sábado, 30 de julho de 2011

REFLEXOS DA LEI 12403/2011 - ACUSADA DE TRÁFICO É SOLTA GRAÇAS NOVA LEI

Por Eduardo Velozo Fuccia

As recentes medidas cautelares introduzidas ao Código de Processo Penal pela Lei 12.403/2011, que passou a ter eficácia no último dia 4, fundamentaram a soltura de uma mulher presa com 2,9 quilos de crack em casa. A decisão foi tomada pelo juiz Alexandre Betini, da 2ª Vara Criminal de Praia Grande (SP), e deverá gerar repercussões entre os operadores do Direito em geral (delegados, advogados, promotores e magistrados).

Antes de a acusada reconquistar a liberdade, a promotora Ana Maria Frigerio Molinari se manifestou pela conversão do flagrante em prisão preventiva, porque as novas medidas cautelares do CPP “não se mostram suficientes, adequadas e proporcionais à gravidade do fato praticado”.

Ainda conforme o parecer da representante do Ministério Público, a decretação da preventiva se justifica para a acusada não se “sentir incentivada a prosseguir em suas práticas delituosas” e pelo fato de o tráfico ser “delito sumamente grave, pois põe em risco a saúde de toda a coletividade”.

O advogado William Cláudio Oliveira dos Santos, por sua vez, considerou a decisão de Betini “adequada aos novos dispositivos legais”, acrescentando que a sua cliente é primária, possui ocupação lícita e tem residência fixa na mesma comarca onde é processada. O juiz reconheceu a legalidade do flagrante sob o ponto de vista formal. Porém, considerou como situação excepcional a prisão antes de decisão condenatória definitiva e soltou a acusada mediante a imposição de quatro medidas cautelares introduzidas ao CPP.

Com a decisão, sob pena de ter a preventiva decretada, além de não faltar aos atos processuais aos quais for intimada, a fotógrafa Elaine Cristina Dias, de 36 anos, deve comparecer periodicamente em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar as suas atividades.

As demais condições impostas são: proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva a indiciada permanecer distante desses locais para evitar risco de novas infrações; proibição de ausentar-se da comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária à investigação ou instrução, e recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga.

Mandado de busca e apreensão
Munidos de ordem judicial, policiais do Grupo de Operações Especiais (GOE) estiveram na casa da fotógrafa, na Rua João Mendes Júnior, no Bairro Tude Bastos. Os agentes acharam no quarto de Elaine, sob a cama, três tijolos de crack. Atrás de uma gaveta, na cozinha, havia um anel aparentemente de ouro e R$ 3 mil em cédulas de R$ 2,00, R$ 5,00, R$ 10,00, R$ 20,00 e R$ 50,00.

A mulher alegou que o dinheiro é fruto de seu trabalho de fotógrafa. Em relação ao anel, disse que o achou na rua. Ela negou a propriedade das drogas, sem indicar de quem seria. Na Delegacia de Investigações sobre Entorpecentes (Dise), foi autuada por tráfico pelo delegado Francisco Garrido Fernandes.

Segundo integrantes da equipe do GOE, eles foram até a casa da fotógrafa, porque o irmão dela, apelidado por Garrote, é suspeito do assassinato de um policial militar e estaria refugiado naquele endereço, onde guardaria drogas e armas de vários calibres. Elaine confirmou ser irmã de Garrote, mas disse ignorar o seu atual paradeiro.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

ACUMULO DE CARGOS PÚBLICOS NÃO CONFIGURA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

Acúmulo de cargos públicos é infração administrativa

O acúmulo de cargos público não configura improbidade administrativa e sim infração administrativa. Deve ser apurada em processo disciplinar. Esse é o entendimento da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça ao analisar o caso de um assessor jurídico que manteve cargos em dois municípios do Rio Grande do Sul.

O Ministério Público estadual moveu ação de improbidade para enquadrar o servidor na Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), pela suposta prática de ato contrário aos princípios da administração pública.

O juiz de primeira instância entendeu que não estava caracterizado o ato de improbidade, por não haver dolo ou culpa na conduta do réu, nem prejuízo ao erário. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul manteve a sentença. O Ministério Público interpôs Recurso Especial no STJ.

Para o relator, embora a acumulação de cargos seja proibida pela Constituição, o servidor fez rigorosamente os serviços de assessor jurídico e recebeu pouco pelas atividades, o que não gerou enriquecimento ilícito. Por essa razão, ele não poderia ser condenado por improbidade administrativa, já que também não houve dano ao erário.

Segundo o ministro Humberto Martins, a Lei 8.429 resguarda os princípios da administração pública sob o prisma do combate à corrupção, da imoralidade qualificada e da grave desonestidade funcional. Porém, não se ocupa de punir meras irregularidades administrativas ou transgressões disciplinares, as quais devem ser processadas e julgadas em foro disciplinar adequado.

O ministro observou que, na hipótese de acumulação de cargos, havendo a efetiva prestação de serviço, o valor irrisório da contraprestação paga ao profissional e a boa-fé do contratado, deve ser afastada a hipótese de enquadramento em ato de improbidade administrativa — sobretudo quando as circunstâncias do caso evidenciam a ocorrência de simples irregularidade e a inexistência de desvio ético ou inabilitação moral para a função pública. Entre outras penas, a Lei de Improbidade prevê a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos.

“Sabe-se que a Lei 8.429 é instrumento salutar na defesa da moralidade administrativa, porém a sua aplicação deve ser feita com cautela, evitando-se a imposição de sanções em face de erros toleráveis e meras irregularidades”, acrescentou.

Como esse entendimento já está consolidado na jurisprudência do STJ, o relator havia rejeitado o recurso em decisão monocrática, o que levou o Ministério Público a recorrer ao colegiado da 2ª Turma — onde a posição do ministro foi mantida. Com informações da Assessoria de Imprensa do Superior Tribunal de Justiça.

Resp 1245622

quinta-feira, 28 de julho de 2011

PARIDADE DE ARMAS - ASSENTOS DE DEFESA E ACUSAÇÃO ACIRRAM DEBATES

Paridade de armas
Assentos de defesa e acusação acirram debates

Por Rodrigo Haidar

Três irmãos lavradores de Turiaçu, cidade do oeste maranhense com cerca de 40 mil habitantes, distante 460 quilômetros da capital São Luís, sentaram-se no banco dos réus denunciados por homicídio no dia 8 de fevereiro passado. Tudo pronto para o julgamento, um dos advogados dos acusados, Roberto Charles de Menezes Dias, pede que o juiz mude a disposição da sala para que acusação e defesa sejam colocadas no mesmo nível.

Depois de consultar o Ministério Público, o juiz Luis Carlos Licar Pereira, que presidia o Júri, rejeitou o pedido. A mudança na disposição dos assentos era possível porque a sala de julgamento foi improvisada no auditório de uma escola pública, como é comum em cidades do interior onde o Poder Judiciário não conta com estrutura física adequada para fazer júris. Ou seja, as instalações não eram fixas.

A defesa pediu a reconsideração da decisão. Alegação: a disposição da sala feria o princípio da paridade de armas que deve reger os processos, já que os advogados haviam sido colocados “literalmente aos pés do juiz e do promotor” e de costas para os dois. Também sustentou que, da posição em que estavam, os jurados não podiam enxergar os acusados ou todos os seus advogados, o que prejudicava exercício do direito de defesa.

O advogado Charles Dias argumentou: “A posição em que se encontra a defesa, sentada de costas para a presidência dos trabalhos e para parte ex-adversa neste julgamento, tendo que a todo o momento aguardar o comando do magistrado para saber se pode ou não se manifestar, para compreender se o procedimento anterior se encerrou ou não, imprime ao exercício da defesa um grande prejuízo, pois é princípio e de conhecimento comezinho de todos, de que os procedimentos judiciais se fazem pelo princípio da oportunidade, ou seja, respeito aos prazos e aos momentos”. Diante da nova negativa do juiz de mudar os defensores de lugar, os três advogados se retiraram da sessão e o julgamento foi adiado.

O que pode parecer uma discussão pequena à primeira vista ou insignificante diante da importância dos temas tratados pelo Judiciário vem ganhando corpo com rapidez em todo o país e já chegou até mesmo ao Supremo Tribunal Federal e ao Conselho Nacional de Justiça. As questões que se colocam são: O representante do Ministério Público deve se sentar no mesmo nível que a defesa? O fato de o membro do MP se sentar à direita do juiz em audiências e julgamentos, em nível muitas vezes superior ao dos advogados, prejudica a defesa?

Para a advocacia, as respostas são afirmativas para as duas perguntas. Os advogados lançam mão da Lei 8.906/94, o Estatuto da Advocacia, para sustentar que defesa e acusação devem ser colocados no mesmo nível. Em seu artigo 6º, a lei prevê que “não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos.”

Em contraposição, representantes do Ministério Público sustentam que o direito de se sentarem no mesmo plano e à direita do juiz é prevista na Lei Orgânica da instituição, a Lei Complementar 75/1993. O artigo 18 da norma fixa, dentre as prerrogativas dos membros do MP, “sentar-se no mesmo plano e imediatamente à direita dos juízes singulares ou presidentes dos órgãos judiciários perante os quais oficiem”.

Para o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Alexandre Camanho de Assis, o argumento de que o assento do Ministério Público pode desequilibrar as forças opostas no processo não tem qualquer base. “O princípio da paridade de armas se consolida com o fato de as partes terem as mesmas oportunidades probatórias e temporais no processo. O lugar onde o representante do Ministério Público se senta nas audiências ou julgamentos não influi nisso”, afirma.

O presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Ophir Cavalcante Junior, acredita que a posição de desigualdade dos assentos é mais do que simbólica e pode sim influir no andamento do processo. “É uma agressão à imparcialidade. O cidadão, representado pelo advogado, não é menos importante do que o Estado, simbolizado pelo juiz ou pelo promotor. O Estado deve servir ao cidadão e não está acima da lei”, sustenta.

Paridade de armas
O Supremo Tribunal Federal esteve prestes a enfrentar o tema, mas há pouco mais de um mês a ministra Cármen Lúcia negou seguimento a uma ação da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) que contesta a prerrogativa do MP de se sentar no mesmo plano que o juiz. De acordo com a decisão, a regra atacada pela Anamatra, “em tese, interessaria todos os membros da magistratura nacional e não somente os juízes do trabalho”. Por isso, a ministra entendeu que a associação não tinha legitimidade para propor a ação.

O advogado da entidade, Alberto Pavie Ribeiro, entrou com Agravo Regimental contra a decisão da ministra. O agravo aguarda julgamento pelo plenário do STF. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3.962) atacou, além da Lei Orgânica do MP, a Resolução 7/2005 do Conselho Superior da Justiça do Trabalho. A resolução garantiu aos representantes do Ministério Público o direito de assento no mesmo nível que o juiz em qualquer situação, seja quando atua como fiscal da lei, seja quando atua como parte do processo.

Segundo a Anamatra, “a observância da referida prerrogativa mesmo em hipóteses nas quais o Ministério Público atua como parte viola importantes garantias constitucionais, tais como o devido processo legal e a igualdade entre as partes que lhe é inerente”. Ainda de acordo com a entidade, a prerrogativa de se sentar ombro a ombro com o juiz apenas poderia ser exercida quando o Ministério Público atuasse como fiscal da lei (custos legis), “para o fim de ressaltar e assegurar a imparcialidade que se espera do Ministério Público nesta condição”.

Enquanto a entidade aguarda o julgamento do agravo contra a decisão da ministra, chegou ao Supremo no dia 15 de julho Reclamação (Rcl 12.011) do juiz federal Ali Mazloum, titular da 7ª Vara Criminal da Justiça Federal de São Paulo, sobre o mesmo tema. A petição também foi distribuída para a ministra Cármen Lúcia, que deve se manifestar sobre o pedido depois do recesso de julho.

O juiz contesta liminar concedida pela desembargadora Cecília Marcondes, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que determinou que o procurador da República permanecesse sentado “ombro a ombro” com o juiz durante audiências na Justiça Federal. A liminar foi concedida em Mandado de Segurança impetrado por 16 membros do Ministério Público Federal de São Paulo.

