, 2009.
Thiago Santos Aguiar de Pádua é advogado em Brasília.

Os novos rumos da política criminal brasileira

Talvez a maior constatação que se pode extrair das manifestações populares que ecoam Brasil afora seja a evidente crise de legitimidade das instituições. E, neste rumo, o Direito Penal parece estar novamente no foco das atenções.
A resposta política aos clamores insurgentes foi imediata e veio obrigatoriamente em face da reiteração e da organização dos movimentos. A presidente Dilma Roussef anunciou uma série de “pactos” para acelerar antigos projetos até então “adormecidos” em detrimento de interesses públicos supostamente mais relevantes, tais como os gastos com a tão aclamada Copa do Mundo.
Ao largo dessas discussões, algo que, de imediato, deve ter chamado a atenção dos estudiosos das Ciências Criminais é a proposta de equiparar o delito de corrupção (ativa ou passiva) a “crime hediondo”, o que logo ganhou pleno apoio dos mais diversos setores. Rapidamente, ressuscitou-se o PLS 204/2011, de autoria do Senador Pedro Tasques (PDT-MT), agora aprovado (“por votação simbólica”) no plenário do Senado Federal, “em resposta à sociedade”. Mais uma vez, a Política Criminal nacional vê-se diante da casuística e mais uma vez somos obrigados a afirmar o simbolismo deste discurso retórico e demagógico que tem imperado no Brasil.
Não é de hoje que as questões de Política Criminal vem sendo relegadas a um segundo plano pelos operadores do Direito. Assiste-se a uma Política Criminal transmutada em política de segurança.
A carência de políticas públicas que visem efetivamente à repressão da criminalidade faz com que a população se depare com índices exorbitantes, para os quais são-lhe apresentadas unicamente medidas penais, capazes de satisfazer momentaneamente seus anseios, tendo, ainda, grande efeito eleitoreiro. No âmbito político, o Direito Penal tornou-se, então, uma arma eficaz, já que atende às aspirações populares — e sua ancestral ideia de vingança[1] —, ao mesmo tempo em que garante um resultado positivo aos autores de tais leis em eleições futuras.
Nos últimos anos, o Direito Penal tem experimentado um fenômeno de crescimento e endurecimento que não é consequência dos desmandos de regimes totalitários, mas, pelo contrário, vem ocorrendo pela vontade política de dar resposta às reivindicações da cidadania, dentro do próprio Estado de Democrático de Direito. O trabalho da Política Criminal frente a este cenário é mais complexo, em face do distanciamento do paradigma tradicional. Suas novas funções recebem impulso da opinião pública e são executadas por um poder político que conta com plena legitimidade democrática.
Os programas dos políticos em suas plataformas eleitorais oferecem uma série de medidas com o fim de brindar “segurança” aos cidadãos, com medidas que vão desde o aumento das penas, passam pelo cumprimento em regime integral fechado, e chegam às restrições de garantias penais e processuais em geral. Muitos destes legisladores desconhecem as limitações do Direito Penal e, em virtude dessa ignorância, acabam depositando nele expectativas infundadas[2].
Invocadas com caráter de excepcionalidade, medidas que relativizam (ou negam completamente) garantias (supostamente invioláveis, partindo-se da perspectiva racionalista) acabam por se converter em “técnicas de governo”, transformando de modo muito perceptível “a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição”[3].
A demanda por mais proteção é principal característica de uma sociedade composta majoritariamente por “sujeitos pacientes”, cria dileta do Estado Social. Pensionistas, bolsistas, aposentados, servidores públicos, beneficiários e assistidos por serviços sociais em geral, fomentam uma cultura da insegurança e exigem que o Estado se encarregue de debelar toda e qualquer percepção de risco possível. A vivência subjetiva dos riscos em um Estado responsável pela segurança em todas as áreas da vida é, claramente, superior à própria existência objetiva dos mesmos. Expresso de outro modo, existe uma elevadíssima sensibilidade ao risco na sociedade de sujeitos passivos[4].
Isso se explica porque entende-se que não é possível promover a “paz social”, a fim de que todos possam desfrutar de suas liberdades e direitos, sem que tenham os recursos econômicos e culturais para exercê-los. Como setores inteiros da população não chegam a adquirir os bens mínimos que lhes garantam a própria dignidade humana, justificar-se-ia a necessidade da intervenção estatal nos mais diversos campos, como a economia, a educação, a saúde, a assistência social, a cultura, etc.
A crescente produção legislativa em matéria penal demonstra claramente que a norma incriminadora deixou de representar o poder coercitivo estatal voltado indistinta e igualmente aos membros do grupo social, a partir de uma vontade soberana, para materializar a hegemonia de interesses de grupos de pressão sobre o poder público. As diversas contrariedades técnicas e vícios teóricos verificados nesses diplomas penais extravagantes não permitem falar de harmonia ou qualquer pretensão unitária da legislação especial.
As leis penais transformaram-se em ferramentas de gerenciamento de situações particulares (de “emergências” concretas) e passaram a assumir a função de mensagens de reafirmação do poder virtual dos políticos impotentes e precipitados, dirigidas à população com a intenção de renormalizar situações que não podem ser resolvidas no plano dos fatos reais. Pretende-se regular o que não há poder que regule e elabora-se uma legislação inaplicável na prática, porque o poder político não está em condições de evitar.
Os predicados mais marcantes deste “Direito Penal de Emergência” são a perda do caráter subsidiário e fragmentário e a missão de servir como instrumento político de segurança.
As emergências sociais não são novas nos discursos legitimantes do poder punitivo. A elas se agrega o defensismo (discurso de defesa), o simplismo conceitual e a renúncia a preceitos fundamentais e qualquer doutrina que os legitime, características típicas dos “Estados de Polícia”[5].
As normas elaboradas a partir dos discursos de emergência integram o que comumente se convencionou chamar de “Direito Penal simbólico”, que tem por objetivo, antes da busca por soluções, a demonstração da especial importância outorgada pelo legislador a aspectos de comunicação política a curto prazo na aprovação social das normas correspondentes. Isso quer dizer que determinados agentes políticos tão só perseguem o objetivo de dar a impressão tranquilizadora de um legislador atento e decidido, ou seja, que predomina uma função latente sobre a manifesta, que há uma discrepância entre os objetivos invocados pelo legislador e a “agenda real”, oculta sob aquelas declarações expressas[6].
O atrativo desta prática é que, quando os efeitos afirmados pela legislação não são os realmente esperados, o legislador obtém, pelo menos, o ganho político de ter respondido aos medos sociais e às catástrofes de grandes proporções com prontidão e com os meios mais radicais que são os jurídico-penais.
Desta forma, simbólico é aquele Direito Penal que carece de capacidade instrumental de prestar eficazmente à sociedade e aos indivíduos que a integram efetiva segurança frente aos novos riscos. Por isso, mesmo ciente desta incapacidade, o legislador vê-se instigado a criar novos tipos penais que, embora não tenham aplicação, têm o único fim de produzir no meio social um efeito aparente, isto é, simbólico[7].
Existe uma generalizada sensação subjetiva de insegurança no cidadão, potencializada pelos meios de comunicação, que não corresponde ao nível de risco objetivo. Esta circunstância constitui, sem dúvida, uma marca da expansão dessa legislação puramente simbólica[8]. Juarez Tavares observa que “Não é surpreendente, portanto, que se procedam reformas quase que diárias das leis penais e a elaboração de novos diplomas, com novas incriminações.”[9]
A cultura de emergência e a prática da exceção são, então, responsáveis pela involução do ordenamento jurídico-penal, que se expressa na reedição, talvez em novos trajes, dos velhos modelos próprios da tradição penal pré-moderna, como a adoção de práticas inquisitivas e métodos de intervenção típicos da atividade da polícia.
Chega-se, assim, a um “Estado policialesco”, no qual, por detrás de um pretenso aumento da criminalidade, em verdade emerge uma forte campanha de “lei e ordem”, aplaudida pela sociedade influenciada pelo clima de insegurança.
Ocorre que, se, na linha funcionalista, o Direito Penal cumpriria a função de garantir a estabilidade da ordem jurídica, não se pode aceitar um emaranhado de leis desproporcionais, incoerentes e excepcionais ao próprio ordenamento jurídico penal e constitucional, pena de se macular a manutenção desse sistema normativo pela perda de sua eficácia, que redundará fatalmente na perda de sua credibilidade e força. Por isso, é precisa a observação de Silveira Filho no sentido de que “O emergencialismo penal surge ao lado do efeito sedativo, cuja função é perpassar na opinião pública a sensação de tranquilidade diante da insegurança urbana”[10].
A ânsia dos homens, com um certo peso contributivo para a opinião formada pelo mass media para se repreender quaisquer condutas, induz a uma desvaliosa medida de incriminação a todo custo. Um ato simbólico, o qual, muito embora satisfaça alguns, não condiz com a busca equilibrada dos preceitos e requisitos do Direito Penal[11].
O socorro ao Direito Penal faz parte de uma macro-politização do jurídico, esperando-se que este sistema forneça respostas prestacionais à sociedade. O resultado disso é nefasto: o Direito ameaça perder sua autonomia, confundindo-se com a política, que, por sua vez, também padece de uma crise de legitimação. Portanto, o Direito, mesmo o constitucional, não consegue impor limites claros ao político, apesar de boa parte da doutrina constitucionalista acreditar no sonho racional do controle[12].
