sábado, 29 de setembro de 2012

MENSALÃO - MINISTRO RELATOR JOAQUIM BARBOSA EMITE NOTA OFENSIVA AO MINISTRO MARCO AURÉLIO

"Um dos principais obstáculos a ser enfrentado por qualquer pessoa que ocupe a Presidência do Supremo Tribunal Federal tem por nome Marco Aurélio Mello. Para comprová-lo, basta que se consultem alguns dos ocupantes do cargo nos últimos 10 ou 12 anos". Esse é um trecho da nota do ministro Joaquim Barbosa, divulgada por seu gabinete após ele ter sido criticado pelo ministro Marco Aurélio Mello, pela discussão com Ricardo Lewandowski durante sessão de julgamento do mensalão, na quarta-feira (26/9). Reportagem sobre o assunto foi publicada no site G1.
Barbosa, relator do processo, e Lewandowski, revisor, discutiram durante cerca de 15 minutos por conta de uma divergência entre os dois. Marco Aurélio chegou a repreender Barbosa: "Policie a sua linguagem". Fora do plenário, o ministro questionou as condições de Barbosa para presidir o Supremo — ele substituirá o atual presidente, Ayres Britto, que vai se aposentar em novembro.
Segundo Marco Aurélio, a eleição de Barbosa para o comando do STF não está em risco. Sobre o questionamento ele disse: “Só exteriorizei uma preocupação, que deve ser a preocupação geral. Quanto ao que poderíamos ter no futuro, admitindo a eleição dele [Barbosa]. Se eu não admitisse a eleição dele, não estaria preocupado”.
Em nota, Barbosa assegurou que caso venha a ter “a honra de ser eleito presidente da mais alta corte de Justiça do nosso país nos próximos meses”, como está previsto nas normas regimentais, não protagonizará “decisões rocambolescas”.
O relator o processo ainda informou que jamais tirou proveito de relações de natureza familiar. Marco Aurélio é primo de Fernando Collor de Mello e foi indicado por ele para ocupar o posto de ministro no STF em 1990, quando Collor era presidente. Segundo o ministro, a crítica não o alcançou: “Infelizmente, ou felizmente, ele [Barbosa] não guarda parentesco com Collor”.
Na nota, Barbosa ainda afirmou: “Ao contrário de quem me ofende momentaneamente, devo toda a minha ascensão profissional a estudos aprofundados, à submissão múltipla a inúmeros e diversificados métodos de avaliação acadêmica e profissional. Jamais me vali ou tirei proveito de relações de natureza familiar".
A nota foi publicada pelo gabinete de Joaquim Barbosa. A Assessoria de Imprensa do STF não chegou a publicá-la, mesmo após ministro ter feito o pedido.
Joaquim Barbosa na presidência do STFUm dia após Barbosa e Ricardo Lewandowski, revisor do processo do mensalão, discutirem no plenário do STF, Marco Aurélio criticou o tom usado pelo relator para se contrapor ao voto do revisor e questionou uma futura gestão do colega na presidência do tribunal: “Como é que ele (Barbosa) vai coordenar o tribunal? Como vai se relacionar com os demais órgãos e demais poderes? Mas vamos esperar. Nada como um dia após o outro”.
Segundo Marco Aurélio, ele parte da premissa de que Barbosa será eleito para a presidência do STF, porém destacou que a eleição do relator não é automática.
Irritado com as declarações do colega de tribunal, Barbosa chegou a procurar Ayres Britto, ao final da sessão, para reclamar de Marco Aurélio. "Quem esse cara [Marco Aurélio] pensa que é?", afirmou o relator, no meio do plenário, ao chefe do Judiciário.
O escolhido para presidir o Supremo, por tradição, é o ministro mais antigo da corte que ainda não tenha ocupado o cargo. Porém, mesmo que de forma protocolar, os julgadores terão de votar, de forma secreta, para eleger Joaquim Barbosa o chefe do Judiciário.
Na nota, o relator do mensalão afirmou: “Estou certo de que de mim não se terá a expectativa de decisões rocambolescas e chocantes para a coletividade, de devassas indevidas em setores administrativos, de tomadas de posição de claro e deliberado confronto para com os poderes constituídos, de intervenções manifestamente "gauche", de puro exibicionismo, que parecem ser o forte do meu agressor do momento“.

Leia a nota do ministro Joaquim Barbosa:

"Um dos principais obstáculos a ser enfrentado por qualquer pessoa que ocupe a Presidência do Supremo Tribunal Federal tem por nome Marco Aurélio Mello. Para comprová-lo, basta que se consultem alguns dos ocupantes do cargo nos últimos 10 ou 12 anos. O apego ferrenho que tenho às regras de convivência democrática e de justiça me vem não apenas da cultura livresca, mas da experiência concreta da vida cotidiana, da observância empírica da enorme riqueza que o progresso e a modernidade trouxeram à sociedade em que vivemos, especialmente nos espaços verdadeiramente democráticos.
Caso venha a ter a honra de ser eleito Presidente da mais alta Corte de Justiça do nosso País nos próximos meses, como está previsto nas normas regimentais, estou certo de que de mim não se terá a expectativa de decisões rocambolescas e chocantes para a coletividade, de devassas indevidas em setores administrativos, de tomadas de posição de claro e deliberado confronto para com os poderes constituídos, de intervenções manifestamente "gauche", de puro exibicionismo, que parecem ser o forte do meu agressor do momento.
Ao contrário de quem me ofende momentaneamente, devo toda a minha ascensão profissional a estudos aprofundados, à submissão múltipla a inúmeros e diversificados métodos de avaliação acadêmica e profissional. Jamais me vali ou tirei proveito de relações de natureza familiar".