Os procuradores da República recorreram ao TRF-3 depois que Mazloum mudou a disposição da sala. Até então, os procuradores sentavam-se no mesmo estrado do juiz federal, à sua direita, colado à sua mesa. O juiz determinou a retirada do estrado. Todos ficaram no mesmo plano e colocou-se o assento do MPF ao lado do assento reservado à defesa, feita por advogados ou por defensores públicos.

A mudança foi feita pelo juiz diante de provocação da Corregedoria do TRF-3 e a pedido da Defensoria Pública da União. Os defensores sustentam que a mudança é necessária para cumprir a Lei Complementar 132/2009 (Lei Orgânica da Defensoria Pública), que deu a eles a prerrogativa de sentar-se no mesmo nível dos procuradores. “Aos membros da Defensoria Pública é garantido sentar-se no mesmo plano do Ministério Público”, diz a lei. Os 16 procuradores que contestaram a medida, e obtiveram a liminar, afirmaram que a fórmula poderia acarretar nulidades nos processos.

Na Reclamação, o juiz Ali Mazloum pede que o STF acolha as mudanças que fez em sua sala de audiências e adote a portaria que as efetivou como “modelo válido para toda a magistratura, com vistas a assegurar paridade de tratamento entre acusação e defesa durante as audiências criminais”. O processo está, novamente, nas mãos da ministra Cármen Lúcia.

Para o defensor público Gabriel Faria Oliveira, presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef), o pedido deve ser acolhido pelo Supremo. De acordo com Oliveira, o Supremo já teve a oportunidade de decidir isso em um recurso julgado em 1994, em que o relator foi o ministro Marco Aurélio (RMS 21.884).

“Em seu voto, o ministro Marco Aurélio afirma expressamente que a prerrogativa do artigo 18 da Lei Orgânica do Ministério Público não pode levar, sob pena de ser até ridículo, a uma confusão entre os papéis do Ministério Público e do magistrado”, disse o defensor. “O Ministério Público, especialmente na ação penal, é parte. Tanto é parte que os recursos do Ministério Público, assim como os da Defensoria Pública, são julgados procedentes ou improcedentes”, reforça Gabriel Oliveira.

O presidente da Anadef sustenta que “colocar o representante do Ministério Público no mesmo plano que o defensor público ou que o advogado privado é o formato que melhor atende o devido processo legal, a igualdade entre as partes e, especialmente, o processo democrático em que o cidadão tenha as mesmas armas que o Estado e no qual o juiz possa ficar equidistante das partes para aferir, com imparcialidade, a verdade dos fatos”.

Fiscal da lei
Membros do Ministério Público discordam da visão dos defensores. De acordo com o presidente da ANPR, Alexandre Camanho de Assis, o lugar ao lado do juiz é tradicionalmente reservado ao Ministério Público e já faz parte da topografia das instalações do Judiciário.

O procurador defende que o fato de a lei complementar reservar o lugar do representante do MP à direita e no mesmo plano que o juiz já seria suficiente para que nenhum magistrado, “por meio de atos normativos menores como portarias”, retirasse de seu lado o assento do MP.

“O juiz ocupa o lugar central na sala de audiências e o membro do Ministério Público senta ao seu lado porque ele é tão magistrado quanto o juiz que está ali. O MP não exerce só o ofício da acusação e, mesmo nos casos em que momentaneamente acusa, não se despe das atribuições de defender o Estado Democrático de Direito”, afirma Camanho de Assis.

“Com tantas questões sérias a se discutir neste país, tanta jurisdição por se prestar, ficamos discutindo o lugar que deve ser ocupado. Atribuo isso ao fato de ainda sermos um jovem Estado Democrático de Direito”, sustenta o presidente da ANPR. “Afirmar que o lugar ocupado pelo MP pode ferir a paridade de armas é desconhecer a realidade do processo penal”, conclui.

Para o procurador da República no Rio de Janeiro Fábio Seghese, o lugar do Ministério Público representa a sua principal atribuição constitucional: a de custos legis. Ou seja, fiscal da lei. “Essa discussão se resolve em razão do simbolismo da atuação do MP. Mesmo quando atua em processos penais ou como autor de ações civis públicas, o membro do Ministério Público não de desveste de sua principal função, de buscar a verdade real do processo. É justamente essa atribuição que justifica o assento reservado no mesmo plano do juiz”, afirma.

De acordo com Seghese, o juiz e o representante do Ministério Público buscam, no processo, o mesmo resultado: a verdade. “O representante do MP não busca necessariamente a condenação. Há o argumento de que alguns membros se portam como perseguidores. Estes estão agindo mal. Mas não se pode fazer a regra a partir das exceções. O membro do MP não tem interesse na condenação ou na absolvição. Seu interesse é a busca da verdade real. Essa é a essência da discussão e é a razão de ser de ele se sentar ao lado do juiz, no mesmo plano”.

Em artigo publicado em janeiro em seu blog, o procurador da República em São Paulo Márcio Schusterschitz defendeu ideia semelhante. “O lugar e a altura do Ministério Público na mesa não são assim funcionalizados como condição de desigualdade das partes e desequilíbrio do devido processo legal. São critérios de comunicação, inclusive para seu próprio membro, que, como fiscal da lei, não cabe ao promotor ou procurador se desenvolver com desembaraço para buscar, como um fim em si e como se simples parte para tanto fosse, a condenação”.

Lenio Streck, procurador de Justiça do Rio Grande do Sul que é apontado como um bom nome para o Supremo Tribunal Federal sempre que uma vaga na Corte se abre, também já escreveu sobre o assunto. Em artigo publicado no site da Associação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, o procurador afirma que o MP dos tempos atuais lança-se ao exercício de uma magistratura ativa na defesa da ordem jurídico-democrática.

“Essa vocação à defesa da legalidade democrática é o que fundamenta a existência e o estatuto constitucional do Ministério Público. Sua missão institucional, portanto, não pode ser hermeneuticamente reduzida em suposta obediência à ‘bipolaridade’ própria de uma teoria linear do processo. O Ministério Público tradicionalmente ocupa o lugar que ocupa não porque é mais importante ou porque é igual à parte ou o juiz, mas, sim, porque ocupa um lugar que é simplesmente diferente. E isto não faz o Ministério Público ser mais ou menos democrático, assim como o uso dos elevadores privativos ou o lugar de destaque da mesa do juiz não fazem o judiciário mais ou menos democrático”, escreveu Lenio Streck.

Mobília nova
Apesar da discussão, o fato é que muitos juízes pelo país têm mudado a disposição das salas de audiências e julgamento para colocar advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público no mesmo nível. Há casos que já chegaram ao Conselho Nacional de Justiça.

O conselheiro Marcelo Nobre tem nas mãos um processo em que o Ministério Público do Distrito Federal contesta a nova disposição dos lugares elaborada por juízes de cidades-satélite de Brasília. O MP-DF pediu liminar para que os promotores e procuradores voltassem a se sentar ao lado e no mesmo plano que os juízes. A liminar foi concedida.

Os juízes vieram ao CNJ e mostraram ao conselheiro o novo layout das salas, de acordo com a determinação do CNJ. Nobre considerou razoável a adaptação. Defensores públicos se habilitaram no processo para defender a igualdade e também foram recebidos pelo conselheiro. O processo está em fase final de instrução e deve ser julgado pela nova composição do CNJ até o fim do ano.

Um dos pedidos dos defensores é exatamente igual ao que foi feito pela Anamatra na ação ajuizada no Supremo. Que o MP, quando atuar como parte, se sente no mesmo patamar que a defesa e que ocupe o lugar ao lado do juiz somente quando estiver representando, de fato, o papel de fiscal da lei.

A seccional do Distrito Federal da Ordem dos Advogados do Brasil também já se manifestou sobre o tema. O corregedor da Justiça do DF, desembargador Sérgio Bittencourt, pediu que a OAB-DF se manifestasse em um processo administrativo aberto no Tribunal de Justiça porque o juiz do 2º Juizado Especial Cível e Criminal e seu colega do 2º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Planaltina adotaram, em suas respectivas salas de audiência, layout que atenderia as prerrogativas de membros do Ministério Público e da Defensoria Pública. Ou seja, todos os atores do processo judicial foram colocados no mesmo plano.

A Procuradoria-Geral de Justiça deu parecer contrário às mudanças e a Associação dos Defensores Públicos do Distrito Federal manifestou “apoio incondicional e irrestrito à iniciativa adotada”. A consulta foi respondida pela Comissão de Assuntos Constitucional da OAB-DF. A relatora, advogada Ariane Costa Guimarães, considerou que a mudança nas salas de audiência foi benéfica ao devido processo legal.

“Do ponto de vista constitucional, trata-se de medida que buscou a concretização da igualdade, princípio consagrado da Constituição Federal, o qual prevê a mesma distância entre os órgãos estatais de acusação e de defesa, na atuação de suas típicas funções institucionais. Conferiu-se, nesse particular, isonomia na disposição das salas de audiência”, escreveu na resposta à consulta.

De acordo com Ariane, “a distribuição dos lugares na sala de audiência sem nivelação entre os participantes por meio de tablados, mantendo o representante do órgão ministerial à direita do juiz, o da defensoria pública à esquerda e os patronos sucessivamente nos dois lados, está em conformidade com os preceitos constitucionais e legais”. A advogada ainda assinalou que é dever da Comissão de Assuntos Constitucionais da OAB “fiscalizar a implementação geral, célere e efetiva das novas disposições nas salas de audiência no Distrito Federal”.

No Rio Grande do Sul, recentemente, um juiz também determinou a alteração do mobiliário da sala de audiências, para que o representante do Ministério Público sente no mesmo plano da defesa (clique aqui para ler reportagem sobre a alteração). A medida vai ao encontro de um estudo da seccional gaúcha da OAB. A ideia, apresentada pelos advogados e reforçada pelo juiz, não é tirar a prerrogativa histórica do MP de postar-se ao lado esquerdo juiz, mas assegurar direito semelhante ao advogado defensor — de modo que este não fique hierarquicamente inferiorizado na cena do julgamento.

Direito de defesa
Enquanto o tema não é enfrentado definitivamente pelo Supremo ou pelo CNJ, o advogado maranhense Charles Dias, que se retirou do julgamento de seus clientes na cidade de Turiaçu, busca por meio de em recurso ao Superior Tribunal de Justiça, garantir o direito de defender seus clientes no mesmo nível que o Ministério Público.

Depois de deixar o julgamento, o advogado entrou com pedido de Habeas Corpus no Tribunal de Justiça do Maranhão, alegando que seus clientes sofrem cerceamento de defesa. Ao pedido, anexou fotos da disposição da sala de julgamento para mostrar que não poderia, segundo alega, fazer a defesa dos acusados em pé de igualdade com o Ministério Público.

O pedido foi rejeitado pelo TJ maranhense com o argumento de que o Habeas Corpus não é o instrumento adequado para questionar o ato. O advogado insistiu e entrou com recurso para o STJ. Admitido para ser julgado, o processo foi distribuído ao desembargador convocado Vasco Della Giustina.

Charles Dias sustenta que o Supremo já fixou que o Habeas Corpus é, sim, instrumento apto para sanar o problema de seus clientes. Segundo sustenta, o STF decidiu que “para obviar ameaça ou lesão à liberdade de locomoção — por remotas que sejam — há sempre a garantia constitucional do Habeas Corpus”. No recurso ao STJ, o advogado pede que seja determinado ao TJ do Maranhão que julgue o Habeas Corpus impetrado em favor de seus clientes.

De acordo com o advogado, não há como negar que houve cerceamento de defesa em seu caso. “Ainda mais como foi disposta a sala para o julgamento na ocasião. Até nas mesas em que foram colocadas a acusação e a defesa estava presente uma simbologia importante. Para o juiz e o promotor, mesas de professores. Para os advogados, carteiras de alunos. Ou seja, o juiz e o promotor ensinam. E os advogados aprendem”, argumenta.

O presidente nacional da OAB, Ophir Cavalcante Junior, contou que a Comissão Nacional de Prerrogativas da Ordem está estudando o assunto e deve, em breve, tomar medidas para garantir que membros do MP e da advocacia fiquem no mesmo plano nas salas de audiências e julgamentos. “A regra legal é que não há hierarquia entre os atores do processo. Não pode haver subserviência. Pode parecer uma questão menor, mas efetivamente a defesa fica inferiorizada aos olhos da sociedade e da parte quando está em um nível abaixo ao da acusação”, opina.