A multiplicação legislativa e sua correlata penalização reduz o sistema jurídico ao absurdo, porque, ao exigir dele o que não pode dar, direciona-o a um caminho equivocado, que termina em impotente crueldade e em desprestígio como instrumento insubstituível de convivência humana.
Zaffaroni, com sua postura crítica, afirma não ser possível pensar uma Política Criminal racional onde não haja uma política racional, mas apenas a uma total degradação que acaba em um “Estado espetáculo”. “La política criminal del estado espectáculo no puede ser otra cosa que un espectáculo”[13].
Assentou-se, pois, uma Política Criminal prática, de orientação intimidatória e inocuizadora, em um contexto geral presidido pela oportunidade e o populismo. Seguramente não é exagerado afirmar que, com isso, a situação do Direito Penal está se tornando insustentável[14]. Agora, mais do que nunca, deve-se enfatizar a necessidade de orientar a Política Crimina conforme os princípios que derivam da ideia de dignidade da pessoa.
Por isso, não é crível que um manifesto que tem por objetivo a legítima ruptura com toda a deturpação sistêmica que se estabeleceu até então possa ratificar de forma tão acrítica o mesmo persistente erro do recurso ao Direito Penal simbólico, que apenas perpetua a retrógrada forma de “fazer política” neste País, ou seja, o mero apelo ao discurso criminalizante, a fim de obter o apoio das massas.
Os rumos da Política Criminal nacional parecem se encaminhar pelas mesmas vias já tantas vezes trilhadas, o que ao menos evidencia uma conclusão certa: o que falta ao Brasil é educação. Só ela é capaz de abrir os olhos do povo e fazê-lo despertar de suas sonolências.

[1] DONNA, Edgardo Alberto ¿Es posible el derecho penal liberal? In: LOSANO, Mario G.; MUÑOZ CONDE, Francisco José (coord.). El derecho ante la globalización y el terrorismo: "Cedant arma togae". Valencia: Tirant lo Blanch, 2004. p. 99-122, p. 110.
[2] FIERRO, Guillermo J. La Creciente Legislación Penal y los Discursos de Emergencia. In: VILLELA, Rubén (ed.). Teorías actuales en el derecho penal. Buenos Aires, Argentina: Ad-hoc, 1998. p. 621-628, p. 627.
[3] FAYET JR., Ney; MARINHO JR., Inezil Penna. Complexidade, Insegurança e Globalização: repercussões no sistema penal contemporâneo. Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 84-100, jul./dez. 2009, p. 89.
[4] SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 1 ed. Madrid: Civitas, 1999, p. 31-36.
[5] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La Creciente Legislación Penal y los Discursos de Emergencia. In: VILLELA, Rubén (ed.). Teorías actuales en el derecho penal. Buenos Aires, Argentina: Ad-hoc, 1998. p. 613-620, p. 618. O autor lembra que não houve lei nazista, fascista ou stalinista que não tenha adotado a bandeira de defesa ou proteção de algum valor social.
[6] CANCIO MELIÁ, Manuel. De novo: “Direito Penal” do Inimigo? In: JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Organização e Tradução André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 6 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 71-118, p. 79.
[7] GRACIA MARTÍN, Luis ¿Que es modernización del Derecho Penal? In: DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis (coord.). La ciencia del derecho penal ante el nuevo siglo: libro homenaje al profesor doctor don José Cerezo Mir. Madrid: Tecnos, 2002. p. 349-394, p. 385.
[8] MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Algunas Reflexiones sobre la Moderna Teoría del "Big Crunch" en la Selección de Bienes Jurídicopenales (Especial Referenciaal Ámbito Económico). Anuario da Facultade de Dereito da Universidade da Coruña. A Coruña, Espanha, Universidade da Coruña, nº 7, p. 953-985, 2003, p. 967.
[9] TAVARES, Juarez. A crescente legislação penal e os discursos de emergência. In Discursos Sediciosos. Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 1997, p. 55.
[10] SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Neoliberalismo, mídia e movimento da lei e da ordem: rumo ao estado de polícia. Revista da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais: Ciências Penais, São Paulo, n. 2, ano 2, p. 263, jan.-jun. 2005.
[11] RODRIGUES, Anabela Miranda. Globalização, democracia e crime. In: COSTA, José Francisco de Faria et. al. (Orgs.). Direito Penal especial, Processo Penal e direitos fundamentais: visão luso-brasileira. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 286.
[12] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. À Espera dos Bárbaros: Proibição de Insuficiência em Matéria Penal e Blindagem Teológica do Discurso - Aproximações a Partir do Direito Penal do Inimigo. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre: Magister, v. 23, p. 55-94, abr./maio 2008, p. 70.
[13] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La Globalización y las Actuales Orientaciones de la Política Criminal. Direito e Cidadania, Praia, Cabo Verde, a. 3, n. 8, p. 71-96, 1999-2000, p. 81.
[14] SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Reflexiones sobre las bases de la Política Criminal. Crimen y Castigo. Cuaderno del departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho - UBA, a. 1, n. 1, Buenos Aires: Depalma, pp.17-31, ago./2001.
Carlo Velho Masi é advogado, especialista em Direito Penal e Política Criminal pela UFRGS, mestrando em Ciências Criminais pela PUC-RS.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

O velho travestido de novo e o moralismo do Faustão

Há um poema de Brecht sobre “o novo e o velho”. Dizia:
“Eu estava sobre uma colina e vi o Velho se aproximando, mas ele vinha como se fosse o Novo. Ele se arrastava em novas muletas, que ninguém antes havia visto… Aí vem o Novo, tudo é novo, saúdem o Novo, sejam novos como nós! E quem escutava, ouvia apenas os seus gritos, mas quem olhava, via tais que não gritavam. Assim marchou o Velho, travestido de Novo, mas em cortejo triunfal levava consigo o Novo e o exibia como Velho. O Novo ia preso em ferros e coberto de trapos; estes permitiam ver o vigor de seus membros. E o cortejo movia-se na noite, mas o que viram como a luz da aurora era a luz de fogos no céu. E o grito: Aí vem o Novo, tudo é novo, saúdem o Novo, sejam novos como nós...”.
Gostaram? Pois leiam o que segue:
“Ressurge a Democracia”
“Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo (...) o Brasil livrou-se do Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições.
Agora, o Congresso dará o remédio constitucional à situação existente, para que o País continue sua marcha em direção a seu grande destino, sem que os direitos individuais sejam afetados, sem que as liberdades públicas desapareçam, sem que o poder do Estado volte a ser usado em favor da desordem, da indisciplina e de tudo aquilo que nos estava a levar à anarquia (...).
Poderemos, desde hoje, encarar o futuro confiantemente, certos, enfim, de que todos os nossos problemas terão soluções, pois os negócios públicos não mais serão geridos com má-fé, demagogia e insensatez. Este não foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais.(...) Era a sorte da democracia no Brasil que estava em jogo.”
Sabem do que se trata? Pois lhes conto. Trata-se do editorial do Jornal O Globo de 2 de abril de 1964. Bingo!
“Jabuti não sobe em árvore” e o moralismo do Faustão
Somemos a isso as palavras do senador Cristovam Buarque (PDT-DF) pregando o fim dos partidos políticos. Aliás, sua Excelência deveria ser processado pela Comissão de Ética. Como é possível um senador propor a extinção dos partidos políticos em uma democracia de partidos? Hein?
E que tal o grande filósofo contemporâneo Faustão? Como explica um dos meus orientandos em seu blog: “Domingo. Termina Espanha x Nigéria. Faustão abre seu programa dominical. Em tom exaltado, discursa. O auditório, em polvorosa grita, aplaude. Lições de moral e slogans. ‘O gigante acordou!’. Fala no ‘fim da corrupção’ e cobra imediata solução de vários problemas sociais, boa parte deles seculares. Mas quem tem senso crítico procura os silêncios do discurso: por que Faustão não exigiu a democratização dos meios de comunicação em massa? Botão off.”. Por exemplo, quanto o Faustão paga de Imposto de Renda? Tomara que tudo seja na fonte, como empregado... Ou teria, como outros apresentadores e artistas, uma pessoa jurídica?
E como funciona a Lei Rouanet para os artistas que hoje pregam “moralismos”? Fazer peça de teatro ou show com dinheiro da (combalida) Viúva, pode? Pode isso, Arnaldo? Pode colocar dinheiro em peça de teatro e não ter dinheiro para leitos hospitalares? Vi uma atriz “indignada” com “tudo isso que está ai”. Uau. E ela tem uma bela peça com dinheiro da... Viúva. Sim, ela, a gordatcha Viúva. É, pois é. O inferno é sempre “o outro”. Eu votei bem, mas você votou mal. Logo, como você votou mal, vamos acabar com o voto, porque “poucos sabem votar bem”. E claro, o que define o erro ou acerto é a própria vontade de cada um. Ora, ora.