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

MENSALÃO - STF aderiu ao direito penal máximo

O Supremo Tribunal Federal mudou para julgar o mensalão ou o mensalão mudou o Supremo? Os ministros da corte negam, mas os advogados criminalistas não hesitam em afirmar: o tribunal mudou seus paradigmas para condenar os réus da Ação Penal 470, o processo do mensalão. Levados por irresistível corrente condenatória, afirmam os advogados, os ministros optaram por um retrocesso em que se atropelaram princípios constitucionais construídos ao longo dos últimos anos.
Para o procurador de Justiça Lenio Streck, em um primeiro momento, é possível reconhecer razão aos advogados que entendem haver um retrocesso em relação a posições consolidadas pela jurisprudência do STF, na medida em que há um endurecimento por parte do Tribunal no julgamento de determinadas condutas. Todavia, lembra o jurista que novos tempos podem exigir novas respostas por parte do Judiciário.
A grande questão que se coloca, então, é saber se esse endurecimento se mostra necessário em face do tipo de criminalidade que é objeto de julgamento. Nesse caso, a alteração de rota na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal deve ser analisada no contexto da resposta que o Judiciário deve dar à sociedade. Parece estar havendo uma accountabillity do STF em face de uma certa demanda contra a impunidade. Se isso é bom ou ruim, é uma coisa que teremos que avaliar. Para o jurista "o grande problema é que a doutrina tem sido pouco ouvida. Talvez, por isso, esteja sendo pega de surpresa". Em arremate, indaga: "Não está na hora de a doutrina se tornar protagonista?".
Ainda não se sabe o quanto a releitura das regras penais afetará, doravante, a forma de aplicar Justiça no país. Mas a partir do momento em que a tipicidade de um delito deixa de ser rigorosamente exigida para a condenação, o STF fixa um novo paradigma regulatório. Mais: ao admitir o ato de ofício presumido e adotar o “domínio do fato” como responsabilidade objetiva, os ministros teriam se aproximado, perigosamente do direito penal de autor. Ou seja: admitir-se que alguém possa ser punido pelo que é, e não pelo que fez.
Críticas igualmente eloquentes são feitas à redefinição do que seja a lavagem de dinheiro — que para o ministro Joaquim Barbosa parece prescindir de crime antecedente. Ou, ainda, que qualquer uso que se dê a verbas de origem ilícita configure lavagem. Os mais pessimistas, em seu desapontamento com a doutrina que se insinua, anunciam o fim do garantismo, o rebaixamento do direito de defesa e o avanço da noção da presunção de culpa em vez de inocência.
Tristeza cívica
O ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil nacional e da seccional paulista José Roberto Batochio lamenta o movimento. "É tomado de tristeza cívica que assisto se perderem valores tão caros às liberdades no vórtice desse movimento punitivo sem limites que a tudo arrasta."
Um criminalista ouvido pela reportagem da revista Consultor Jurídico, mas que preferiu não ser identificado, afirma que o problema legal trazido pelo julgamento do mensalão é "objetivamente a questão do acavalamento de delitos". O maior problema, diz, não está nem dentro da Ação Penal 470 , mas no futuro. "No curso dessa ação penal, é observada uma sobreposição de crimes em relação a um mesmíssimo fato. O grande dilema e herança negativa do julgamento talvez venha a ser a ausência de definição dos elementos nucleares em cada um dos crimes. Onde acaba a corrupção e onde começa a lavagem?", questiona. Para o criminalista, não se nega a possibilidade de que os crimes tenham sido cometidos simultaneamente, "mas é necessário mostrar como eles se distinguem".
O advogado afirmou também que, com a sobreposição de imputações, é colocada em dúvida a própria "identidade" do crime de lavagem de dinheiro. "Quem se corrompeu e recebeu dinheiro tem que ir para a cadeia porque é corrupto, e não por ter lavado dinheiro. O ladrão que rouba um banco, leva a quantia para casa e a dissipa não está lavando dinheiro", disse o criminalista.
Lavagem culposa
Para o advogado, a forma como os ministros passaram a interpretar as imputações por lavagem pode dar margem para se acusar de lavagem de dinheiro qualquer crime em que valores ilícitos não sejam declarados ao fisco. "Quando não se distinguem elementos nucleares de cada ação humana, corre-se o risco de entender que aquilo que deveria ser apenas um crime de sonegação fiscal, praticado no âmbito da empresa, pode se tornar facilmente uma espécie de 'três em um'. Isto é, com a ampliação interpretativa de organizações criminosas, sendo a sonegação fiscal – o caixa dois – o antecedente de lavagem, é muito provável que tenhamos todas as três imputações presentes: sonegação, formação de quadrilha e lavagem", observou.
Essa "nova interpretação", no entendimento do advogado Luciano Feldens, professor de Direito Penal da PUC-RS, forçaria um acusado de corrupção a declarar o dinheiro ilícito."Sob uma perspectiva teórica e transcendente a qualquer caso específico, há uma questão fundamental que não pode passar despercebida no debate sobre o delito de lavagem de capitais: "gastar" dinheiro sujo não equilave a "lavar" dinheiro. A lavagem, enquanto delito, exige, por imposição do tipo penal, um processo de ocultação e dissimulação da origem do dinheiro ilicitamente havido, em ordem não apenas a recolocá-lo no sistema econômico-financeiro, mas a recolocá-lo em tal ambiente com nítida aparência de haver sido licitamente auferido. Do contrário — ou seja, se compreendermos a simples utilização (gasto) do dinheiro como conduta abraçada pelo tipo penal —, só não haveria o delito de lavagem de dinheiro quando o agente, em paradoxal atitude, declarasse ao Estado o dinheiro oriundo do crime antecedente (corrupção, sonegação, roubo, sequestro, etc)".
Ele avalia também que a eventual influência da ampliação do entendimento do que é crime de lavagem pode se estender à fase de investigações. "Fica muito fácil, pelo menos no inquérito policial, afirmar que se está investigando sonegação fiscal e também quadrilha, porque o corpo diretivo da empresa é composto por mais de três pessoas, e também lavagem, porque a quantia foi ocultada", aponta.
Outros criminalistas ouvidos pela ConJur concordam com a avaliação de mudança de interpretação do STF na distinção do dolo entre imputações distintas nos crimes de corrupção. "O próprio ministro Ricardo Lewandowski [revisor do julgamento] afirmou que não concebia dolo eventual no crime de lavagem de dinheiro, que é um crime doloso, como já havia reiterado o ministro Cezar Peluso em seu derradeiro voto ao se despedir da corte”, disse um deles. Um outro criminalista observa que, deste modo, os ministros “estão criando a figura da lavagem culposa ao aplicar a teoria da cegueira deliberada sem que se observe limites ou restrições”.
Os advogados ouvidos pela reportagem consideram ainda que o STF estaria indo além de decidir que o fato de ocultar a origem do dinheiro caracteriza por si crime de lavagem. “Ao não depositar a quantia em conta de sua titularidade, o réu já estaria procedendo com a ocultação. Isto é, a ausência de consignação que indique que o dinheiro pertence ao réu, além de mostrar que o valor é ilícito, constitui também lavagem”, aponta um dos advogados. “Em outras palavras, a confissão está se tornando obrigatória”.
Como resumiu o criminalista Celso Vilardi, "a lavagem firmada no STF é lavagem jabuticaba: só existe no Brasil". "A era Pertence, prestigiada mesmo depois de sua aposentadoria pelos inúmeros precedentes incentivados pelo ministro Gilmar Mendes, acabou", lamentou.
Segundo Marcelo Leonardo, advogado criminalista e professor de Direito Processual Penal da UFMG, "é lamentável o STF abrir mão das garantias constitucionais do devido processo legal e do contraditório para se submeter ao "Direito Penal da mídia", que não se preocupa com os princípios da reserva legal e da taxatividade tão relevantes para o Direito Penal e o garantismo, conquistas do estado democrático de direito".
Inovação da matéria de fato
O exemplo da condenação do ex-vice-presidente do Banco Rural Vinícius Samarane talvez seja o mais ilustrativo da questão do risco de se incorrer em responsabilidade penal objetiva em relação a alguns dos acusados na numerosa relação de réus da Ação Penal 470. Citada pelos advogados durante a fase de sustentação oral e repudiada em Plenário pelos ministros durante a atual fase do julgamento, a matéria voltou a ser trazida à discussão pelo ministro Ricardo Lewandowski, ao votar pela absolvição de alguns dos réus ligados ao Partido Popular (PP) e ao antigo Partido Liberal (PL).
Antes, no julgamento do item anterior, apenas Lewandowski e o ministro Marco Aurélio votaram pela absolvição de Vinícius Samarane. Citaram, justamente, o argumento do risco de se incorrer em responsabilidade penal objetiva. Samarane era diretor estatutário do Banco Rural na época dos acontecimentos descritos pela denúncia e, fora os depoimentos do ex-superintendente do banco Carlos Godinho, que falou que pareceres técnicos em desfavor à concessão dos empréstimos "morriam" na direção estatutária, não há provas diretas de que o réu tenha participado da concessão de empréstimos fraudulentos.
Por dispor, em tese, do chamado “domínio funcional do fato”, decorrente da função que exercia, cabia a Samarane, na visão dos ministros que votaram por sua condenação, ter conhecimento das ilegalidades e até mesmo impedi-las. Na perspectiva da teoria do domínio do fato, cabe avaliar se os crimes ocorreriam independente da presença do réu. Se a resposta for positiva, o réu poderia ser considerado inocente. É o caso, para alguns ministros, da gerente financeira da SMP&B Propaganda Geiza Dias, absolvida por maioria.
"É a teoria do domínio funcional do fato levado além do extremo. Algo que até os mais radicais funcionalistas ficariam supresos com seu alcance nessas condenações lavradas na essência do domínio do fato", disse outro criminalista ouvido pela ConJur na condição de anonimato. "Samarane foi condenado por não ter evitado o fato quando, na condição de diretor, devia e podia tê-lo feito. Mas a denúncia, em nenhum momento, atribui ao réu a conduta de comportamento omissivo", observa. "Isso representaria uma expressiva e inconcebível inovação da matéria de fato. Seria necessário apontar a responsabilidade penal por omissão."
Em artigo publicado na revista Consultor Jurídico, Lenio Streck já havia alertado sobre o problema de se transformar a teoria do domínio do fato em "ponderação", ou "em uma espécie de 'argumento de proporcionalidade ou de razoabilidade', como se fosse uma cláusula aberta, volátil, dúctil".
Para Streck, "há algo de novo no ar" com o julgamento do mensalão. "A parcela da doutrina 'mais advocatícia' do Direito, por assim dizer, está sofrendo um revés", observa. "Não significa que o STF esteja necessariamente inovando, mas o que ocorre é que, ao mudar uma postura, a corte pega a comunidade de surpresa. Os advogados parecem que confiavam em um ‘padrão’ de apreciação e não contaram com um conjunto de circunstâncias que circundaram e que circundam esse case."
Contrapartida desvinculada
O criminalista e professor Luiz Flavio Gomes avalia ainda que a visibilidade do julgamento e a pressão da opinião pública contribuem para que a Ação Penal 470 assuma caráter "heterodoxo"."Teses antigas, consagradas na jurisprudência, estão sendo abandonadas." Pondera que "isso decorre, em grande parte, da pressão midiática. Mas não siginifica que as condenações, até aqui, sejam injustas, que tudo o que o tribunal decidiu até este ponto seja absurdo. Porém, naqueles momentos de zona cinzenta, em que se pode ir para um lado ou outro, o Supremo passou a ir pela pressão pública, acolhendo teses que antes não aceitava".
LFG, como é conhecido, acredita que ainda é cedo para concluir, e que só depois do julgamento da parte política da AP 470 é que será possível fazê-lo.
Ato de ofício
Na questão específica do ato de ofício, observadores do julgamento ouvidos pela ConJur disseram que o entendimento de que cabe dispensar a comprovação do ato de ofício não é uma inovação em si. O tribunal, no julgamento do mensalão, na opinião dos especialistas, dá margem para a interpretação de que não é necessário sequer apontar a vinculação causal entre a vantagem indevida e o ato de ofício. "É uma distorção e transfiguração que se imprime ao tipo penal de corrupção ao dispensar mesmo a simples menção ao ato de ofício", disse um deles.
"Não se trata simplesmente de exigir a comprovação da prática concreta do ato de ofício na esfera de atribuições do agente corrompido. No entanto, o Supremo tem acelerado tanto esse julgamento, a ponto de afirmarem que é presincidível, desnecessário, que a denúncia mencione o objeto da barganha da função pública, que motivou a aceitação de uma vantagem indevida", avalia o criminalista. "A vinculação causal, ainda que potencial, entre a vantagem indevida e um ato de ofício é a essência do espírito da norma incriminadora. O que foi dito com todas as letras no Caso Collor, está sendo desdito no atual julgamento", opina.
Mas, na visão do advogado, isso não quer dizer que o Supremo criou uma nova interpretação doutrinária. A tendência, diz, é que o próprio STF rejeite decisões de instâncias inferiores que sigam a linha hoje defendida no julgamento do mensalão. "O próprio Supremo tende a rejeitar, amanhã ou depois, a doutrina que criou para esse caso. Será a confissão sublime e formal que se tratou de um julgamento de exceção. Porém, muitos dos atuais ministros não estarão mais na corte, será um novo tribunal , como uma nova cara e feição."
O advogado Sérgio Renault, ex-secretário da Reforma do Judiciário, trata a mesma dúvida com uma outra ótica: “A questão mais importante a se verificar após o julgamento da Ação Penal 470 é se o novo entendimento do STF se constituirá em nova jurisprudência que será seguida daí por diante ou é um caso pontual, isolado. Se for um caso isolado e se constituir numa exceção, vejo a situação como mais preocupante pois não se deve conceber que o julgamento da mais alta corte do país se dê neste contexto. Se o caso tornar-se uma referência para julgamentos futuros menos mal. Assim, por mais que discordemos, estaremos diante de uma evolução da jurisprudência ou, se quiserem, de um retrocesso mas de qualquer forma de uma processo normal de construção de uma nova jurisprudência”.

Para o advogado Gustavo Teixeira, membro da comissão de Direitos Humanos do Instituto dos Advogados Brasileiros, é preciso fazer uma distinção entre os ministros do Supremo e o tribunal como um todo. "O viés eminentemente teórico dos processos normalmente julgados pela corte em grau de recurso se contrapõe à análise fática que esse julgamento originário exige e com isso as divergências entre ministros ficam mais evidentes. A unanimidade no reconhecimento de teses é muito mais fácil de ser alcançada do que o consenso na admissão de fatos", explica.
"Casos difíceis geram péssimas jurisprudências", pontua Teixeira, torcendo para que os ministros tenham em mente a peculiaridade do presente processo. "A equivocada interpretação de que não há necessidade de crime antecedente para se configurar a lavagem de capitais certamente não irá prevalecer como corrente dominante, sob pena de sepultarmos princípios caros ao nosso Direito Penal."