Ophir afirma que não vê problemas em o representante do Ministério Público sentar no mesmo plano do juiz quando ele não é parte no processo. Mas, quando é parte, deve ocupar o mesmo patamar que os defensores. “A realidade, o cotidiano dos foros tem mostrado que a proximidade do promotor com o juiz é muito maior do que a da parte, do advogado, com o magistrado. Logo, a possibilidade de que a tese da acusação seja acolhida é maior. Essa desproporção é que se quer corrigir”, conclui o presidente da OAB.

Para a juíza de Direito em São Paulo Kenarik Boujikian Felippe, ex-presidente da Associação dos Juízes para a Democracia, parece surreal que uma discussão como essa tenha que ocupar a agenda do Supremo Tribunal Federal para ser pacificada. “Não existem dúvidas de que as partes têm que ter tratamento igualitário. Não entendo como alguém pode se insurgir contra isso. O bom senso teria de bastar para resolver a questão”, afirma Kenarik.

De acordo com a juíza, o argumento de que o Ministério Público também exerce uma espécie de magistratura é equivocado: “Não exercemos os mesmos papéis. As atribuições do MP não são equivalentes nem similares às do Poder Judiciário. O Judiciário é um poder de Estado. MP e advocacia são essenciais à Justiça, mas não são poderes de Estado”.

Kenarik reconhece a importância da discussão do ponto de vista da simbologia, mas entende que a solução é simples e encontra abrigo no que determina a Constituição Federal, que o princípio da igualdade deve prevalecer no curso do processo e em seu julgamento. “Definitivamente, essa discussão não deveria chegar ao Supremo Tribunal Federal”, afirma, inconformada, a juíza.P

POLÍTICA PÚBLICA BASEADA NA RAÇA ESTIMULA DIFERENÇA

Por Roberta Fragoso Menezes Kaufmann

Estudo recente publicado pelo IBGE objetiva passar a imagem de que, apesar de a cor influenciar bastante a vida dos cidadãos brasileiros, a maioria não tem dificuldade em reconhecer a própria raça. Em um momento em que todos se chocam com a notícia de que já existem diversos Tribunais Raciais em funcionamento no Brasil, esta notícia não é obra do acaso. Objetiva-se minimizar as dificuldades existentes no Brasil sobre a identificação da raça.

Sobre a impossibilidade de determinar quem é negro no Brasil, destaco relevante estudo conduzido por Sérgio Pena, da UFMG, denominado Retrato Molecular do Brasil. Na ocasião, chegou-se à conclusão de que, além dos indivíduos autodeclarados pretos e pardos, existem no Brasil mais 30% de afrodescendentes, dentre aqueles que se declararam brancos, por conterem no DNA a ancestralidade africana, principalmente a materna, devido à intensa miscigenação e independentemente do fenótipo apresentado. O trabalho realizado por Pena questiona as estatísticas sobre a composição étnica do País. Para ele, os números seriam imprecisos pois muitos dos que se declararam brancos migrariam para a categoria de mestiços, se o DNA fosse decodificado.

Sobre a possibilidade de se determinar cientificamente um grau mínimo de africanidade para cada brasileiro, a ponto de legitimar os descendentes de africanos a serem beneficiados por políticas afirmativas, a explicação de Pena é deveras precisa, e, por isso, merece a transcrição: “a ancestralidade, após os avanços do Projeto Genoma Humano, pode ser quantificada objetivamente. Implementamos em nosso laboratório exames de marcadores de DNA que permitem calcular um Índice de Ancestralidade Africana, ou seja, estimar, para cada genoma humano, qual proporção se originou na África. Recentemente publicamos (...) um estudo demonstrando que no Brasil, em nível individual, a cor de um indivíduo tem muito baixa correlação com o Índice de Ancestralidade Africana. Isso quer dizer que, em nosso país, a classificação morfológica como branco, preto ou pardo significa pouco em termos genômicos e geográficos, embora a aparência física seja muito valorizada socialmente. A interpretação dos achados de nossa pesquisa é que a população brasileira atingiu um nível muito elevado de mistura gênica. A esmagadora maioria dos brasileiros tem algum grau de ancestralidade genômica africana. Poderia a nossa nova capacidade de quantificar objetivamente, através de estudos genômicos, o grau de ancestralidade africana para cada indivíduo fornecer um critério científico para avaliar a afrodescendência? A minha resposta é um enfático não. Tentar usar testes genômicos de DNA para tal, seria impor critérios qualitativos a uma variável que é essencialmente quantitativa e contínua. A definição sobre quem é negro ou afro-descendente no Brasil terá forçosamente de ser resolvida na arena política. Do ponto de vista biológico, a pergunta nem faz sentido”.

Confirma-se assim a tese de Gilberto Freyre de que a população brasileira é uma mistura do europeu, do índio e do africano. Dessa forma, a intensa miscigenação brasileira termina por eliminar a eficácia de programas afirmativos nos quais a raça funcione como critério exclusivo de integração, porque não há como determinar quem, efetivamente, é negro no Brasil.

Retroceder à utilização de critérios objetivos (exame de sangue) para determinar o grau de ancestralidade, por outro lado, parece-nos totalmente fora de consideração. A política afirmativa que vier a ser adotada no Brasil tem de vencer o desafio da legitimidade e ser adequada, exigível (não haver um meio menos ofensivo aos direitos fundamentais) e ter bônus maior do que o ônus em relação à implementação da medida (princípio da proporcionalidade em sentido estrito).

Para se tentar flexibilizar esse debate praticamente insolúvel — saber quem é negro no Brasil —, ao mesmo tempo em que também se procura combater outra barreira, talvez a principal a impedir a ascensão do negro, faz-se necessário um novo modelo de ações afirmativas, baseado em critérios próprios para a realidade brasileira. Propõe-se, assim, a conjugação de dois fatores: escola pública e renda mínima, visando a garantir maior legitimidade ao debate, a menor possibilidade de utilização da má-fé, à diminuição da possibilidade de discriminação reversa e, finalmente, ao melhor atendimento aos princípios da igualdade e da proporcionalidade, integrando maciçamente os negros, pois estes são 70% dos pobres do Brasil, sem correr o risco da racialização do país.

INSALUBRIDADE - EXCESSO DE CALOR DÁ INSALUBRIDADE A CORTADOR DE CANA

CÉU ABERTO

Excesso de calor dá insalubridade a cortador de cana

cana-de-açúcar - Valter Campanato/Agência Brasil

As altas temperaturas de um canavial, que ocorre em virtude da dificultade de dissipação do calor causado pela rama da planta, fizeram com que o Tribunal Superior do Trabalho concedesse ao trabalhador de um canavial o direito à insalubridade.

A ação já havia sido favorável ao cortador de cana no Tribunal Regional do Trabalho. Uma usina interpôs recurso, no TST, alegando que não existe norma legal para o pagamento de insalubridade a trabalhadores rurais que trabalham a céu aberto, e também que a concessão do adicional era contrária à Orientação Jurisprudencial 173 da SDI-1, que trata da exposição aos raios solares. De acordo com essa OJ, “em face da ausência de previsão legal, indevido o adicional de insalubridade ao trabalhador em atividade a céu aberto”.

No entanto, para o ministro José Roberto Freire Pimenta, relator do recurso na 2ª Turma, o acórdão do TRT registra que, conforme as provas dos autos, a insalubridade não se caracterizou, no caso, pela “simples exposição aos efeitos dos raios solares, mas do excesso de calor em ambiente de elevadas temperaturas, em cultura em que sua dissipação torna-se mais difícil que em outras lavouras”. Não era o caso, portanto, de “ausência de norma legal”, pois a Norma Regulamentadora 15 (NR 15) do Ministério do Trabalho e Emprego prevê, em seu Anexo 3, os limites de tolerância para exposição ao calor. Não era, também, o caso de contrariedade à OJ 173, que se refere especificamente aos raios solares.

O TRT-PR, ao manter a sentença de primeiro grau, baseou-se em laudo técnico comprovando que, no caso dos canaviais, a dissipação do calor é dificultada pela rama da planta, e a temperatura ali excede em muitos graus os limites considerados razoáveis para o ser humano. Além disso, a fuligem, resultado do corte da cana-de-açúcar com a palha já queimada, contém alta concentração de partículas tóxicas, com odor forte, e provoca doenças respiratórias como a pneumonia. O TRT concluiu que ficou “devidamente comprovado” que o cortador de cana trabalhou “em condições insalubres, em grau médio, o que implica o deferimento do adicional de 20%”.

Na votação da 2ª Turma do TST, que não conheceu do recurso da Usina Santa Terezinha contra o pagamento de insalubridade, ficou vencido o ministro Renato de Lacerda Paiva. Com informações da Assessoria de Imprensa do Superior Tribunal do Trabalho.

Revista Consultor Jurídico, 27 de julho de 2011

quarta-feira, 27 de julho de 2011

FIM DA PRISÃO DO DEPOSITÁRIO INFIEL NÃO O DEIXA IMPUNE

Por Priscila Arone Coutinho

Grande parte das negociações ligadas à cadeia do agronegócio tem o penhor agrícola como garantia ao adimplemento da dívida, nomeando-se um depositário fiel do bem oferecido em garantia. Daí a importância de um estudo mais apurado sobre o tema.

Até a consolidação do entendimento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que o Pacto de São José da Costa Rica fora incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro com status de norma supralegal, de forma a restringir a prisão civil por dívida ao descumprimento voluntário e inescusável de prestação alimentícia, muito se discutia a respeito da legalidade da prisão civil do depositário infiel.

Alguns anos atrás, após a citação do devedor que simultaneamente figurasse como depositário de bens dados em penhor, se este não pagasse o débito ou depositasse a coisa empenhada, o juiz estava autorizado a determinar a prisão do devedor como depositário infiel - entendimento muitas vezes confirmado pelos tribunais.

Após a edição da Súmula Vinculante 25 do STF, restou pacificada a impossibilidade de decretação de prisão civil ao depositário infiel. No entanto, no âmbito civil, as demais consequências para o depositário infiel continuam valendo, como o dever de indenizar o credor caso haja a perda ou má guarda do bem objeto do depósito. Para tanto, deve ser comprovado que o depositário não foi diligente com o bem guardado ou não o restituiu quando solicitado pelo credor.

Contudo, pode o depositário escusar-se da obrigação de entrega do bem, desde que configurada a ocorrência de caso fortuito e força maior, cabendo ao depositário o ônus da prova.

Nos contratos garantidos pelo penhor agrícola, que têm por objeto safras pendentes, em formação ou futuras, muitas são as possibilidades de caso fortuito ou força maior, tais como intempéries e ataque de pragas na lavoura.

Todavia, o entendimento jurisprudencial majoritário deflagra que nas negociações ligadas à cadeia do agronegócio, as hipóteses de caso fortuito e força maior não configuram escusas para o inadimplemento da obrigação, tendo em vista que o risco é inerente ao negócio.

O depositário de commodity agrícola que a tenha desviado ou alienado sem o consentimento do credor, incorre na defraudação do penhor, devendo, além de indenizar o credor, responder pelo crime de estelionato. Dependendo da conduta do depositário ainda existe o risco de prisão no caso de prática de crimes tipificados no ordenamento penal.

Logo, restando comprovado que a pessoa nomeada como fiel depositária vendeu, onerou ou deu em pagamento bens sob sua guarda, poderá além de lhe ser exigida indenização pela perda do bem, responder pelo crime de estelionato.

Este entendimento é compartilhado em diversos julgados, a exemplo de um caso analisado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4 - Apelação Criminal: ACR 8509 RS 2001.04.01.008509-2. Penal. Apelação Criminal. Estelionato do depositário infiel. Sacas de arroz desviadas. Sentença absolutória reformada. Condenação. Substituição da pena privativa de liberdade. Recurso provido).

Contudo, nas hipóteses em que tenha sido indicada uma pessoa jurídica como fiel depositária, sobre quem recai a responsabilização criminal? E no âmbito civil, poder-se-ia atingir o patrimônio dos sócios para o pagamento de eventual indenização?