Numa roda de amigos, o esporte é a malhação dos políticos. Corrupção, demagogia, preguiça, falta de escrúpulos. Trata-se de um ser que não possui nenhuma qualidade. É visto como um antro de defeitos e perversidades. Mas será que se questiona como ele foi parar onde está? Culpa-se logo a corrupção, a compra de votos e o povão que não sabe votar. O pobre, principalmente, que vende seu voto por um milheiro de tijolos. Mas não são os pobres que vemos cedendo e/ou guiando as centenas de carros das carreatas. Não são os pobres que “financiam” as campanhas milionárias. Não são os pobres que coordenam a boca-de-urna no dia das eleições. São as camadas média e superior da sociedade que agem nessa esfera.
E todo ano eleitoral, e não somente no último, cara-pálida, o costume se repete. Pessoas do nosso círculo social pedem o voto para determinados candidatos. Se fossemos pedir uma resposta sincera sobre os motivos do pedido do voto, qual seria a resposta mais coerente, digam-me? a) foi porque o candidato é um republicano, um indivíduo que, ideologicamente, ajudará na construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária; b) o próprio pedinte do voto, um amigo ou um parente está de olho (grande) em um cargo comissionado ou qualquer outra vantagem, ou já tinha sido agraciado com tal benesse. Deixo o leitor da coluna escolher.
Mas não perco a oportunidade de opinar. Nosso secular costume tem sido de pedir votos por gratidão ou interesse pessoal e imediato (nem preciso lembrar as obras que tratam disso, de Faoro para cá). Isso em todos os estratos sociais. Todos! É o que alguns chamam de “militância de oportunidade”. Sua “ideologia” é clara: levar vantagem. Claro. Culpam-se programas sociais como sendo a forma de manter o povão no cabresto, esquecendo que a reprovabilidade é imensamente maior quando parte de pessoas que já possuem um espaço na sociedade também ficam cabresteadas, só que o preço é mais alto.
Paradoxal, portanto, como esses protestos nasceram como um verdadeiro susto (ou surto). Sem consciência histórica. Isso me recorda a letra de uma música dos Titãs “É uma coisa de cada vez: Tudo ao mesmo tempo agora”! Será que dá música? Cobra-se tudo ao mesmo tempo agora quando sabemos que se tem que fazer uma coisa de cada vez.
Queremos uma República sem partidos políticos? Em quem as pessoas que estão nas ruas votaram?
Simples, não? Os manifestantes não querem partidos políticos e parece que abominam as instituições. O que são instituições? Lembro, rapidamente, do livro O Senhor das Moscas (prêmio Nobel para William Golding), em que meninos, caindo seu avião, em uma semana organizam-se em pequenos bandos... e se matam. Sem estado, sem partidos, sem instituições... Estado de natureza.
Se os partidos políticos são ruins, não seria bom perguntar por que chegamos a esse ponto? Quem vota nos “maus” parlamentares? Jabuti não sobe em árvore... Ou foi enchente ou um monte de gente...
A história nos mostra que não dá para fazer democracia direta. Já imaginaram uma Ágora com mais de 100 milhões de pessoas? Não estamos mais em Atenas. Não compreender isso ou é ingenuidade ou maldade. Não é só isso. Líder com contato direto com as massas dá ditadura. Quem os manifestantes pensam em colocar no lugar dos políticos? Talvez o problema esteja no tipo de democracia que temos: quando elegemos o governante, delegamos a ele todo o poder. Algo que Guillermo O’Donnel chama de “democracia delegativa”, que possui um gravíssimo defeito: enfraquece as instituições e não tem accountability (prestação de contas).
Vícios e virtudes... dos outros!
O “gigante acordou”? Não. Porque ficar dizendo isso por aí é deslegitimar e desconhecer o processo histórico que nos levou à Constituição e à ordem jurídica que temos hoje. Houve sangue derramado. Gente sofreu. Gente morreu para que tivéssemos uma democracia. Falta memória emocional coletiva. Essa amnésia inclui a postura da gente toda que, antes do dia em que dizem ter acordado, não fez um exame de consciência sobre quais motivos a levou a votar nos candidatos que votaram nas últimas eleições. Uma coisa é certa e verdadeira: se o Congresso é ruim, a culpa (também) é de quem votou neles. Não dá para escapar dessa premissa.
Espero que possamos apreender com tudo isso, claro que se sobrar Brasil. Mas não queiramos ou façamos um discurso à la Faustão ou Pedro Bial (ou algo do gênero), do tipo “vamos lá, galera — fora com esses políticos etc”. Em quem será que Faustão votou? Vou repetir, aqui, a fábula da abelhas, de Mandeville. Conta-se que as abelhas viviam prosperamente em sua colmeia. Tudo ia bem, até que um grupo de abelhas moralistas (neovirtuosas) decidiram dar um fim aos vícios (corrupção era o menor deles!). Foram à rainha e pediram que fosse decretada a virtude. E assim se fez. Todos virtuosos. Bom? Não. Ruim. Péssimo. Sem vícios, a sociedade começou a ruir. Advogados ficaram sem trabalho, médicos sem pacientes, policiais ociosos... Fracasso total. As abelhas se reuniram e pediram à rainha o imediato restabelecimento dos vícios. Moral da história? Conto já.
Por exemplo: a) recordou a quais políticos deu apoio durante a campanha? b) será que você (ou eu) e os manifestantes denunciou (ou denunciamos) qualquer compra de votos ou qualquer outra atitude não republicana pelos candidatos durante as eleições? c) votaram (ou votamos), acima de tudo, em propostas ou de olho em algum favor ou interesses egoisticamente pessoal? d) acompanharam o cumprimento das propostas antes do dia em que resolveram despertar furiosamente? e) não cometem(os) infrações no cotidiano? E) não compram(os) CDs piratas? E) não baixam(os) filmes “escondidamente”? f) quando viajam(os) a Maiame, não trazem(os) mercadoria com valor acima da cota? E as bolsas Luíviton? Não passam(os) sinal vermelho? Pois é...
Não quero uma sociedade de virtuosos. Afinal, os vícios fazem parte da sociedade. Aliás, nós, juristas, vivemos dos vícios. Como os médicos. Vícios privados, benefícios públicos, como diria o liberal Barão de Mandeville (essa é a moral da história). Pedimos nota fiscal direitinho? Quando o médico, o dentista ou o advogado nos dão dois preços, com ou sem recibo, o que fazemos? Ou seja, todos somos (um pouco ou mais) criminosos ou não-tão-virtuosos: até mesmo um adulteriozinho tentado, que tal? (embora adultério não seja mais crime). Portanto, desconfio de moralismos. E de neovirtuosismos... Por exemplo, vi gente graúda que ganha vale-refeição de R$ 700 reclamando que o governo dá bolsa família para a patuleia... E estavam nas manifestações... Hum, hum.
Dizendo de outro modo: além da falta de memória emocional, não dá para cobrar soluções sem que elas tenham um caráter propositivo e com a consciência de que não se está pedindo para se fazer um café solúvel.
Com olho na história, não tenho receio em afirmar que estou com medo. Quando vejo manifestantes dizendo que não votam em partidos e, sim, em pessoas, fico arrepiado. Candidaturas avulsas? Quem o financiará? Ele será virtuoso? Corremos o risco de substituir uma alienação por outra.
Quem vai fazer a “revolução”? Como assim? Rebeldia deve ter uma causa (ou duas). Não todas. Se tudo é, nada é. Não estou pedindo pedigree para protestar. Só quero dizer que a democracia custou caro. Quando saímos às ruas pelas “Diretas Já”, era porque queríamos votar. Agora que tanto já votamos, não queremos mais votar? E ainda por cima, aparece o senador Cristovam para pregar a extinção dos partidos... Desculpem-me, mas quero entender.
Aqui, vale a citação de Wanderlei Guilherme dos Santos sobre os eventos: “ao contrário de ser uma beleza de movimento sem líderes, o espontaneísmo infantil se revela um desastre na confissão de alguns de que não conseguem impedir a violência de sub-grupos! Nem por isso deixam de ser responsáveis por ela na medida em que continuarem recusando a adesão cooperativa das instituições com alvará de estabelecimento reconhecido, instituições capazes de assegurar a virtude pacífica das manifestações. É politicamente primitivo, nada vanguardista, impedir a associação de movimentos organizados e, inclusive, de partidos políticos, desde que submetidos ao objetivo central da manifestação. Em movimentos de boa fé democrática há a hora de desconfiar e a hora de convergir.” Eu estou desconfiando!
Notícia de última hora: de novo uma Constituinte!
A presidente da República só pode estar querendo provocar os brios do Congresso Nacional. Ou seja, ela quer esticar a corda para saber até onde o Congresso vai. Só isso pode justificar a ideia lançada de convocar, via plebiscito, uma Assembleia Constituinte exclusiva para fazer justamente o cerne da democracia: a questão da reforma política. O Congresso foi alvejado no peito. Ele deve reagir e dizer: “Nós não nos acadelaremos. Faremos a reforça política via Emenda Constitucional. Porque nós não aceitamos Constituinte exclusiva. Se não permitimos tribunais de exceção, que dizer de uma constituinte de exceção? A convocação de uma Constituinte de exceção é a confissão de que nós, o Parlamento, fracassamos. Se isso acontecer, teremos que ser mandados de volta para casa.” E eu acrescento: sem direito à passagem aérea. Nem de ida e nem de volta! Vai de jegue! Ou de ônibus. Lotado. Sem direito à janela! Folgo em saber que o Congresso (no caso, a Câmara) já começou a se sentir ferido em seus brios. Afinal, já passou um rodo na PEC 37 e aprovou projeto da distribuição dos royalties.
