quarta-feira, 30 de junho de 2010

TESTAMENTO, TODO MUNDO PODE FAZER UM

Por Ivone Zeger

Embora sejam muito populares em outros países, entre nós eles não são assim tão comuns. Estima-se que, no Brasil, menos de dez por cento das pessoas que deixam herança o fazem por meio de testamento. Isso se deve em parte por razões culturais, em parte pela desinformação. As razões culturais estão relacionadas, em parte, à falta de hábito de pensar a longo prazo. Se não são muitos os que costumam traçar metas para os anos vindouros e planejar a aposentadoria, o que dizer então de pensar na distribuição de seus bens após a morte?

Não se pode desconsiderar, também, uma certa dose de superstição. Já ouvi gente dizendo que fazer testamento trazia “maus agouros”. Ora, sem querer entrar na seara da filosofia, se existe uma coisa certa na vida é o fato de que um dia a deixaremos. Sendo assim, porque não facilitar a vida de seus descendentes, organizando, com antecedência, a distribuição dos bens que no futuro eles irão herdar?

Outro problema que torna muita gente avessa a esse procedimento é a falta de informação. Não são poucos os que dizem: “Fazer testamento, eu? Mas meu patrimônio é tão modesto. Testamento é coisa de rico”. Ledo engano. A lei não impõe restrições quanto ao tamanho do patrimônio de quem deseja testar. Mesmo quem possui poucos bens tem o direito de fazer um testamento.

Uma das vantagens é que, assim, você tem a oportunidade de organizar a partilha de seus bens quando não estiver mais aqui para olhar por eles e, em certa medida, contribuir para evitar eventuais desentendimentos entre os herdeiros. Outra vantagem é que, por meio do testamento, você poderá beneficiar pessoas que não teriam o direito de receber coisa alguma caso a partilha ocorresse na ausência desse documento. Isso porque, na inexistência de um testamento, a partilha se dá por meio da chamada sucessão legítima, que privilegia os herdeiros necessários (filhos, netos e bisnetos, pais, avós e bisavós, e cônjuge).

Não havendo herdeiros necessários, os próximos na linha sucessória são os irmãos, tios, sobrinhos e primos. E não havendo nenhum desses, a herança é considerada jacente, ou seja, fica à disposição do estado. Portanto, se você possui herdeiros necessários, mas deseja beneficiar também algum outro parente, ou um antigo funcionário, ou mesmo uma instituição de caridade, só poderá fazê-lo por meio de um testamento.

A lei exige que o testador (o autor do testamento) seja maior de 16 anos e capaz (isto é, que tenha pleno uso de suas faculdades mentais). E não há limite de idade. Mesmo quem está à beira de seu centésimo aniversário pode testar, desde que sua lucidez tenha sido preservada. Outra informação importante é que, quem possui herdeiros necessários, só pode dispor da metade de seus bens em testamento, pois a outra metade é obrigatoriamente reservada a eles. Quem não os possui, porém, pode dispor de todo o seu patrimônio como quiser.

Há três modalidades mais comuns de testamentos: o público, o cerrado e o particular. Os dois primeiros são feitos em cartório, na presença de duas testemunhas, sendo que o público tem seu conteúdo conhecido e o cerrado é mantido em segredo. O particular é feito na presença de três testemunhas e não é registrado em cartório. Pode parecer mais simples, mas não é necessariamente mais seguro: se as testemunhas tiverem morrido ou não puderem ser encontradas no momento de sua abertura, o testamento corre o risco de ser anulado. Por fim cabe lembrar que o testamento pode ser refeito ou alterado quantas vezes o testador quiser.

Pense nisso: você tem o direito de organizar a partilha do patrimônio que tanto se esforçou para construir. E usufruir desse direito é muito mais simples do que se imagina.

terça-feira, 29 de junho de 2010

INVALIDAR USUCAPIÃO DE BEM PÚBLICO É MITO

Por Paulo José Castilho

Atribui-se a Joseph Goebbels, o ministro da propaganda nazista, a seguinte frase: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.

No Direito, às vezes, ocorre algo semelhante, mas não como uma mentira deliberada. Repete-se à exaustão certos enunciados jurídicos que mesmo sem maiores ponderações sobre aquilo que se está afirmando, tais enunciados acabam considerados verdade sacrossanta e incontestável.

Longe da intenção deliberada e direcionada de Goebbels em ludibriar, na área jurídica ocorre algo bem mais próximo daquilo que observou Santo Agostinho ao reparar que “quem enuncia um fato que lhe parece digno de crença ou acerca do qual forma opinião de que é verdadeiro, não mente, mesmo que o fato seja falso”, ou seja, não há má-fé, mas sim uma apreensão irreal da realidade, na maioria dos casos em decorrência da falta de análise mais detida ou simplesmente por preguiça mental de se debruçar com mais cuidado sobre determinado caso, afinal é muito mais fácil lançar mão de um enunciado já pronto do que estudar a fundo um problema até se obter a prova real da solução.

Um bom exemplo disso é o enunciado sempre repetido de que “Não cabe usucapião de terra de devoluta” ou “Não cabe usucapião de bem público”.