Na esfera penal, encontramos grande divergência tanto na doutrina quanto na jurisprudência a respeito da possibilidade da prática de crime por pessoa jurídica. Nota-se, contudo, que mesmo para os que a admitem, restringem-na à prática de crimes contra a ordem econômica e financeira ou contra a economia popular e contra o meio ambiente, nos termos dos artigos 173, parágrafo 5º, e 225, parágrafo 3º, da Constituição Federal, respectivamente. Portanto, impossível a autoria do crime de estelionato por pessoa jurídica.

Além disso, caso fosse apurada a prática de crime imputando-se a autoria à pessoa jurídica, ser-lhe-ia aplicada pena compatível com a sua natureza jurídica, geralmente de cunho pecuniário, perdendo-se, assim, a força coercitiva de eventual pena privativa de liberdade.

No âmbito civil, em geral é o patrimônio em nome da pessoa jurídica que responde pelos atos por esta praticados. Existem, no entanto, hipóteses legais autorizadoras da desconsideração da personalidade jurídica, de forma a atingir-se o patrimônio pessoal dos sócios para o adimplemento de obrigações assumidas em nome da pessoa jurídica.

Assim, poder-se-ia ter decretada judicialmente a desconsideração da personalidade jurídica caso reste configurado o abuso de direito, o excesso de poder, a violação ao contrato social ou ao estatuto, a infração à lei e os fatos ou atos ilícitos. Logo, o desvio de commodity pelo fiel depositário configura ato ilícito, autorizador da desconsideração da personalidade jurídica.

Trata-se, porém, de medida excepcional, vale dizer, a regra é que prevaleça a autonomia patrimonial, sendo uma exceção a desconsideração da personalidade jurídica. Portanto, em havendo a intenção de fraudar, muitas das vezes, a pessoa jurídica dilapida seu patrimônio, transferindo-o aos sócios ou terceiros, dificultando o recebimento por parte dos credores.

Desta feita, muito embora exista o permissivo legal de que a pessoa jurídica seja indicada como fiel depositária, convém que os credores optem por eleger pessoas físicas, de forma a ter a possibilidade de cominação de pena de prisão pela prática de estelionato, bem como diminuir o risco quanto ao eventual esvaziamento de patrimônio.

A abolição da prisão civil do ordenamento jurídico brasileiro enfraqueceu a figura do fiel depositário. Contudo, os credores ainda podem se valer de outros argumentos, na esfera penal, já que a Súmula 25 não implica impunidade para o depositário, além de permanecer o dever de indenização. Daí a necessidade de que o credor seja diligente ao eleger o fiel depositário.

Priscila Arone Coutinho é advogada do escritório Luchesi Advogados, especialista em Direito Empresarial e em Direito Processual Civil.

A PENA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ DEVE SER APLICADA PARA A PARTE E NÃO AO SEU ADVOGADO

Dono da pena

Só parte paga multa por litigância de má-fé

A pena por litigância de má-fé deve ser aplicada para a parte e não ao seu advogado. O entendimento é da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Para a corte, o advogado não pode ser punido em um processo em que supostamente é litigante de má-fé, ainda que haja falta profissional. Essa falta deve ser apurada em ação própria e não em processo em que defende um cliente.

No caso, o advogado recorreu ao STJ depois de o Tribunal Regional Federal da 5ª Região o ter responsabilizado por litigância de má-fé e imposto compensação dos honorários e pagamento de multa. No recurso, ele alegou que a responsabilidade não poderia ser dele, pois ele representava partes em um julgamento. Além disso, afirmou que os honorários não poderiam ser pagos, pois eles pertencem aos advogados, nunca às partes.

O relator do caso no STJ, ministro Humberto Martins, concordou com o advogado. Afirmou que a decisão do TRF-5 “não está de acordo com a legislação processual vigente”, pois a multa por litigância de má-fé não pode ser descontada dos honorários, que são exclusivamente devidos aos advogados.

“Conforme expressa determinação legal, eventual condenação do advogado pela litigância de má-fé deve ser apurada em ação própria, e não nos mesmos autos em que defende seu cliente”, definiu. As informações são da Assessoria de Imprensa do STJ.

REsp 1247820

terça-feira, 26 de julho de 2011

REMISSÃO DA PENA: NOVA LEI 12433/11 MUDA FORMA DE CALCULAR A REMISSÃO DA PENA

Por Pedro Canário

Além de criar a possibilidade de redução da pena quando o detento estuda, a Lei 12.433/11, que entrou em vigor em junho, muda a forma de cálculo da diminuição da pena. Desde então, a remição passa a se somar à pena já cumprida, em vez de reduzir o tempo que ainda será cumprido. O novo dispositivo da Lei de Execução Penal, mais benéfico ao réu, pode ter passado despercebido.

A nova lei altera o artigo 128 da LEP. Antes, o artigo previa: "o tempo remido será computado para concessão de livramento condicional e indulto", e o entendimento era de que o tempo de remição deveria ser descontado do restante da pena que se tinha pela frente. Por exemplo, se alguém condenado a um ano de prisão conseguia diminuir sua condenação em um mês, passava a cumprir 11 meses.

O novo texto do artigo 128 afirma que "o tempo remido será computado como pena cumprida, para todos os efeitos". Ou seja, os dias descontados passam a se somar aos dias cumpridos. Então, se alguém condenado a um ano já cumpriu três meses e conseguiu remir a pena em um mês, passa a constar que a pessoa já cumpriu quatro meses. Para o cálculo da progressão de regime, a mudança é um grande benefício para os presos.

Formação da jurisprudência
Quem trouxe essa discussão à pauta do Judiciário foram os advogados Denivaldo Barni e seu filho, Denivaldo Barni Júnior. O primeiro caso de que o pai tem notícia é um Habeas Corpus concedido à Suzane von Richthofen, cliente dos dois, em maio de 2009 — caso que na época teve ampla repercussão na grande imprensa.

Em decisão monocrática, o ministro Og Fernandes, do Superior Tribunal de Justiça, aplicou o entendimento da soma dos dias remidos aos dias cumpridos ao caso de Suzane. Foi uma vitória, segundo Barni. Com base em sua argumentação, desenvolveu-se o fundamento usado para propor a Lei 12.433/11 e a alteração na LEP.

Tese semelhante foi usada em outra defesa, no caso de uma mulher presa em Taubaté (SP). A juíza Sueli Zeraiki de Menezes estendeu o entendimento a todas as demais internas do presídio paulista, pois, segundo a sua decisão, trata-se de medida benéfica de alcance geral.

O caso mais recente é da semana passada, dia 19 de julho. Neste, o desembargador Toledo Neto, relator do Agravo na 3ª Câmara de Direito Criminal do TJ paulista, mudou o seu entendimento com base na nova redação da LEP. "Embora tenha sido o entendimento deste relator o de os dias remidos não constituam pena efetivamente cumprida, a questão passou a ser superada pelo advento da Lei 12.433, de 29 de junho de 2011", escreveu.

Com isso, aceitou o Agravo para considerar como pena efetivamente cumprida os dias remidos pelo réu com trabalho. A decisão foi unânime.

Para Denivaldo Barni, "o silencio da Lei [de Execução Penal] acabou ensejando essa jurisprudência". É, em sua opinião, uma grande conquista da advocacia para os presos brasileiros.

PARCELAMENTO DE DÉBITO TRIBUTÁRIO SUSPENDE PRETENSÃO PUNITIVA E PRESCRIÇÃO

É correta a suspensão da pretensão punitiva – e, por consequência, do prazo de prescrição – contra pessoa física acusada de sonegação fiscal, quando firmado parcelamento do débito tributário. Esse foi o entendimento da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao analisar o caso de contribuinte acusada de redução do Imposto de Renda, com prestação de declarações falsas às autoridades fiscais ao omitir informação de ganhos na alienação de bens e direitos.

A contribuinte, que vinha sendo investigada por suspeita de crime tributário, obteve parcelamento do débito na Secretaria da Receita Federal, de acordo com o artigo 9º da Lei 10.684/03. Diante disso, o Ministério Público opinou pela suspensão da pretensão punitiva do Estado e também pela suspensão do prazo de prescrição do crime. Na primeira instância, o juízo da 12° Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal foi além e decidiu tornar extinta a punibilidade no caso.

O Ministério Público interpôs recurso para anular a decisão de primeira instância, sustentando que, durante o período em que a pessoa física estiver incluída no regime de parcelamento, tanto a pretensão punitiva quanto a prescrição devem ficar suspensas, porém não há motivo para a extinção da punibilidade, que só ocorrerá com o pagamento da última parcela do débito tributário.

O Tribunal Regional Federal da 1° Região (TRF1), ao julgar o recurso, determinou o regular andamento do procedimento investigatório e condicionou a eventual suspensão da pretensão punitiva à posterior propositura da ação penal. A defesa da contribuinte interpôs recurso no STJ, sustentando que não havia justa causa para a investigação, nem para a ação penal à qual ficou sujeita após o julgamento da segunda instância. Para a defesa, a decisão do TRF1 extrapolou o pedido do recurso, caracterizando julgamento extra petita.

A defesa pretendia impedir o prosseguimento do processo investigatório e suspender a pretensão punitiva, assim como o prazo de prescrição, alegando que o parcelamento firmado administrativamente estava sendo regularmente pago. Em seu parecer, o Ministério Público afirmou que, em casos similares, o Estado somente deve punir quando houver inadimplemento do contribuinte no refinanciamento da dívida.

A relatora do caso na Sexta Turma, ministra Maria Thereza de Assis Moura, reconheceu que houve julgamento extra petita e que a posição adotada pelo TRF1 divergiu do entendimento do STJ. Segundo ela, com o parcelamento do débito tributário, devem ser suspensas a pretensão punitiva e a prescrição do crime, “pois o escopo maior da norma penal é o pagamento do tributo”.

A ministra afirmou ainda que aguardar a decisão da administração tributária, à qual cabe fazer o lançamento definitivo, “não importa violação à independência das esferas administrativa e judiciária”. Com a decisão unânime, o procedimento investigatório foi suspenso até a quitação do parcelamento do débito concedido administrativamente.

SILÊNCIO DOS BONS

Em decisões, STF usurpa papel do Legislativo

Por Luiz Roberto Sabbato

O decano da família completa 94 anos em 2011. É militar reformado e seu pai era desembargador do estado do Pará. Quando ainda na ativa, confessava o filho ao pai que o regime militar pelo qual passava o Brasil o incomodava. Causava-lhe repugnância o constrangimento dos idealistas. Obtemperava o velho juiz que a ditadura mais severa não estava na disciplina rigorosa dos militares. Podia estar no desmando da aristocracia quando subsidiada por meios legais de proteção, mas inconciliáveis com a liberdade e com a dignidade do ser humano. De temperança a temperança dizia o magistrado ao militar que, fosse do poder ao Judiciário, o autoritarismo seria insuportável.

O Estado de 25 de agosto de 2008 colheu a preocupação do senador Garibaldi Alves ao afirmar que o Supremo se sentia “no direito de não apenas interpretar a lei, mas de fazer a lei”. A relação entre os três poderes não era de tensão, mas de “extrema-unção”, dizia o parlamentar. “Ou o Legislativo se levanta e reage, ou se invade a competência dele”.

Foi o próprio Congresso Nacional, porém, que deu início ao despotismo da oligarquia que há uma década manda e desmanda no país. Tomado o Executivo, era preciso ganhar o Legislativo, tarefa confiada aos protagonistas do “mensalão”. Isso concluído, era preciso ganhar o Judiciário, tarefa operacionalizada com inspiração nos “politburos” da extinta União Soviética, deslocando a administração de um dos poderes do Estado ao grupo oligárquico que passou a controlá-lo. Assim nascia o Conselho Nacional de Justiça, a exemplo de outros da mesma origem que se disseminaram no país, só não logrando instalar-se, por obstinada resistência da Imprensa, o Conselho Federal de Jornalismo.

O mais alto órgão do Judiciário da nação passou a ter o comando da nova instituição. E ele mesmo afirmou-lhe a constitucionalidade, pese a cláusula pétrea da Constituição Federal proclamando a independência dos poderes entre si (artigo 2º). Na França, o controle externo do Judiciário só foi possível porque a própria Carta Magna daquele país, em seu artigo 65, só institui o Executivo e o Legislativo como poderes. Não o Judiciário.

Surgia, então, a primeira lei, o decreto judicial amordaçando quem ousasse interpretar a Constituição Brasileira de forma diversa da entendida pelo segmento oligárquico encarregado de dar a última palavra.