Mas, atenção: o Congresso não pode entrar nesse jogo de pressão popular e começar a cometer inconstitucionalidades. Atender ao povo, sim. Mas sem banalizar o Direito. Explico: escreverei sobre isso mais adiante, mas já quero antecipar minha opinião, coerente com o que tenho escrito há mais de 20 anos. Transformar a corrupção e o peculato em crime hediondo é não só cair na armadilha do Direito Penal simbólico, como também violar a cláusula de proibição de proteção de excesso, a Übermassverbot[1]. O legislador não tem liberdade de conformação para cometer excessos na proteção de bens jurídicos. Assim como ele não tem liberdade de conformação para proteger de forma deficiente (Untermassverbot), ele também não pode se exceder. E, neste caso, é patente o excesso. Essas teses não são minhas. Eu não inventei. O crime hediondo é algo muito grave e sério para que, na prática da aplicação do judiciário, seja mais um elemento de fragilização da punição. Será um tiro no pé, como já foi a transformação em crime hediondo da falsificação de remédio (lembram disso?). Alguém foi condenado? Por que então o legislador não coloca também a sonegação de tributos como crime hediondo? Afinal... Ora, se corrupção for crime hediondo — no sentido daquilo que a tradição estabelece como “hediondo” — qual será o limite para futuras inclusões? Furto qualificado também será? O céu será o limite. Resultado: a pretexto de punição, favorece-se a impunidade. Não é assim que se faz. Chamem os especialistas, por favor. Todos sabem da minha predileção pelo legislador. Pela defesa que dele faço. E todos sabem da defesa que faço da necessidade de o Estado combater com vigor os delitos que colocam em xeque os objetivos da República previstos na Constituição. Mas, há limites. E estes são os limites constitucionais. A teoria do bem jurídico não pode ser banalizada a este ponto. Em coluna específica, voltarei a este ponto.
Atenção: Hegel dizia que a ave de Minerva só levanta voo ao entardecer. Isso quer dizer: olhemos para a história. Tenhamos memória. À época da constituinte, a memória emocional dos anos de trevas era forte. Hoje muita gente ou não viveu ou não rememorou o significado de um regime ditatorial.
Numa palavra: Constituinte exclusiva é inconstitucional (ops – tem muita gente boa que se quebrou nisso... Escutei argumentos cedo na Globo — claro, tinha que ser lá —, dizendo, em alto e bom som, que a constituinte exclusiva era constitucional...). Hoje, uma constituinte seria cercada pela multidão e, como na França, seria tentada a fazer a revolução. Mas, atenção: não vivemos a situação da França de 1788-1789. A única semelhança entre o Brasil de hoje e da França de então é que lá apenas a burguesia (o terceiro Estado, que era uma mistura de todo tipo de gente, menos nobres e clérigos) pagava impostos, como aqui ainda hoje. As grandes fortunas pagam pouquíssimos impostos; isso para dizer o mínimo.
E o que dizer da sonegação de tributos? Aliás: o povo nas ruas poderia acrescentar uma coisa na sua lista: punição aos sonegadores de tributos (do andar de cima); afinal, por que quando alguém furta e devolve a res furtiva, não tem a seu favor a extinção da punibilidade e aqueles que sonegam tem esse favor legis? Mais: por que o sujeito que furta não tem a seu favor a tese da insignificância e aquele que traz chibo de Maiame ou que faz outro tipo de descaminho ou sonega tributos tem a seu favor essa tese (da insignificância), tudo com base em uma Portaria — sim, uma reles Portaria — que diz que valores sonegadores, “chibados” ou “descaminhados” abaixo de R$ 20 mil (sim, vinte mil) sequer devem ser cobrado pela Viúva? Enigmas da República. Mas são caldos que engrossam o angu que está aí.
Sigo. E volto à proposta da presidente da convocação da Constituinte. Seria muito feio que o Congresso aceitasse a ideia de uma Constituinte exclusiva para fazer aquilo que é o cerne de sua função... Que feio o parlamento não começar ainda hoje a votação da PEC da Reforma Política. O parlamento é macho (sem ofensa a questões de gênero). Acredito nisso. Ele vai fazer a reforma. Ele não vai aceitar que a Presidenta desdenhe dele, o Parlamento, que representa o povo. A Presidenta é estrategista. Ela nem quer mesmo a Constituinte. Ela quer é provocar os brios da Casa do Povo. E a Casa haverá de responder positivamente. Ou não mais representa o povo? Hein?
PS1: sei que na tarde de terça-feira, dia 25 de junho 2013, dizia-se que o governo havia recuado na proposta da constituinte exclusiva... Mas deixo o texto assim mesmo. Como o Manifesto que firmamos terça-feira (clique aqui para ler). Só mais uma pergunta: se os deputados e senadores que estão aí não prestam e se foi o povo quem os elegeu, quem garante que os futuros constituintes sejam melhores? Há um passe de mágica tornando o eleitor mais sábio e consciente? Ainda: quem faria parte da constituinte? Marcianos? Lordes ingleses? Sim, porque se os políticos são ruins, faríamos uma constituinte sem políticos? Mas o Tiririca não era político. O Marcos Feliciano também não. O Ratinho também não. Quem mais?
PS2: Há algum tempo, publiquei o texto sobre a Revolução dos Estagiários (clique aqui para ler). Ali eu já antevia o que está ocorrendo hoje. Era uma alegoria ou uma metáfora. Eis um pequeno trecho do que então escrevi: “Os estagiários ainda não assumiram o poder porque não estão (ainda) bem organizados. Deveriam aderir à CUT. Em alguns anos, chegariam lá. Dia desses veremos os muros pichados com a frase “TODO O PODER AOS ESTAGIÁRIOS”. Afinal, eles dão sentenças, fazem acórdãos, pareceres, elaboram contratos de licitação, revisam processos... Vão ao banco. Sacam dinheiro. Possuem as senhas. Eles assinam eletronicamente documentos públicos. Eles decidem. Têm poder. Eu os amo e os temo.”
Sim, eu respeito profundamente os estagiários. Eles estão difusos na República. Por vezes, invisíveis. Jamais saberemos quantos são. E onde estão. Algum deles pode estar com você no elevador neste momento. Ou em uma audiência (é bem provável, até). Ou no Palácio do(s) governo(s) federal, estadual e municipal. Sei de vários que lá estão. E participam de reunião de gabinetes de ministérios. Que bom. Com isso vão aprendendo. Afinal, é para isso que servem os estagiários.
Eles fazem de tudo. Neste momento, um estagiário, ou vários deles, podem estar controlando o seu voo. A Infraero tem muitos estagiários. Torço para que eles sejam tão bons quantos os que estagiam no meu gabinete. Estagiários de todo mundo: uni-vos. Nada tendes a perder senão vossos manuais recheados de enunciados prêt-à-porter, prêt-à-parler, prêt-à-penser que os professores vos mandam comprar. Estagiários de toda a nação: indignai-vos face à exploração a que estão submetidos.
Portanto, atenção, comunidade jurídica em geral: fiquem atentos. Como se diz no Rio Grande do Sul, “tomem tento”. Os estagiários vêm aí, fazendo uma aliança com todos aqueles advogados que não conseguem passar seus apelos e recursos (que são recusados em duas linhas com base no livre convencimento ou argumentos quetais!), que não conseguem entender por que seus embargos declaratórios não são conhecidos (e nem explicados), e assim por diante. A lista é longa. Eles, unidos, podem vir aí. E provavelmente usarão os grandes manualões e resumões para atirar contra todos nós (eu só quero avisar que sou da base aliada dos estagiários). Tomemos tento!

[1] Sobre a Übermassverbot e a Untermassverbot, ver Streck, Maria Luiza S. Direito Penal e Constituição: a face oculta dos direitos fundamentais. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2008.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Constituinte exclusiva é desnecessária e perigosa

A ideia lançada nesta segunda-feira (24/6) pela presidente da República Dilma Rousseff de convocar um plebiscito que decidirá sobre a instalação de uma Assembleia Constituinte para tratar exclusivamente de reforma política é desnecessária, juridicamente duvidosa — e perigosa. Essa é a opinião da maioria dos advogados e ministros, aposentados e em atividade, do Supremo Tribunal Federal ouvidos pela revista Consultor Jurídico.
Desnecessária porque é perfeitamente possível fazer a tão esperada reforma política dentro dos marcos legítimos fixados pela Constituição Federal de 1988. Ou seja, por meio de projetos de lei e propostas de emenda à Constituição.
Juridicamente duvidosa porque não é possível se convocar uma Assembleia Constituinte para tratar de um assunto específico. O poder constituinte originário é ilimitado. Logo, poderia avançar para muito além da reforma política. E perigosa porque constituinte não têm compromissos com a ordem jurídica vigente. Logo, é possível romper com a ordem vigente hoje no país e que garantiu, até hoje, 25 anos de estabilidade institucional.
“Sob a roupagem da reforma política, pode-se reestruturar o país. Pode-se diminuir o tempo de mandato do presidente da República, por exemplo. Alterar a forma de escolha dos ministros do Supremo ou fixar mandatos. Na prática, é a criação de um quarto poder que poderá mais do que os outros três poderes”, afirmou à ConJur um ministro do Supremo Tribunal Federal que criticou a ideia. Para ele, reforma política se faz por meio de leis e emendas à Constituição.
