quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

CONDENAÇÃO PELA IMPRENSA: PERPÉTUA E DEFINITIVA

Por Carlos Brickmann 

Artigo publicado nesta terça-feira (27/12) na seção Circo da Notícia do site Observatório da Imprensa

William Melo de Souza foi sequestrado e torturado por integrantes do PCC, Primeiro Comando da Capital, organização que, de dentro dos presídios, comanda pelo menos parte do crime organizado em São Paulo. Sob tortura (já confirmada pelas investigações, e com os torturadores condenados pela Justiça), ele foi forçado a admitir que tinha cometido crime de pedofilia. Era o início do famoso Caso de Catanduva — mais uma vez, imprensa e Ministério Público com o mesmo propósito, de mostrar que o réu era culpado.
Como de hábito, os promotores deram aquele show de entrevistas, que jogaram a opinião pública contra William (e à defesa coube pouco mais que aquela tradicional frase, "seu advogado nega as acusações"). Ele ficou quase três anos preso. E foi absolvido. Nada de "falta de provas", coisas desse tipo: a Justiça o declarou inocente. E como foi que a imprensa noticiou a inocência do cavalheiro que, em seu noticiário anterior, era apontado como culpado, monstro, sem-vergonha, que teria abusado sexualmente de 36 crianças de no máximo 14 anos de idade?
Foi incrível: noticiou a absolvição repetindo as acusações. Num grande jornal de circulação nacional, o Ministério Público, amplamente derrotado no caso, foi ouvido de novo (e, procurando minimizar a notícia, disse que era coisa velha, já que a sentença tinha saído há quatro meses). Se a notícia fosse velha, continuaria verdadeira; mas a sentença saiu na mesma semana em que a matéria da absolvição foi publicada, sem que a reportagem se desse conta disso. E as acusações derrubadas pela Justiça foram repetidas, uma por uma, como se julgamento não tivesse havido.
Os meios de comunicação não quiseram divulgar a sentença (na nota abaixo, veja o motivo). Alegaram que o processo correu em segredo de Justiça. Mas após o julgamento não há mais segredo: quem procura acha. Clique aqui no endereço.
Bastava pesquisar um pouco. Ou pedir ao tribunal o endereço do acórdão.
Clamor público
"A voz rouca das ruas", "clamor público", "aquilo que o povo quer esta Casa acaba querendo", todos esses argumentos em favor da acusação costumam esquecer um caso clássico de clamor público, de voz rouca das ruas, que condenou um inocente à morte: o julgamento de Jesus Cristo. A imprensa insiste — apesar do Bar Bodega, apesar da Escola Base, apesar agora do caso William. Não dá para esquecer que só um jornal, o Diário Popular de São Paulo, dirigido por um jornalista de primeiríssimo time, o lendário Jorge de Miranda Jordão, se recusou a publicar os destampatórios falsos da Escola Base, que destruíram famílias, destruíram um empreendimento e prejudicaram reputações — para nada.
No caso William, o desembargador Pires Neto põe o tal "clamor público" no seu devido lugar:
"A repercussão provocada pela grande exposição dos fatos — repercussão orientada no sentido único da condenação — não pode servir como elemento de prova para base da acusação posta na denúncia e a condenação não pode ser decretada apenas em razão da gravidade das infrações imputadas, sendo indispensável que a prova da autoria venha apoiada em prova cabal e estreme de dúvidas (o clamor público não serve como prova dessa qualidade que se exige para fundamento da condenação, como é evidente)."
Sempre culpado
Coincidência boa: junto com a sentença de absolvição de William Melo de Souza, sai um livro interessantíssimo, Operação Hurricane. É a história da avalanche em que Ministério Público, policiais e imprensa desmontaram o desembargador José Eduardo Carreira Alvim e o levaram à prisão — com transmissão direta pela TV. Culpado ou inocente? A Justiça ainda não se manifestou: seu processo está parado desde 2007 no Supremo Tribunal Federal.
Carreira Alvim foi preso sob a acusação de receber propinas para autorizar o funcionamento de casas de bingo no Rio de Janeiro (garante que a acusação é inverídica). Informa, no livro, que sua vida foi investigada pela Polícia Federal e pelo Fisco, que nada teriam encontrado; mesmo assim, foi afastado do Tribunal Regional Federal e aposentado compulsoriamente. Cita o nome de um delegado federal, do procurador-geral da República na época, do hoje presidente do Supremo, ministro Cesar Peluso, e afirma que o objetivo de seus perseguidores era impedir que chegasse à Presidência do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. No livro, Carreira Alvim tem a possibilidade de se defender. Os meios de comunicação seguiram o tal "clamor público" e se juntaram às acusações contra ele.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR - PAD, PODE SER INSTAURADO APÓS SERVIDOR EXONERAR-SE


O presente trabalho visa esclarecer sobre a possibilidade de instauração de sindicância ou processo administrativo disciplinar contra servidor exonerado a pedido ou aposentado voluntariamente.
Apesar de sabidamente difundidos os conceitos de Processo Administrativo Disciplinar e Sindicância, vislumbra-se necessário, ainda que en passant, desenvolver sobre suas principais características.
A Sindicância é procedimento célere e simples, cujo escopo visa apurar a existência de uma infração ou de sua autoria. Trata-se de procedimento investigatório, equiparável ao inquérito policial. De se ressaltar a existência de sindicância autônoma ou punitiva, na qual poderá haver aplicação das penas de advertência e suspensão, esta de no máximo 30 dias. Nesta última hipótese de sindicância são inafastáveis as garantias do contraditório e da ampla defesa (artigo 146 da Lei 8.112/1990).
Por sua vez, o Processo Administrativo Disciplinar é destinado a apurar infração cometida por servidor no exercício de suas atribuições legais, ou relacionada com as atribuições do cargo no qual estiver investido, sempre que a infração ensejar a aplicação da pena de suspensão por mais de 30 dias, de demissão, de cassação de aposentadoria ou disponibilidade ou de destituição de cargo em comissão.
O artigo 172 da Lei 8.112/1990 estabelece que o servidor que responder a processo disciplinar só poderá ser exonerado a pedido, ou aposentado voluntariamente, após a conclusão do processo e o cumprimento da penalidade, acaso aplicada. E em seu parágrafo único:  Ocorrida a exoneração de que trata o parágrafo único, inciso I do art. 34, o ato será convertido em demissão, se for o caso.
Conforme se verifica, o servidor não poderá ser exonerado a pedido, ou aposentado voluntariamente no curso de processo administrativo, ou ainda quando estiver pendente a aplicação de penalidade.
Necessário então perquirir como deve a Administração agir no caso da exoneração ou da aposentadoria ocorrer antes da instauração do processo administrativo ou da sindicância.
Em razão da relação estatutária, o servidor pode ser responsabilizado por atos praticados irregularmente no exercício de suas atribuições. Evidentemente a situação fática deve se subsumir a uma prescrição legal anteriormente prevista.
Neste diapasão, a Lei 8.112/1990 prevê que:  O servidor responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições.
A natureza da responsabilidade depende do âmbito jurídico no qual a irregularidade se consuma, havendo, ao menos em princípio, independência das esferas cível, administrativa e penal. Nada obsta, porém, que um mesmo ilícito seja passível de punição em mais de uma esfera.
No item II foi ressaltado que o procedimento disciplinar visa apurar fato ocorrido no exercício das atribuições inerentes ao cargo ocupado pelo servidor faltoso, no presente tópico destacou-se que a responsabilidade advém da relação estatutária, o que permite apenas uma conclusão, a exoneração a pedido ou a aposentadoria voluntária não impede a instauração de sindicância ou processo disciplinar, pois a Lei exige somente a existência de relação estatutária no momento do cometimento das irregularidades.
Esse entendimento foi pacificado pela Comissão de Coordenação de Correição da Controladoria-Geral da União, constando do enunciado CGU/CCC 2 DE 04/05/2011, abaixo transcrito:
Enunciado-CGU/CCC 2, de 04/05/2011: “Ex-servidor. Apuração. A aposentadoria, a demissão, a exoneração de cargo efetivo ou em comissão e a destituição do cargo em comissão não obstam a instauração de procedimento disciplinar visando à apuração de irregularidade verificada quando do exercício da função ou cargo público.”
Ademais, a exoneração pode ser convertida em demissão, no caso de servidor efetivo, ou em destituição de cargo em comissão, no caso de servidor ocupante de cargo puramente comissionado, razão pela qual, sempre há interesse na instauração do Processo Administrativo Disciplinar, pois a exoneração ou a aposentadoria não afasta a indisponibilidade dos bens, o ressarcimento ao erário, a proibição de investidura em cargo público federal pelo prazo de 05 (cinco) anos e a proibição de retorno ao serviço público federal, a depender da adequação do caso concreto às hipóteses dos artigos 136 e 137, caput e parágrafo único, todos da Lei 8.112/90.
O Egrégio Superior Tribunal de Justiça já manifestou no mesmo sentido:
ADMINISTRATIVO. PROCESSO ADMINISTRATIVO CONTRA SERVIDOR EXONERADO.
POSSIBILIDADE.
I - EXISTE INTERESSE DA ADMINISTRAÇÃO EM INSTAURAR PROCESSO ADMINISTRATIVO PARA APLICAR NO SERVIDOR EXONERADO PENA DE DEMISSÃO, INCLUSIVE A BEM DO SERVIÇO PUBLICO, CASSANDO O SEU ATO DE EXONERAÇÃO, SE FICAR DEFINIDO QUE O PEDIDO DESTA VISAVA AFASTAR A APLICAÇÃO DA CITADA PENA. TAL PROVIDENCIA INSERE-SE NO LEGITIMO PODER DA ADMINISTRAÇÃO DE REVER OS SEUS PROPRIOS ATOS.
II - RECURSO DESPROVIDO.
(RMS 1.505/SP, Rel. Ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO, SEGUNDA TURMA, julgado em 25/08/1993, DJ 13/09/1993, p. 18550).
MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO CIVIL. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. CARGO EM COMISSÃO. DESTITIUIÇÃO.
AUTORIDADE IMPETRADA. COMPETÊNCIA. LEGALIDADE. DEVIDO PROCESSO LEGAL ADMINISTRATIVO. PRINCÍPIOS. VIOLAÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA.
I - A Controladoria-Geral da União, como órgão central do sistema correicional, tem competência para instaurar e avocar processos administrativos contra os servidores vinculados ao Poder Executivo Federal, nos termos do artigo 18 da Lei nº 10.683/2003.
II - Em decorrência, compete ao Ministro de Estado do Controle e da Transparência o julgamento dos respectivos processos, quando se tratar da aplicação das penalidades de demissão, suspensão superior a trinta dias, cassação de aposentadoria e destituição de cargo, conforme artigo 4º do Decreto nº 5.480/2005, que regulamentou a Lei nº 10.683/2003.
III - Na espécie, foi aplicada a penalidade de conversão de exoneração em destituição de cargo em comissão ao impetrante pelo Ministro de Estado do Controle e da Transparência, decorrente de processo administrativo disciplinar desenvolvido no âmbito da Controladoria-Geral da União, em função da autoridade envolvida (ex-presidente da FUNASA) e da inexistência de condições objetivas para realização do procedimento no órgão de origem.
IV - In casu, a aplicação da penalidade de destituição de cargo em comissão ao impetrante não ofende o artigo 128 da Lei nº 8.112/90, bem como os princípios da individualização da pena, motivação, legalidade, razoabilidade e proporcionalidade, V - Isso porque os fatos apurados são de extrema gravidade e causaram vultosa lesão ao erário que poderia ter sido evitada pelo impetrante. Demais disso, as condutas a ele imputadas estão devidamente corroboradas pelas provas produzidas no procedimento administrativo disciplinar, revelando-se o ato destitucional devidamente motivado de acordo com a ordem jurídica, além de razoável e proporcional para a hipótese em julgamento.
Segurança denegada.
(MS 14.534/DF, Rel. Ministro FELIX FISCHER, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 09/12/2009, DJe 04/02/2010)
Portanto, viável a instauração de processo disciplinar contra ex-servidor, exonerado a pedido ou aposentado voluntariamente. No tocante as penas administrativas passíveis de aplicação após a conclusão do processo, devem ser anotadas nos assentos funcionais do servidor, de modo que no caso de reingresso no serviço público, não estando extinta a punibilidade pelo decurso do tempo, a punição deve ser aplicada. Sendo o caso de aplicação das penas de demissão ou destituição de cargo em comissão, a exoneração deve ser convertida nestas cominações, fazendo-se incidir as restrições previstas nos artigos 136 e 137, caput e parágrafo único da Lei 8.112/1990.
Ressalva-se, por fim, que a aplicação da pena de destituição de cargo em comissão deve ser aplicada pela autoridade que houver feito a nomeação (art. 141, inc. IV, da Lei 8.112/1990), ao passo que a pena de demissão deve ser aplicada pelas autoridades previstas no inc. I, do art. 141 da Lei 8.112/90, ressalvada a hipótese de delegação, entretanto, a instauração do processo disciplinar deve ser procedida pela autoridade titular do órgão ou entidade no qual ocorreu o ilícito, sendo enviado o feito às autoridades acima referidas apenas no caso de a comissão concluir pela aplicação das citadas penas.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

A EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA


Com certo atraso em relação a outros países importantes no cenário econômico mundial, a partir da entrada em vigor da Lei n.º 12.441 de 11 de julho de 2011, o Brasil passa a contar com um novo tipo empresarial em seu ordenamento jurídico possibilitando o desenvolvimento da atividade empresária por uma única pessoa, com separação patrimonial: a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI.

Até o surgimento da EIRELI, os únicos meios possíveis de desenvolvimento de atividade empresária por uma só pessoa eram: i) a figura do Empresário Individual, prevista no art. 966 e seguintes do Código Civil, modalidade na qual não há separação patrimonial, respondendo o sócio com seu patrimônio pessoal pelos riscos do negócio; ii) a subsidiária integral, prevista no art. 251 da lei 6.404/76 (Lei das S.A.), que é obrigatoriamente uma sociedade por ações, e pode ter como acionista apenas uma sociedade brasileira, não admitindo assim que pessoa física seja titular de suas ações; ou iii) no caso da sociedade limitada, esta pode ter apenas um sócio em caráter provisório por um período de até 180 dias, conforme o que determina o art. 1.033, inciso IV do Código Civil.

Analisando as possibilidades acima mencionadas, verificamos que a única possibilidade que a pessoa física tinha para o desenvolvimento de atividade empresária sem um sócio seria por meio do registro de Empresário, o que não permite a separação de patrimônio específico, respondendo seu titular com todo o seu patrimônio pelo risco do negócio, o que acaba sendo um desestímulo. Para driblar as limitações legais, o que se vê hoje é a constituição de muitas sociedades empresárias limitadas nas quais apenas um dos sócios possui praticamente a totalidade das quotas, sendo este o único efetivamente interessado no desenvolvimento do negócio e um outro sócio apenas figurativo, muitas vezes com apenas uma quota e que sequer tem conhecimento do que se passa na empresa.

A possibilidade de constituição da EIRELI, portanto, tende a reduzir o número de empresas com composição societária simulada e ainda incentivar o empreendedorismo pela possibilidade do empresário poder limitar seu risco, comprometendo apenas o capital destacado para a atividade. Porém, esse novo tipo empresarial traz características peculiares próprias não presentes em qualquer outro tipo, em especial com relação à exigência de capital mínimo e totalmente integralizado para a sua constituição.

O caput do novo art. 980-A do Código Civil, prevê a obrigação de que o capital social mínimo da EIRELI seja não inferior a 100 vezes o menor salário mínimo vigente no país, devendo ainda estar totalmente integralizado no momento de sua constituição. Aqui cabe a primeira grande crítica à nova legislação, pois, em uma primeira análise, esta vinculação do capital social ao valor do salário mínimo vigente no país afronta diretamente o trecho final do inciso IV do art. 7º da Constituição Federal. Isto por que, referido texto veda a vinculação do salário mínimo para qualquer fim, ou seja, sua utilização para indexação ou referência. Nas palavras do ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, "A razão de ser da parte final do inciso IV do artigo 7º da Carta Federal - "...vedada a vinculação para qualquer fim;" - é evitar que interesses estranhos aos versados na norma constitucional venham a ter influência na fixação do valor mínimo a ser observado" (RE n° 236958 AgR / ES - AG. REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, publ. 08/10/1999 e RE 197072 / SC - SANTA CATARINA. Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, publ. 08/06/2001).

À medida que o entendimento da suprema corte de nosso país sobre o dispositivo constitucional é o de que não pode haver vinculação ao salário mínimo, para garantir que não haja qualquer influência na fixação de seu valor, a previsão do capital mínimo de 100 vezes o salário pode ser vista como inconstitucional.

Superada a questão da constitucionalidade da norma, ainda em relação a essa fixação do capital mínimo para a constituição da EIRELI, apesar de não expresso claramente na lei, entendo que tal correspondência deva existir apenas no momento da constituição da sociedade, não sendo o empresário obrigado a atualizá-lo ao longo do tempo, em decorrência da alteração do valor do salário mínimo. Pois bem, aqui cabe então a reflexão sobre qual o objetivo dessa necessidade. Isso por que, no cenário econômico atual, com baixos índices de inflação, não haverá variação significativa no período de um ano, mas se por exemplo transportarmos a situação a um cenário diferente, como o que ocorreu no fim da década de 80 e início da década de 90, uma EIRELI constituída em janeiro de 1989 teria o capital mínimo obrigatório de NCZ$ 6.390,00, enquanto uma constituída em janeiro de 1990 teria o capital mínimo de NCZ$ 128.395,00, ou seja, vinte vezes maior. Desta forma, ainda que não desejemos, nem ao menos imaginemos a volta da inflação aos patamares vistos duas décadas atrás, não pode a lei ignorar essa hipótese que não deixa de ser real.

Uma última observação a ser feita em relação ao capital social na EIRELI, é que a lei prevê, diferente do disposto em relação aos demais tipos societários, expressamente, a previsão de que essa será constituída com o capital social mínimo devidamente integralizado, não podendo portanto ser feita apenas a subscrição e prevendo um prazo para a integralização, o que poderá muitas vezes inviabilizar sua constituição por pequenos empreendedores que muitas vezes não terão os atuais R$ 54.500,00 necessários.

Tratando agora da limitação da responsabilidade, podemos indicar este como o principal ponto de incentivo ao empreendedorismo, uma vez que diferente do que se aplica hoje ao Empresário Individual, o patrimônio da EIRELI não se confunde com o do empresário. O texto original do projeto de lei trazia uma proteção ainda maior ao patrimônio do empresário, no § 4º do art. 980-A, cuja redação era: Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, não se confundindo em qualquer situação com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, conforme descrito em sua declaração anual de bens entregue ao órgão competente. Este parágrafo foi vetado, sob o argumento de que a expressão "em qualquer situação" poderia gerar divergências com relação à aplicação das hipóteses gerais de desconsideração da personalidade jurídica previstas no art. 50 do Código Civil. Sendo assim, como bem colocado nas razões de veto, aplicar-se-á a regra das sociedades limitadas, decorrente da regência supletiva prevista no § 6º do art. 980-A.

Dando prosseguimento à análise, verificamos que a EIRELI poderá também ser utilizada como alternativa para a solução do problema criado em outros tipos societários quando estes deixam de contar com pluralidade de sócios, haja vista que ela poderá resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num único sócio, conforme redação do §3º do art. 980-A. Essa conversão, no entanto, não será automática, dependendo de requerimento ao órgão de registro para que seja operada. Isto põe fim a um antigo problema, muito comum nas sociedades, que é a corrida contra o tempo para que o sócio que ficou sozinho em uma limitada enfrentava para, dentro do prazo de 180 dias conseguir um novo sócio, sob pena de ver sua empresa ser dissolvida.

Importante observarmos que não é permitido ao mesmo empresário ser titular de duas EIRELI, conforme vedação expressa do §2º do art. 980-A.
A EIRELI, diferente do que se aplica ao Empresário Individual que é obrigado a utilizar sua firma acompanhado da expressão "Empresário Individual", pode adotar firma ou denominação empresarial, a sua escolha, acompanhado da sigla EIRELI.
A última questão objeto de análise no presente artigo é a possibilidade trazida da criação da "EIRELI artística", constante do §5º do art. 980-A. Referido artigo prevê que a EIRELI, independente de seu objeto, poderá ser utilizada pelo empresário que dela é titular para o recebimento de "remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor o titular da pessoa jurídica, vinculados à atividade profissional", facilitando assim o controle de seus bens e recebimentos.

Essas são apenas considerações preliminares deste novo tipo empresarial que surge em nosso ordenamento jurídico. Muitas das questões aqui levantadas certamente ainda serão objeto de análise dentro do período de Vacatio Legis de 180 dias antes que as alterações entrem em vigor em 8 de janeiro de 2012, o que poderá dar origem a uma regulamentação da matéria que evite problemas futuros.

BEBIDA NO VOLANTE - Direção e álcool não podem banalizar Direito Penal

[Artigo publicado na edição desta segunda-feira (26/12) da Folha de S. Paulo]


Com celebrações e festas são recebidos os últimos dias do ano. Mas a alegria é acompanhada de apreensão diante da usual escalada do número de acidentes de trânsito nesta época.
São cerca de 37 mil mortes e 180 mil pessoas internadas anualmente em decorrência de colisões e atropelamentos, índices que exigem uma reflexão sobre a necessidade de alteração das leis sobre o tema, em especial aquelas relacionadas ao motorista embriagado.
A legislação atual criminaliza o ato de conduzir veiculo estando com concentração de álcool por litro de sangue superior a seis decigramas.
A descrição é bastante objetiva, mas limitada: o motorista somente será condenado se provada a existência daquela quantia de álcool em seu sangue, ou superior. E as únicas provas possíveis são o bafômetro ou o exame de sangue.
Ainda que o motorista esteja visivelmente bêbado, a constatação visual não é capaz de indicar o quanto de álcool há no sangue.
O problema é que a prova do bafômetro ou do exame de sangue não pode ser produzida sem o consentimento do investigado, pois nosso sistema proíbe impor ao cidadão que produza prova contra si mesmo. Assim, sem a colaboração do motorista, não haverá condenação pelo crime de dirigir embriagado.
Para superar a questão, há quem sugira a imposição de penas para aquele que se recusar ao bafômetro ou ao exame de sangue, como multa ou prisão por desobediência.
Mas é no mínimo incoerente reconhecer a alguém o direito de não produzir prova contra si, e, ao mesmo tempo, penalizá-lo pelo exercício desse direito.
Isso não significa que as coisas devam ficar como estão. Parece adequada a proposta de alteração da lei que suprima a menção à quantidade de álcool no sangue do motorista, prevendo como crime o mero ato de "dirigir embriagado", desde que fique claro que embriagado não significa o consumo de qualquer quantidade de álcool, mas apenas aquela que afete os reflexos necessários para uma direção segura.
Em suma, não se criminalizariam condutas como beber pequenas quantidades e dirigir sem aumentar o risco de acidentes, mas apenas a direção embriagada.
Tal embriaguez poderia ser verificada visualmente, sem o recurso ao bafômetro, desde que fundada em testes objetivos, gravados e referendados por outras testemunhas presentes no local. Ademais, a lei poderia determinar que um bafômetro esteja à disposição, caso o condutor decida usá-lo para refutar a constatação visual de embriaguez.
Enfim, não se criminalizará a mera conduta de dirigir após ingerir álcool, mas a condução de veículo por alguém sem posse de completas faculdades de percepção e reação devido ao consumo excessivo de álcool, colocando em perigo -mesmo que hipotético- outras pessoas.
Com isso, e com o incremento da fiscalização, é possível a implementação de uma política de prevenção de acidentes e repressão de imprudências que não abdique do direito penal, mas também não o transforme em instrumento banal, aplicado na mesma intensidade para todo e qualquer motorista, independente do risco criado.