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

STF faz discussão doutrinária sobre lavagem de dinheiro


O revisor da Ação Penal 470, o processo do mensalão, ministro Ricardo Lewandowski, condenou, nesta quarta-feira (26/9), o presidente do PTB, Roberto Jefferson, e o ex-líder do PMDB na Câmara dos Deputados, José Borba, por corrupção passiva. Para que o revisor encerre sua participação nessa fase do julgamento, que trata das denúncias contra políticos que teriam se deixado corromper para apoiar a agenda do governo do PT em 2003, falta ainda que ele se pronuncie sobre o ex-deputado federal Romeu Queiroz e o atual secretário-geral do PTB, Emerson Palmieri. O ministro absolveu Roberto Jefferson e José Borba dos crimes de lavagem.
A previsão era que o ministro encerrasse sua participação ainda antes do intervalo da sessão desta quarta, mas uma discussão doutrinária sobre o crime de lavagem de dinheiro acabou atrasando a conclusão da participação do revisor. O clima também voltou a esquentar entre o revisor e o relator, Joaquim Barbosa.
Ricardo Lewandowski retomou seu voto julgando as imputações contra o ex-líder do PMDB na Câmara, José Borba, acusado de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Ao votar pela condenação do réu na primeira imputação, mas não na segunda, o ministro voltou a questionar aspectos pertinentes à conceituação de lavagem de dinheiro e acabou provocando um debate sobre o tema.
O ministro Luiz Fux afirmou, diante da posição do revisor, que o fato de José Borba se recusar a assinar um recibo para receber o repasse de dinheiro destinado a ele, na agência do Banco Rural em Brasília, constituia um indício do dolo no caso de lavagem. “Nunca vi lavagem mais deslavada”, disse Fux. Falando sobre o esforço de dar aparência de legimidade ao dinheiro, Fux, afirmou ainda que, a exemplo de qualquer outro crime de lavagem de capitais, a intenção, no caso do réu, era ocultar o recebimento “para que nessa confusão não se pudesse distinguir onde está o óleo e a água”.  
Fux defendeu o ponto de vista de que a doutrina ampara a conclusão de que, no momento em que dinheiro ilícito for usado, já está caracterizada a lavagem, pois essa seria a reinserção dos valores no sistema financeiro, independentemente do destino dado à quantia.
O ministro Marco Aurélio chegou a manifestar preocupação de que a “posição extremada do tribunal sobre delitos de lavagem” acabasse “desqualificando” a decisão final sobre o processo. Lewandowski confessou que ficou “abismado” com o voto  do ministro Dias Toffoli,  no item anterior da denúncia,  quando este afirmou que a redação da nova lei de lavagem de dinheiro dava margem para a admissão de dolo eventual.
O ministro Joaquim Barbosa também defendeu as imputações por lavagem. Afirmou que “havia toda uma engrenagem que é evidentemente clara e conhecida de todos” e que permite entender que houve delito de lavagem de capitais. “Faz dois meses que estamos aqui julgando absolutamente a mesma coisa”, disse Barbosa.
O ministro revisor discordou. Afirmou para tanto que, de acordo com os autos , é preciso presumir que houve delito de lavagem . “É preciso fazer uma preposição para se concluir que houve o dolo, e não podemos partir de uma presunção em delitos de lavagem”, disse o revisor, que afirmou fazer uma “defesa da dúvida sistemática”. Para o ministro revisor, a simples reinserção automática da quantia no sistema financeiro não caracteriza o crime de lavagem. “Ninguém passa recibo de corrupção”, disse.
O ministro Gilmar Mendes pediu a palavra também para se manifestar a favor das imputações de lavagem de dinheiro. “Uma coisa é a dicussão do dolo eventual. Outra coisa  é a discussão sobre a forma escamoteada, escondida, oculta de receber o dinheiro. Se a entrega do dinheiro tivesse se dado de forma direta, não teríamos que discutitr aqui o concuro formal entre corrupção  e lavagem de dinheiro”, observou Gilmar Mendes.
A ministra Rosa Weber, no entanto,  reiterou que “o dolo tem de abranger o delito de lavagem,  ou seja transformar o sujo em limpo”.  Frente ao debate, o decano da corte, ministro Celso de Melo , aproveitou para reafirmar que a corte não procedia com flexibilização de sua jursiprudência para crimes de corrupção por conta do julgamento da Ação Penal 470. “O STF não tem procedido com reformulações conceituais”, disse. “Não há revisão de jurisprudência”, declarou.
Riqueza de detalhes
Sobre Roberto Jefferson, o revisor afirmou que o político recebeu mais de R$ 4 milhões por via do ex-tesoureiro do PT, Delúbio Soares. Lewandowski citou o caso de uma ex-namorada do falecido presidente do PTB, José Carlos Martinez, chamada Patrícia, beneficiária de um dos repasses feito por intermédio de Roberto Jefferson. Ricardo Lewandowski mencionou depoimento de Jefferson em que este afirmava que decidiu ajudá-la por entender que ela enfrentava dificuldades com a morte de Martinez. “Cito o exemplo [da Patrícia] para mostrar como o processo penal é rico em detalhes, é cheio de vida. E mostra que esse dinheiro não financiou apenas campanha e nem suposta compra de votos, mas se prestou a amparar uma ex-namorada. Está nos autos. Veja como a realidade é rica”, disse Lewandowski.
Mais uma vez, o ministro Joaquim Barbosa discordou do colega. Afirmou que detalhes como aquele não importavam. “O que tiro disso é que a utilização do dinheiro da corrupção teve fim concreto, privado ou não. Saber da Patrícia não interessa. Caso ela tivesse nível social mais elevado, o seu nome  sequer seria mencionado aqui”, disse Barbosa. “Se assim fosse, Geiza Dias e Ayanna Tenório estariam condenadas”, rebateu Lewandowski.
Joaquim Barbosa então solicitou que  Lewandowski disponibilizasse seu voto por uma “questão de transparência”. O ministro revisor afirmou que seu voto, por conta do fatiamento, não tinha ainda uma versão definitiva e que se encontrava em constante elaboração. "Quem quiser" ouvi-lo deve estar "presente à sessão", disse o revisor, criticando situações de ausência do relator no Plenário durante as sessões.
O ministro Marco Aurélio saiu em defesa de Lewandowski, criticando a insinuação do ministro relator em relação à transparência. “ Colegiado é isso, é aceitar a contrariedade”, disse Marco Aurélio, que foi acompanhado pelo ministro Celso de Mello, que também afirmou, por sua vez, que não cabia falar em transparência, já que a corte julgava “sob amplo escrutínio público”.