O ministro aposentado do Supremo Ayres Britto afirmou que enxerga bons propósitos na ideia da presidente da República. “Vê-se que ela está bem intencionada, que quer acertar”, disse. De acordo com o ministro, contudo, a Constituição Federal não dá ao Congresso o poder de convocar um plebiscito para tratar da matéria específica. “O Congresso Nacional pode, por motivos de conveniência e oportunidade, repassar para o povo, convocado plebiscitariamente, seu poder normativo. Ou seja, só pode convocar o povo a decidir sobre os temas que ele próprio, Congresso, tem legitimidade para decidir. Não é o caso de convocação de plebiscito para decidir a instalação de uma Assembleia Constituinte”, disse.
Ayres Britto deu exemplos práticos. O Congresso convocou um referendo para decidir sobre o desarmamento no Brasil. Momentaneamente, portanto, deixou de lado a democracia representativa, por meio da qual deputados e senadores fixam os marcos normativos do país, e convocou a população a se manifestar por meio da democracia direta. Mas o Congresso passou ao povo o poder de deliberar em seu lugar, sobre uma decisão que ele mesmo poderia tomar.
O Congresso não poderia, por exemplo, convocar um plebiscito para decidir sobre a fixação da pena de morte no Brasil. Isso porque ele próprio não tem o poder de legislar em relação ao tema. Logo, se não cabe ao Congresso decidir sobre a instalação de uma Assembleia Constituinte, não tem o poder de convocar um plebiscito para decidir sobre a matéria.
“Nenhuma Constituição tem vocação para o suicídio. Por isso, não prevê a possibilidade de se convocar uma Assembleia Constituinte. Toda Constituinte é a sentença de morte da Constituição anterior e, neste caso, o Congresso Nacional não pode convocar o povo para agir como o coveiro da Constituição de 1988, que agora é que começa a dar seus belos frutos”, afirmou Ayres Britto.
Ideia inusitadaO ministro aposentado do Supremo Carlos Velloso afirmou desconhecer a figura da “Constituinte exclusiva”. Para ele, uma mudança neste grau pode e deveria ser feita mediante emenda constitucional. “Isso é um despropósito. Uma medida para enganar a população que está nas ruas pedindo reforma”, disse o ministro, que presidiu o STF entre 1999 e 2001.
“Essa medida de plebiscito, que eu considero um absurdo, é algo inusitado que esconde qualquer coisa porque não tem apoio na ordem jurídica. Sem dúvida, não tem fundamento jurídico”, criticou.
Já o ministro Marco Aurélio não entrou no mérito de ser ou não juridicamente possível um plebiscito para convocar uma Assembleia Constituinte, atribuindo à declaração da presidente um efeito de “força de expressão”. Para o ministro, como o momento exige uma tomada séria de providências, a presidente “usou algo para realmente impactar”. Marco Aurélio afirmou que a realização de um plebiscito é desnecessária, dada a insatisfação da sociedade ser evidente, e que a reforma política pode ocorrer por meio de emendas constitucionais.
“O que a presidente quis dizer foi ressaltar a necessidade de uma mudança de rota. E, portanto, de providências dos poderes constituídos, principalmente do Congresso. Será que é necessário o plebiscito? É só perceber anseios da sociedade, que quer mudanças no campo ético, no arcabouço normativo e atenção maior para os serviços públicos”, disse. O ministro afirmou que não imagina uma convocação extraordinária para a reforma política, “quando podemos consertar sem lançar mão de uma nova Constituinte”.
Proposta legítimaPara o ministro aposentado do STF Francisco Rezek, ex-juiz da Corte Internacional de Justiça de Haia, a nomenclatura “Constituinte” é menos importante diante do atual quadro do país. Ele considera que a presidente Dilma Rousseff parte da premissa correta de que os atuais membros do Congresso Nacional não são os melhores quadros para empreender uma reforma política.
O que importa, para o ministro, é que há uma reação diante da onda de manifestações nas ruas e da perda de representatividade dos membros do Congresso Nacional, que demonstram a necessidade de se fazer com urgência a reforma no sistema político do país. Ou seja, enxergam na ação da presidente uma boa intenção, que pode ser levada a cabo de outra forma.
“Um colegiado que fosse eleito só para tratar da reforma política, que não fosse constituído pelos membros regulares do Congresso, teria mais qualidade”, afirmou Rezek. O ministro afirmou que a discussão não é nova. Nos anos 1980, lembrou, se discutiu a possibilidade da eleição de uma Assembleia Constituinte separada do Congresso, que se dissolvesse após a elaboração da Constituição. Ao fim, se decidiu transformar o Congresso em Assembleia Nacional Constituinte.
“A ideia é correta. Não seria propriamente uma Assembleia Constituinte. Nós teríamos aí um colegiado para a reforma política na Constituição, para modificar na Constituição apenas o necessário para que o produto dessa mudança signifique a autêntica reforma política que todos esperam alcançar. É uma questão de adaptar a nomenclatura, mas a ideia é a melhor possível”, defendeu o ministro aposentado.
Processo de reformaO advogado constitucionalista Gustavo Binenbojm questionou a necessidade política da convocação de uma Assembleia Constituinte diante da história recente do país. De acordo com ele, o fato de a Constituição de 1988, em seus 25 anos, ter sido alvo de 73 emendas mostra que o processo de reforma da Constituição do Brasil é um processo facilmente acessível pelo trabalho do constituinte derivado.
“O processo é factível, é alcançável. Por que, se é possível alcançar o resultado desejável no âmbito do Congresso e dentro dos marcos constitucionais em vigor, se instalar uma Assembleia Constituinte?”, questionou Binenbojm. “Não creio que haja a necessidade. Parte da reforma pode ser feita por emendas à Constituição e parte por meio de leis ordinárias”, completou.
O advogado lembrou uma frase do ministro Ayres Britto: “O poder constituinte originário é o poder que tudo pode, só não pode o não poder”. De acordo com o advogado, o poder de uma Assembleia Constituinte é juridicamente ilimitado, insuscetível de qualquer controle. “Há um risco inerente a qualquer processo constituinte originário, que é o risco para as instituições democráticas”, afirmou.
Gustavo Binenbojm lembrou que a instalação da Constituinte que deu à luz a Constituição de 1988 se deu a partir de um processo de ruptura com a ordem jurídica anterior, que havia esgotado seu lastro de legitimidade. “Não é o caso do Brasil de hoje, em que vivemos em um regime democrático, dentro de um Estado de Democrático de Direito. Se o poder de uma Assembleia Constituinte é juridicamente ilimitado, o próprio Supremo Tribunal Federal não terá liberdade para controlar. Há uma preocupação política com os rumos de uma convocação dessa natureza”, opinou o advogado.
“Sopesando bem os prós e contras, acho que essa energia popular presente nas manifestações nas ruas poderia ser canalizada para um processo de reforma construído dentro dos marcos da Constituição Federal de 1988, com a salvaguarda de que os direitos das minorias e os direitos e garantias fundamentais serão preservados”, concluiu.
O presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Marcus Vinícius Furtado Coêlho, também afirmou que do ponto de vista técnico, a proposta da presidente Dilma Rousseff se torna inviável. “Não apenas pelos riscos inerentes dessa iniciativa, como também em face do poder ilimitado que lhe permite reformar ou fazer o que bem entender. Em resumo, não é possível convocar uma Constituinte para discutir matéria ‘a’ ou ‘b’, pois é ela própria quem define”, afirmou.
Segundo Furtado Coêlho, nada impede que a iniciativa alcance matérias relativas à liberdade de imprensa, garantias individuais e tantas outras sobre as quais a sociedade precisa constantemente se manter vigilante para que não pereçam. “A atual Constituição, às vésperas de celebrar 25 anos, ainda é fator de mobilização social, como vemos agora, para assegurar a efetivação de direitos. Acaba sendo, portanto, uma carta em branco”, disse o presidente nacional da OAB.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Lei dá a delegados poder requisitório conferido ao MP

Lei dá a delegados poder requisitório conferido ao MP

Publicada em 21 de junho de 2013, a lei que aborda a investigação conduzida pelos chefes da polícia judiciária, os delegados de Polícia. Entre a tramitação do PLC 132/2012 e sua concretização na mencionada lei, poucas alterações houve no texto, mas com a confirmação de importantes garantias à persecução realizada pela polícia judiciária.
Dada a relevância do diploma legal, convém tecer comentários sobre o tema de forma analítica.
Artigo 1º Esta Lei dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia.
A presente lei, como assinala a introdução do artigo primeiro, aborda aspectos atinentes à investigação conduzida pelo delegado de polícia, única autoridade policial com atribuição para proceder a investigações de crimes (não-militares). Assim, delegados das Polícias Civil e Federal têm alguns aspectos de sua atividade regulados pela presente lei.
Artigo 2º As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.