domingo, 25 de dezembro de 2011

PROFISSÃO JUIZ - "Ser justo não tem nada a ver com o cargo de juiz"



O Conselho Nacional de Justiça exagera no seu poder de punir enquanto o Conselho Nacional do Ministério Público faz vista grossa para infrações cometidas por promotores e procuradores. O resultado desse desequilíbrio são acusadores implacáveis e juízes amedrontados.
A análise crítica é de Ali Mazloum, juiz federal há quase 20 anos e também vítima de uma investigação bem divulgada e mal feita que só foi para o arquivo quando chegou ao Supremo Tribunal Federal. Ele e seu irmão Casem Mazloum foram afastados do cargo de juiz por acusação fantasiosa de venda de sentenças, na operação anaconda. Ministros do STF classificaram a denúncia como inepta, bizarra, cruel. Os dois voltaram ao cargo.
Ali Mazloum ficou três anos fora das funções e diz que “estar dos dois lados do balcão” mostrou o quanto é nocivo para o direito de defesa o juiz se aliar à Polícia ou ao Ministério Público no processo. O papel do juiz é assegurar um processo justo, reforça Mazloum.
“Se justiça significar a absolvição, o acusado será absolvido mesmo que eu esteja na mira de um revólver. Da mesma forma, se ser justo significa condenação, então condenarei ainda que sob as piores ameaças ou em prejuízo da carreira”, deixou claro em entrevista à ConJur.
O titular da 7ª Vara Federal Criminal de São Paulo foi responsável pela condenação no ano passado de Protógenes Queiroz, o idealizador da operação satiagraha, deflagrada para investigar acusações de evasão de divisas e lavagem de dinheiro contra o banqueiro Daniel Dantas e que foi derrubada pelo Superior Tribunal de Justiça, por irregularidades nas provas.
Em decisão de 46 páginas, Ali Mazloum aceitou o inquérito conduzido pelo delegado Amaro Vieira Ferreira. De acordo com o documento, Protógenes divulgou conteúdo da investigação coberta por sigilo e teria forjado prova usada em Ação Penal da 6ª Vara Federal. De acordo com a sentença, houve "práticas de monitoramento clandestino, mais apropriadas a um regime de exceção, que revelaram situações de ilegalidade patente". Hoje, Protógenes Queiroz é deputado, pelo PCdoB.
Durante a entrevista, o juiz federal também falou sobre a falta de criatividade de integrantes do Judiciário, que preferem aguardar mudanças legislativas a pensar estratégias de resolver a situação do próprio gabinete, da própria vara.
Contra a apatia, em 2007, arregaçou as mangas e criou o que chama de processo-cidadão. Tinha 4 mil processos e não sabia dizer em quanto tempo eles receberiam uma decisão. Hoje, tem 250 ações em seu gabinete e as partes já sabem que em 10 meses a sentença será assinada pelo juiz.
Entre os métodos usados, como contou à revista Veja, está o de fazer com que o réu garanta a presença das testemunhas de defesa no dia da audiência. Os seus auxiliares também são instruídos a usar torpedos, e-mails e ligações para garantir a presença das partes. “Hoje minha equipe abraça nosso método de trabalho com muito carinho e está sempre motivada para dar marcha ao serviço de forma eficaz.”
Ali Mazloum é filho da dona de casa Kadige e do mascate Mohamad Mazloum. O casal saiu do Líbano onde eram lavradores para tentar a vida no Brasil. Aos 27 anos e sem saber português, o pai vendia roupas, cobertores e toalhas na Vila Formosa, bairro da zona leste de São Paulo. Dos oito irmãos, cinco entraram para o sistema judiciário brasileiro. Saad, Nadim e Omar são promotores de Justiça. Casem passou 19 anos na Justiça Federal e decidiu guardar a toga em fevereiro deste ano. Hoje, ele se dedica à advocacia e à ONG ABC dos Direitos (Associação Brasileira da Cidadania e dos Direitos Elementares).
Hoje, Ali Mazloum passa uma temporada em Portugal. Passou em primeiro lugar no concurso feito pela AMB de mestrado. Está licenciado até as suas aulas presenciais terminarem, em junho de 2012.
Leia a entrevista:
ConJur — O que é ser juiz hoje no Brasil?
Ali Mazloum — 
Em primeiro lugar, ser juiz é reconhecer a sua própria falibilidade e, ao mesmo tempo, saber que tem o dever legal e moral de ser o mais justo possível. Os piores juízes são aqueles que acreditam que a toga tem o condão de torná-los mais sábios e suas decisões as mais acertadas. Um juiz mal ingressa na carreira e já está fazendo acerbas críticas às decisões do STF, como se fosse ele o verus doctor. Acredita que a aprovação em concurso público o coloca acima dos demais. Ora, ser justo não tem nada que ver com o cargo. Exige prática constante. Isso quer dizer que a justiça é uma construção diária, em cada ato da vida, esteja o juiz no Fórum ou não. Alguém que maltrata um familiar, ofende o empregado de um supermercado ou outro motorista no trânsito, certamente não será um bom magistrado. Em suma, o serviço prestado por um juiz não é algo sacrossanto, um sacerdócio que o faz especial. A função do juiz não é a de buscar honras e méritos. O juiz deve ter a consciência de que, se a sociedade um dia encontrar uma outra fórmula para resolver seus conflitos, sua função será fatalmente extinta. Enquanto isso, deve exercitar a humildade diariamente na busca de conhecimento para melhor julgar.
ConJur — Como o senhor se sente em relação ao jurisdicionado, aos advogados, ao Ministério Público e à imprensa?
Ali Mazloum — 
Confiante e tranquilo, pois com simplicidade procuro agir com franqueza e transmitir segurança. Deixo claro que meu objetivo é buscar o certo para dar ao caso a melhor solução, com justiça. Se isso significar absolvição, o acusado será absolvido mesmo que eu esteja na mira de um revólver. Da mesma forma, se ser justo significa condenação, então condenarei ainda que sob as piores ameaças ou em prejuízo da carreira. Essa postura pode até criar tensões, sendo natural que uma atuação isenta acabe contrariando algum dos interesses em disputa — internos ou externos. Quando você tem a consciência de estar fazendo o seu melhor, que busca realmente ser apenas um facilitador na solução dos mais variados conflitos humanos — e por vezes dramáticos —, então você consegue lidar com essas pressões com serenidade, não se deixando levar pelo clamor das ruas. Infelizmente, hoje existem juízes que ouvem as vozes das ruas antes de decidir. Creio que o Judiciário vive uma espécie de crise existencialista, com alguns juízes, por conta disso, lançando-se ao populismo para se mostrarem à sociedade.
ConJur — Como é que a aflição de ser justo, rápido, eficiente impacta a sua vida familiar?
Ali Mazloum — 
Tenho uma ótima convivência familiar. Sempre soube separar as coisas. Creio que alcancei um alto índice de produtividade, um bom grau de eficiência, sem levar serviço para casa. Julgo dentro dos melhores padrões internacionais e bastou mudar a metodologia de trabalho. O Processo-Cidadão é a prova disso. Aliás, é preciso acabar com essa cantilena de que juiz trabalha em casa. Juiz que leva serviço para casa é um mau administrador, julga mal, e consegue ser ruim em casa e no Fórum.
ConJur — O senhor foi um dos muitos alvos de um descontrole acusatório em que se inventou uma falsa luta do “bem” contra o “mal”. Enfrentou acusações indevidas que foram derrubadas mas só depois de muita exposição negativa. Como foi esse aprendizado? No que isso influiu na sua forma de ver os réus, o trabalho policial e do Ministério Público?
Ali Mazloum — 
Sou um otimista e aprendi desde cedo, em razão da vida dura de pais imigrantes, que das piores adversidades pode-se extrair coisas muito positivas. Depende de sua capacidade de reação e postura diante do mundo. Aprendi que honra não é o que te concedem, mas aquilo que você carrega como parte indissociável de seu caráter. Esta ninguém destrói. Então, não me deixei abater e tinha a certeza de que daria a volta por cima. No curso do processo vi o quanto é perniciosa a atitude de um julgador que se alia incondicionalmente ao trabalho policial ou do Ministério Público. Sei muito bem o que é estar à mercê de tartufos togados, fazer parte de um processo em que a decisão já está tomada e aguarda-se apenas a formalidade do processo para o veredito final. Estar dos dois lados do balcão, para além de conhecer essa face oculta do Judiciário, deu-me material para falar com autoridade sobre os problemas do Judiciário, autoridade esta que poucos juízes têm.
ConJur — Algumas pessoas afirmam que só mudou depois de ter sofrido na própria carne uma injustiça.
Ali Mazloum — 
Isso é pensar pequeno. É falso. Tantas pessoas sofreram injustiças e se calaram para sempre. As alterações devem-se apenas ao fato de ter conhecido essa face mais sombria do Judiciário e MPF, e, com isso, ter a disposição de enfrentá-la. Poderia ter ficado quieto, mas motivos morais e éticos não aceitam minha omissão. O mesmo posso dizer das medidas penais e civis que intentei contra membros do MPF, hoje réus em várias ações. É pequenez falar em vindita. Minhas ações têm o claro propósito de evitar que outras pessoas sejam alvo de atentados similares, lutar contra o atual quadro de irresponsabilidade que permeia a atividade do MPF.
ConJur — Como o senhor interpreta a influência do MPF no TRF-3?
Ali Mazloum — 
É nefasta por dois motivos básicos. Primeiro, porque temos juízes que acreditam cegamente que o MPF busca tal como o juiz distribuir justiça, e segundo, em razão do trabalho desenvolvido pelo MPF que está bem aquém do mínimo desejável. Essa combinação acaba gerando graves injustiças como aquela a que fui submetido. E ainda hoje alguns membros do TRF-3 e do MPF insistem em investir contra mim, numa clara demonstração de que não apenas perderam o senso de justiça, como perderam também o senso do ridículo, conforme já havia constatado o ministro Gilmar Mendes. Esses péssimos agentes em qualquer lugar sério estariam fora dos quadros públicos.
ConJur — Como explicar a onda populista que apanhou o Judiciário? É o cansaço da percepção da impunidade? Vontade de aparecer como herói perante a população leiga?
Ali Mazloum — 
É engraçado, vejo muitos juízes reclamarem da impunidade como se eles não tivessem nada que ver com isso. Magistrados em fase de despedida da judicatura reclamando que “colarinho branco” não vai para a cadeia, sem que ao longo da carreira tivessem eles mesmos representado qualquer tipo de incômodo ao poder econômico. Juízes que colocam a culpa sempre nos outros, ora é a falta de leis ora a falta de verbas, como se a responsabilidade fosse do Legislativo ou do Executivo. Isso é uma falácia. O juiz deve assumir sua responsabilidade social. Mas o que vemos hoje é o perfil de juiz que perdeu o senso de justiça, de imparcialidade, o juiz “faz tudo” para ascender na carreira, aquele que não quer entrar em dividida para não perder crédito político com vista à eterna busca por promoções. Esse quadro acabou fragilizando em demasia o Poder Judiciário, incapaz de dar respostas efetivas às demandas sociais. Com isso vem o descrédito da população. É nesse cenário dramático, de crise de identidade do Judiciário, que surgem os juízes justiceiros, famosos por criar na sociedade uma expectativa ilusória de punição. Nesse trabalho, atropelam a Constituição Federal e passam por cima da lei, criando nulidades processuais que acabam aumentando ainda mais o fosso da impunidade. Esses falsos heróis desfilam pelas ruas como bípedes emplumados, jogando a população contra aqueles que tentam manter de pé os alicerces da democracia.