Deve-se prevenir problemas potenciais entre os sócios


“Vinde comigo a um notário e assinai-me uma fiança única. E, por brincadeira, se não me pagardes em tal dia, em tal lugar, a soma como estipulada nas condições, deixai que o penhor seja exatamente meio-quilo de vossa carne, a ser cortado e tomado da parte do vosso corpo que mais me agradar” Trecho de Shylock, em O Mercador de Veneza, de W. Shakespeare, Ato 1, Cena 3.
O velho Balzac notou certa vez que a mentira pode ser uma virtude quando um advogado, ocultando apreensões, transmite esperança ao cliente. Tendo passado boa parte da vida fugindo de credores, o francês entendia do assunto. Em matéria societária, os advogados, não raro, são colocados sob a suspeita de causar constrangimento aos sócios envolvidos quando tentam adotar cláusulas para prevenir desavenças futuras. É mesmo dos diabos quando a sociedade está prestes a ser formada e vem o profissional propor medidas preventivas na suposição do conflito em potencial. O mal-estar se instaura entre as partes. É quando o veneno balzaquiano soa mais irônico.
Estas situações são mais delicadas e cruciais nas associações paritárias, associações entre concorrentes, associações baseadas na honra pessoal e empresas familiares. Nas associações paritárias, onde cada um dos sócios detém a metade do capital da sociedade, a possibilidade de bloqueio decisório defensivo é enganadora, pois nenhuma sociedade pode evoluir e desenvolver-se sob a premissa da inação, do impedimento, do veto instantâneo, salvo sob um vínculo de natureza muito pessoal e, portanto, subjetivo, falho, sujeito aos ventos de ocasião.
Nas associações entre concorrentes, onde a premissa de harmonia sustenta-se na possibilidade de dano que um sócio possa causar ao outro, a crise é rotina, já que cada sócio anseia mais o bloqueio do concorrente do que contribuir para seu desenvolvimento. Comete-se, aqui, um erro comum que é o de compartilhar a gestão da sociedade, atribuindo a cada parte uma área de influência ou mesmo de decisão na empresa. Ao invés de conforto, esta medida acirra disputas contrárias ao interesse do conjunto, que é a sociedade como um todo.
Nas associações baseadas na honra pessoal — é impressionante sua existência ainda em nossos dias — raramente estas resistem à sedução de trair a palavra empenhada. É surpreendente que a sugestão de um tratamento profissional encontre resistências. É que a palavra de honra, esta senha mágica, foi empenhada e torna-se a própria razão do problema. A ideia de afinidade, de harmonia societária, agasalhada pelos romanos na expressão affectio societatis, soa como poesia lírica nos tempos atuais, onde as sociedades de pessoas naturais foram substituídas pelas sociedades entre pessoas jurídicas. Pesa, aqui, a célebre sentença de Valery quando denunciou que “o poder sem abuso perde o encanto”.
Nas empresas familiares, temos a ilusão de que a natural descendência sanguínea seria suficiente para impedir a crise societária. A realidade nos mostra que este mesmo fator pode ser motivo de desagregação. Basta olhar a história da família real britânica, não por acaso conhecida como “A Firma”, para que a imagem consolidada se desmanche. As desavenças familiares prosperam à sombra da proteção patriarcal ou matriarcal, cuja falta por doença, morte ou separação conjugal explode a estrutura de negócios que parecem sólidos como o aço. Machado de Assis não estava exatamente tratando de dinheiro quando Brás Cubas disparou: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.”
Note-se que as situações acima relacionadas podem existir de forma combinada: empresas familiares em associação com empresas concorrentes, de formas paritárias, e baseadas na honra pessoal. Neste caso, é fácil imaginar a soma de todos os defeitos multiplicados exponencialmente a um ponto inimaginável.
O tema da honra nos negócios, imbricada com empresas de natureza familiar e de forma paritária, com cada sócio detendo metade do capital, veio à tona a propósito de uma questão que certa feita foi trazida ao exame. Tratava-se de um problema entre dois sócios, pessoas físicas, que dividiam o capital e o controle de sólida empresa no segmento industrial. Um deles, Sr. Shylock, com investimentos em muitos outros negócios e outro, Sr. Antonio, com todos os seus recursos alocados na sociedade entre os dois.
O problema é que o sentido de precariedade da vida havia chegado às preocupações do Sr. Antonio e este temia, aos seus 60 anos que, por doença, violência ou outra forma das tantas que o destino ou a velha senhora nos reserva, viesse a falecer e faltar à família. A prudência assaltou-lhe o espírito e ele solicitou uma solução que permitisse, na sua morte ou impedimento irreversível, fazer de seu filho mais velho o sucessor na presidência da empresa. Mas este desejo trazia um agravante: seu herdeiro varão, embora dotado de grande inteligência, não tinha experiência nos negócios da empresa. Certamente, com essa falta de qualificação, o seu sócio, Sr. Shylock, teria muitas razões para barrar o projeto de sucessão ambicionado pelo Sr. Antonio e opor seus 50% de participação societária para tanto, fulminando as suas intenções.
O trabalho jurídico foi intenso e meticuloso, mas resultou em uma solução satisfatória para o Sr. Shylock: sumariamente, o filho do Sr. Antonio seria admitido como sucessor se conseguisse conciliar nos próximos anos a responsabilidade de assessorar o pai nas suas funções de executivo, auxiliando-o nas tarefas, com a conclusão de um curso de pós-graduação de negócios, mediante o acompanhamento e avaliação de uma consultoria independente de recursos humanos e de primeira linha.
Satisfeitos ambos os sócios com este encaminhamento, que pareceu sensato a todos e a seus familiares e herdeiros, as cláusulas contratuais foram cuidadosamente escritas em seus pormenores, antecipando e resolvendo todos os tipos de dificuldades, esvaziando os mínimos problemas potenciais que poderiam surgir para sua implementação.
O Sr. Shylock mostrou-se tão confiante na solução encontrada e na boa fé demonstrada por seu sócio, que se comprometeu a obrigar-se por escrito a usar toda a sua participação societária para, uma vez cumpridas as condições, votar pela aprovação da eleição do filho varão do Sr. Antonio, como seu sucessor na presidência da empresa, quando a oportunidade chegasse.
Todavia, no momento de firmar o contrato, lançou à mesa uma sugestão baseada, segundo ele, na boa fé, na confiança renovada entre os velhos sócios de longos anos: propôs um acordo de cavalheiros em lugar de um contrato escrito. Afinal, dizia, haviam chegado a uma solução consensual, dotada de tanto bom senso, que prevalecia naturalmente acima das desconfianças e etc.
O Sr. Antonio comoveu-se, mas uma vaga sensação de zelo, um lampejo de instinto de perigo, levou-o a consultar seus advogados. A sombra de Balzac atravessou o ambiente e, contrariando o mestre, os profissionais muito constrangidamente, recusaram a virtude balzaquiana da mentira e preferiram aconselhar que a cláusula escrita fosse mantida e assinada em todos os seus termos cuidadosamente negociados e elaborados. Finalmente, lembraram todos os problemas que poderiam advir de um acordo baseada apenas na confiança pessoal.
Shylock ofereceu, então, o elemento fatal: a sua palavra de honra. Apelava aos velhos sentimentos de afeição societária, que os havia aproximado. Arrematou alegando que julgava mesmo desnecessário que se fizesse imperativo escrever uma cláusula onde bastava a palavra de honra dos velhos parceiros. Afinal, dizia ele em arremate, não havia sequer registro de desavenças societárias no âmbito da associação entre ambos. O Sr. Antonio cedeu. O recurso aos nomes dos personagens do Mercador de Veneza, para preservar os nomes verdadeiros dos sócios em questão, não é fútil. A vida, mais uma vez, imitou a arte, como sói de acontecer.
Milhares de negócios desse tipo repousam nas prateleiras da Justiça brasileira, onde familiares se digladiam uns contra os outros ou contra os concorrentes, onde a palavra de honra foi desonrada, onde os sócios causaram enormes lesões entre si e afundaram as empresas em crises permanentes, causando prejuízos incalculáveis.
Portanto, nada melhor que enfrentar o quanto antes a gama infindável de problemas potenciais que podem surgir no campo societário em decorrência de desentendimentos potenciais. Um ótimo ponto de partida é começar sob a premissa de que haverá desentendimentos no futuro. Somente um cenário conflituoso pode produzir os antídotos jurídicos capazes de trazer solução adequada para os problemas reais que a associação enfrentará. Além de tudo é um ótimo exercício para conhecer a real intenção do futuro sócio. Evidentemente que um bom plano de negócios representa uma base consistente para eliminar de antemão diferenças de conceito ou de princípios empresariais, identificando com clareza o que os sócios esperam da associação, evitando “surpresas” desagradáveis. O consenso sobre o plano de negócios é um excelente começo para qualquer associação. Na sua elaboração, os sócios estarão voltados para objetivos comuns ou pelo menos para traduzir na objetividade dos números a sua real intenção na associação.
A fase de elaboração de acordos de sócios para governança da sociedade demandará a adoção de soluções prévias para problemas potenciais. Assim, discrepâncias sobre questões orçamentárias, eleição, remuneração e destituição de administradores, e objetivos estratégicos da sociedade, podem ser resolvidos antecipadamente à sua ocorrência.
Questões de natureza técnica ou de engenharia ou de tributação devem ser delegadas a consultores externos especializados. Desentendimentos sobre capitalização ou aportes financeiros encontram soluções prévias nos tipos societários, nos títulos representativos do capital e em avaliações independentes. Os sócios devem ter completo acesso aos livros, contas e contratos da sociedade, principalmente quando a sociedade fizer contrato com qualquer dos sócios ou seus próprios dirigentes.
O ideal que os diretores sejam profissionais e trabalhem exclusivamente para a sociedade, sob um conselho de sócios, abandonada a ideia de compartilhamento de áreas. Cláusulas de arbitragem são essenciais para desobstruir a Justiça, manter privacidade nas disputas, e entregar as divergências ao crivo de especialistas. Por fim, mas não menos importante, é indispensável estabelecer o que ocorrerá com a associação se esta fracassar. É preciso pré-contratar a solução adequada para desenlace. Sim, é cansativo e exige criatividade e imaginação. Mas esses elementos são mais estimulantes quando não há crises no horizonte do que sob o calor do ressentimento e do ódio.
Na burocracia da Justiça, os conflitos societários são milhares e abarrotam os cartórios, causando a paralisação da atividade econômica e a bancarrota de milhares de associações, que de início pareciam perfeitas, mas fracassaram porque, na sua origem, os sócios subestimaram a crise e a falha humana que são a constante na vida e não a sua exceção.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Prevaricação, imparcialidade do juiz e o devido processo