A lei reafirma características de que é dotada a atividade desenvolvida pela polícia judiciária. A natureza jurídica pode ser apontada por diversos motivos: a coordenação de investigações é dedicada a delegados de polícia, cujo cargo é privativo de bacharel em direito. Para além disso, os concursos públicos a que são submetidos os candidatos possuem nível de exigência típico de outras carreiras jurídicas como Ministério Público, magistratura e Defensoria Pública. O exercício da atividade profissional, diariamente, é praticado mediante aplicação de leis, entendimento e interpretações jurídicas, utilizando-se de todos os instrumentos dispostos na Constituição Federal, Código Penal, Código de Processo Penal, Leis Penais e Processuais Penais extravagantes, além de pontos de contato com o Código Civil, Estatuto da Criança e do Adolescente, além de legislação típica do Direito Administrativo. É função jurídica por natureza.
No que diz respeito à essencialidade, a polícia judiciária é peça fundamental na estrutura do Estado Democrático do Direito. Se o Estado se apresenta na figura do julgador (juiz), do acusador (promotor de Justiça) e do defensor (advocacia pública e privada), é o Estado investigador (delegado de polícia nos crimes não- militares) que se preocupa em apurar a materialidade e a autoria de delitos. Estas funções são extremamente importantes e possuem foco de atuação próprio, proporcionando uma concentração específica de funções que não se deixam contaminar pelos atos próprios de outras instituições ou poderes. O sistema jurídico torna-se multifuncional, havendo um plexo de especializações que se interligam e se complementam através de cada instituição que figura no regime democrático (Poder Judiciário, Ministério Publico, advocacia, polícia judiciária).
Na verdade, este dispositivo parece ser inspirado nos dizeres já cristalizados no artigos 127 à 133 da CF, que mencionam as instituições que exercem funções essenciais. Logo, a investigação levada a cabo pela polícia judiciária é atividade essencial ao Estado Democrático de Direito, pois é a forma pela qual o Estado pode interferir na intimidade, privacidade, limitando certos direitos e garantias por período de tempo em que é necessária a apuração de uma infração penal. Esta atividade é regrada pela Constituição Federal, primeiramente, e pelas minúcias da legislação infraconstitucional.
De outro lado, a investigação é exclusiva de Estado, pois não é dada ao particular a limitação de direitos e garantias individuais e coletivas para apurar o cometimento de infrações penais. O uso da força e, não raro, a limitação ao direito de liberdade são tarefas cometidas precipuamente ao Estado, o qual elegeu o delegado de polícia como primeiro avaliador sobre a legitimidade de detenção de seus cidadãos (decisão sobre a autuação de flagrante delito). Como referido, o Estado-investigador não delega tal tarefa a um particular, mas a um bacharel em direito, aprovado em concurso público, que exerce o cargo de delegado de polícia, a quem compete dirigir a atividade da polícia judiciária (artigo 144, CF).
Parágro 1º Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.
Reafirma-se quem é autoridade policial: o delegado de polícia. Não existe qualquer outra autoridade considerada “policial”. Os escalões da Polícia Militar que têm atribuição para investigar crimes militares não são considerados como autoridades policiais em sentido técnico, pois esta designação é própria daquele que conduz investigações atinentes à condução da polícia judiciária.
De outro lado, a lei estabelece que as investigações criminais conduzidas pela autoridade policial serão feitas por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei. O inquérito policial, previsto no artigo 4º do Código de Processo Penal, é o procedimento investigativo por excelência. É o principal instrumento à disposição do Estado-investigação. Entretanto, não é o único. Quanto à expressão “ou outro procedimento previsto em lei”, que recebeu algumas críticas quando da tramitação do PCL 132 em função de sua alegada abstração, suscitando-se a sua inconstitucionalidade, tem-se que o vício não se manifesta. A lei não necessita trazer um rol fechado de instrumentos de investigação. Restou claro, com isto, que a polícia judiciária dispõe de outros meios de investigação que não necessariamente precisam estar previstos na presente lei. Exemplo disto é a possibilidade de apuração de fatos utilizando a verificação prévia de informações (VPI), prevista no artigo 5.º, parágrafo 3º do CPP, bem como do Termo Circunstanciado, previsto na Lei 9.099/1995. O que faz a lei, com muita propriedade, é dizer que o inquérito policial não é o único instrumento de que se vale a polícia judiciária, podendo valer-se de outros, desde que devidamente previstos em lei. Isto preserva o princípio da legalidade a que está adstrita a Administração Pública, bem como preserva garantias constitucionais dos cidadãos, os quais só podem ser investigados e privados de seus bens e direitos, ainda que temporariamente, através de expediente previsto expressamente no ordenamento jurídico.
Parágrafo 2º Durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos.
A lei traz um grande instrumento para a atuação da autoridade policial. O poder requisitório de perícias, documentos, informações e dados é de extrema importância diante da celeridade requerida na apuração de certas infrações criminais. Antes da lei, a polícia judiciária limitava-se a requerer dados e informações de forma não-coercitiva. Somente com a colaboração espontânea e, muitas vezes, decorrente do desconhecimento sobre a falta de obrigatoriedade é que havia entrega de documentos e dados para as investigações. Não há que se olvidar, entretanto, as medidas que, não obstante o poder de requisição, estão sujeitas à prévia autorização judicial, como por exemplo, a quebra de sigilo de dados bancários e telefônicos.
Não há relação de subordinação, mas sim, de atendimento a uma ordem emanada de autoridade estatal com poderes legalmente previstos para tanto. Delegados de polícia têm, agora, o poder requisitório que já é conferido à magistratura, Ministério Público e Defensoria Pública.

Cria-se, com isto, antes de mero instrumento de coerção, uma expediente vocacionado a imprimir celeridade e eficiência na apuração de infrações penais. A implicação do não-atendimento de uma requisição no prazo estipulado será a possibilidade de enquadramento pelo crime de desobediência.
Parágrafo 3º (VETADO) O delegado de polícia conduzirá a investigação criminal de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, com isenção e imparcialidade.
Este artigo foi vetado. Nas razões do veto, expôs-se que a redação do parágrafo poderia conduzir a uma desarmonia com os demais encarregados da persecução penal. Entende-se que este receio não é procedente encontra uma interpretação constitucional adequada.
O objetivo da norma era somente o de cristalizar o que já é uma realidade jurídica: a independência que possui o delegado de polícia na condução da investigação criminal. Decorre, justamente, da posição de carreira jurídica que é reconhecida à atividade exercida pela autoridade policial. Desta feita, o enquadramento dos fatos apresentados à autoridade policial é por ele realizado com total independência e segundo o seu livre convencimento baseado na sua instrução jurídica. Assim como o Ministério Público não está adstrito à capitulação legal e às conclusões exaradas pela autoridade policial em seu relatório final, concluindo pelo indiciamento ou não, podendo oferecer denúncia com entendimento totalmente diverso, a recíproca é verdadeira. Da mesma forma o magistrado, no recebimento da denúncia, não está vinculado à capitulação dada pelo promotor de Justiça. É a independência existente e necessária entre os atores do devido processo legal.
De outro lado, a isenção e imparcialidade decorrem dos princípios e das novas matizes que têm sido emprestadas à investigação policial. A investigação não se presta, num contexto democrático, a identificar, necessariamente, um culpado. Não se busca imputar a autoria de um crime a qualquer custo. O que faz a autoridade policial é apurar fatos e suas circunstâncias. A imparcialidade é condutora de um procedimento não tendencioso, livre de direcionamentos, preconceitos e demais vícios que possam macular a idoneidade da investigação. Ainda que seja procedimento dispensável e informativo, cujos vícios não contaminam a Ação Penal, a tendência do inquérito policial ou outro meio de investigação é de que seja praticado com a maior observância possível de garantias constitucionais. Até mesmo porque, ainda que não seja processo, trata-se de procedimento administrativo e, como tal, deve obedecer aos princípios comuns à administração pública. Dentre eles, está o princípio da impessoalidade, o qual possui afinidade intrínseca com a imparcialidade. Com isto, o inquérito policial torna-se um instrumento de investigação de fatos e circunstâncias, podendo, de acordo com o convencimento técnico e jurídico do delegado de polícia, gerar ou não o indiciamento. Não existe a decorrência lógica de se imputar a responsabilidade por um fato a uma determinada pessoa. O inquérito é instrumento de busca de verdade e não de imputação irresponsável para que sempre se tenha a responsabilização de alguém por um fato que cause desconforto ou mesmo clamor social. Como as investigações concretizadas por meio de atos e atos administrativos, eles devem ser praticados em observância aos princípios da impessoalidade, legalidade, publicidade, motivação e interesse público, devendo o delegado de polícia atuar com independência para preservar estes cânones.
Um aspecto importante a se averiguar (e que deve ter motivado o veto do parágrafo 3º) é se o livre convencimento baseado no conhecimento técnico e jurídico da autoridade policial retira o poder de requisição do Ministério Público ou pelo magistrado. Há que se verificar dois momentos distintos.
Um primeiro momento diz com relação à requisição de instauração de procedimento para a apuração de determinado delito. Neste caso, tem-se que a autoridade policial somente pode se recusar em caso de manifesta ilegalidade ou diante da ausência de informações necessárias para a instauração. Fora destes casos, a instauração é devida.
Entretanto, durante toda a tramitação do inquérito policial, a autoridade policial conduzirá as investigações segundo o seu juízo de conveniência, oportunidade (discricionariedade administrativa) e livre convencimento sobre as circunstâncias apuradas. Não há interferência do requisitante. Mesmo o Ministério Público, destinatário da prova e titular da Ação Penal, não poderá interferir durante a tramitação do inquérito policial, requisitando diligências que venham a confirmar a existência de crime que motivou a requisição de instauração de inquérito. Até porque é equivocado requisitar instauração de procedimento apontando o crime praticado. O que pode haver é mera sugestão, indicação do cometimento, em tese, de determinado ilícito penal. Mas o juízo efetivo, neste momento de persecução, é do condutor do inquérito policial.