ConJur — Como o senhor compara o trabalho desenvolvido pelo CNMP em comparação com o CNJ?
Ali Mazloum —
 Tanto o CNMP como o CNJ atuam de um modo geral muito mal, pois não encontraram ainda o justo-meio. Atuam nos extremos, um como órgão de proteção, outro como órgão de punição. Observo que o CNMP foi acometido do mal do corporativismo, fazendo vista grossa para infrações que em qualquer país minimamente sério acarretariam severas punições. Ao lado disso, percebe-se seu engajamento político cada vez maior na busca de mais poderes para a instituição do Ministério Público, mesmo não sendo esta a sua missão constitucional. O CNJ exagera no seu lado punitivista, deixando ao relento sua tarefa precípua em uma democracia que é a de ser um garantidor e fomentador da independência jurisdicional. A somatória disso é muito grave, com acusadores implacáveis sem responsabilidade, e de outro lado julgadores acuados e subservientes para não serem incomodados. Perde a democracia, perde a justiça, perde a sociedade com um Judiciário frágil e cada vez menos criativo para as urgentes mudanças que se fazem necessárias. E posso concluir dizendo que antigas práticas continuam exatamente como sempre foram: politização para galgar a carreira, confusão entre o público e o privado, privilégios que remontam ao velho estilo imperialista de poder, como, por exemplo, o uso de carros oficiais por desembargadores. Sei que temos muitos juízes honestos contrários a tudo isso, mas é preciso agir, levantar a voz, não se pode neste momento permanecer omisso.
ConJur — Qual foi o sentido de terem tirado da sua Vara o inquérito destinado a investigar a satiagraha? Foi também um pedido do MPF?
Ali Mazloum — 
Nos meus quase 20 anos de magistratura deparei-me com muitos paradoxos, e por ter sido objeto de alguns deles pude compreender a exata dimensão de nossas instituições, e o modelo fracassado de funcionamento. Vejam o caso do Ministério Público na busca incessante do poder investigatório. Para quê? Estamos repletos de exemplos de casos que foram engavetados pelo órgão quando estariam a merecer rigorosa investigação. Então passaremos a ter uma atuação discricionária e seletiva de investigação. O atrelamento político do chefe da instituição e sua subserviência ao poder Executivo é patente e da tradição do nosso sistema. E o Executivo já tem o controle da Polícia Judiciária. Mudar essas regras sem mudanças no sistema é estabelecer definitivamente um modelo gramsciano de Estado, com um Executivo dotado de superpoderes. E o pior é que estamos caminhando para isso.
ConJur — Quais mudanças seriam necessárias para que o MP tenha o poder de investigar?
Ali Mazloum — 
Somente poderíamos aceitar um poder investigatório aos membros do MP se alterássemos, antes, a forma de nomeação do Chefe da Instituição, nos planos federal e estadual. Conheço muitos promotores de Justiça e procuradores da República muito bem intencionados, preparados para as mais difíceis investigações, mas creio que não podem ficar alheios a essa distorção. Gostaria de vê-los antes lutando contra a hierarquização na carreira e contra a tradicional dependência política ao Executivo. O caso a que você se referiu é mais um daqueles paradoxos. Em casos semelhantes não só na 7ª Vara Criminal como em outras, o MPF lutou para que a investigação permanecesse na mesma Vara. Em casos semelhantes nunca alegou nulidade por ter o juiz requisitado de ofício documentos, até porque tais elementos de prova deveriam ser do interesse de qualquer investigador ou acusador minimamente preparado. Mas o caso está repleto desses paradoxos.
ConJur — O tipo de notícia que mais sucesso faz — o que acaba forçando uma produção artificial — é a que trata de corrupção. Em especial no setor público e na política. A precariedade do sistema, a baixa qualidade da mão de obra, a ineficiência e a falta de controles no serviço público não parece incomodar muita gente. Com os seus anos de serviço público, do momento em que o senhor chega ao trabalho até ir pra casa, o que o senhor vê mais: venalidades ou disfuncionalidades?
Ali Mazloum — 
A corrupção é o maior problema hoje do Brasil e está incrustada em todos os setores do serviço público, nos três níveis tradicionais de poder: Executivo, Legislativo e Judiciário. E se entendermos a corrupção como um mal que não está apenas associado ao dinheiro, ao recebimento de vantagens econômicas diretas, mas também à troca de favores com vistas a qualquer tipo de ganho, como promoção na carreira, ascensão funcional, então podemos concluir que a corrupção grassa em grande escala também no Judiciário. Não existe um poder mais corrupto que o outro quando todos utilizam do mesmo sistema no exercício das funções. E é enganoso dizer que a sociedade é corrupta e tolerante. A sociedade abomina a corrupção. Ela decorre, portanto, de um sistema político equivocado e tem causas objetivas.
ConJur — Há interesse de mudar esse sistema?
Ali Mazloum — 
A corrupção pode ser eficazmente combatida, mas não há interesse em mudar. O Executivo para governar distribuiu vantagens ao parlamento, que vão desde cargos até a aprovação de emendas orçamentárias. O Judiciário com sua independência cada vez mais reduzida adere no atacado ao sistema político para viabilizar seus projetos legislativos e verbas orçamentárias, e no varejo, cada qual enxergando apenas a sua própria carreira e seus projetos pessoais de promoções, entram cegamente no jogo de poder na busca de cacife político. É preciso mexer nessas regras do sistema. Então, sendo mais específico, no Judiciário é possível dizer que tanto a disfuncionalidade como a venalidade estão presentes como doenças que se alimentam uma da outra para piorar ainda mais o estado de saúde do paciente. A morosidade acaba sendo um ótimo artifício para o juiz corrupto, que pode escolher o que e quando julgar, de acordo com as suas próprias conveniências e oportunidades. No fundo, não vejo muito interesse em se mudar esse quadro.
ConJur — Como o senhor organizou a sua Vara?
Ali Mazloum — 
Venho trabalhando de forma estratégica desde 2007, quando a Vara tinha um acervo de 4.000 feitos aproximadamente, dentre eles 1.300 ações penais, com casos complicadíssimos e processos com até 100 volumes. Atuei durante a maior parte do tempo sozinho, enquanto algumas Varas chegaram a ter até três juízes concomitantemente. Isso se deve a fatores políticos que marcam nossa Justiça Federal da 3ª Região. Sabia que não poderia contar com o Tribunal para dar conta da grande demanda e tinha minhas experiências pessoais que apontavam exatamente para os gargalos que deveriam ser focados para obter maior celeridade e eficiência. No início, o trabalho foi muito mais braçal, não saía nem mesmo para almoçar. Levava de casa duas frutas que me sustentavam durante o dia. Enquanto as estratégias eram colocadas em prática, os primeiros resultados já podiam ser sentidos. Aplicamos o lema de que todo o esforço inicial em cada processo se reverteria em benefício ao final. Prestar maior atenção na qualidade das denúncias evitava a abertura de um processo que seria apenas um estorvo. A concentração de atos para se evitar o vaivém do processo, as pesquisas antes de se deflagrar alguma citação ou intimações. Enfim, nossa preocupação no manuseio do processo tinha duas vertentes: respeito ao cidadão processado e respeito à sociedade que paga nossos salários e quer ver resultados.
ConJur — Que resultados teve?
Ali Mazloum — 
Atualmente temos apenas 250 ações penais em andamento. Isso significa, para além da qualidade que se pode dar ao serviço, uma economia financeira gerada aos cofres públicos na ordem de 82%. É espantoso. A 7ª Vara custava à sociedade cerca de R$ 2,150 milhões em 2007, ao passo que hoje custa R$ 106.407 Com essas mudanças, percebi, também como cidadão, o quanto o Estado é caro, como usa mal seus recursos. Enfim, a sociedade paga muito caro por um Estado ineficiente. Em todos os setores do serviço público um choque de gestão pode reverter em grande economia. Com o Processo-Cidadão quis mostrar e provar que é possível mudar e a Vara está aberta para quem quiser ver essas mudanças.
ConJur — Como o senhor chegou à conclusão de que esse é o melhor caminho?
Ali Mazloum — 
Para fazer algum sentido o trabalho de julgar, era necessário buscar novos caminhos. Os resultados eram péssimos, com alto índice de prescrição. Essa é a realidade da Justiça Criminal no país como um todo. Para obter resultados diferentes não poderia continuar andando por onde todos teimam em andar. Reconhecer que o Judiciário vai mal foi o primeiro passo. Assumir a responsabilidade pelas mudanças foi outro passo. Depois, extrair de minhas próprias experiências pessoais lições úteis foi decisivo para encontrar o caminho certo a ser trilhado. Em 2006, quando apresentei o modelo que pretendia aplicar aos funcionários, ninguém acreditou que daria certo. Mas eu tinha certeza de que seria um sucesso e que os resultados poderiam ser sentidos logo nos primeiros meses. Hoje minha equipe abraça nosso método de trabalho com muito carinho e está sempre motivada para dar marcha ao serviço de forma eficaz.
ConJur — O senhor também fez mudanças na sala de audiências para que o representante do Ministério Público sentasse no mesmo nível da defesa. Qual a importância dessa mudança para o réu?
Ali Mazloun — 
Creio que essa importante questão constitucional está finalmente sendo discutida pela comunidade jurídica. Trata-se da simbologia que o devido processo legal representa em um Estado Democrático de Direito. Veja o exemplo do uso das algemas pelo réu durante uma sessão de julgamento. Os jurados podem, sim, ser influenciados por esse aspecto cênico do processo, conforme muito bem reconheceu nossa Suprema Corte. E termos um sistema em que o MPF tem assento ao lado do juiz não tem amparo em nenhum princípio democrático do processo. Estamos seguindo apenas uma tradição que vem do regime de opressão militar. O MPF agia como longa manus do regime de força. Isso ainda ocorre nas piores ditaduras, seja de esquerda ou de direita. O Leste Europeu ainda tem resquícios desse tipo de representação do totalitarismo. E temos aqui no Brasil alguns membros do MPF que têm a ousadia de dizer que o assento à direita do juiz deve-se ao fato de representar a instituição o Estado na acusação. Ora, esse é justamente o fundamento que ampara tal modelo na Síria. Temos de mudar essa situação e é o que tenho tentado fazer. Levei a questão ao STF e ainda não há decisão. Todas essas mudanças têm origem no Processo-Cidadão que está sendo aplicado na 7ª Vara. 