POR: Por Pedro Ferreira Leite Neto

O presente trabalho trata da garantia dos princípios constitucionais da imparcialidade do juiz e do devido processo legal prestada por meio da previsão penal da prevaricação, que desempenha importante função no controle de condutas desviantes de magistrados, que digam respeito a atuações tendenciosas, orientadas à satisfação de seus sentimentos ou interesses. O papel dessa regulação pela via penal deve estar identificado com um efetivo desestímulo a que magistrados optem por não seguir o dever de afastamento do processo mesmo diante de causas inequivocamente reveladoras de suspeição ou impedimento. O estudo deste tema se desenvolve com o propósito de apontar a estreita correlação entre as hipóteses de suspeição e impedimento aplicáveis aos juízes e o crime de prevaricação, sobre o qual se busca decifrar um conteúdo capaz de propiciar adequado controle da prestação jurisdicional, em preenchimento do pressuposto da competência subjetiva à luz da observância do retromencionado princípio constitucional da imparcialidade do juiz, por sua vez informativo do outro comentado princípio constitucional mais abrangente, que é o do devido processo legal.
IntroduçãoA Constituição Federal de 1988 estabelece um rol de direitos e garantias fundamentais carecedores de diferentes níveis de proteção, somente alcançáveis pela atuação do legislador infraconstitucional.
Ao incluir o devido processo legal entre os valores fundamentais (artigo 5º, inciso LIV), o legislador constitucional elevou o respeito às regras procedimentais a um patamar acima da mera observância das formas consagradas pela práxis (as regras do processo) em seus diferentes âmbitos (administrativo, civil, penal, etc.), exigindo que a atuação do responsável pela condução do processo busque sempre um resultado material em total consonância com o ordenamento jurídico.
Aos que se afastam desse caminho traçado pela Constituição o próprio sistema legal reserva uma série de respostas, dentre elas as de caráter sancionador. Este é, por exemplo, o fundamento da existência do delito de prevaricação, assim descrito em sua modalidade básica pelo artigo 319, do Código Penal Brasileiro:
“Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal: Pena — detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.”
Pela redação deste tipo penal fica evidente que no conceito da prevaricação enquanto comportamento objetivamente descrito pelo texto normativo está, em tese, incluída a conduta do magistrado.
Neste breve trabalho, que não tem o compromisso de examinar exaustivamente o crime de prevaricação e nem convinha fosse diferente , o enfoque a ser dado está relacionado com aquelas atuações judiciais desviantes das regras processuais que resultem em vulnerações aos interesses da administração, uma vez que o tipo penal tratado está alocado no Capítulo I (dos crimes praticados por funcionários públicos contra a administração em geral), dentro do Título XI (dos crimes contra a Administração Pública), do Código Penal.
Nesta ordem, propomos uma discussão sobre especificadas relações, percebidas no nosso ordenamento, entre enunciados normativos processuais e de Direito Penal, no que se refere à atuação judicial sob a exigência da imparcialidade.
Os nossos estatutos processuais civil e penal estipulam (por hipóteses) ao magistrado o dever de abstenção de atuação nas causas em que se encontre impedido ou suspeito.
Postas estas premissas, entendemos que existem dois níveis de questionamentos possíveis:
A) No âmbito material penal surge a questão de se saber até que ponto a atuação do magistrado em desconformidade com as regras processuais de impedimento e suspeição pode remeter sua conduta ao tipo do artigo 319 do Código Penal;
B) Na esfera constitucional impende responder se a redação do tipo penal da prevaricação atenderia satisfatoriamente aos objetivos traçados pelo legislador constitucional ao enquadrar o devido processo legal entre os direitos e garantias fundamentais. Em outras palavras: cabe indagar se na forma de tratar a conduta de “funcionário público”, o tipo do artigo 319 do Código Penal, nos casos em que estiver envolvido, em tese, proceder de magistrado que repercuta negativamente no equilíbrio da lide processual, estará cumprindo a função de proteção (que não se restringe à administração em sentido estrito) do próprio bem jurídico primário que é o devido processo legal (interesse lato sensu de porte constitucional).
O devido processo legal e a imparcialidade do juiz de direito como direitos fundamentais interligadosO devido processo legal é visto como fator legitimante do exercício da função jurisdicional”[1] e está inserido entre os direitos e garantias fundamentais como requisito para que alguém seja privado de sua liberdade e de seus bens, tal como preceituado pelo inciso LIV, do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988. De maneira indissociável deste preceito fundamental está prevista, no inciso imediatamente precedente (o inciso LIII), dentro do mesmo artigo 5º da nossa Carta Magna, a necessidade, para que alguém seja processado ou sentenciado, de que o seja perante uma autoridade competente, afastada a possibilidade de haver juízo ou tribunal de exceção (inciso XXXVII, também do referido artigo 5º). Tais requisitos vêm integrar princípio que é correlato ao do devido processo legal, ou seja, o do juiz natural, o qual exige a incondicional observância das regras preexistentes e objetivas de fixação de competência, que pressupõem a independência e a imparcialidade[2] do órgão julgador. E competente, aqui, quer dizer capaz de exercitar a jurisdição em determinado caso, tanto objetiva quanto subjetivamente, como veremos adiante.
Constitui o devido processo legal dupla garantia ao indivíduo (que se reverte em prol da sociedade), na medida em que confere proteção voltada aos direitos subjetivos dos envolvidos e estabelece ampla oportunidade para que eles exercitem, em condições paritárias, no processo, a defesa de seus interesses. Entre tais condições se incluem o direito a uma defesa técnica, a uma larga produção de provas e a um julgamento por um órgão judicial competente. Daí que o devido processo legal tem como corolários a ampla defesa e o contraditório. [3]
Não se imagina, pois, esteja satisfatoriamente preservado um processo judicial da imposição de possíveis cerceamentos indevidos ou desbalanceados ônus aos litigantes, quando suas pretensões sejam deduzidas e sustentadas perante um magistrado sobre o qual pairem evidências de comprometimento pela parcialidade. A imparcialidade do magistrado emerge como incontornável pressuposto para um adequado exercício do contraditório e da ampla defesa, e, por conseguinte, para que se tenha como reconhecida a obediência do devido processo legal.
A prevaricação judicial como desdobramento da proteção processual da imparcialidadeO normal exercício da jurisdição implica a ausência de qualquer interesse particular do juiz, em prol do interesse público subjacente ao conflito processual.
As previsões processuais de impedimento e suspeição visam permitir que os conflitos apresentados ao Judiciário sejam solucionados com imparcialidade.
No Código de Processo Civil, as causas de impedimento e suspeição estão previstas nos artigos 134 a 136, ensejando, desde que materializadas no processo, a nulidade dos atos decisórios praticados. Além disso, o artigo 314 do CPC prevê que o reconhecimento da suspeição ou impedimento em segundo grau implicará a remessa dos autos ao juiz substituto legal e a condenação do suspeito ou impedido nas custas processuais.
No processo penal as hipóteses de impedimento e suspeição vêm previstas nos artigos 252 ao 255, havendo expressa previsão no artigo 564, I, por ocasião da disciplina das nulidades, que é nulo o ato decorrente de suspeição, incompetência ou suborno.
As causas de suspeição ou impedimento do juiz fixadas nos dois citados diplomas processuais são bastante similares. Em termos de interesse pessoal do magistrado na solução da lide, o artigo 135, V, do CPC, o contempla sob a denominação de causa suspeição, enquanto o artigo 252, IV, do CPP, o considera como causa de impedimento.
Enquanto no impedimento há presunção absoluta de falta de isenção, na suspeição esta presunção se perfaz de modo relativo. Uma vez configurada a causa, seja de impedimento, seja de suspeição, a consequência será única: a parcialidade.
Na essência, tanto no processo penal como no processo civil, o elenco dessas causas de suspeição ou impedimento resulta, com maior ou menor grau de força, em motivo que incute no magistrado, ainda que potencial ou indiretamente, um interesse (no feito) ou um sentimento próprio, pessoal, capaz de perturbar-lhe o agir com isenção na admissão, na instrução, na solução de questões incidentais e no julgamento da causa.
As consequências do reconhecimento da parcialidade do juiz previstas nesses diplomas processuais, ou mesmo aquelas que poderiam ser suscitadas na esfera disciplinar por infringência do correspondente dever funcional de afastamento da condução do processo quando o caso, não soam suficientes para inibi-lo, com a desejável força, de persistir nele atuando em afronta a uma manifesta situação de incompatibilidade.
Diante deste cenário de insuficiência, desponta a previsão repressiva penal, quanto a atos de juízes de direito, em formato que se amolda perfeitamente às bases em que estruturado, no plano legal processual, para a devida garantia do resultado ético e hígido do processo, o dever de afastamento do magistrado por razões de suspeição ou de impedimento.
Explicitando: insistindo o magistrado em permanecer atuando na condução do feito diante da clara presença de circunstâncias aptas (porque perfaçam inequivocamente determinada hipótese legal de impedimento ou suspeição) a afastá-lo da jurisdição, e desprezando ele, nesse passo, motivo e oportunidade para se desligar do caso, exsurgirá uma consistente presunção de que seu proceder visa satisfazer interesse ou sentimento pessoal.
A incompreensível (ou injustificável) resistência do magistrado em se afastar da jurisdição em tais casos constituirá manifesto indicador de interesse na causa. Esse interesse na causa, demonstrado por suficientes fundamentos, se afirmará como condição de possibilidade para o aperfeiçoamento da parte elementar subjetiva do crime de prevaricação.
O sentimento ou interesse pessoal aptos a consubstanciar hipótese de suspeição ou impedimento não precisam ser diversos daqueles integrantes da prevaricação para que se venha tomar, em sendo o caso, por configurada esta prática delitiva.
A contrariedade expressa à lei típica da prevaricação abrange tanto enunciados legais de ordem substantiva quanto adjetiva. Não se exige seja ela extraída do próprio teor do ato de ofício, comissivo ou omissivo. É dizer que pouco importa que o juiz reconhecidamente suspeito ou impedido aplique corretamente o direito material ou as outras regras de Direito processual ao caso que lhe está afeto. A simples contrariedade à lei processual não é, portanto, estranha (mas pertinente) à parte elementar objetiva do tipo que exige, no particular tema, tão somente o atuar no processo contrariando hipótese legal de cunho processual impondo o afastamento, afigurando-se irrelevante, para contornar este dever, eventual argumento de uma pretensa aplicação irrepreensível do direito material (e até das outras regras processuais) que o caso requer.
Há que se ressalvar, no entanto, que a mera configuração de suspeição ou impedimento não leva, invariavelmente, a uma prevaricação. É preciso na maioria dos casos que venha associada a outros elementos concretos evidenciando que o julgador esteja “torcendo a ordem natural do feito”, praticando atos manifestamente desarrazoados.