Contudo, após a conclusão do inquérito policial, com remessa do procedimento ao Poder Judiciário e a conclusão acerca do indiciamento, encerra a presidência do inquérito policial e o futuro do expediente estará em fase de análise pelo Ministério Público. Neste momento, pode o representante ministerial oferecer denúncia, requerer arquivamento ou requisitar diligências. Estas diligências requisitadas não estão sob o âmbito de discricionariedade do delegado de polícia, ou seja, já não lhe é possível sustentar o livre convencimento técnico e jurídico, mesmo que o Ministério Público, com a requisição, esteja buscando configurar crime com cuja existência, seja durante a instauração seja na conclusão do procedimento, não concordou a autoridade policial. Vigora o livre convencimento do titular da Ação Penal.
Desta forma, tem-se que uma vez requisitada a instauração de procedimento, o delegado de polícia somente pode não atender em caso de manifesta ilegalidade e ausência de informações para a instauração. Do contrário, deverá instaurar o procedimento, tendo liberdade quanto à capitulação típica. Durante a investigação, está imune a requisições que venham interferir no modo de conduzir a investigação. Uma vez encerrado o inquérito ou Termo Circunstanciado, deverá atender a eventuais requisições ministeriais. Com isto, preserva-se a autonomia pretendida pela lei à autoridade policial sem ferir o poder de requisição de membro do Ministério Público ou magistratura e, sobretudo, o convencimento necessário ao titular da Ação Penal. Daí porque equivocado o veto deste parágrafo 3º.
Entretanto, como visto, isto não gerará maiores problemas em função da própria natureza jurídica da função do delegado de polícia, pois tudo o que a autoridade policial faz ou deixa de fazer deve ser devidamente fundamentado, permitindo o devido controle que inspira o sistema de freios e contrapesos.
Parágrafo 4º O inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei em curso somente poderá ser avocado ou redistribuído por superior hierárquico, mediante despacho fundamentado, por motivo de interesse público ou nas hipóteses de inobservância dos procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a eficácia da investigação.
O dispositivo legal demonstra o avanço pretendido pelo legislador em conferir autonomia e independência aos delegados de polícia, salvaguardando-o de qualquer ingerência institucional ou política. Busca-se trazer maior transparência à atuação tanto de autoridades policiais quanto de seus superiores hierárquicos, impedindo afastamentos de investigações pela determinação de troca na presidência de procedimentos ou de avocação. Ocorre que as polícias judiciárias sempre foram muito criticadas pela ausência de autonomia e porque são vinculadas ao poder Executivo. Nesta seara, foram apontadas como carecedoras de imparcialidade devido a eventuais pressões políticas.
Com a nova lei, fica preservada uma atuação firme, isenta e livre de vicissitudes externas, algo que já se verifica diuturnamente com a investigação e prisão de pessoas bem situadas socialmente, como prefeitos e vereadores, após investigações levadas a cabo pelas polícias judiciárias. Vale lembrar que a presente lei declara a carreira de delegado de olícia como “de Estado”, sendo que a polícia judiciária, por ele conduzida, não pode ser tratada como polícia “de governo”, motivada por convicções ideológico-partidárias. Polícia judiciária é polícia investigativa, técnica, que age sob coordenação de um agente público que exerce carreira de Estado. Assim, não caberão afastamentos da presidência das investigações por motivos escusos, mas mediante despacho fundamentado. Somente no caso de interesse público declarado ou quando for apontada inobservância de procedimentos previstos em regulamento da corporação e que prejudiquem a eficácia da investigação é que poderá ocorrer o afastamento. Confere-se respeito aos princípios da impessoalidade, interesse público e publicidade.
Parágrafo 5º A remoção do delegado de polícia dar-se-á somente por ato fundamentado.
A previsão também visa coibir afastamentos da presidência de procedimentos investigativos. Mais: visa impedir que a remoção seja utilizada como instrumento de punição ou de perseguição contra delegados de polícia. Como se daria uma investigação se, por interesses escusos, uma autoridade policial fosse impelida a mudar de cidade, desestabilizando sua rotina familiar e, quem sabe, removida para uma cidade distante, com parca infraestrutura, como forma de “punição” pelo não atendimento de pedidos indecorosos ou orientação odiosa por parte de algum superior hierárquico que não esteja irmanado com princípios basilares da administração pública como o da impessoalidade? Tal previsão impede o uso indiscriminado do instituto da remoção, devendo sempre ser realizada de forma fundamentada, em observância ao princípio da impessoalidade, motivação e da publicidade.

Parágrafo 6º O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.
A partir da existência deste dispositivo, o indiciamento deverá ser sempre motivado. Não bastará um simples termo de indiciamento, com a qualificação do indiciado e a descrição do crime pelo qual é investigado. Deverá existir a análise dos fatos e sua repercussão jurídica. Esta análise, diga-se de passagem, não necessita ser exauriente, a exemplo do relatório final do inquérito policial. Contudo, elementos mínimos devem ser considerados para que haja o indiciamento, ato pelo qual a pessoa adquire status jurídico de “investigado”. Esta previsão legal é positiva em todos os sentidos. Primeiro, porque permite à autoridade policial expor o conhecimento técnico e jurídico enquanto membro de carreira de Estado e de natureza jurídica. Segundo, porque garante lisura ao procedimento investigativo, com a indicação das razões por que alguém é considerado como investigado. O inquérito policial é ato de constrangimento, de interferência em garantias como a intimidade, privacidade e, não raro, à propriedade de bens e liberdade. Desta forma, a condição de investigado não pode ser imposta imotivadamente ou com base em um suporte probatório pífio. A jurisprudência bem ilustra a freqüente concessão de Habeas Corpus determinando o arquivamento de inquéritos policiais pela conclusão de existência de constrangimento ilegal contra pessoas que têm sua condição jurídica alterada sem a devida necessidade ou fundamentação legítima. Desta forma, as garantias da presunção de inocência e preservação da intimidade são melhor tuteladas. A lei, entretanto, não mencionou qual deve ser o momento do indiciamento. Entende-se que o indiciamento deverá ser feito segundo um juízo de conveniência e oportunidade pela autoridade policial, com base nos elementos de prova que forem sendo coligidos, pois, no atual contexto do Código de Processo Penal, não há previsão legal sobre o momento correto de praticá-lo, bem como não determina as conseqüências procedimentais e jurídicas que decorreriam com relação ao investigado.
Artigo 3º O cargo de delegado de polícia é privativo de bacharel em Direito, devendo-lhe ser dispensado o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os advogados.
A previsão deste artigo apenas reafirma o que toda a lei diz em linhas gerais: a carreira de delegado de polícia é de Estado e possui natureza jurídica. Além disso, o delegado de polícia é inamovível, garantia que somente pode ser relativizada por ato fundamentado, não podendo ser afastado da presidência de investigações senão por interesse público ou procedimento irregular. Estas são características que também são conferidas a outras carreiras jurídicas, como à magistratura, ao Ministério Público e Defensoria e advogados. Nesta mesma linha de idéias, percebe-se que todos os citados constam expressamente no artigo 127 a 134 da Constituição Federal, ou seja, funções essenciais à administração da Justiça. Neste aspecto, a lei perdeu a oportunidade de não apenas dizer que a policia judiciária é função essencial, mas função essencial à Justiça, até mesmo para evitar discussões sobre o real significado da essencialidade. Entretanto, tem-se que justamente esta é a intenção do legislador, porque quando mencionou a prerrogativa de tratamento protocolar igual ao dos membros do Ministério Público, Advocacia Pública, Defensoria Pública e Advogados, equiparou-os diante da essencialidade da função e de que — à exceção da advocacia privada — são consideradas como carreiras de Estado.
De resto, o tratamento protocolar correto aos delegados de polícia será o mesmo dispensado aos membros da magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública e advocacia. Desta feita, tanto “Excelência” é o tratamento protocolar adequado, conforme apontam as regras da língua portuguesa. Ressaltando o verdadeiro foco da intenção legislativa, expressa-se, mais uma vez, a noção de que, enquanto carreira jurídica, essencial e de Estado, ostenta a mesma importância de outras que lhes são similares. Há diferenças de atribuições constitucionais, mas não de hierarquia ou importância.
Artigo 4º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
A lei está vigendo desde 21 de junho de 2013.
Comentários finais
Como se percebe, a lei trata de matéria administrativa e processual-penal. Tem implicações junto ao Código de Processo Penal, mas também traz conseqüências para os regimentos internos das corporações policiais. Crê-se, inclusive, que o reconhecimento das garantias nela mencionadas teria maior envergadura se tivesse se concretizado em âmbito constitucional, a exemplo da magistratura e do Ministério Público. Entretanto, sabe-se que as dificuldades e cenários políticos, em determinados momentos, não permitem que mudanças mais densas e complexas como as que se dão, em tese, com as emendas constitucionais.