sábado, 24 de dezembro de 2011

PEC pretende tirar do MP o poder de investigação

Por Marcos de Vasconcellos

O poder do Ministério Público de investigar em ações criminais, contestado em diversas ações e com diferentes entendimentos, poderá ser cerceado com a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 37/2011) aprovada pela CCJC da Câmara dos Deputados no último dia 13. A proposta define que a competência para a investigação criminal será unicamente da Polícia Judiciária (polícias Federal e civis dos estados e do Distrito Federal).
O autor da proposta, que foi encaminhada a uma comissão especial na Câmara, deputado Lourival Mendes (PTdoB-MA), defende que, pela Constituição, o MP nunca teve a competência ou atribuição de realizar investigações, mas que o número de investigações feitas pela instituição “vem crescendo no decorrer do tempo e está tomando força e proporções impressionantes”.
“O MP cresceu muito e ficou muito forte e está tentando fazer investigação concorrente com a Policia Judiciária. Eles querem chamar para si essa atribuição”, reclama o deputado, que é também delegado da Polícia Federal. Para Mendes, que afirma ser um grande admirador do trabalho desenvolvido pela instituição, o MP pode acompanhar todo o processo investigatório, mas não realizar a investigação. “Eles não fazem bem. É pra ser sigilosa, tem prazos. Há provas que, se não forem colhidas no momento certo e da forma certa, não serão novamente. Está invadindo competência da policia.”
Esquentar investigação
A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) se posicionou totalmente contrária à proposta. O presidente da associação, o procurador regional da República Alexandre Camanho de Assis, afirma que levar toda e qualquer investigação para a polícia só fará com que a Justiça demore mais.
“Se a prova está na fase de análise de documentos que já estão na mão do MP, por que eu deveria ‘esquentar’ essa investigação colocando nas mãos de um delegado que já tem uma fila de 15 mil investigações para fazer?”
Segundo o procurador, a PEC 37 vai na contramão do que se tem buscado, pois, ao se permitir que mais órgão possam realizar investigações, mais célere será a resolução dos casos. “Isso me parece brado de sindicalista, que não está propriamente com a mão na massa”, afirma.
Como exemplo, Assis cita crimes de índole financeira, que são detectados pelo Banco Central, que envia os documentos ao MP. Se aprovado o texto da PEC, o MP não poderá investigar os dados, apenas encaminhá-los à polícia.
Presença garantida
“Paranóia” é o termo utilizado pelo delegado Marcos Leôncio, diretor da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal (ADPF), para definir a preocupação de membros do MP com a aprovação da PEC. Segundo Leôncio, a proposta pretende “fazer o que o constituinte de 1988 quis quando escreveu o artigo 144 da Constituição: que o MP trabalhe junto com as polícias Federal e Civil”.
O problema que acontece atualmente, para o delegado, é que há diversas interpretações “bem complicadas” da Constituição, utilizadas para permitir que o MP investigue crimes sozinho ou em parceria com a Polícia Militar ou a Polícia Rodoviária Federal, que não são polícias judiciárias.
A parceria do MP com outras polícias se dá, segundo Leôncio, na busca por subordinação. “O MP quer ser o tutor, exige posição de subordinação da Policia Judiciária, que responde que as coisas não podem ser daquele jeito, que cada órgão deve usar o seu know-how. Eles vão, então, buscar outras polícias.”
Já para Assis, da ANPR, delegados não devem ter autonomia ou liberdade na investigação, pois isso levaria à produção de provas desnecessárias para o MP. “Delegados trabalham a serviço da magistratura e devem trabalhar apresentando resultados para o MP ou o Judiciário.”
A jurisprudência predominante é que o Ministério Público não pode produzir provas, porém, o reconhecimento do poder de investigar do MP já foi dado em decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça.
Para o TJ-SP, “a prova [colhida pelo MP] é lícita e há que ser admitida. Isto porque a Constituição Federal entregou ao Ministério Público o monopólio da ação penal pública não lhe erigindo qualquer obstáculo como condicionante”.
Já na decisão do STJ, o minstro Og Fernandes afirma que o Ministério Público, como titular da ação penal pública, "pode proceder investigações e efetuar diligências com o fim de colher elementos de prova para o desencadeamento da pretensão punitiva estatal, sendo-lhe vedado tão-somente realizar e presidir o inquérito policial”.
No julgamento do STF, porém, só cabe ao MP investigar em ações delicadas, nas quais pode se tornar questionável a atuação da polícia, em crimes praticados por policiais, como a prática de tortura.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

CRIME ORGANIZADO É MAIS VIOLENTO NA AMÉRICA DO SUL


POR: LUIZ FLÁVIO GOMES

Em 2010, no mundo, de acordo com recente Estudo das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), teriam sido cometidos 468 mil homicídios. Desses, 199 mil teriam sido executados com arma de fogo (42% do total).
Qual parcela desses homicídios cometidos com arma de fogo está relacionada com o crime organizado (ou com gangues)? Em alguns países, especialmente os da América do Sul, a taxa de homicídios cometidos pelo crime organizado é bastante alta. Mas essa realidade e constatação não valem para muitos outros países do planeta.
Na América do Sul, de modo bastante acentuado, combinam-se alta taxa de homicídios com o crescente uso das armas de fogo pelo crime organizado/gangues.
Isso não pode ser afirmado para a África, por exemplo, pela falta de dados dos governos africanos.
Em outros países nem sempre as informações sobre homicídios cometidas por arma de fogo estão diretamente relacionadas com a atividade do crime organizado.
No gráfico abaixo é possível verificar que alguns países possuem taxas de homicídio por 100 mil habitantes baixas, como é o caso de alguns da Ásia, porém a concentração de crime organizado é alta (tal concentração é medida pelo diâmetro do círculo, quanto maior, mais crime organizado há naquele país).
Isto ocorre porque quanto mais bem organizado é o crime, menos violência estará associada ao mesmo. Por organizado entende-se que tudo está funcionando em perfeita ordem, grupos criminosos pagam policiais (oficiais), resolvem tensões entre grupos e intimidam a população em geral, de tal forma que pouca violência adicional se faz necessária. O crime bastante organizado atua mais com “prata” (dinheiro para a corrupção) do que com “chumbo” (violência).
 Clique aqui para ver o gráfico ampliado
O oposto também pode ser verificado no gráfico. Países em que o número de homicídio é alto, cometido com arma de fogo, mas não está relacionado ao crime organizado. É o caso dos Estados Unidos. Detém alta parcela de homicídios cometidos por arma de fogo, pelo fácil acesso às armas (venda liberada).
Temos então: (a) países com grande concentração de crime organizado, sem muita violência (sem uso intenso da arma de fogo) (Ásia, por exemplo); (b) países com grande número de mortes com armas de fogo, sem muita visibilidade do crime organizado (EUA); (c) países (como o Brasil) com grande performance do crime organizado e, ao mesmo tempo, com grande número de mortes geradas por armas de fogo. As regiões do planeta pouco civilizadas e/ou que adotam uma política de segurança pública fundada na prata (corrupção) e no chumbo (violência) são as mais violentas. 
Luiz Flávio Gomes é jurista e cientista criminal. Fundador da Rede de Ensino LFG, diretor-presidente do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). Acompanhe meu Blog. Siga-me no Twitter. Assine meu Facebook.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

PRISÃO POR ILAÇÃO - INVESTIGAÇÕES NÃO SÃO LEVADAS A SÉRIO POR POLICIAIS E JUÍZES

O Habeas Corpus que libertou, nesta terça-feira (20/12), o coronel da Polícia Militar Djalma Beltrami, acusado de receber propina para não reprimir o tráfico em São Gonçalo (RJ), afirma que a "lamentável" prisão do PM baseou-se em escuta que não permite sua identificação.
As gravações apresentadas como provas falam apenas em "zero um", que foi apontado como o codinome do PM, sem que a relação fosse comprovada. Para Paulo Rangel, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que concedeu o Habeas Corpus, a falta de provas mostra que as investigações não são levadas a sério por policiais e juízes.
"Estão brincando de investigar. Só que esta brincadeira recai, no Direito Penal, nas costas de um homem que, até então, é sério, tem histórico na polícia de bons trabalhos prestados e vive honestamente."
Para o desembargador, o juiz que determinou a prisão do coronel se deixou levar "pela maldade da autoridade policial que entendeu que 'zero um' só pode ser o comandante do 7º Batalhão".
A autoridade em questão é o delegado Alan Luxardo, da Delegacia de Homicídios de Niterói (RJ), que afirma existirem provas contra Beltrami. "Ora, se existem provas elas devem ser trazidas aos autos da investigação, à sua superfície e não ficar na gaveta da mesa do delegado, ou quiçá, no bolso do seu paletó", afirma o desembargador, em sua decisão.
Ele questiona o motivo de não ter sido decretada a prisão do "zero dois" que é identificado na gravação de conversa telefônica e ironiza: "Tenho medo de que amanhã falem numa interceptação telefônica que o 'homem da capa preta' está pedindo dinheiro e eu venha a ser preso."
Dezembro Negro
O comandante do 7º Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Djalma Beltrami, foi preso na última segunda-feira (19/12), acusado de receber propina de traficantes de São Gonçalo.
A prisão de Beltrami se deu na Operação Dezembro Negro, na qual a Polícia Civil investiga o pagamento de R$ 160 mil por traficantes para que a venda de drogas não fosse reprimida na região.
Além de PM, Beltrami foi também árbitro de futebol, aposentado em maio deste ano.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

LIMINAR SUSPENDE INVESTIGAÇÕES DO CNJ E GERA NOVO ATRITO NO JUDICIÁRIO

Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski suspendeu investigações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 22 tribunais do país.


A liminar foi concedida na segunda-feira (19) em mandado de segurança ajuizado por três entidades, Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

A ação das entidades foi baseada em outra decisão liminar, tomada pelo ministro Marco Aurélio Mello também na segunda, que limitou os poderes do CNJ para investigar e punir juízes suspeitos de irregularidades. Conforme o pedido das associações, a Corregedoria do CNJ teria efetuado a quebra de sigilo de mais de 200 mil magistrados, servidores e familiares.

Uma das apurações suspensas pela decisão provisória de Lewandowski, conforme o Supremo, se referia a supostas irregularidades cometidas por magistrados do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). O CNJ investigava evolução patrimonial incompatível com a renda de magistrados e recebimento irregular de auxílio-moradia.
Reportagem da “Folha de S.Paulo” publicada nesta quarta-feira apontou que Lewandowski teria recebido os valores de auxílio-moradia que estão sob investigação na época em que era desembargador do TJ, antes de virar ministro do Supremo. O valor, segundo o jornal, chegaria a R$ 1 milhão. A assessoria de imprensa do Supremo não confirmou a quantia.

Segundo o jornal, Lewandowski teria se beneficiado com a própria decisão de suspender as investigações. Em nota divulgada nesta quarta, o ministro Ricardo Lewandowski afirmou não ter sido beneficiado.
"Cabe esclarecer que a decisão de minha autoria não me beneficia em nenhum aspecto, pois as providências determinadas pela Corregedoria do CNJ, objeto do referido mandado de segurança, à míngua de competência legal e por expressa ressalva desta, não abrangem a minha pessoa ou a de qualquer outro ministro deste Tribunal, razão pela qual nada me impedia de apreciar o pedido de liminar em questão."