Seguiram-se outras “leis” para o desconforto de quem não participa da roda dos amigos do rei.

“Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”, diz a Constituição Federal no artigo 5º, inciso LXVII. Mas há “lei” em contrário: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito” (STF, Súmula Vinculante 25). Concordo que a prisão de quem compra automóvel e não paga é medida excessiva. Mas para extirpar o excesso é necessário mudar a Constituição.

“A República Federativa do Brasil” tem como fundamento “a dignidade da pessoa humana” (artigo 1º, inciso IV), não a expondo, certamente, às tentações dos estupefacientes. Hoje a “Marcha da Maconha”. Amanhã poderá ser a “Marcha do Nazismo”.

“Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (artigo 226, parágrafo 3º). É justo que a união fática e societária entre dois homens ou entre duas mulheres mereça proteção do Estado, mas a Constituição não autoriza que seja de tal forma reconhecida, como se heterossexual fosse, para ser obrigatoriamente inscrita em cartório de registro civil com força de casamento.

A independência e a harmonia entre os poderes (artigo 1º), enfim, não permitiria desautorizar a manifestação técnica do Judiciário, recomendando a extradição de Cesare Battisti por ter cometido nada menos que um crime comum. À nação pareceu que a ordem em contrário foi de descriminalizar o homicídio, tal como acontece com a maconha.

Alerta, senhores parlamentares.

O silêncio dos bons não resistirá às bravatas dos maus e a reação tardia não deterá a continuidade do domínio oligárquico por décadas. Já se passou uma, e outras várias virão.

“Quanto maior o número de representantes do clero e da burguesia reacionárias que tivermos sucesso em fuzilar nessa ocasião, melhor, porque a essa audiência é necessário ensinar, precisamente agora, a lição de jamais ousar pensar em resistência, pelo motivo que for, por várias décadas” (Carta de 19 de março de 1922, original arquivado no Instituto Lênin de Londres e cópia arquivada no congresso inglês – Library of Congress).

Luiz Roberto Sabbato é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

RECURSOS EM PROCESSOS ADMINISTRATIVOS FISCAIS NÃO PODEM ACABAR

JUSTIÇA TRIBUTÁRIA

Os recursos administrativos não podem acabar
Por Raul Haidar

Quando a administração fazendária instituiu colegiados destinados a julgar recursos de contribuintes contra autos de infração estava criando meios para reduzir custos e evitar prejuízos para os cofres públicos.

Esses colegiados recebem quase sempre o nome de conselhos e são compostos por representantes do fisco e dos contribuintes. Aqueles são geralmente agentes fiscais com formação jurídica, enquanto advogados indicados por sindicatos, associações e pela OAB representam os contribuintes.

Além desses colegiados existem os órgãos de julgamento de primeira instância, muitas vezes um julgador singular cujas decisões sujeitam-se a novo exame sempre que sejam favoráveis ao contribuinte.

A principal finalidade desses órgãos é reparar eventuais enganos cometidos pelo fisco quando se lavram autos de infração.

Ao reconhecer o erro do servidor que impôs determinada sanção ao contribuinte e assim resolver pelo arquivamento do processo administrativo, o órgão julgador economiza os custos judiciais de uma demanda e reduz a possibilidade de uma condenação em honorários de advogado.

Esses julgamentos chamados administrativos já foram muito relevantes, quando autuações de expressivos valores foram declaradas insubsistentes, evitando-se que as demandas chegassem ao judiciário, onde os prejuízos para o tesouro poderiam ser de grande monta.

Todavia, vem se tornando comuns erros lamentáveis de diversos julgamentos administrativos, seja através de decisões contra a evidente prova dos autos, seja por meio de interpretação flagrantemente em desacordo com as normas legais vigentes ou na contramão da jurisprudência já pacificada dos tribunais superiores.

Levando-se em conta que os integrantes desses órgãos julgadores são ou devem ser profissionais competentes e conhecedores das questões tributárias, esses julgamentos totalmente equivocados causam-nos enorme perplexidade. Ou de repente os julgadores esqueceram-se do que sabem, ou pior ainda, sofrem alguma pressão para decidir sempre a favor do fisco.

Nas publicações de decisões do TIT, do CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) , do CMT (Conselho Municipal de Tributos de São Paulo) e por praticamente todas as unidades da federação, verificamos que o percentual de decisões a favor dos contribuintes não chega a 10%.

Note-se que mesmo processos onde o contribuinte foi representado por renomados advogados tributaristas, o resultado foi sempre assim. Eis aí uma nova forma de democracia: igualar a todos, tenham ou não boas defesas, atirando-os à vala comum dos que são culpados sem que se admita prova em contrário.

Já vimos um julgamento em que foi mantida multa por falta de emissão de notas fiscais, embora o contribuinte tenha juntado aos autos cópias de todas as notas que emitiu. Como o contribuinte tinha sede em outro município, o CMT entendeu que as notas emitidas contrariavam uma lei da física: ocupavam lugar no espaço, mas não existiam. Isso tem outro nome: decidir contra a verdade dos autos.

Por outro lado, o TIT decidiu que pode ser autuado por não entregar documentos o contribuinte que provou que os documentos haviam sido apreendidos pelo fisco federal. Isso também tem nome: prejudicar deliberadamente alguém. Ou seja: a famosa sacanagem.

Isso já está causando prejuízo aos cofres públicos. Uma empresa da área de equipamentos médicos que sofreu multa de ICMS completamente errada, não apresentou defesa, preferindo ingressar direto em juízo. Ganhou a ação e o fisco (dinheiro do povo, lembram-se?) vai ter que pagar cerca de vinte mil reais de honorários, além das custas do processo.

Na área federal, uma empresa importadora que foi multada indevidamente e ganhou na esfera administrativa o recurso, vai processar a União pelos prejuízos que sofreu. Aqui a fatura vai ser maior: cerca de 15 milhões de reais.

Diante desse quadro todo, parece-nos que os órgãos de julgamento administrativo devem ser reformulados ou extintos. Por exemplo: não nomear quem não seja realmente especialista em tributos. Não manter no quadro aqueles membros, juizes ou conselheiros, que nunca aparecem nos julgamentos, que nunca devolvem os processos, mas que tomaram posse apenas para enfeitar o curriculum e desfilar seu “status” como se fosse titulo de nobreza.

Se não for possível reformular o órgão e transformá-lo em algo útil, sério, respeitável por sua independência , então é melhor fechar. E criar varas especializadas de contencioso tributário, como existem as de menores, falência, família etc.

Em resumo: ou se faz um julgamento administrativo bem feito, ou encerra-se de vez a atividade. Afinal, fazer justiça não é brincadeirra.

sábado, 23 de julho de 2011

QUEM PAGA A CONTA DOS ABUSOS COMETIDOS PELA POLÍCIA FEDERAL

Por Josias Fernandes Alves

“Como podia a Rede Globo divulgar que a Polícia Federal tinha desbaratado uma ‘organização criminosa’, quando estava em face de uma operação que deveria ser executada em ‘segredo de justiça (...)”. O questionamento é do ex-desembargador José Eduardo Carreira Alvim, autor do livro Operação Hurricane: um juiz no olho do furacão (Geração Editorial, 378 páginas, 39,90 reais), lançado no mês passado.

O livro é um rosário de mágoas e graves acusações do juiz contra ministros do Supremo Tribunal Federal, membros do Ministério Público Federal e delegados da Polícia Federal, responsáveis pelas investigações, que ele intitula de “trama armada” para afastá-lo da carreira. A operação policial, deflagrada em abril de 2007, foi anunciada como um “marco” no combate à corrupção no País.

Em vários trechos da obra, o juiz critica a exploração do episódio pelos veículos de comunicação. “Fui preso desnecessariamente e submetido a um escárnio igualmente desnecessário da mídia, que me julgou e me condenou por antecipação, antes mesmo de apurados os fatos, sendo libertado nove dias depois de encarcerado, sem que nenhuma nova diligência se mostrasse necessária, mas depois de ter sido um ator involuntário dos shows da Rede Globo e da mídia nacional por semanas inteiras.” (p. 116)

Carreira Alvim foi preso em abril de 2007, com mais duas dezenas de pessoas, entre empresários, advogados, policiais e outro desembargador do Tribunal Regional Federal, sediado no Rio de Janeiro. O grupo foi acusado de fazer parte de um esquema de jogo ilegal e de cometer crimes contra a administração pública, incluindo a venda de decisões judiciais para manter o funcionamento de casas de jogo de bingo. Ele foi aposentado compulsoriamente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e há quatro anos aguarda julgamento do processo no Supremo Tribunal Federal.

Ainda que se compreenda sua indignação como investigado, que se sentiu injustiçado, sem entrar no mérito das acusações, algumas das críticas do juiz merecem atenção. O vazamento de dados sobre investigações sigilosas e o sensacionalismo das prisões foi uma constante nos últimos anos, em dezenas de grandes operações desencadeadas pela PF, divulgadas à exaustão pelo noticiário.

Os holofotes da mídia sobre as ações da PF, além de render resultados positivos e fortalecer a imagem institucional do órgão, também passaram a representar risco de danos, morais e materiais, à imagem de investigados, expostos pela polícia à mídia, e posteriormente inocentados pela Justiça.

Foi o que ocorreu com o empresário Roberto Carlos Castagnaro, preso e acusado de lavagem de dinheiro e associação para o tráfico de drogas em 2006, durante a “Operação Zapata”. Em abril, a Justiça Federal de Santa Catarina condenou a União a pagar R$ 50 mil, a título de indenização por danos morais.

Na sentença, o juiz federal Nelson Gustavo Mesquita Ribeiro Alves observou que “apesar de toda a exposição midiática negativa sofrida pelo autor, o Ministério Público Federal não encontrou elementos probatórios da prática do crime de lavagem de dinheiro e pugnou pela sua absolvição”. Ele também destacou que a imprensa teve acesso às investigações que culminaram com a prisão do empresário, “sendo permitido, inclusive, o levantamento fotográfico dos bens apreendidos”. O magistrado também lembrou que a maioria das reportagens que divulgaram informações sobre o inquérito, que deveria ser sigiloso, citou como fonte a própria Polícia Federal.

Há casos ainda mais graves, de pessoas sem qualquer envolvimento com fatos ilícitos, que chegaram a ser confundidas com outros alvos da polícia. Como do empresário Hugo Sterman Filho, preso indevidamente pela Polícia Federal na Operação Anaconda, deflagrada em 2003. Ele foi confundido com outra pessoa, com prenome igual, e acabou ficando preso por 11 dias. Em 2007, a Justiça Federal de São Paulo condenou a União ao pagamento no valor de R$ 500 mil, de indenização por danos morais ao empresário.

Outro caso de prisão indevida foi o do engenheiro Antônio Carlos Hummel, diretor de Florestas do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), preso em 2005, durante a Operação Curupira, com outras 110 pessoas acusadas de integrar um esquema de desmatamento e extração ilegal de madeira. Sua prisão foi pedida pelo Ministério Público Federal, que não apresentou provas contra ele. Embora a própria PF também não tivesse encontrado provas que o incriminassem, o servidor foi algemado e levado de Brasília para Cuiabá (MT), onde ficou preso por cinco dias.

Embora os dirigentes da PF informem que não há dados precisos sobre o número de ações judiciais, sabe-se que há dezenas de pedidos de condenação da União por danos morais, em virtude de erros e excessos cometidos pelos coordenadores das operações, quase sempre no afã de atrair a atenção da mídia.

O delegado Paulo Lacerda, nomeado para o cargo de diretor-geral da PF, em 2003, no primeiro mandato do presidente Lula, em entrevista concedida em 2006, explicou que a decisão de mudar a relação com a mídia e promover o que chamou de “superexposição institucional” foi motivada pela imagem que os membros do novo governo petista tinham do órgão: de uma “caixa preta”. Já em seu discurso de posse, o delegado Lacerda anunciou como prioridade o combate à corrupção e sua intenção de apurar com rigor eventuais desvios dos servidores da própria corporação.

Esta nova metodologia da Polícia Federal, de fazer investigações mais completas e pedir a prisão de um grande número de pessoas, com a realização de sucessivas operações (geralmente batizadas com nomes de forte apelo midiático) foi inaugurada com a “Operação Sucuri”, deflagrada em Foz do Iguaçu, em março de 2003. Apesar de o inquérito tramitar em segredo de justiça, a ação foi feita com estardalhaço, culminando na prisão de 44 pessoas, entre elas 22 policiais federais, acusados de facilitar o contrabando na fronteira.