Casos há em que o magistrado mesmo traz fundamentos sólidos para justificar sua isenção para atuar, ou ao menos, que deixem instalada aquela dúvida insuperável sobre uma cogitada imparcialidade. Não se concebe, por extremo, que a pressão diante de um infundado apontamento de imparcialidade leve o juiz a se afastar do caso, ainda que na ausência de dados de maior consistência que pudessem motivar esta opção, só para não correr o risco de incorrer numa prevaricação. Admitir o contrário significaria por em risco um princípio correlato, como vimos, que é o do juiz natural.
Às vezes, porém, as próprias circunstâncias que afirmem determinada hipótese de suspeição ou impedimento podem ser incisivamente reveladoras desse malsinado interesse pessoal do juiz. Exemplo: suponhamos que esteja sendo analisada no processo determinada divergência entre réu e vítima. Durante a instrução, uma testemunha afirma ao próprio magistrado condutor do feito, que este, em razão de atitude desempenhada na vida privada, por manter relação afetiva com uma das partes, seja o pivô da discórdia. Se tal tipo de alusão se revestir de razoável seriedade e mesmo assim o magistrado insistir, sem justificados fundamentos, em continuar judicando naquele caso, esse proceder pode ser perfeitamente encarado como expressivo sinal de que sua atuação se dá em homenagem a interesse ou sentimento que lhe seja próprio.
Zonas cinzentas inevitavelmente existirão no caminho de um eventual reconhecimento da imparcialidade, daí porque o tema, principalmente em vista de seu possível desdobramento na seara penal, requer redobrada cautela na análise do caso concreto, evitando precipitadas conclusões, em oposição à segurança jurídica que deve irradiar da atividade jurisdicional.
O controle penal necessário da prevaricação judicial frente ao valor fundamental constitucional do devido processo legalO devido processo legal, com a significação fundamental já vista neste trabalho, orientado que está, como todo direito e garantia deste jaez, pela realização da dignidade da pessoa humana, reclama tarefa protetiva por meio da qual o Estado impeça que posições subjetivas sejam indevidamente ameaçadas ou atingidas por atos de terceiros, no caso, daqueles que estejam diretamente incumbidos da adequada prestação jurisdicional.
Permite-se aqui falar no dever de proteção estatal.
Além do aspecto subjetivo, a dimensão objetiva dos direitos fundamentais impõe que o Estado não fique inerte frente ao ideal comunitário de concretização dos princípios objetivos essenciais da ordem constitucional, em cujo favor o devido processo legal aparece desempenhando relevante papel.
As regulações por via de textos normativos penais traduzem inegavelmente situações em que a intervenção estatal deva ocorrer de uma forma mais incisiva, exatamente no desempenho mais agudo desse dever de proteção.
O sistema jurídico-penal se situa exatamente como uma das partes (com maior intensidade, é verdade) do controle social, definindo condutas desviantes que mereçam ser tratadas como criminosas.
Figueiredo Dias reconhece a importância do Direito Penal no controle social ao falar da tutela subsidiária que exerce quanto a “bens jurídicos dotados de dignidade penal, ou bens jurídico-penais”, tomando-os como “bens jurídicos cuja lesão se revela digna e necessitada de pena”.[4]
Hassemer pontua que os conflitos desviantes dos quais se ocupa o Direito Penal“pertencem ao pior do que os homens fazem uns aos outros, são agressões aos interesses humanos fundamentais”.[5]
O Direito Penal dos tempos mais recentes tem se preocupado em conceber um bem jurídico digno de sua proteção, a partir do reconhecimento do que represente relevante fator de lesividade social.
Como o Estado não pode negar a jurisdição, e como ele ao mesmo tempo proíbe a autotutela, não se pode contrastar que a conduta do juiz marcada pela parcialidade, uma vez dolosamente implementada, prejudique intensamente a sociedade, na medida em que compromete em maior grau a realização da justiça, erigida à condição de objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal).
A vida, a integridade física, o patrimônio, a fé pública, a administração pública constituem bens jurídicos que a nossa legislação penal houve por bem proteger. E não soa razoável supor que a opção do legislador penal (de proteger ou não) no exercício deste mister se dê de forma livre, aleatória, uma vez que o prenúncio da proteção de direitos fundamentais constante do caput, do artigo 5º da Constituição da República traz o compromisso da garantia daqueles elevados valores.
A igualdade (que se projeta no tratamento das partes de uma relação processual) também consta neste rol de direitos fundamentais, com destacada importância.
O controle social que é reclamado em defesa da igualdade e da justiça quando a parcialidade manifesta do juiz resulta em prejuízo ao devido processo legal nos parece justificar plenamente a intervenção do direito penal, colocando seu oneroso instrumental em combate desta forma de agressão mais significativa de interesses humanos fundamentais.
A falta de um tratamento diferenciado da prevaricação judicial na nossa legislação penalO Estado encontra no Direito Penal um valoroso instrumento para propiciar a contenção das condutas desviantes representativas de maior lesividade.
Não sendo preservados determinados bens jurídicos, não haverá condições de o cidadão viver de forma integrada, o que prejudicaria o seu desenvolvimento pessoal, atingindo-o, consequentemente, em sua dignidade.
É neste contexto que emerge a preocupação com que o sistema jurídico, notadamente por meio de seu subsistema penal, forneça ao Estado estrutura suficiente para a proteção dos bens jurídicos fundamentais, daí porque a seu respeito a doutrina alemã sustenta, como decorrência da proporcionalidade, a existência de “uma proibição de proteção deficiente” (Untermassverbot), que pode ser perfeitamente admitida na realidade brasileira.
A prevaricação, na modalidade que já denominamos de judicial, não recebeu da nossa legislação penal substantiva a necessária diferenciação. Não se lhe emprestou o merecido cuidado para que dela emergisse aquela imperativa proteção em grau suficiente.
Os atos dos juízes configuradores de prevaricação estão equiparados aos dos demais servidores públicos, que em suas variadas formas de cometimento traduzem potencialidade lesiva indiscutivelmente menor. A pena privativa de liberdade, de 3 (três) meses a 1 (um) ano e multa, atualmente prevista no modelo geral da prevaricação, o qual vem sendo basicamente mantido no projeto de reforma do código penal (em tramitação), não nos parece suficiente. Consideremos que esse intervalo de pena remete todo tipo de prevaricação, inclusive a judicial, à Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95), que abarca condutas ilícitas penais com penas (máximas) privativas de liberdade não superiores a 2 (dois) anos[6], conferindo-lhes mais benéfico tratamento.
A pena baixa da prevaricação suscita outra preocupação: a prescrição.
Não soa compatível tal nível de resposta penal com os malefícios causados por um magistrado quando ele, mesmo diante de circunstâncias inequivocamente reveladoras de sua parcialidade, decide continuar atuando no processo, de forma apartada do interesse público, e para satisfazer seus próprios interesses ou sentimentos.
Os juízes de Direito tomam decisões diante do monopólio, que detêm, da jurisdição, o que significa, por um lado, que lhes cabe exercitar a alta autoridade de fazer cumprir as leis nos pedidos que perante eles se deduzem e, de outro, o poder de declarar de modo vinculante e definitivo o conteúdo e a vontade da lei. A tanto não chega o poder de um funcionário público em uma questão administrativa que lhe seja afeta, ainda que deva também agir com escrupuloso respeito à legalidade, à qual está sujeita a atividade da Administração. Acontece que os danos que os juízes podem causar com decisões maculadas pela parcialidade são potencialmente bem superiores aos de funcionários que se desviam da legalidade, mas que não exercem a jurisdição. [7]
O magistrado que, comprimido pela parcialidade, permanece no processo com objetivos não identificados com a função judicial, buscando sim servir aos seus particulares desígnios ou interesses, não pode de qualquer modo sustentar sua aptidão para ditar uma interpretação do Direito suscetível de ser tomada como legítima. Sua interpretação, uma vez apartada do interesse público, constituirá o que se pode nominar abuso da jurisdição. Daí vindicar a prevaricação que se desenhe com tais contornos uma diferenciada (como tipo autônomo mais severo, ou como tipo qualificado, etc) repressão, com resposta penal quantitativa que, ao nosso ver, deva estar mais próxima daquela atribuída a um ato de corrupção, do que a uma prevaricação de um agente público não associada à atividade jurisdicional.
ConclusõesEm vista das considerações expostas, podemos exprimir algumas conclusões:
a) A garantia fundamental do devido processo legal não prescinde em hipótese alguma do rigoroso respeito, pelo juiz de direito, às regras de processo civil e de processo penal disciplinadoras do impedimento e da suspeição.
b) A previsão criminal da prevaricação constitui importante e necessário mecanismo de controle social a bem da proteção do devido processo legal.
c) A prevaricação pode se configurar como desdobramento de uma hipótese de impedimento ou de suspeição do juiz, embora nem toda causa destas espécies conduza, automaticamente, àquela figura penal.
d) Haverá claro indicador de prevaricação no comportamento do juiz que traduzir doloso e inaceitável desrespeito a alguma hipótese legal processual indicativa de parcialidade (de impedimento ou de suspeição), e que permita ser associado ao propósito do mesmo magistrado de satisfazer um interesse ou um sentimento pessoal que lhe seja próprio, assim se aperfeiçoando o elemento subjetivo do tipo penal.
e) Tal elemento subjetivo do tipo de prevaricação não precisa ser necessariamente distinto daquele que revista a própria causa configuradora do dever (não respeitado) de afastamento do processo.
f) A contrariedade à expressa disposição legal, prevista no artigo 319 do CP, não precisa sempre envolver preceito normativo substantivo. Daí porque não é impossível a incursão na prevaricação mesmo quando o magistrado aplique sem qualquer mácula o direito material ao caso que lhe é submetido.
g) Não parece proporcional e nem adequada, mas sim reveladora de uma proteção penal insuficiente, a equiparação do comportamento do magistrado ao do funcionário público em geral. A atuação do primeiro, enquanto regente do processo velando pelo “devido processo legal” é de tal protagonismo que exigiria um tratamento diferente em termos de resposta penal suficientemente garantidora daquele princípio fundamental.
Referências bibliográficasDIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais a Doutrina do Crime – parte geral, tomo I.Editora Revista dos Tribunais. 1ª edição brasileira, 2007.
GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães e FERNANDES, Antonio Scarance. As Nulidades no Processo Penal.Editora Revista dos Tribunais, 12ª ed., 2011.
HASSEMER, Winfried. Introdução aos Fundamentos do Direito Penal. Tradução da 2ª edição alemã, revisada e ampliada, de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Sérgio Antonio Fabris Editor. 2005.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional.Ed. Atlas S.A., 24ª edição – 2009.