O Supremo informou que o Ministro analisou o caso em substituição ao relator do processo, ministro Joaquim Barbosa, que não estava no tribunal. O a assessoria do CNJ esclareceu também que o conselho não efetuou quebra de sigilos e que não tem competência para investigar ministros do STF.

Em razão da reportagem do jornal, o presidente do Supremo, Cezar Peluso, afirmou repudiar "insinuações irresponsáveis de que o ministro Ricardo Lewandowski teria beneficiado a si próprio" e criticou “covardes e anônimos vazamentos” de informações.

"Nos termos expressos da Constituição, a vida funcional do ministro Lewandowski e a dos demais ministros do Supremo Tribunal Federal não podem ser objeto de cogitação, de investigação ou de violação de sigilo fiscal e bancário por parte da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça. Se o foi, como parecem indicar covardes e anônimos “vazamentos” veiculados pela imprensa, a questão pode assumir gravidade ainda maior por constituir flagrante abuso de poder em desrespeito a mandamentos constitucionais, passível de punição na forma da lei a título de crimes", diz Peluso na nota.

Ao G1, a corregedora do CNJ, Eliana Calmon, informou que estava em viagem a Bahia, mas decidiu retornar a Brasília para administrar o desconforto criado entre Supremo e CNJ. “Estou cancelando aqui minha estadia e vou voltar para Brasília agora para administrar isso”, disse. “Eu não quebrei sigilo nenhum, absolutamente”, afirmou.

‘Bandidos de toga’

Em setembro, a publicação de uma declaração de Eliana Calmon em que ela dizia que há "gravíssimos problemas de infiltração de bandidos que estão escondidos atrás da toga" abriu uma crise no Judiciário.
Na ocasião, o presidente do CNJ e do STF, Cezar Peluso, emitiu nota de repúdio e chamou de "leviana" a declaração de Eliana Calmon.

O desconforto no Judiciário em setembro foi o responsável, inclusive, por atrasar a votação de pedido da AMB de limitar os poderes do CNJ. Por falta de consenso, a ação entrou na pauta do Supremo 13 vezes, mas não foi julgada. Por conta disso, o ministro Marco Aurélio decidiu tomar a decisão sozinho em caráter provisório.

SUSPENDER PODERES DO CNJ É CORPORATIVISMO

[Editorial publicado no jornal Folha de S. Paulo desta quarta-feira (21/12)]

 A criatividade demonstrada por alguns advogados nos processos judiciais, em busca de brechas na legislação que possam mudar subitamente uma decisão que se afigurava justa, é chamada, no jargão da área, de "chicana". Nesta semana, numa inusitada troca de papéis, o país viu uma dessas manobras ser patrocinada por um ministro do Supremo Tribunal Federal.
O ardil deu-se em meio à discussão de um processo de grande importância para o futuro do Judiciário: a delimitação dos poderes do Conselho Nacional de Justiça.
Criado para ser uma instância de controle, o CNJ tem a missão de combater desvios e aumentar a transparência administrativa e processual do Poder Judiciário.
A decisão do Supremo, como já observou esta Folha, poderá reafirmar essa função ou relegar o órgão a um papel apenas decorativo no jogo de poder da Justiça brasileira.
O ministro Marco Aurélio Mello é o relator do processo, que esteve na pauta da corte ao longo de praticamente todo o segundo semestre deste ano, mas não foi ainda julgado pelo plenário. Em setembro, o próprio ministro-relator chegou a solicitar que a matéria fosse retirada da pauta, alegando que não haveria "clima" para uma decisão.
Para surpresa da opinião pública, que anseia por uma discussão transparente sobre o tema, Marco Aurélio Mello esperou o último dia de trabalho do STF para conceder uma liminar que simplesmente suspende os poderes do CNJ.
Pela decisão do ministro, válida até o tribunal voltar a se reunir, em fevereiro, o Conselho não pode mais agir quando notificado de uma denúncia. Precisará aguardar a apuração a ser conduzida pelas corregedorias estaduais. O ministro também suspendeu o prazo de 140 dias que o CNJ estipulava para que fossem concluídos os processos disciplinares locais.
A consequência é que, até o fim do recesso, o CNJ terá seus poderes reduzidos para investigar eventuais irregularidades envolvendo a atuação de juízes.
O Supremo, com o ministro Mello à frente, tem se revelado, com acerto, contumaz crítico do abuso do governo federal na edição de medidas provisórias. Liminares como esta, que impõem a decisão do ministro sem que o colegiado do STF se pronuncie, de certa forma seguem a mesma linha impositiva da legislação "baixada" pelo Executivo e despertam apreensões quanto ao aperfeiçoamento do sistema de freios e contrapesos na democracia brasileira.
As frequentes movimentações de magistrados com o propósito de cercear a atuação do CNJ evidenciam as dificuldades para superar o tradicional corporativismo do Poder Judiciário, acostumado, há décadas, a lidar com seus problemas intramuros.