De qualquer sobre, a maior virtude do diploma legal foi conceder as garantias mencionadas aos delegados de polícia enquanto dirigentes da polícia judiciária. Com isto, o Estado-investigação blindou-se para exercer o seu mister com maior eficiência. Independência funcional e inamovibilidade são prerrogativas essenciais ao desempenho de uma função tão complexa e importante para o regime democrático como a atividade investigativa. Como resultado, esperam-se investigações aptas a apurar responsabilidades em todos os níveis sociais. E isto, sem dúvida, é mais do que positivo, é necessário.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

As competências que o advogado empreendedor deve ter

Quando um jovem advogado decide fundar uma banca competitiva, ele deve saber que esse passo exige mais do que conhecimento jurídico. Bem mais. É necessário possuir veia empreendedora e capacidade obsessiva de transformar sonhos em realidade. Esse comportamento é o que fará diferença na construção.
Advogados empreendedores buscam oportunidades e têm iniciativa. Persistem, são comprometidos e assumem a responsabilidade pelos resultados obtidos. Exigem qualidade e eficiência. Correm riscos calculados, estabelecem metas e buscam informações sobre o mercado, clientes e concorrentes. Planejam e monitoram sistematicamente as atividades de seus escritórios, agem para manter e desenvolver relações comerciais, são independentes e autoconfiantes.
Como se pode perceber, a figura romântica do advogado recém-formado que inaugura seu modesto escritório, com parcos recursos, e espera seus clientes baterem à porta está distante, como um sonho quixotesco. Por questões mercadológicas, o novo empreendedor jurídico tem que enfrentar dilemas de difícil condução, se deparando diariamente com oportunidades e ameaças e tendo que, rapidamente, decidir o que fazer sobre elas. Esses dilemas, no entanto, são a mola propulsora de seu espírito de realização.
Empreendedor jurídico é aquele que consegue unir pessoas (sócios, outros advogados, estagiários, equipe administrativa, parceiros, correspondentes etc.) com um objetivo comum e fazê-las compartilhar e acreditar em sua visão.
Um dos grandes motivos que devem mover o advogado empreendedor, além de concretizar seu sonho, é o ambiente atual da advocacia. Há um congestionamento do mercado (quase 800 mil advogados), redução gradativa de honorários, aproximação irreversível de bancas estrangeiras, investimento em profissionalização dos escritórios, arrocho dos departamentos jurídicos, saltos tecnológicos e inovações, escassez de teses, e sensibilidade do cliente em relação ao preço. Adaptar-se à crise e ao mercado complexo dos dias atuais, pensando em novas formas de operar negócios jurídicos é uma opção que deve estar sempre em evolução.
O advogado empreendedor deve abraçar a inovação. Ela não se dá necessariamente com a criação de algo novo e não pensado, uma invenção, mas com a atribuição de uma nova perspectiva a algo já existente. Quer alguns exemplos? Podemos citar os Juizados Especiais itinerantes, os julgamentos informatizados, a penhora on-line, o peticionamento eletrônico, a certificação digital de acórdãos, o inquérito policial digital. Respiramos inovação todos os dias, o dia todo.
Nos dias de hoje, mais arriscado do que inovar é ficar inerte frente às constantes mudanças no mundo. E o mundo jurídico muda a cada minuto. Cada dia que passa, somos compelidos a romper com o passado da segurança profissional da advocacia, a enfrentar o presente da crise econômica, da competição acirrada e da evolução tecnológica, para alcançar o futuro que almejamos. A realidade mostra que o sucesso é conquistado com estratégia, ousadia e coragem.
Se você não for o responsável pela implementação de uma nova ideia (seja no desenvolvimento de uma grande e inédita tese jurídica, seja com relação ao atendimento a seus clientes ou na exploração de um novo nicho de mercado), alguém invariavelmente o será. O empreendedorismo deve ser consequência da visualização de uma oportunidade, da crença de que há espaço para novos conceitos.
Cinco competências do advogado empreendedorCompetência técnica — A satisfação das necessidades dos clientes depende da adequação ao uso dos serviços jurídicos oferecidos, sendo esta uma questão eminentemente intelectual no caso da advocacia. Um advogado com competência técnica é capaz de garantir a geração de serviços, cujas características e benefícios satisfarão plenamente o seu cliente. Isso porque ele não é um amador que está aventurando-se no fornecimento de serviços sobre os quais ele nada entende. Ao contrário, ele deve dominar muito bem o método, técnicas e processos de seu trabalho.
Competência Administrativa — O escritório de advocacia é um sistema, composto de diversas áreas (marketing jurídico, produção, recursos humanos, finanças etc.) que devem trabalhar sincronizadas. O advogado com competência administrativa é capaz de gerenciar todas as áreas empresariais, em perfeito alinhamento entre elas e em sintonia com o resultado planejado. No caso do escritório de pequeno porte, isso é fundamental por duas razões:
Em primeiro lugar porque os efeitos de uma decisão errada na gestão do pequeno escritório são imediatos, às vezes irreversíveis e até fatais. O advogado que é “obrigado” a “confiar cegamente” a outras pessoas a tomada de decisão sobre, por exemplo, finanças ou marketing jurídico, simplesmente por não dominar administrativamente o funcionamento dessas áreas, pode estar colocando em risco o seu negócio. Repetimos: o escritório é um sistema! Portanto, as decisões isoladas em qualquer uma das áreas empresariais podem afetar o desempenho da banca como um todo. Alguém precisa considerar este todo e este alguém é você, dono do escritório.
Em segundo, para otimizar seus custos, o pequeno escritório precisa trabalhar com uma estrutura enxuta. Por esse motivo o advogado não pode dar-se o luxo de gastar dinheiro com pessoas que só existem no escritório para suprir suas deficiências administrativas.
Competência de líder — Sabemos que os escritórios de Advocacia vencedores possuem como diferencial competitivo o seu capital humano. O advogado com competência de líder é capaz de influenciar, negociar e incentivar mudanças nos comportamentos das pessoas (individualmente e em grupo) para que se comprometam a alcançar, de forma consciente e voluntária, os resultados que deseja para a sua banca. As pessoas em questão não são apenas os liderados, mas também outros advogados, fornecedores, clientes e até concorrentes. No que se refere especificamente aos liderados, liderar envolve, além das habilidades para selecionar, treinar e desenvolver pessoas, as capacidades para estabelecer os resultados desejados (planejar metas), definir o como alcançá-las (organizar métodos) e acompanhar os resultados (controlar o desempenho das pessoas para elogiar ou repreender).
Competência estratégica — A palavra “estratégia” significa “a arte do general”. O mercado altamente competitivo é uma verdadeira guerra. O campo de batalha é a mente do cliente, que deve ser ocupada e depois protegida contra as investidas da concorrência. O advogado com competência estratégica é capaz de criar caminhos para atingir suas metas empresariais, aproveitando as oportunidades e neutralizando as ameaças do mercado consumidor, fornecedor e concorrente. Na prática, a competência estratégica do advogado é traduzida através de uma gestão empresarial fundamentada em um planejamento estratégico, que significa buscar continuamente informações sobre clientes, fornecedores e concorrentes para estabelecer metas e tomar decisões correndo riscos econômico/financeiros calculados.
Competência comportamental — Empreender é fazer acontecer. O advogado com competência comportamental é capaz de perceber e concretizar oportunidades, assumindo riscos e enfrentando desafios com arrojo e determinação. Persistência, autoconfiança, independência e outras características comportamentais são muito importantes para enfrentar os desafios de um mercado altamente competitivo. Contudo, podemos destacar algumas características comportamentais fundamentais para o sucesso de um advogado empreendedor: buscar informações, planejar e monitorar suas atividades de forma sistemática, correr riscos calculados, estabelecer metas, buscar oportunidades e ter iniciativa, persistir, comprometer-se, exigir qualidade e eficiência, desenvolver sua rede de contatos, agir com independência e autoconfiança.
Sendo assim, seja perseverante, saiba valorizar o trabalho em equipe, mantenha o foco, mantenha-se constantemente informado, entenda que gestão e comunicação é chave para o sucesso, entenda que dinheiro é fator crítico, seja honesto e íntegro o tempo todo, seja um eterno aprendiz, trabalhe pelo sucesso dos outros.
Assim, em um mundo sem heróis e de conceitos deturpados sobre o bem e o mal, prevalece a máxima socrática: conhece-te a ti mesmo. Conhecendo nosso espírito e buscando a luz do mundo (conhecimento e repertório), seremos o que desejamos: pessoas dispostas a mudar a ordem do tempo e das coisas. Se as coisas estão difíceis na profissão, se os contratos não estão sendo fechados como gostaria e tudo demora tempo demais, atitudes são possíveis de ser tomadas com planejamento, ética e ação. Inovar na advocacia é como o sangue que corre nas veias: não pode parar sob pena de falência dos órgãos vitais. A mudança depende de nós e de nossa alma. Isso e nada mais.
Rodrigo Bertozzi é administrador especializado em escritórios de advocacia, MBA em marketing e sócio da Selem, Bertozzi & Consultores Associados.
Lara Selem é advogada, consultora em planejamento estratégico, composição societária e gestão de pessoas na advocacia, International Executive MBA pela Baldwin-Wallace College (EUA), especialista em gestão de serviços jurídicos pela FGV-SP e em Liderança de Empresas de Serviços Profissionais pela Harvard Business School (EUA), sócia da Selem, Bertozzi & Consultores Associados.