[1] GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães e FERNANDES, Antonio Scarance. As Nulidades no Processo Penal. Editora Revista dos Tribunais, 12ª ed., 2011, p. 24.
[2] a imparcialidade, representando um dever para o magistrado, constitui, sob outro prisma, uma garantia de nível constitucional em seu favor, a bem do exercício da função jurisdicional (art. 95, parágrafo único, incisos I, II, III, IV e V).
[3] Conf. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. Ed. Atlas S.A., 24ª edição – 2009, p. 106.
[4] DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais a Doutrina do Crime – parte geral, tomo I. Editora Revista dos Tribunais. 1ª edição brasileira, 2007, p. 114.
[5] HASSEMER, Winfried. Introdução aos Fundamentos do Direito Penal. Tradução da 2ª edição alemã, revisada e ampliada, de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Sérgio Antonio Fabris Editor – 2005, p. 415.
[6] Conf. Artigo 61, da Lei 9099/95, com a redação determinada pela Lei 11.313.
[7] Conf. OLIVARES, Gonzalo Quintero (diretor). Comentários a la Parte Especial Del Derecho Penal. Editora Aranzadi, AS, 5ª edição, 2005, p. 446.

A organização criminosa e a Lei de Lavagem de Dinheiro



Mais um tema candente na ordem do dia: a existência ou não da organização criminosa no ordenamento jurídico brasileiro. Discutida há tempos tanto na doutrina quanto na jurisprudência, a questão continua em pauta, em especial porque a Lei de Lavagem de Dinheiro prevê uma causa de aumento para os casos nos quais o delito é cometido por meio de organização criminosa (Lei 9.613/98, artigo1º, parágrafo 4º).
Para um correto enfrentamento do tema, parece necessária uma breve exposição das diversas espécies de crimes praticados em concurso de agentes: o concurso simples e o grupo criminoso.
Há concurso simples de agentes quando o injusto penal é praticado por mais de uma pessoa, reunidas em caráter eventual, com conjunção de vontades, sem institucionalidade ou organização. É o caso de duas pessoas que decidem matar um inimigo comum e dividem tarefas para alcançar o resultado. Trata-se de uma eventual e isolada associação, um concurso simples de agentes.
grupo criminoso age com uma certa institucionalização, uma estabilidade temporal na relação entre seus membros. Os grupos criminosos são mais ou menos organizados. A forma mais simples de grupo criminoso é o bando ou quadrilha, descrita no artigo 288 do Código Penal como a associação de mais de três pessoas para o fim de cometer crimes. Não se trata de organização complexa ou bem estruturada, e não há referência no texto legal à gravidade do crime almejado.
Outra espécie de grupo criminoso é a associação criminosa para o tráfico, prevista na Lei 11.343/2006, artigo 35, caracterizada pelo ajuntamento de duas ou mais pessoas para praticar, reiteradamente ou não, os crimes previstos no artigo 33, caput e parágrafo 1º, 34 e 36da Lei de Drogas.
A forma mais elaborada e estruturada de grupo criminoso é a organização criminosa. Trata-se da formação de grupo estruturado, organizado, hierarquizado, voltado para a prática de crimes graves e com estabilidade consolidada. Não se está mais diante de pequenos grupos, bandos, reunidos precariamente para atos ilícitos pontuais, mas de grandes organizações, com capacidade logística e sofisticados mecanismos voltados à realização do injusto penal e ao seu encobrimento.
A Convenção de Palermo — incorporada ao Direito brasileiro pelo Decreto 5.015/2004 — definiuorganização criminosa como “grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material” (artigo 2º, item a).
Pois bem, definida a organização criminosa, cabe discutir sua existência no plano legal nacional, diante da ausência de uma lei produzida pelo Legislativo brasileiro que defina com precisão o instituto.
Há quem defenda a existência da organização criminosa no ordenamento pátrio porque a Convenção de Palermo foi incorporada ao mesmo em 2004 (Decreto 5.015/2004), portanto, suas definições e institutos seriam válidos e produziriam efeitos jurídicos imediatos. Assim, desnecessária a criação de lei específica sobre organizações criminosas, pois já existiria norma sobre o tema no ordenamento nacional. Ademais, aponta-se que a Lei 9.034/1995, com as alterações trazidas pela Lei 10.217/2001, trata dos meios de prova e procedimentos investigatórios de ilícitos praticados por organizações criminosas (artigo 1º), a revelar que tal fenômeno não seria estranho ao legislador brasileiro.[1]
Corroboram tal assertiva, alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça.[2] Também nesse sentido a Recomendação 3/2006, do Conselho Nacional de Justiça, que, ao recomendar a criação de Varas Especializadas em crimes praticados por organizações criminosas, sugere “a adoção do conceito de crime organizado estabelecido na Convenção das Nações Unidas sobre o Crime Organizado Transnacional, de 15 de novembro de 2000 (Convenção de Palermo), aprovada pelo Decreto Legislativo n. 231, de 29 de maio de 2003 e promulgada pelo Decreto 5.015, de 12 de março de 2004”.
Tal posição não parece a mais acertada. Não parece existir no ordenamento pátrio uma definição vinculante de organização criminosa. A Convenção de Palermo realmente define o instituto, mas o faz apenas para tornar mais claras suas próprias diretrizes, uma vez que o próprio diploma expõe em seu artigo 5 que “Cada Estado Parte adotará as medidas legislativas ou outras que sejam necessáriaspara caracterizar como infração penal, quando praticado intencionalmente: a) Um dos atos seguintes, ou ambos, enquanto infrações penais distintas das que impliquem a tentativa ou a consumação da atividade criminosa (...) ii) A conduta de qualquer pessoa que, conhecendo a finalidade e a atividade criminosa geral de um grupo criminoso organizado, ou a sua intenção de cometer as infrações em questão, participe ativamente em: a. Atividades ilícitas do grupo criminoso organizado (...).
Em suma, a Convenção de Palermo recomenda que os Estados definam a organização criminosa, e sugere algumas de suas características. Logo, o que foi incorporado ao ordenamento nacional foi uma recomendação —inclusive com imprecisões conceituais —que somente terá efeitos concretos setransformada em norma de determinação pelo legislador em ato legal específico.[3] Essa a posição do Supremo Tribunal Federal, que, em recentes decisões entendeu que o conceito de organização criminosa não integra a ordem jurídica brasileira[4], embora alguns votos na Ação Penal 470 apontem uma possível mudança de posição.
Da mesma forma, a Lei 9.034/95 não resolve a questão, porque ela trata de procedimentos e meios de prova, mas não define o que seja organização criminosa. É lei sobre forma, não sobre conteúdo.
Há quem diga que a Lei 12.694/12 resolve o problema porque traz uma definição de organização criminosa: “Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.”
No entanto, vale anotar que o dispositivo revela expressamente que tal definição vale “para os efeitos desta lei”, ou seja, limita a aplicabilidade do conceito para definição de processo e procedimento. A vedação da analogia no Direito Penal — a nosso ver — impede a extensão desta figura jurídica para o âmbito da Lei de Lavagem de Dinheiro.
Assim, cabe ao legislador suprir a lacuna ainda hoje existente. Existem diversos projetos de lei a esse respeito, mas enquanto não forem aprovados, não existirá a figura da organização criminosa por falta de amparo legal, enão será possível aplicar a causa de aumento prevista no parágrafo 4º da Lei de Lavagem de Dinheiro.

[1] Ver Aras, Vladimir. Lavagem de dinheiro e o conceito de organização criminosa na convenção de Palermo, p. 625.
[2] Por todos, Ação Penal 460/RO, Corte Especial, j. 06.06.2007, rel. Min. Eliana Calmon, DJ25.06.2007.
[3] Estellita, Criminalidade de empresa, quadrilha e organização criminosa p. 62-72.
[4] HC 96.007, rel. Min. Marco Aurélio, j. 10.11.2009. Vale anotar que o tema também foi objeto de apreciação pelo Pleno na ADIn 4.414/AL, rel. Min. Luiz Fux, 24.05.2012, que declarou a ilegalidade do reconhecimento da organização criminosa sem lei específicas (principio da reserva legal), mas o acórdão não estava disponível até o momento da conclusão da presente obra.
Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.

A boa prática jurídica apoia a prestação jurisdicional

Sempre defendi que peças judiciais devem ser redigidas de forma clara e objetiva, evitando-se, dentro do possível, termos e expressões que dificultem a compreensão por parte dos operadores do Direito e principalmente por parte do jurisdicionado, que é o destinatário final do nosso trabalho. Até mesmo a imprensa pode se confundir diante de uma redação muito rebuscada ou que abuse do chamado “juridiquês”.
Peticionar exige técnica. Não se pode ficar refém de modelos (tem gente que não sabe fazer nada sem o seu “pen drive”). Ao se recorrer a modelos, é preciso se perguntar o porquê de cada assertiva e consultar os artigos de lei para não citar dispositivos revogados, o que já constatei.
O excesso de trabalho a que se submetem os profissionais exige que as manifestações sejam concisas e que somente se transcrevam precedentes jurisprudenciais sobre questões mais controvertidas (e não sobre entendimentos já pacificados). Não há tempo para ler “tratados”.
Em alguns casos, anexar cópia do julgado em vez de transcrevê-lo pode evitar que a leitura da peça jurídica seja dificultada. Introduzir muita coisa na petição pode favorecer que pontos realmente importantes passem despercebidos.
Particularmente, adoto impressão na frente e no verso e oriento meu cartório a fazê-lo, pois dessa forma reduzimos o consumo de papel e os processos ficam menos volumosos. Assim agindo, também reduzimos o custo do arquivo permanente que é terceirizado pelo Tribunal e que se baseia na quantidade de papel arquivado. Parece que não, mas o impacto de se compulsar um processo mais “fino” é menor. Há uma tendência em se esperar mais para analisar processos mais volumosos, já que, pelo menos em tese, a apreciação requer mais tempo disponível. Seria interessante que a impressão nos dois lados se difundisse mais...
Ainda falando nas petições, muitas vezes estão acompanhadas de dezenas de cópias de documentos. Nesse caso, é salutar que os documentos sejam numerados e que a cada referência que se faça a eles, se apontem os respectivos números. Além disso, não custa destacar, com caneta do tipo “marca-texto”, as informações mais relevantes que constarem nos anexos.
Mais de uma vez eu já oficiei à Ordem dos Advogados elogiando atuações de profissionais bem organizados sob esse ponto de vista. A razão é simples: há casos em que as dezenas ou centenas de papéis não recebem qualquer tipo de identificação, o que demanda o dobro ou o triplo do tempo e do esforço para a sua análise. Essa análise fica extremamente prejudicada quando os anexos são simplesmente “despejados” no processo sem que haja um roteiro. Por falar em roteiro, vários documentos justificam um índice, não é mesmo? Muitas vezes o profissional acaba não conseguindo se fazer entender tão-somente por não observar tais dicas e o cliente pode sofrer muitos prejuízos.
Ainda sobre os documentos “despejados”, não é demais ressaltar que muitos deles não interessam à discussão. Recentemente eu solicitei à parte que informasse o objeto de outra demanda para eu analisar se eram coincidentes. Em resposta, ela anexou cópia integral do outro processo. Justificando a dificuldade de manuseio, o desinteresse, o prejuízo ambiental e o custo de arquivamento, determinei que mais de 150 folhas fossem desentranhadas (retiradas) e remetidas para reciclagem...
As folhas de suporte devem ser utilizadas apenas quando houver risco de a perfuração do documento a ser juntado interferir no entendimento do seu conteúdo. Já calculou o prejuízo de material, de espaço e de tempo que decorre do procedimento de ficar desdobrando folhas coladas em outras folhas sem necessidade alguma para conseguir ler seu conteúdo?
De resto, também recomenda a boa estética que se evite o uso de várias fontes do editor de texto. Os destaques devem recair somente sobre trechos de fato importantes, preferencialmente com a adoção de um só tipo de recurso (negrito, itálico ou sublinhado).
Por fim, o uso do corretor ortográfico do editor de textos não consome mais do que poucos minutos e gera muitos benefícios. Afinal, a redação truncada também pode impedir a compreensão e o que não é compreendido não será atendido. Tratando-se de situação muito complexa, não custa nada pedir a alguém que leia a petição e diga se está compreensível antes de encartá-la ao processo.
As dicas versam a prática judiciária, mas se aplicam a outras atividades. Na era da comunicação digital, é preciso gradativo desapego ao papel e é necessário fazer uso racional dele. Deve-se conciliar a agilidade da comunicação com qualidade. É preciso se fazer entender. Tudo é questão de reeducação e de reflexão sobre como estamos nos portando e sobre como podemos melhorar.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira é juiz da 2ª Vara de Penápolis (SP).