OPERAÇÕES DA POLÍCIA FEDERAL DERRUBADAS POR IRREGULARIDADES

Por: ALESSANDRO CRISTO

A lista cada vez maior de megaoperações da Polícia Federal derrubadas nos tribunais superiores já causa efeito moral na cadeia de produção de denúncias. O ruir de volumosos processos criminais devido a irregularidades nas investigações preocupa o Ministério Público Federal, que, embora continue crítico quanto às decisões, começa a se resignar. É o que percebe a procuradora Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, chefe da Procuradoria Regional da República da 3ª Região, que engloba São Paulo e Mato Grosso do Sul. Segundo ela, os procuradores têm absorvido as lições, mesmo a contragosto. “Ninguém quer ver seu caso desmoronar”, afirma.
Ao mesmo tempo, o MPF aprimora suas técnicas de investigação e já fornece know-how à Polícia Federal. É o caso de programas como o Simba, o Sistema Investigação de Movimentação Bancária desenvolvido pelo Ministério Público e repassado à Polícia. O software, que mereceu menção honrosa no Prêmio Innovare na última quinta-feira (15/12), organiza em tempo recorde o resultado de quebras de sigilo e gera planilhas que ajudam os investigadores a encontrar operações suspeitas. Se algo chamar a atenção, o procurador responsável sabe exatamente que prova pedir. E como permite o trânsito via internet de dados fornecidos pelas instituições financeiras, garante uma agilidade inédita nesse tipo de apuração. “Foi um avanço imenso”, diz Frischeisen. “Uma das coisas mais difíceis na quebra de sigilo bancário é a análise.”
No Ministério Público Federal há 19 anos, há 13 Luiza Frischeisen se tornou procuradora regional da República. Comanda pelo segundo mandato a Procuradoria Regional da República de maior destaque nacional. Fez parte da primeira formação do grupo de trabalho do MPF para o combate ao crime financeiro e de lavagem de dinheiro, em 2005. Formou-se em Direito em 1988 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e é doutora em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP, e mestre em Direito de Estado pela PUC-SP. Dá aulas como professora visitante na Universidade de Taubaté (SP) e escreveu o livro A Responsabilidade do Administrador e o Ministério Público. Antes de se tornar procuradora, foi advogada, professora universitária e assessora jurídica na Câmara Municipal de São Paulo.
Frischeisen é personagem de episódios fatídicos da história recente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Foi uma das organizadoras da operação Têmis, deflagrada em 2007 pelo MPF e pela Polícia Federal para investigar uma suposta quadrilha de venda de sentenças no tribunal. Buscas e apreensões foram ordenadas nas casas e nos gabinetes de três desembargadores e dois juízes, com a cobertura maciça da imprensa. Dos 13 réus, hoje nenhum responde a ação penal ou foi condenado.
Em 2004, a procuradora denunciou 12 pessoas envolvidas também em suposto esquema de venda de sentenças investigado na operação Anaconda. Juntamente com as procuradoras Janice Ascari e Ana Lúcia Amaral — aposentada —, acusou juízes, delegados e advogados. Apontado como mentor da quadrilha, o juiz João Carlos da Rocha Mattos acabou preso e condenado, perdendo o cargo na Justiça. Mencionado na acusação, o juiz Ali Mazloum, não incluído na ação penal pela relatora do processo, desembargadora Therezinha Cazerta, processou as procuradoras por denunciação caluniosa, depois que o STJ confirmou a decisão do TRF-3.
Em nome do MPF, Frischeisen levou ao Supremo Tribunal Federal a briga pela dispensa da exigência do diploma de jornalismo, e conseguiu emplacar. Seu recurso contra a decisão do TRF-3 em manter a obrigatoriedade acabou atendido pela corte máxima. Em maio, a procuradora conseguiu decisão no TRF para que continuasse a tramitar o processo penal a que responde o advogado Newton José de Oliveira Neves por envolvimento em esquema de evasão de divisas e sonegação. Ele teve seu escritório invadido por policiais federais em 2005, o que gerou revolta na advocacia e culminou com a Lei 11.767/2008, que passou a garantir a inviolabilidade dos escritórios.
A procuradora concedeu entrevista para o Anuário da Justiça Federal 2012, a ser lançado em fevereiro. Leia a íntegra.
ConJur — Desde que o STF decidiu que o Ministério Público pode investigar, o que tem sido feito nesse sentido?
Luiza Frischeisen — Um dos grandes projetos que implantamos no Ministério Público Federal é a assessoria de análise e pesquisa, que nos permite cruzar dados públicos de acesso restrito. Temos acesso a mil projetos de transparência do governo, como relatórios da CGU [Controladoria-Geral da União]. Para não tratarmos esses dados de uma forma totalmente desordenada, temos a assessoria para fazer a análise. Temos também o Simba, o Sistema de Investigação de Movimentação Bancária. Ele foi totalmente desenvolvido pelo Ministério Público Federal e repassado para a Polícia Federal. Hoje, as quebras de sigilo bancário são enviadas ao MP, com autorizações judiciais, em meio eletrônico. São extratos em planilhas específicas, com base nos quais produzimos relatórios e levamos ao Judiciário. Se tivermos de pedir algum outro cheque, por exemplo, é a partir dessa análise que chegaremos a essa conclusão. Foi um avanço imenso, porque uma das coisas mais difíceis na quebra de sigilo bancário é a análise. Além disso, temos tido uma conversa melhor com a Polícia Federal nos grandes inquéritos, nas grandes operações, para o acompanhamento desde o início das investigações e, especialmente, das interceptações e suas prorrogações.
ConJur — Como a Polícia Federal e o MPF se organizam nas interceptações?
Luiza Frischeisen — A Polícia representa, mas quem requer a interceptação ao juiz é o Ministério Público. Para se manter uma escuta, é preciso apresentar relatórios de 15 em 15 dias. O operacional é da Polícia. Quando o processo termina, todas as interceptações ficam disponíveis para a defesa, digitalizadas, em CD e DVD.
ConJur — Existe um abuso no uso da escuta telefônica como única prova?
Luiza Frischeisen — Não, e o CNJ provou isso. Os levantamentos mostram que não são tantas linhas interceptadas assim. As últimas decisões do STJ que envolveram interceptações, as operações Boi Barrica e Castelo de Areia, por exemplo, foram equivocadas. O ministro Celso de Mello, do STF, tem diversas decisões em favor da denúncia anônima no processo criminal. Há certa incompreensão dos ministros sobre essa questão. Não se pode identificar delação premiada como denúncia anônima. A interceptação começa a partir de uma delação, mas há sempre uma diligência.
ConJur — Uma interceptação pode começar a partir de uma denúncia anônima?
Luiza Frischeisen — Não. Nos casos em que eu atuo e atuei, nenhum começava a partir de denúncia anônima. Para pedir a interceptação de alguém, eu tenho de justificar para o juiz. O problema é que as decisões do STJ são tomadas em Habeas Corpus e, em regra, ele traz as provas que a defesa quer produzir. As informações que são requeridas nunca traduzem de fato o que está no procedimento criminal. Tanto é assim que o Supremo, ao julgar o ministro Paulo Medina [aposentado compulsoriamente do STJ] e avaliar a necessidade de uma das técnicas de investigação mais invasivas, que é a colocação de escuta ambiental, o ministro Cezar Peluso [STF] aprovou. Além disso, em Habeas Corpus não há contrarrazões, apenas parecer. Não há paridade de armas. A apelação é o recurso correto para a discussão de matéria de fato. HC hoje está sendo usado para funções que vão muito além de garantir a liberdade de locomoção. Há casos em que o recurso especial da Defensoria Pública foi inadmitido, mas ela entrou com pedido de Habeas Corpus. Ou seja, com o alargamento das funções do HC, começa-se a anular decisões do tribunal de origem.
ConJur — Como avalia a superação constante da Súmula 691 do STF, para admitir o julgamento de liminares quando a ação principal ainda não teve decisão do tribunal de origem?
Luiza Frischeisen — Quem criou isso foi o próprio Supremo. A Constituição não previa pedido de Habeas Corpus no STF, mas a partir da Reforma do Judiciário, os ministros começaram a admitir alegando que os pedidos envolvem questões constitucionais. Fizeram essa construção jurisprudencial e agora se deram conta de que essa construção, especialmente no STJ, se volta contra eles.
ConJur — O procurador que pede o arquivamento de uma investigação é mal visto pelos colegas?
Luiza Frischeisen — Não. O número de arquivamentos é maior que o de denúncias. É muito difícil defender uma denúncia na qual não se acredita. Pode acontecer também de o procurador mudar sua convicção diante do que a defesa fala, embora isso aconteça muito pouco. Então, ele pede a absolvição de alguém que ele mesmo denunciou. Em 2012, vamos desenvolver um trabalho de controle de inquéritos no grupo do controle externo, que vai avaliar as quantidades e as tipologias dos arquivamentos. Essa é uma preocupação nossa, o que é arquivado e que não é, quanto tempo demoram as investigações etc. Com o Sistema Único, vamos conseguir sistematizar melhor isso.
ConJur — A corrida contra a prescrição é a culpada por denúncias ineptas?
Luiza Frischeisen — Há uma pressão muito grande, mas assim como existem denúncias ineptas, há também sentenças ineptas. Se não houvesse, nós não conseguiríamos revertê-las, ou mesmo modificar a tipificação penal. Isso é do jogo. Mas eu pergunto: por que as denúncias envolvendo sistema financeiro sempre são consideradas ineptas?
ConJur — Por quê?
Luiza Frischeisen — Não sei. Eu atuo no TRF, e aqui não tenho problemas, não trancam minhas denúncias. Trancam no STJ. O que acontece é que algumas decisões do Supremo e do STJ devem ser analisadas do ponto de vista antropológico e sociológico. O Supremo disse que o furto de um disco de ouro não é insignificante e que a pessoa que bebe, pega o carro e mata outra, não assumiu o risco de produzir esse resultado. Aí imperam os bons e velhos vícios da classe média, é o magistrado se vendo na posição do acusado. Ele precisa ter um distanciamento da sua origem social. Em regra, a pena, quando atinge o patrimônio público, é menor que a que atinge o patrimônio privado. Os próprios tipos penais trazem isso: concussão no âmbito público e extorsão mediante sequestro, por exemplo. São crimes muito assemelhados, mas a pena para concussão é menor que para extorsão. O sistema de Justiça não é algo isolado, ele está inserido em um universo, e a legislação também reproduz esse universo.
ConJur — As últimas decisões do STJ e do STF modificaram o comportamento dos procuradores?
Luiza Frischeisen — Sim, ninguém quer ver seu caso desmoronar. A jurisprudência é levada em consideração, as pessoas incorporam. Mas a maior parte dos nossos problemas não se dá nesse nível. Nossos problemas se dão nas grandes questões, nas grandes operações, nas grandes ações penais, que envolvem crimes de colarinho branco, crimes contra a administração e crimes de lavagem de dinheiro. Além disso, temos também uma crítica mais profunda, que não é jurídica. É discutível a forma, por exemplo, como são escolhidos os ministros do Supremo e do STJ.
ConJur — A senhora é uma das defensoras da criação de uma Turma que julgue apenas matérias criminais no TRF-3. Por quê?
Luiza Frischeisen — Porque é essencial para uma tramitação mais rápida dos processos criminais. As turmas da 1ª Seção julgam processos criminais, mas também processos cíveis, que geram muitos agravos. Penas pequenas, de um a dois anos, têm prazos prescricionais pequenos. O problema é que não se pode executar provisoriamente o réu. Então, o julgamento tem que ser muito rápido, e os recursos podem chegar até Brasília. O acórdão não suspende a prescrição. Ações criminais contra prefeitos, deputados e secretários, hoje matérias do Órgão Especial, poderiam passar a ser julgadas por pessoas especializadas na Seção Criminal, como acontece nos tribunais de Justiça. A exceção ficaria por conta de julgamentos de membros do Ministério Público e do Judiciário. Porque no Órgão Especial, hoje, dois terços dos membros são pessoas do Direito Civil, sem contar que, para compor quórum, muitas vezes se chama pessoas que julgam matéria previdenciária.
ConJur — A proposta do ministro Cezar Peluso, de tornar rescisórios os recursos ao STF e ao STJ, permitiria a execução antecipada da pena?
Luiza Frischeisen — Sim, como em qualquer lugar do mundo, menos no Brasil. Em qualquer outro país, o juiz de 1º Grau decide e já se pode executar provisoriamente.
ConJur — Muitas denúncias não perduram por falta de consistência. Como o MPF pode melhorar isso?
Luiza Frischeisen — Há algumas questões em que a gente precisa melhorar. Genericamente, é necessário mitigar o princípio da obrigatoriedade da ação penal. Se não tivéssemos de perder tempo com crimes frequentemente considerados de bagatela, ou pudéssemos negociar com o autor do delito, eventualmente até chegando à possibilidade de acordos de imunidade, mesmo que submetidos a homologação em Juízo, poderíamos avançar mais em crimes financeiros, como lavagem de dinheiro, e nos crimes que envolvem morte. Mitigando o princípio da obrigatoriedade, livraríamos a Polícia de trabalho desnecessário.
ConJur — Por quê?
Luiza Frischeisen — Se recebemos uma representação da Justiça do Trabalho sobre falso testemunho, temos de fazer uma requisição de inquérito. Enche-se a Polícia de requisições de inquérito por crimes de falso testemunho. Já na Polícia Civil, é possível apenas fazer Boletim de Ocorrência, sem dar queixa. É preciso ter a capacidade de selecionar. Daí alguns vão perguntar: “Ah, mas o que vai ser selecionado?” Ora, a regra do sistema é que todos controlam todos. Nós controlamos a Polícia e as homologações têm que ser feitas em Juízo. E é possível mitigar. A Lei 9.099, que criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, é um exemplo, ao permitir a suspensão condicional do processo. Também seria interessante não se dificultar tanto o acesso a dados bancários e fiscais, nem se confundir delação premiada com denúncia anônima. O que as pessoas confundem é quando há uma delação em uma investigação, que abre uma segunda investigação. A delação não é suficiente para a condenação, apenas para o início das investigações, é uma forma de prova. Obviamente, é preciso incorporá-la a outras provas, feitas, por exemplo, por meio de diligências.
ConJur — Existe um levantamento na Procuradoria da porcentagem de rejeições de denúncias?
Luiza Frischeisen — Não. Estamos fazendo um levantamento agora, que deve ficar pronto até o fim do ano, sobre denúncias originárias da Procuradoria Regional. Serão informações dos cinco últimos anos, de rejeições, recebimentos e julgamentos de denúncias.
ConJur — Quais são os principais motivos de rejeição?