À época, um delegado da própria PF, em artigo publicado no site da Federação Nacional dos Policiais Federais, afirmou que a Operação Sucuri teria atendido o objetivo de promoção pessoal do então chefe da Delegacia da PF em Foz do Iguaçu, o delegado Joaquim Mesquita, que seria conhecido pelo fato de ser “dado a produzir factóides para garantir espaço assíduo nos noticiários”. Hoje ele é superintendente regional da PF em Goiás.

Quanto aos policiais investigados, muitos ficaram afastados do serviço durante sete anos, por força de processos disciplinares. A maioria deles foi absolvida no âmbito administrativo, por falta de provas, e voltou ao serviço, no ano passado. Alguns estão aguardando o desfecho dos processos criminais para ingressar com ação judicial contra a União, por danos morais.

Em outubro de 2003, foi a vez da “Operação Anaconda”, uma investigação que colheu indícios, através de escutas telefônicas, de negociações entre criminosos e membros do Judiciário. A Anaconda foi a que causou a maior repercussão e talvez as maiores polêmicas, tanto pela forma e conteúdo das informações divulgadas oficialmente, quanto aquelas “vazadas” à imprensa. Os “vazamentos” passaram a ser rotina na maioria das operações ditas sigilosas.

O advogado Romualdo Galvão Dias, então corregedor de ética e disciplina da OAB/SP, em artigo intitulado “Anaconda ou cobra cega” fez contundentes críticas à operação: “Aquilo que foi vendido à opinião pública brasileira como uma ‘mega-operação’ da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, ‘uma investigação como jamais vista na história, tem se revelado apenas um amontoado de trapalhadas, prisões injustas, acusações sem provas e linchamento moral de inocentes”.

Dezenas de operações, em todo o país, tornaram-se sucesso de público e de crítica e ganharam espaço privilegiado nos telejornais em horário nobre. A opinião pública vibrou com a divulgação de diálogos comprometedores, captados em interceptações telefônicas, ou com o desfile de pessoas algemadas, transportadas nas viaturas ostensivas da PF, principalmente quando os presos eram políticos, altos funcionários públicos e empresários, cujo perfil peculiar da “clientela” habitual das notícias policiais funcionava como atrativo adicional para a mídia e sua audiência.

Com freqüência, os policiais federais envolvidos nas operações – cercadas de absoluto sigilo – foram surpreendidos com a presença de jornalistas nos locais de cumprimento de mandados de busca e prisão, cujos endereços só foram conhecidos pelos policiais horas antes da deflagração das operações. Foi o que ocorreu na Operação Satiagraha.

Deflagrada em julho de 2008, a Satiagraha investigou as atividades de uma suposta quadrilha comandada pelo banqueiro Daniel Dantas, dono do grupo Opportunity, cuja finalidade seria desviar verbas públicas.

A operação pode ser apontada como o ápice da espetacularização das operações da PF. Seu coordenador, delegado Protógenes Queiroz, ficou famoso pelos métodos pouco ortodoxos empregados na investigação e pelo estilo egocêntrico, que o tornou vedete da Satiagraha. O delegado soube aproveitar os holofotes da mídia e elegeu-se deputado federal de São Paulo, ainda que com o imprescindível empurrão dos votos do palhaço Tiririca.

As imagens exibidas pela TV da prisão do falecido Celso Pitta, ex-prefeito de São Paulo, ainda de pijama, na porta de casa, tornaram-se emblemáticas da exposição abusiva das imagens de investigados, cuja prisão foi feita pessoalmente pelo delegado Protógenes.

O delegado acabou sendo condenado pela Justiça Federal, juntamente com um escrivão de sua equipe, por violação de sigilo funcional, pelo vazamento de informações sobre as investigações, e também por fraude processual. Parece anedota, mas após a instauração do inquérito contra Protógenes, para apurar o vazamento de dados sigilosos da Operação Satiagraha, seus advogados pediram a abertura de outro inquérito, para apurar “o vazamento do vazamento”.

Na sentença, proferida em novembro do ano passado, o juiz Ali Mazloum concluiu que informações sigilosas repassadas a jornalistas durante e na véspera da deflagração da operação configuram nos crimes e condenou Protógenes e o escrivão nas penas de prisão, perda dos cargos públicos e multas de R$ 100 mil e R$ 50 mil, a título de “reparação dos danos morais causados à coletividade”. O recurso apresentado pelo delegado/deputado atualmente tramita no STF.

A edição da polêmica Súmula Vinculante nº 11, aprovada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em agosto de 2008, que restringiu o uso de algemas a casos excepcionais, foi uma clara resposta do presidente daquela Corte, Gilmar Mendes, crítico contumaz do “modelo midiático da PF estabelecido a partir da gestão de Paulo Lacerda”.

Oito anos após a primeira operação policial da nova fase de “superexposição institucional”, implantada pelo delegado Paulo Lacerda, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em junho, anulou as provas obtidas pela Operação Satiagraha, que resultou na condenação por corrupção, a 10 anos de prisão, do banqueiro Daniel Dantas, dono do grupo Opportunity. A 5.ª Turma do STJ concluiu que a participação de servidores da Agência Nacional de Inteligência (Abin) nas investigações foi ilegal.

Por ironia, o acesso informal de integrantes da agência a dados sigilosos da Satiagraha foi autorizado pelo ex-diretor da PF, o mesmo delegado Paulo Lacerda, que ocupava o cargo de diretor da Abin. O acesso às informações sob sigilo, por parte de 76 agentes da Abin foi feita à revelia da Justiça e sem o conhecimento do então diretor-geral da PF, Luiz Fernando Correa, que inclusive sucedeu Paulo Lacerda no comando da instituição. Após o episódio, Lacerda deixou a direção da Abin, mas acabou premiado com o cargo de adido policial, em Portugal.

De acordo com relatório oficial da própria PF, encaminhado em 2008 ao Congresso, a Operação Satiagraha, custou R$ 466 mil aos cofres públicos. O documento confidencial (mas também vazado à imprensa), produzido pela Diretoria de Combate ao Crime Organizado, revelou que até então nenhuma outra missão da PF havia tido custo tão alto e mobilizado tantos agentes e delegados na fase de apuração e de execução, quando são cumpridos os mandados judiciais de buscas e prisões.

Leis não faltam para disciplinar a matéria. A Constituição Federal prevê garantias para preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral por sua violação, assim como reconhece a presunção de inocência das pessoas. O próprio inquérito policial, os termos do art. 20 do Código de Processo Penal, tem caráter sigiloso, cabendo à autoridade assegurar “o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”. A restrição da divulgação dos fatos à imprensa visa não apenas a melhor elucidação do caso, mas também preservar os direitos relativos à personalidade dos envolvidos. A exposição de presos ao público, contra a sua vontade, também é expressamente vedada em outros dispositivos legais.

As diretrizes internas da política de comunicação social da PF, cuja atualização coincidiu com o período que as ações do órgão passaram a ter maior projeção na mídia, também foram solenemente ignoradas na maior parte das operações. A Instrução Normativa nº 006/DG/DPF, de 26/8/04, detalha várias condutas, que deveriam ser adotadas na divulgação das operações, que se fossem observadas teriam evitado a maioria das ações judiciais. Dentre outras, recomenda se evitar a apresentação detalhada de documentos arrecadados ou apreendidos que possam identificar pessoas envolvidas ou investigadas, bem como a exposição de presos, salvo quando estes expressamente autorizarem. Também proíbe a divulgação dos meios empregados na investigação policial.

A IN também prevê que a divulgação de informações, sempre que possível, deveria ser feita pelo representante da comunicação social designado pelo dirigente da unidade local. Contudo, na maioria das unidades da PF, os servidores indicados não têm qualquer formação ou treinamento específico na área ou acumulam as atividades do setor com outras funções. Na prática, a assessoria de comunicação foi feita para não funcionar. O desinteresse dos gestores por área tão importante para a imagem da instituição tem suas razões.

Permite que autoridades policiais usem e abusem de seus nomes e imagens para promoção pessoal, numa clara afronta às regras que disciplinam as ações de comunicação do Poder Executivo Federal, prevista em decreto. O uso abusivo dos veículos de comunicação para “marketing” pessoal tem sido a regra de conduta (com raras exceções) de dirigentes do órgão e delegados que estão à frente dessa “grandes operações” ou de investigações de maior interesse dos telejornais.

Quanto às condenações sofridas pela União por danos morais ou prejuízos nos gastos milionários de operações anuladas, não se sabe se os administradores da PF tenham tomado alguma providência para responsabilizar os servidores que causaram prejuízos ao erário ou que causaram danos a terceiros, através do direito de regresso contra os responsáveis, nos casos de dolo ou culpa, como prevê o art. 37 da Constituição Federal.

Os delegados das corregedorias da PF costumam ser mais rigorosos quando se trata de instaurar procedimentos disciplinares para responsabilizar, punir e promover a cobrança, por exemplo, de prejuízos com pequenos reparos de viaturas oficiais, decorrentes de acidente de trânsito, em serviço, principalmente quando agentes e escrivães são os motoristas.

Em relação aos prejuízos mais vultosos, causados por abusos ou vedetismo de alguns, para responder à pergunta do título, a fatura fica por conta dos cofres da viúva, para usar a expressão do jornalista Elio Gaspari, numa referência ao dinheiro público.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

MUDANÇA DE PARADIGMA SOBRE INDÚSTRIA DE CIGARRO

Por Vitor Vilela Guglinski

Recentemente, a justiça paulista decidiu mais um caso envolvendo a responsabilização da indústria do tabaco. A Revista Consultor Jurídico noticiou, no dia 26 de maio de 2011, a decisão proferida pela Juíza Fernanda Gomes Camacho, no processo nº 583.00.1995.523167-5, que tramita na 19ª Vara Cível de São Paulo (veja a íntegra da notícia em: http://www.conjur.com.br/2011-mai-26/juiza-nega-indenizacao-bilionaria-associacao-fumantes).

Mais uma vez, o Judiciário afastou a pretensão de pessoas vitimadas pelos efeitos deletérios do fumo. No caso, trata-se de uma Ação Coletiva movida pela Associação de Defesa da Saúde do Fumante (Adesf) contra as fabricas de cigarros Souza Cruz e Philip Morris do Brasil. Dentre os argumentos que fundamentara a decisão, a MM. Juíza destacou que:

1. “O consumo de cigarros é mero fator de risco (probabilidade) de diversas doenças e não causa necessária”;

2. “a inexistência de alertas sobre os malefícios do consumo do cigarro nas embalagens e nas peças publicitárias, quando não havia exigência legal de tal advertência, não comporta responsabilização das rés”;

3. “É fato notório, há décadas, que o cigarro é prejudicial à saúde do fumante”;

4.“Embora seu consumo cause riscos à saúde, não há proibição de sua produção e comercialização. Ao contrário, o comércio de cigarros é atividade lícita, permitida em nosso ordenamento”.

Deixando de fora a questão da prescrição quinquenal, tratada no Resp 1.009.591- RS, ao examinar o mérito de duas outras demandas envolvendo a responsabilidade civil da indústria tabagista o entendimento do STJ nos Resp 886.347-RS e Resp 886.347-RS ancora-se, principalmente, nos seguintes argumentos:

1. “O cigarro é um produto de periculosidade inerente”;

2. “A indústria tabagista não deve ser responsabilizada, uma vez que milhares de fumantes adquiriram o hábito de fumar numa época em que os fabricantes não conheciam os efeitos deletérios do tabaco para a saúde humana”.

3. “A comercialização do cigarro é lícita, somente sendo restringida a propaganda”;

4. “Não há ofensa à boa-fé objetiva, na medida em que há que se considerar o contexto legal, histórico e cultural vigentes até antes de se conhecer os riscos do consumo de tabaco”;

5. “A Medicina não comprovou a causalidade necessária, direta e exclusiva entre o consumo de tabaco e o câncer, pois o estilo de vida do fumante deve ser analisado globalmente, uma vez que fatores como stress, sedentarismo, má alimentação, consumo de álcool etc. também contribuem para o desenvolvimento da doença”;

6. “Há que se considerar o livre arbítrio do indivíduo, que, dentre as opções de não fumar e fumar, escolheu a última, havendo, portanto, sua culpa exclusiva”.