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

É preciso comprovar a pobreza na "Justiça gratuita"

A “Justiça gratuita” concedida pelo juiz é apenas uma decisão provisória, a qual dispensa o requerente de adiantar as custas para facilitar o acesso ao Judiciário, mas ao final do processo deve-se calcular as custas devidas pelo perdedor e intimá-lo para pagar, inclusive honorários de sucumbência, sendo erro técnico quando o juiz deixa de “condenar em custas e honorários por se tratar de Justiça gratuita”, pois não pode deixar de condenar, em razão de que o Estado tem o prazo de cinco anos após o final do processo para provar que o perdedor da demanda tem condições de pagar custas, despesas, emolumentos e honorários, nos termos do artigo 12 da Lei 1.060/50.
Outrossim, a Constituição Federal exige no artigo 5º, a comprovação da carência econômica para fins de assistência jurídica gratuita: 'LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos".
Este é um dos maiores problemas atuais, embora pouco discutido com efetividade, "Justiça gratuita". Em razão da gratuidade vive-se uma epidemia de processos e aventuras jurídicas. Vamos tratar de forma genérica o conceito de “Justiça gratuita”.
O discurso dominante é aparentemente para ajudar os mais pobres, mas na prática acaba beneficiando os prestadores de serviço, os quais recebem milhões de reais anualmente, além de um custo oculto em razão de o Estado não receber as custas e ter que aumentar a estrutura judicial para dar resposta ao serviço.
Gasta-se mais com “Justiça gratuita” do que com bolsa-família, mas não há transferência de renda, pois divide-se para “cima” e os prestadores do serviço ficam brigando para ver quem recebe mais verba e nem se sabe quem é o suposto público carente a ser beneficiado.
Também em virtude da benevolência judicial na concessão da Justiça gratuita não há estímulo aos acordos judiciais e nem mesmo extrajudiciais. O curioso que é nos cartórios extrajudiciais menos de 20% são da Justiça gratuita, enquanto nos cartórios judiciais mais de 80% dos processos são com Justiça gratuita. Ou seja, há um paradoxo, ou temos dois tipos de pobres, uma vez que os dois setores submetidos ao Judiciário adotam critérios diferentes. O pobre no sistema judicial não é pobre nos cartórios extrajudiciais.
Na prática prevalece o assistencialismo jurídico que beneficia empresários, advogados, juízes, dentistas, médicos, engenheiros e outros setores da classe privilegiada com concessão de justiça gratuita.
Não há uma análise efetiva do beneficiado, nem do custo, tudo é com base na retórica.
Para justificar esta situação alegam que a Lei 1.060-50 exige apenas a declaração para gratuidade judicial e fundamentam ainda que “assistência jurídica” é diferente de “assistência judiciária”, uma ginástica retórica contorcionista. Afinal, a Constituição Federal trouxe um termo mais amplo, caso contrário seria o mesmo que dizer que assistência judiciária (isenção de custas) não tem previsão constitucional e pode ser revogada.
Nesse ínterim também confundem acesso ao Judiciário com a mera “entrada” e não se preocupam com a saída. E defendem o acesso ao Judiciário como a única via para resolução de conflitos, tanto que não existem estruturas estatais organizadas para mediação ou conciliação extrajudicial, nem os cargos estruturados de conciliadores.
A “assistência jurídica” ou “Justiça gratuita” deveria ser uma política pública com vários atores prestando o serviço e prestando contas. Mas, ocorre justamente o contrário, ou seja, disputa por monopólios.
Até mesmo a Defensoria deve comprovar a carência econômica dos seus clientes, nos termos da Constituição Federal, mas não o faz: "Artigo 134 - A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV [o qual exige comprovação de carência econômica e não apenas alegação]."
Inclusive o artigo 1º da LC 80/94 (Lei Orgânica da Defensoria) passou a fazer referência expressa à aplicação da exigência constitucional, com a alteração definida pela LC 123/09 para que comprovem a carência econômica do cliente: "Artigo 1º (...) assim considerados na forma do inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição Federal"
Alguns juízes ainda acreditam que o Defensor Público tenha uma espécie de “fé pública” para dizer se o seu cliente é pobre ou não, mesmo sem procuração com poderes especiais ou declaração do mesmo. Na verdade, o Defensor Público não tem esta “fé pública” e nem se pode presumir que o cliente é carente, pois a própria lei exige que se comprove a carência econômica. E isto para evitar um desvio muito comum que é atender pessoas que poderiam pagar um advogado e uma espécie de desvio de função e recurso público.
Ademais, não faz sentido que a Defensoria alegue que o Estado somente pode prestar assistência jurídica aos carentes através da mesma, porém, a mesma não tenha critério para comprovar que atende os carentes, os quais ficariam duplamente prejudicados, pois reféns de uma instituição e ao mesmo vítimas do desvio de finalidade.
Contudo, nos termos da Lei 1.060/50 o conceito de pobre é indefinido e permite abusos: "Artigo 2º. Parágrafo único - Considera-se necessitado, para os fins legais, todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família."
Ora, como é que alguém vai saber se pode pagar as custas do processo, se não sabe o seu valor? Ora, como é que alguém vai saber se não pode pagar os honorários do advogado (os contratuais ou os sucumbenciais)? Isto tudo sem provar nada? Não pode pagar parceladamente?
As inconsistências não param. Vejamos, a redação abaixo referente à mesma lei 1.060-50: "Artigo 4º A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família."
Mais grave ainda, pois basta a simples afirmação, uma declaração. E agora, vem se entendendo que pode ser feita pelo advogado no teor da petição inicial sem procuração com poderes especiais. Ora, como é que o advogado pode dizer que o seu cliente é pobre? E se o cliente estiver mentindo? Ou será apenas caso de um engano? E o réu pede justiça gratuita como? Na contestação?
O descaso com o erário é tão grande que não se cumpre o artigo 12 da citada lei: "Artigo 12 - A parte beneficiada pelo isenção do pagamento das custas ficará obrigada a pagá-las, desde que possa fazê-lo, sem prejuízo do sustento próprio ou da família, se dentro de cinco anos, a contar da sentença final, o assistido não puder satisfazer tal pagamento, a obrigação ficará prescrita."
Entretanto, o Judiciário não vem cumprindo a lei e não comunica à Fazenda Pública, ao final do processo, os valores devidos pelo perdedor. Ora, a decisão de “Justiça gratuita” concedida pelo juiz é uma decisão provisória, apenas para permitir o acesso ao Judiciário, mas não é definitiva como se imagina. Logo, o Estado tem o prazo de cinco anos para provar que o beneficiado perdedor tem condições de pagar e efetuar a cobrança.
Outra questão que não fica muito clara é no tocante aos honorários de sucumbência devidos pelo devedor. Em tese, estes pertencem ao advogado do vencedor, logo deveria este também ter o prazo de cinco anos ao final para cobrar os mesmos do perdedor, se este tiver condições.
O fato de não se ter um critério objetivo para se definir o que é pobre, não dispensa da necessidade de argumentar por qual motivo considera-se pobre, inclusive informando renda e mostrando de fato as despesas processuais que teria, pois atualmente é tudo feito genericamente em duas linhas e bilhões de reais são perdidos em milhões de processos e pedidos de Justiça gratuita.
Quando o artigo 3º da Lei 1.060/50 fala em gratuidade de honorários não abrange os contratuais, conforme recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, os quais devem ser pagos ao final do processo, se o cliente for vencedor. Mas, a dúvida permanece no tocante aos honorários de sucumbência. Contudo, o objetivo da lei foi permitir o acesso ao Judiciário, logo observa-se que ao final do processo poderão ser cobrados pelo advogado da parte vencedora os honorários de sucumbência, se no prazo de cinco anos ficar comprovado que o perdedor tem condições de pagar, inclusive mediante a via do uso do protesto fiscal.
Nesse sentido, cita-se o artigo 19 do CPC: "Artigo 19 - Salvo as disposições concernentes à justiça gratuita, cabe às partes prover as despesas dos atos que realizam ou requerem no processo, antecipando-lhes o pagamento desde o início até sentença final; e bem ainda, na execução, até a plena satisfação do direito declarado pela sentença".
Ou seja, a “Justiça gratuita” concedida pelo juiz apenas dispensa o requerente de adiantar as custas. Afinal,no processo judicial a regra é adiantar as custas e despesas, e não pagar ao final. Isto é, ao final do processo se quem adiantou as custas, vencer a demanda, apenas seria ressarcido pelo perdedor. Se for o próprio perdedor que adiantou, então já teria pago e ficaria apenas com a obrigação de recolher alguma verba complementar conforme cálculo.
O juiz não é autoridade tributária com autorização para “isentar” as pessoas de pagarem as custas. Apenas, dispensa o adiantamento, mas não o pagamento ao final.
Além disso, em caso de Justiça gratuita devem os juízes, ao final fixarem os honorários de sucumbência, portanto não podem usar a praxe de “deixo de fixar honorários e custas em razão da gratuidade judicial”, sendo que devem remeter autos para a Contadoria a fim de calcular as custas e outras despesas, intimando-se o perdedor para pagar em prazo judicial e se este não o fizer, os autos serão arquivados, mas remetida Certidão de Custas Não Pagas à Fazenda Pública, para cobrar no prazo de cinco anos se provar que o devedor/perdedor tem condições.
Em suma, tanto o defensor público, como o advogado privado devem comprovar a carência do cliente para obter a Justiça gratuita, a qual é uma decisão provisória para se ter acesso ao Judiciário. No caso específico do Defensor Público, conforme artigo 1º, da LC 80/94, e no próprio artigo 134 da Constituição Federal, é obrigado a comprovar a carência do cliente. De fato, a obrigação para o defensor público comprovar a carência do seu cliente é maior que a do advogado privado, pois a obrigação de servidor público com o erário exsurge maior do que a advocacia privada.
Por fim, independente da comprovação não pode o juiz deixar de fixar a obrigação de pagar custas e honorários ao final do processo, nem mesmo pode suspender a obrigação de quitar, pois o Estado tem o prazo de cinco anos para comprovar que o perdedor da demanda tem condições de pagar as custas e honorários, conforme artigo 12 da Lei 1.060/50, pois a “Justiça gratuita” concedida foi uma decisão provisória e condicionada ao prazo do artigo 12 da Lei 1.060/50,logo o juiz deve fixar a obrigação de pagar estes valores na sentença, os quais serão calculados pela Contadoria e se não quitados deve remeter a Certidão de Não Pagamento à Fazenda Pública, a qual tem o prazo de cinco anos para comprovar a capacidade financeira do devedor e cobrar pelos meios legais.
André Luís Alves de Melo é mestre em Direito Social e promotor de Justiça em Minas Gerais.