Luiza Frischeisen — No caso de prefeitos, por exemplo, o julgamento do recebimento da denúncia é praticamente o julgamento do mérito no Órgão Especial. Eles exigem mais do que apenas a materialidade do crime, é preciso reunir todas as provas da instrução. Um processo recente tratou da prestação de contas da administração fora do prazo, o que é crime. Entendemos que se passar um pouco do prazo, desde que haja uma justificativa razoável, não configura necessariamente o crime material ou formal. O próprio Tribunal de Contas da União entende que se as contas forem apresentadas, estando certas, sem fraude, não há irregularidade. No entanto, uma denúncia pendente de 2010 foi rejeitada recentemente. Eu fiz a réplica e a sustentação oral, afirmando que o prazo foi razoável, embora essa não seja a jurisprudência do STJ. Em outro caso, um ex-prefeito havia usado verbas para fazer um aterro, mas a perícia disse que a obra não tinha sido feita. A denúncia acabou rejeitada porque ele tinha começado a fazer, mas não acabou. Em licitações, isso é complicado, depende muito da postura do relator. É por isso que é um problema o julgador não ser da área criminal. Ou seja, entre as causas para a rejeição estão os fatos de o julgador não entender do assunto e o de ser muito rigoroso, exigindo uma prova quase que pré-constituída, total e completa. Mas, no meu sentir, há mais denúncias recebidas do que rejeitadas no TRF-3.
ConJur — Condenações também?
Luiza Frischeisen — Condenações também, mas o volume não é grande. Aqui, ao contrário da 1ª ou da 5ª Regiões, que recebem muitas verbas federais, os prefeitos respondem pelos crimes na Justiça estadual. É claro que o maior número de delitos praticados pelos prefeitos está na 3ª Região, principalmente no estado de São Paulo, como casos de improbidade, mas a Justiça Federal só tem competência quando a verba é especificamente federal, para um projeto específico, e não de fundos de participação.
ConJur — No julgamento do STJ sobre o recebimento da denúncia feita a partir da Operação Têmis, que envolveu três desembargadores do TRF-3, o relator do caso, ministro Felix Fisher, considerado rigoroso, não aceitou as acusações contra os desembargadores por falta de elementos para iniciar a ação penal. O MPF reconhece algum exagero?
Luiza Frischeisen — Não. O ministro Fisher reconheceu que tudo o que dissemos que havia ocorrido, de fato ocorreu. O que ele afirmou, no entanto, foi que aquilo não era crime.
ConJur — De acordo com a decisão, uma amizade não poderia ser confundida com uma quadrilha.
Luiza Frischeisen — Mas não é questão de quadrilha, é de tráfico de influência, de corrupção. O ministro afirmou que tudo isso não é crime. O processo foi desmembrado e eu fiz a denúncia contra a juíza federal Maria Cristina Barongeno, única punida com aposentadoria. Agora, temos a discussão da Ação Penal. A juíza Ana Paula Mantovani, afirmou que as interceptações que passaram pela análise do ministro Fisher não foram válidas, mas ele em nenhum momento disse isso.
ConJur — Na época, quando concedeu ordens de busca e apreensão, o ministro Fisher ordenou cautela e discrição. No entanto, policiais federais invadiram gabinetes e residências de desembargadores do tribunal com metralhadoras, acompanhados de câmeras de televisão. Por que a recomendação não foi atendida?
Luiza Frischeisen — Mas as apreensões foram feitas com cautela. Eu mesma fui à casa de um dos desembargadores investigados para acompanhar o procedimento. Cada desembargador recebeu acompanhamento de um procurador regional. E tudo foi feito com autorização da Presidência do TRF-3 na época e do relator do inquérito no TRF-3, que sabiam de tudo. E a polícia anda com metralhadora, você quer que ela ande com o quê?
ConJur — E a televisão?
Luiza Frischeisen — A televisão fica sabendo, da mesma forma que a ConJur fica sabendo. Os policiais tinham autorização, e os gabinetes estavam todos avisados, e a OAB também. Quando se faz uma operação como essa, com várias buscas e apreensões, é preciso uma força policial que vem de diversos lugares. É complicado evitar a divulgação. Houve um vazamento inclusive a partir de uma interceptação telefônica. Quando um ofício “bateu” na Telefônica, uma pessoa de dentro da empresa tinha contato na delegacia e acabou falando.
ConJur — O ministro Fisher pediu ao MPF uma investigação sobre abuso de autoridade.
Luiza Frischeisen — Que foi arquivada pelo procurador Rodrigo Fraga. Foi uma representação contra o delegado Luiz Godoy.
ConJur — Algumas medidas do CNJ enfrentam resistência dos juízes. O mesmo acontece na relação entre os procuradores e o Conselho Nacional do Ministério Público?
Luiza Frischeisen — As associações do Ministério Público não têm uma postura anti CNMP, como tem a Associação dos Magistrados Brasileiros. O Ministério Público Federal sempre foi favorável ao controle externo, ao contrário da magistratura. Os conselhos levam a Federação aos estados que não estão muito acostumados com a Federação. Os relatórios de inspeção tanto do CNMP quanto do CNJ afastam qualquer dúvida. As corregedorias locais muitas vezes não querem punir ou são incapazes de punir. Eles não substituem as corregedorias, mas as estimulam. Se não fosse o CNJ, não haveria corregedoria, porque os tribunais nunca foram corregedores de si mesmos. O CJF também passou a ter poder correcional sobre os desembargadores dos TRF muito recentemente, com a modificação da Constituição, com a Emenda 45. O problema é que a Lei Orgânica da Magistratura é muito velha, de 1969, anterior à Constituição de 1988, e não fala praticamente nada de processo disciplinar. É preciso lembrar também que há decisões do CNJ que já foram cassadas pelo STF, o que não aconteceu com qualquer decisão do CNMP, mesmo já tendo havido um afastamento, do procurador Antônio Augusto César, determinado pelo conselho. Ele acabou se aposentando, mas a perda da função está sendo julgada em processo que ainda tramita.
ConJur — As ações coletivas são uma solução para o excesso de processos no Judiciário?
Luiza Frischeisen — Existem vários instrumentos para minorar o número de processos, e a ação coletiva é um deles. Na Justiça Federal, sempre haverá ações repetitivas, devido ao tipo de ação que se propõe nessa Justiça. É muito difícil que alguém tenha algum problema de natureza previdenciária, tributária ou de prestação de serviço que não tenha se repetido com outras pessoas. Em regra, isso gera a possibilidade de o Ministério Público ou uma associação entrarem com uma ação coletiva. Mas para que funcione, o Judiciário tem que aceitar a legitimidade das associações e do Ministério Público para propor essas ações, e o cabimento da Ação Civil Pública para esse objetivo.
ConJur — Existe resistência do Judiciário?
Luiza Frischeisen — Contra a legitimidade, já houve mais. Contra o objeto, a lei que dispõe sobre a Ação Civil Pública já restringiu, mas isso está sendo contornado pelas alterações legais posteriores, como o Estatuto do Idoso, aplicável em matéria previdenciária, e também em função da própria interpretação dos tribunais. A ação coletiva é uma forma de dar conta do interesse difuso, coletivo, individual ou urgente. Já do ponto de vista de questões individuais, os recursos repetitivos e a repercussão geral são fundamentais, porque criam a vinculação da decisão no caso julgado a outros em todos os tribunais.
ConJur — Já é possível sentir os efeitos desses filtros processuais na segunda instância?
Luiza Frischeisen — Isso já fez com que os processos cíveis do Supremo diminuíssem. O importante é, ao escolher os casos a serem sobrestados enquanto a decisão não vem, ter-se o cuidado de analisar se ele é realmente igual ao que está sendo decidido. Isso também vale para a matéria penal. Serve como exemplo um recurso repetitivo em que o STJ firmou entendimento de que não existe crime de contrabando ou descaminho quando o valor da mercadoria é inferior a R$ 10 mil, porque a legislação dispensa a União de ajuizar execução fiscal para cobrar valores até esse limite. Só que contrabando não envolve crime tributário, não é um crime contra a Administração. Mesmo assim, o entendimento que prevaleceu foi o da aplicação do princípio da insignificância. Entretanto, o acórdão não esclareceu sobre a reiteração, ou seja, se a pessoa, de acordo com o entendimento do STJ, tem passe livre para cometer quantos descaminhos ou contrabandos quiser, desde que o valor seja de até R$ 10 mil cada um. Batemos-nos com isso até que o Supremo afirmou que, quando há reiteração, não é possível aplicar o princípio da insignificância. Agora, temos conseguido levar a matéria ao STJ, por meio de agravos de instrumento contra a negativa de admissibilidade de recursos aqui no TRF-3.
ConJur — Em que a decisão do STJ pela aplicação do princípio da insignificância nesses casos afetou os processos em segundo grau?
Luiza Frischeisen — O Recurso Repetitivo do STJ é de 2009. Então, a tendência é que neste ano o número de recursos diminua. Havia um universo muito grande de recursos em sentido estrito [apelação do Ministério Público] contra decisões de juízes rejeitando denúncias ou absolvendo sumariamente pelo princípio da insignificância. Os recursos demoram em ser julgados, muitas vezes, porque a pessoa foi presa ou autuada em Ponta Porã ou Corumbá (MS), mas não mora lá. Então, quando tem de apresentar contrarrazões, é complicado. Além disso, o contrabando e descaminho que se tem hoje é maior. Muitos são os casos de apreensão de cargas de grande volume, por exemplo, de cigarros vindos do Paraguai. No caso de crimes contra a ordem tributária também há impacto, devido à Súmula Vinculante 24 do STF, que determina que a Ação Penal tem que aguardar o fim do processo administrativo. Por isso, houve uma queda na propositura de ações, uma vez que os processos administrativos são lentos.
ConJur — A tramitação direta do inquérito entre a Polícia e o Ministério Público, sem passar pelo Judiciário, ainda gera reclamações dos advogados, que afirmam ter dificuldades para ter acesso aos autos. A alegação é razoável?
Luiza Frischeisen — Os advogados gostam desse terceiro elemento, que é o Judiciário, para que o processo demore mais. Nesses casos, o Judiciário é um elemento cartorial. O que precisa passar pelo juiz e continua passando são as cautelares. Sou a coordenadora do controle externo da Polícia pelo MPF. Fui uma das que trabalhou na resolução do Conselho da Justiça Federal que instaurou o trâmite direto. Temos dados que comprovam que o trâmite direto reduz em 30 ou 40 dias, no mínimo, o período em que o processo leva para diligências.
ConJur — O governo federal criticou a postura do Ministério Público em insistir na tentativa de liminares para paralisar a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. O desenvolvimento também deve ser uma preocupação do MPF?
Luiza Frischeisen — O Ministério Público leva o desenvolvimento em consideração. O problema é que a visão de desenvolvimento nem sempre é a mesma do governo. Uma iniciativa importante do Ministério Público Federal nesse aspecto foi a tomada contra a pecuária ilegal no Pará, instalada em áreas desmatadas. Os procuradores resolveram ir para cima da cadeia produtiva e fazer acordos com supermercados, porque isso é importante para a exportação de carne. O desenvolvimento precisa respeitar limites. Governar não é só abrir estradas.
ConJur — A independência funcional atrapalha o andamento dos processos na Justiça, uma vez que o procurador presente a uma sessão de julgamento pode opinar de forma diferente do parecer do MPF juntado aos autos?
Luiza Frischeisen — Depende. Pode ser que o procurador que atuou no processo não seja o procurador natural do feito, e o procurador natural é justamente o que está na sessão, e quem estará encarregado de recorrer. Uma coisa são as teses institucionais, que estão ligadas às prerrogativas do Ministério Público. E há teses em que há discordância, que vão ser pacificadas nos tribunais superiores. É claro que se procura chegar a teses mais ou menos parecidas. Na tutela coletiva na PRR-3, por exemplo, temos uma disposição de que se um procurador não concordar com a tese do colega, pode passar o processo para outro, de forma a ressalvar seu entendimento. Havia vários pareceres que diziam que a pena por tráfico de entorpecente deveria ser cumprida integralmente em regime fechado. Mas o Supremo disse que não. Nesse caso, o procurador não pode insistir na posição do parecer durante a sessão de julgamento.
ConJur — A senhora está pela segunda vez consecutiva no comando do Ministério Público Federal na 3ª Região. Qual é o balanço de sua gestão?
Luiza Frischeisen — Do ponto de vista administrativo, do ano passado para este ano, a maior transformação foi a integração com a secretaria geral do Ministério Público da União, que é de Brasília. Houve uma transformação interna muito forte, uma modernização na gestão. O planejamento estratégico, que começou no ano passado, já se concretizou e agora estamos numa fase de implementação. Uma das novidades foi o Sistema Único para registro de processos e procedimentos. Faço parte, como representante dos procuradores, da comissão responsável. O que acontece hoje é que procuradorias de primeira instância têm um sistema de registro eletrônico de acompanhamento de processos, as procuradorias regionais têm outro e a Procuradoria-Geral tem um terceiro. Se alguém quiser saber sobre um feito, tem que olhar pelo menos três sistemas. Mas o Sistema Único vai permitir que vejamos o processo de uma só vez, em forma de árvore. Há também um plano de política de tecnologia de informação para o Brasil inteiro, que tem o objetivo de evitar que uma unidade tome uma decisão diferente do plano nacional. A questão das licitações também tem um plano nacional, para que se diminua, via sistema eletrônico, o gasto público. É possível aderir a atas de outras licitações já feitas por outros órgãos públicos, não necessariamente o Ministério Público Federal, como, por exemplo, para compras de determinados materiais como de escritório.
ConJur — Hoje, é possível acompanhar a produtividade dos juízes em levantamentos do CNJ e dos tribunais. Há algo parecido no MPF?
Luiza Frischeisen — O Projeto Transparência, que verifica, por exemplo, quantas sessões cada procurador está fazendo, quais são os processos que cada um tem, quais são os contratos em vigor na administração etc. Ampliamos o projeto para a atividade processual, para colocar isso na internet. Hoje, toda a movimentação processual está disponível na internet. Somos a única unidade do MPF que tem isso. Em outras unidades é possível ver o que está no processo, mas não o conjunto de textos, as manifestações, o que a nossa página permite. É possível ver quantos processos estão no gabinete de cada procurador, qual o número de cada um e quando entraram. Se esse processo não for sigiloso, é possível ver sua movimentação e a manifestação do procurador. O “PRR-3 em Números” é o resultado de tudo isso, que leva em consideração também a Meta 2 do CNJ.