Até o momento, essa é a posição do STJ em relação à matéria, ou seja, os fabricantes de cigarros não devem ser responsabilizados pelos danos advindos do consumo das substâncias presentes no tabaco, na medida em que não se lhe pode atribuir culpa exclusiva.

A questão tabagista, como é possível perceber, é polêmica, na medida em que põe em confronto uma questão moral por parte dos fabricantes de cigarros que, mesmo conhecendo amplamente os riscos do tabaco para a saúde humana, continuam a comercializar seus produtos, sem que sofram, contudo, qualquer sanção por parte do poder público, bem como envolve a questão do livre arbítrio de que cada pessoa dispõe, sendo que, ao final, os fabricantes de cigarros tem vencido as batalhas judiciais no Brasil.

Propondo um “meio termo” para solucionar as questões atinentes aos males causados pelo fumo, o professor e Doutor em Direito pela USP - Flávio Tartuce, sustenta em sua tese de doutorado a aplicação da teoria do risco concorrente nos casos envolvendo demandas de consumidores contra a indústria do tabaco, amparando-se, em meio a outros lúcidos argumentos, nas irretocáveis ponderações do Des. Caetano Lagrasta, despendidas nos autos da Ap. Cível nº 379.261.4/5-00, julgada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, condenando um fabricante de cigarros, e que levou e conta o seguinte:

1. “O cigarro é um problema de saúde pública, inclusive devendo-se responsabilizar o Estado pelos danos causados pelo fumo, haja vista o dano social que se verifica através do hábito de fumar”;

2. “A imposição social do fumo no passado”;

3. “A doença da autora da ação (Doença de Buerger) foi causada pelo consumo de cigarros”;

4. “No passado, a publicidade do cigarro era enganosa, em razão da omissão intensional de informações relevantes por parte da indústria tabagista, em relação aos males causados pelo cigarro”;

5. “A licitude da comercialização de cigarros somente está presente em parte da atividade da empresa, mas não no momento em que aquela coloca nos produtos substâncias sabidamente nocivas à saúde”;

6. “Em relação ao livre arbítrio, sustenta que este não pode conduzir à existência de um dogma ou a uma estranha e impossível religião do vício, ou seja, não se pode transferir ao consumidor todo o peso do consumo de cigarros”.

Consoante o trabalho apresentado à banca examinadora, o autor em referência propõe um meio termo entre a total ausência de responsabilidade por parte daquelas empresas e sua responsabilidade integral pelos danos causados pelo cigarro, sendo que a argumentação se desenvolve a partir da chamada concausalidade, entendida como a concorrência de causas que redundam na ocorrência do evento danoso experimentado pelo ofendido.

Em sede normativa, a concausalidade pode ser extraída da leitura dos arts. 944 e 945 do Código Civil, que assim dispõem:

Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.

Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.

Art. 945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano.

Se por um lado não é justo que as empresas fabricantes de cigarros suportem sozinhas a responsabilidade pelos danos causados pelo consumo do tabaco, muito menos justo seria permitir que a indústria tabagista continue seu comércio sem que seja responsabilizada pela propagação de um produto sabidamente nocivo à saúde humana. Da mesma forma, não é justo nem que o consumidor suporte sozinho aqueles danos, e nem que fique totalmente isento de responsabilidade pelos seus atos. É preciso, como foi dito, analisar a realidade fática que cerca os sujeitos envolvidos, de forma a verificar a parcela de culpa de cada um para a materialização do dano.

Consoante a doutrina de Jorge Mosset Iturraspe, citado por Tartuce em vídeo disponível no site do INJUR[1], há que se verificar qual foi a contribuição causal dos sujeitos envolvidos na cadeia de eventos que culminaram no dano experimentado pelo ofendido, pois, segundo o jurista argentino, na responsabilidade civil, raríssimas são as situações em que uma parte é totalmente culpada e a outra é totalmente inocente.

Com vistas nas dificuldades enfrentadas pelos estudiosos do tema, sugere-se como solução para essa celeuma a realização de exame pericial consistente na consecução de cálculos estatísticos, a serem solicitados pelo juiz da causa, sendo que entende-se como justa a proporção de 20% de culpa por parte do consumidor, e os 80% restantes por parte da empresa tabagista.

Mas por que a indústria tabagista deve ser mais responsável pelos danos em discussão? Ora, por serem conhecedoras de todas as informações sobre os malefícios que envolvem o consumo do tabaco, as empresas fabricantes de cigarros agem refletidamente, conscientes, e exclusivamente baseadas no custo-benefício que cerca sua mercância. Aliás, auferindo muito mais benefícios do que custos ao longo de todos os anos durante os quais omitiu, dolosamente, informações relevantes, conhecidas antes do Poder Público em relação à capacidade destruidora das substâncias componentes do cigarro, iniciando e mantendo as pessoas nesse vício nefasto.

Analogicamente, a atividade da empresa tabagista se aproxima da idéia de dolo eventual, estudado no Direito Penal. Essas empresas, mesmo sabendo que seus produtos são potencialmente letais, assumem o risco, in casu um risco proveito, porquanto auferem lucro com sua atividade, preferindo continuar comercializando derivados do tabaco, pois, mesmo que milhares de pessoas sofram danos em razão do consumo de cigarros, e até possam morrer por isso, sua finalidade (lucro) estará satisfeita.

De sua sorte, valendo-se da mesma analogia, o consumidor estaria incorrendo em culpa consciente, na medida em que, embora tenha plena consciência de que o consumo de cigarros pode matar, acredita seriamente que tal resultado não advirá. Certamente, a conduta da empresa é muito mais grave.

Nos parece que a proposta em estudo, dentre todas até então apresentadas pela doutrina e pela jurisprudência, é a mais justa e correta, pois não se pode desprezar que o consumidor, sem dúvida, é quem, em última instância, determina seu comportamento, sendo essa a consequência natural do determinismo inerente ao ser humano.

Mas será que o comportamento do consumidor é refletido, consciente, livre de influências externas?

O consumo é atividade que deve ser refletida, isto é, deve ser desempenhada conscientemente, de maneira livre e espontânea pelo consumidor. Tomando por base essa premissa, não encontramos dificuldades em concluir que o consumidor, em maior ou menor grau, acaba sendo influenciado pela publicidade cotidiana, a qual, se hodiernamente não é explícita, é praticada de forma velada. Se é certo que hoje temos a restrição da propaganda do cigarro, não é por isso que a indústria tabagista deixará de anunciar o cigarro de forma sutil, através do cinema e da TV, por exemplo. A título ilustrativo, quantos de nós não assiste, quase diariamente, a notícias sobre atletas, principalmente do futebol, que são consumidores de cigarros?

Ora, será que a imprensa, ao divulgar esse tipo de informação, seja por qual mídia for, não é capaz de despertar no indivíduo a falsa idéia de que fumar não causa tantos males? Afinal de contas, um atleta profissional, externamente em forma, gera a presunção de que goza de boa saúde, na medida em que um corpo saudável é indispensável para um bom desempenho no esporte.

Sendo assim, a idéia de que o hábito de fumar se relaciona ao livre arbítrio não merece prevalecer, já que somente será legítimo se advier de atividade refletida por parte do consumidor.

O argumento no sentido de que a industrialização e comércio de tabaco são atividades lícitas, autorizadas e regulamentadas pelo Poder Público também não deve prosperar, a teor do que dispõe o art. 187 do Código Civil, in verbis:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé e pelos bons costumes.

Fim econômico, fim social, boa-fé e bons costumes são conceitos jurídicos indeterminados, isto é, que na análise de um caso concreto dependem de valoração por parte do julgador, a fim de conferir concretude à norma jurídica. Desses quatro elementos, penso que a análise de somente dois deles (fim social e bons costumes) já é suficiente para rechaçar o argumento da comercialização de cigarros como atividade lícita.

Quanto ao fim social, indagamos: Qual é o fim social do cigarro? Esse tipo de produto possui um fim social? É salutar à sociedade? Em que medida? Há quem diga que um cigarrinho acalma, relaxa etc. Com a devida licença dos que entendem o contrário, não consigo visualizar qualquer outro fim social do cigarro que não seja somente a geração de empregos na respectiva indústria. Hodiernamente, fumar é considerado um hábito antissocial.

No tocante aos bons costumes, sem nos estender, estes geralmente são relacionados à idéia de moralidade, isto é, na idéia de atitudes reiteradas e de conteúdo ético que, de um modo geral, facilitam ou tornam agradável a vida em sociedade. No passado, a doutrina aproximava o conceito de bons costumes ao de boa-fé, exatamente em razão da carga ética comum a ambos os institutos. Todavia, consoante lição de Clóvis Veríssimo do Couto e Silva[2], “o que importa contrastar é que os bons costumes referem-se a valores morais indispensáveis ao convívio social, enquanto a boa-fé tem atinência com a conduta concreta dos figurantes na relação jurídica" (COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. A obrigação como processo. São Paulo, 1976, p. 31).

Sendo assim, indagamos: o hábito de fumar é um bom costume? Traz benefícios? É um comportamento desejado? Obviamente, a resposta é negativa, o que é corroborado pelas leis antifumo que vem restringindo o uso do tabaco nos mais diversos locais, em todo o território nacional, sempre em nome da saúde pública referida pelo Desembargador Caetano Lagrasta no julgado mencionado linhas atrás.

Quando contrariados aqueles conceitos presentes no artigo 187 do Código Civil, dá-se o nascimento do abuso de direito, o que, nos dizeres de Flávio Tartuce, ocorre “quando a pessoa exceda um direito que possui, atuando em exercício irregular de direito”[3]. Ou seja, em sua conduta inicial, a atividade é lícita, porém, torna-se ilícita em momento posterior, o que, no caso do cigarro, materializa-se no momento em que o fabricante insere no produto substâncias sabidamente tóxicas e potencialmente letais.

A esse respeito, o artigo 12, caput, do CDC, traz valiosa elucidação, uma vez que dispões que os fabricantes respondem objetivamente pela reparação dos danos decorrentes de defeitos nas fórmulas de seus produtos. Sendo assim, no momento em que adicionam ao tabaco substâncias estranhas à sua composição natural, deve o fabricante responder pelos danos experimentados pelo consumidor.

Assim, s.m.j., se a indústria tabagista sabe que sua atividade é perniciosa à sociedade, está incorrendo em abuso de direito, pois contraria o fim social e os bons costumes, e daí decorre sua responsabilidade objetiva de reparar os danos sofridos por seus “clientes”.

Um breve parêntese: provavelmente alguns leitores irão rechaçar as idéias contidas neste texto, argumentando que, paralelamente ao cigarro, o mercado de consumo possui diversos outros gêneros cujo consumo também provoca danos à saúde humana, tais como as fast-foods, os refrigerantes, o açúcar, o sal, a gordura animal presente nas carnes e derivados do leite, os agrotóxicos presentes nos vegetais etc. Além disso, poderão argumentar que a poluição presente no ar, nas águas e outros infindáveis fatores são capazes de causar danos à saúde, inclusive o câncer.

Para esses leitores, esclareça-se que, certamente, o consumo exagerado daqueles produtos e substâncias é sim capaz de causar danos das mais diversas ordens ao organismo, inclusive desencadear algum tipo de câncer. No entanto, o consumo moderado, dentro dos padrões recomendados pela Medicina, é essencial à sobrevivência humana. O açúcar, a gordura, o sal, os oleaginosos etc., todos tem importância para o correto funcionamento do corpo humano. Em excesso, causam danos; em carência, igualmente. Assim, consumidos em níveis seguros, salvo em casos específicos envolvendo pessoas que já são portadoras de algum mal ou sensíveis a alguma substância, os gêneros animais, vegetais e minerais nos auxiliam.

Mas, e o cigarro? Qual substância presente no cigarro é indispensável à manutenção da vida humana? Ora, sabidamente, nenhuma! Aliás, a informação constante nos maços de cigarro é: “não existem níveis seguros para consumo dessas substâncias”.

Nessa era da chamada principialização do Direito, os estudiosos devem voltar os olhos para a Constituição Federal – norma jurídica repleta de princípios que visam orientar o desenvolvimento social em todos os seus níveis e de forma plena, sendo que não é por acaso que o direito à vida se encontra em posição topográfica no texto constitucional. É um direito que não deve ser encarado como mera declaração, mas sim como objeto primordial das ações governamentais e da própria sociedade, com vistas à promoção do pleno desenvolvimento do indivíduo, já que, nos dizeres de Miguel Reale, “o homem é o valor fonte de todos os valores”.

Com essas breves considerações, manifesto meu total apoio aos estudiosos que, arduamente, vem se debruçando sobre esse grave problema de saúde pública, de forma a mudar o paradigma que vem orientando as decisões judiciais sobre o consumo de cigarros no Brasil, torcendo para que aqueles acometidos pelo vício do fumo possam dele se livrar, mas, acima de tudo, para que às próximas gerações seja oportunizado o exercício de uma liberdade legítima, livre da má influência do marketing subliminar e das perniciosidades mercadológicas que acometem o consumo.


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[1] http://www2.injur.com.br/pg/videos/play/group:5/9325/responsabilidade-civil-pelo-cigarro-prof-flvio-tartuce

[2] Jornal Carta Forense, segunda-feira, 3 de agosto de 2009. Acesso em: 27/05/2011

[3] In Manual de Direito Civil: volume único / Flávio Tartuce – Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2011.

PROCESSO VIRTUAL NÃO PODE IMPEDIR A AMPLA DEFESA

Por Wadih Damous

O julgamento do CNJ acerca da competência para estipular o traje dos advogados continua rendendo reflexões importantes acerca do Poder Judiciário.

Conforme noticiado por este veículo, a OAB-RJ e o Conselho Federal da OAB pediram a anulação do referido julgamento, por ter sido patentemente violado o princípio da publicidade das sessões de julgamento (artigo 93, inciso IX).

Àquela altura, o que se sabia era que o recurso da OAB-RJ havia sido julgado pelo expediente denominado “julgamento célere”. Muito embora não tenha ficado claro à época no que consistia precisamente tal procedimento, o certo é que sua adoção fez com que até mesmo alguns conselheiros afirmassem publicamente que não tinham consciência do que estavam julgando, e que nunca votariam no sentido da decisão supostamente unânime.

Mas a decisão do relator revelou no que verdadeiramente consiste o tal expediente. Segundo o conselheiro, “foi instituído neste Conselho o rito do julgamento célere, para os processos que possuam expressiva maioria nas manifestações “de acordo” pelos demais conselheiros no sistema do processo eletrônico. No caso em discussão, houve 8 manifestações favoráveis ao voto do relator, disponibilizado para os demais conselheiros 5 dias antes da realização da sessão plenária”.

Ficou claro, dessa forma, que o Conselho Nacional de Justiça também vem adotando a sistemática de sessões de julgamento virtuais, as quais, naturalmente, não ocorrem em sessão pública, tal como determina a Constituição da República, de forma expressa, em seu artigo 93, inciso IX.

Sistemática semelhante foi originariamente instituída pelo Supremo Tribunal Federal para análise da presença da repercussão geral, requisito de admissibilidade do recurso extraordinário instituído pela Emenda Constitucional 45. Essa atitude pioneira parece ter encorajado outros tribunais a adotarem procedimento congênere, eis que, espelhando-se no próprio guardião final do texto constitucional, não deveria haver espaço para questionamento acerca de sua inconstitucionalidade.

Além do CNJ, como já referido, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por meio de Resolução Administrativa, instituiu o julgamento virtual dos agravos internos e regimentais, o qual já foi objeto de questionamento por parte da OAB-RJ perante o próprio tribunal. Recentemente, o TJ-SP manifestou a intenção de criar expediente semelhante.

Mas, não é bem assim.

Em primeiro lugar, o Supremo Tribunal Federal, reiteradamente, nega a aplicação do “plenário virtual” ao julgamento do mérito dos recursos, limitando-se análise da existência de repercussão geral. E, muito embora tal argumento não ilida, por si só, a inconstitucionalidade dessa sistemática, há de se reconhecer que sua instituição tem uma razão prática inegável.

É que, muito embora a competência para julgamento do recurso extraordinário seja, de regra, de uma das Turmas do Supremo Tribunal Federal, são necessários os votos de oito ministros para que se reconheça a inexistência de repercussão geral em determinada hipótese. Assim, o STF se viu diante de duas situações, igualmente indesejáveis: submeter todos os Recursos Extraordinários ao Plenário ou permitir que o requisito da repercussão geral simplesmente deixasse de existir na prática.

Vê-se, portanto, que a instituição do “plenário virtual” no STF tem duas “atenuantes”: ter sentido sistêmico e aplicar-se apenas para a aferição de um dos requisitos de admissibilidade do recurso.

Já as sistemáticas adotadas pelo CNJ, pelo TJ-RJ e a pretendida pelo TJ-SP têm um único e claro propósito: diminuir o trabalho de desembargadores e conselheiros.

Não há nada, portanto, que salve tais procedimentos de sua evidente inconstitucionalidade. A professora Teresa Arruda Alvim Wambier, relatora do Projeto de Novo Código de Processo Civil em tramitação do Congresso Nacional, costuma afirmar, com total acerto, que qualquer procedimento criado única a exclusivamente para diminuir a carga de trabalho do Poder Judiciário é ilegítimo por vício de origem.

A publicidade das sessões de julgamento é fundamental para o correto exercício do contraditório e da ampla defesa, bem como para a fiscalização social da atividade do Poder Judiciário. A tendência à virtualização dos processos e o ímpeto de diminuir o trabalho dos tribunais não podem acarretar violação de tais garantias fundamentais.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

DILEMAS DOS RELACIONAMENTOS CONTEMPORÂNEOS

Por Mirian Veloso M. de Andrade

Cada vez mais se debate sobre a dinâmica dos relacionamentos contemporâneos, que inclui tipos de conjugalidade muitas vezes efêmeras, precárias ou permeadas por interesses egoísticos.

Segundo estudos orientados pela Doutora Terezinha Féres-Carneiro, da Universidade Católica do Rio de Janeiro, a sociedade vive uma era de mensagens e fenômenos confusos, fluídos e imprevisíveis. Um dos autores por ela citados - Bauman - denomina o tempo presente como “modernidade líquida”, equiparando-o ao mundo darwiniano, onde o melhor e mais forte sobrevive. Nesse quadro, o relacionamento humano se configura como efêmero.[1]

Adicionalmente, talvez até em síntese, poderia se afirmar a ausência de compromisso e de alteridade em tais relacionamentos. De fato, apontam os referidos estudos que os sentimentos e relacionamentos são vistos e vividos como descartáveis, paradoxalmente como justificativa da busca de segurança: a fragilidade do laço e o sentimento de insegurança inspiram um conflitante desejo de tornar o laço intenso e, ao mesmo tempo, deixá-lo desprendido.[2]

Por outro viés, no que impacta o Direito, a sociedade tem relativizado a importância institucional do casamento. Segundo a pesquisadora, Giddens afirma que o compromisso e a história compartilhada deveriam proporcionar aos parceiros algum tipo de garantia de que a relação será mantida por um período indefinido. Mas a isso ele contrapõe o contexto social contemporâneo, postulando que o casamento não é mais considerado como uma “condição natural” e que a relação é durável enquanto houver satisfação suficiente, podendo ser encerrada a qualquer momento por um dos parceiros, fenômeno que ele denomina como “relacionamento puro”.[3]

Na prática, fatores como independência financeira da mulher, luta pela igualdade de gêneros, redução do número de filhos, aceitação do divórcio pela sociedade, entre outros, podem justificar a fragilidade dos relacionamentos.

Enquanto Bauman denomina “amor líquido” à fugacidade do amor contemporâneo, Giddens a chama de “amor confluente”, que se caracteriza pela finitude do laço no momento em que este deixa de ser vantajoso para um dos parceiros e que presume igualdade na doação e no recebimento emocional.”[4]

Nesse cenário, os casais casam, descasam, (re)casam ou apenas vivem juntos sem formalidades. Às vezes, até moram em casas separadas, em situação de concubinato, seja em sua forma dita “impura” - quando há impedimento para o casamento entre os amantes -, seja na “pura” - que equivale à figura jurídica da “união estável” -, o que comumente gera disputas nos tribunais, com o término do relacionamento, para manter ou resgatar direitos ou benefícios individuais.

Disso se conclui que, apesar de considerada uma conquista, essa liberdade de escolha da forma de se relacionar, as pessoas estão atentas à garantia de seus direitos. Se isso for assegurado antes da ocorrência de eventos rescisórios da relação amorosa, certo que evitaria intermináveis litígios judiciais.

Daí a necessidade de formalizar a união estável, se a opção não for pelo casamento, fazendo-o por meio de um contrato particular firmado entre os companheiros, escolhendo inclusive o tipo de regime de bens que desejam observar. A união estável também poderá ser regularizada por meio de escritura pública lavrada em cartório ou em ação judicial com o fito de demarcar o tempo em que ela se iniciou e suas bases de existência, com a devida orientação jurídica.

As pessoas já estão cada vez mais conscientes sobre a importância de se fazer essa regularização, definindo quais bens poderão ser futuramente partilhados, na ocorrência de situações como separação ou falecimento de um dos conviventes, além de elencar as demais obrigações das partes e os direitos conexos decorrentes da relação, como a obrigação de assistência moral e material recíproca, prevista no inciso II do artigo 2º da Lei 9.278, de 1996, que regularizou o § 3º do artigo 226 da Constituição Federal de 1988.

Esse parágrafo da Constituição, concatenado com o caput do seu artigo 226, contempla a proteção jurídica do Estado em relação à família, como base da sociedade. A lei citada, por seu turno, veio a instrumentalizar o dispositivo constitucional, reconhecendo a união estável como entidade familiar e prevendo os direitos decorrentes dessa situação fática, agora com contornos jurídicos, nos termos do princípio da proteção estatal.

Aproveitando o tema, oportuno fazer referência ao recente julgado do Supremo Tribunal Federal, de 5 de maio de 2011, no qual o eminente Ministro Relator Ayres Britto acolheu em seu voto, como entidade familiar, as uniões estáveis de relacionamento homoafetivo. Trata-se evidentemente de uma decisão histórica, uma vez que essa minoria vinha sendo alijada da proteção jurídica de seus direitos civis.

Entendo que a Lei 9.278, de 1996, passará a ser aplicada analogicamente também às uniões homoafetivas, sendo assim consagrada pela jurisprudência até que o Poder Legislativo venha a regular de vez a moldura jurídica dessas situações de fato.

Por outro lado, vejo a necessidade de fazer aqui uma ressalva quanto à conversão da união estável em casamento, vez que tem se feito confusões acerca das consequencias da referida decisão, por exemplo, em relação ao casamento religioso. Alguns setores conservadores e ligados à Igreja estão temerosos de que, a partir de agora, as igrejas ou templos deverão fazer casamentos de uniões homoafetivas. De maneira alguma. O STF reconheceu que os direitos civis que se aplicam a uniões heterossexuais se estendem aos casais homoafetivos, porém, isso não interfere nos estatutos internos, crenças e práticas de cada igreja. Cada uma dessas associações possui autonomia de organização assegurada no Código Civil, tendo, portanto, suas próprias regras, às quais o cidadão que deseja ali participar é que deverá a elas se adequar.

Nesse passo, é de se prever que progressivamente serão assegurados a essa minoria direitos de herança, de incluir dependente em plano de saúde, de assistência material a título de alimentos ao convivente que necessitar, e alguns direitos previdenciários estipulados em cada caso, na forma da lei.

Por fim, ainda no que tange às decorrências daquela recente decisão da Corte Constitucional brasileira, toma ainda maior vulto a pergunta sobre se podem os casais homoafetivos adotar. A decisão, em verdade, não cuidou de tal assunto especificamente; por outro lado, se os mesmos direitos dos casais heterossexuais vierem a ser estendidos aos homoafetivos, é de se esperar que possam regularmente adotar ou ter a guarda de criança ou adolescente. Já é sabido que os tribunais vêm reconhecendo essa possibilidade caso a caso; agora, se tornou mais fácil para o juiz proferir uma decisão favorável a essa pretensão, aplicando, por analogia, o julgado do Supremo Tribunal Federal.


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