Mas será que realmente é assim, será verdade que aquele que por anos e anos a fio tem ou teve a posse, sem qualquer objeção de fato ou questionamento judicial, de uma área rural ou mesmo um terreno urbano não poderá adquirir a propriedade plena e definitiva do imóvel por usucapião simplesmente por estarem localizados em área considerada terra devoluta ou pertencente ao Estado?

Em verdade, dizer que não se pode adquirir a propriedade por usucapião de imóvel localizado em área considerada como devoluta é um mito a ser desmascarado, principalmente na região oeste do nosso Estado, onde, alguns anos atrás, de uma hora para outra, como num passe de mágica, grandes áreas de terra passaram a ser consideradas devolutas. Mas isso é tema para outra ocasião.

Primeiramente vale esclarecer que dentre estes bens integrantes do domínio público existem aqueles que estão afetados a um fim público, e outros não. Assim, uma rua é exemplo de bem afetado a um fim público, pois é óbvia a sua destinação de servir a coletividade, no caso, como via de passagem de veículos e pessoas. Mas outros existem, embora considerados públicos, simplesmente não estão destinados à nada, como abandonados. Essas seriam as devolutas, que não pertencem ao particular e tampouco encontram-se destinadas a fins administrativos específicos, isto é, são terras não aplicadas ao uso comum (ruas, praças, etc.) nem ao uso especial (museus, escolas, etc.), como áreas sem dono. Não estão registradas como públicas!

Ora, então se a terra não está registrada como pública, não pode ser tida como presumidamente pública por tratar-se de terra devoluta, mas sim, nos termos da lei civil é terra de ninguém e portanto, usucapível.

Somente quando houver prova cabal, por parte do ente público de que a terra em questão é pública, não haverá a possibilidade de aquisição da propriedade plena pela usucapião. Não existe presunção de que determinada área de terra seja pública.

Em suma, cabe ao Estado, provar que a terra é pública e não ao particular. Então, se o Estado não lograr êxito em provar que o imóvel o qual está se pretendendo adquirir a propriedade plena por meio da usucapião lhe pertence, caso a parte interessada preencha os demais requisitos exigidos em lei (intenção de domínio, ausência de oposição e tempo de posse), tal pretensão haverá de lhe ser deferida em juízo, como aliás repetidas vezes já decidiu o Supremo Tribunal Federal.

Mas e se houver esta prova de que o imóvel, embora não afetado, é bem público, ou seja, e se o Estado tiver alguma prova de que o imóvel lhe pertence (por exemplo, um registro imobiliário), será que cai por terra qualquer possibilidade de usucapião?

De fato, a Constituição diz em seu art. 183, parágrafo 3º que “os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”, regra repetida no art. 102 do Código Civil. À primeira vista, portanto, parece claro que nessa situação, isto é, quando houver prova de que o imóvel possa ser considerado “bem público”, teriam toda razão aqueles que gostam de entoar o mantra, para eles sagrado: “não cabe usucapião de imóvel público”.

Porém, não é bem assim.

O direito real de propriedade pode ser analisado de acordo com os direitos exercidos pelo proprietário sobre seu bem. O art. 1.228 do Código Civil elenca tais direitos como sendo os de usar, gozar, dispor e reivindicar o bem. A faculdade de usar (utendi) consiste no poder de servir-se da coisa, explorando-a diretamente ou por intermédio de terceiro. Gozar (ius fruendi), compreende o poder de extrair do bem todos os rendimentos que ela é capaz de produzir. Assim, posso usar meu imóvel de modo a alugá-lo, e dele gozar os rendimentos dessa locação, percebendo os aluguéis (frutos civis). Dispor (ius abutendi) consiste no poder de desfazer-se da coisa, aliená-la a terceiro, seja a título oneroso ou gratuito. E por fim, reivindicar é a prerrogativa do proprietário de excluir a ingerência de terceiros sobre coisa sua, é o poder de buscar a coisa que esteja indevidamente em mãos alheias.

Destarte, propriedade plena é a reunião, na pessoa de seu titular, de todos os poderes acima mencionados.

Justamente por essa possibilidade de desdobramento dos poderes inerentes à propriedade plena é que nosso ordenamento permite que a pessoa adquira somente parcelas deles, como é o caso do usufruto, por meio do qual se pode conferir a alguém todos esses poderes, menos o de dispor e do reivindicar.

Nessa linha, também é possível por meio da usucapião adquirir tanto a propriedade plena como parcelas desse direito de propriedade, notadamente aqueles consistentes em usar, gozar e ter fruição sobre a coisa, exercendo sobre ela o chamado domínio útil.

Ora, então determinado imóvel, ainda que conste alguma prova de ser pertencente ao Estado, se o mesmo não está afetado a nenhuma destinação pública, como abandonado fosse, não exercendo diretamente o Estado sobre ele o direito de propriedade, ou pela destinação ao uso comum, ou especial, ou pelo conferimento de poder de uso ou posse a alguém, se um particular dele se apossa e o utiliza, por exemplo, para moradia, este é quem de fato está a usar e a gozar do imóvel, exercendo sobre ele o domínio útil.

Neste cenário, implementadas os condições de qualidade e de tempo de posse exigidos em lei, poderá esse possuidor pleitear a usucapião do domínio útil do imóvel, sem que isso signifique qualquer infração à regra constitucional, pois o bem não deixará de pertencer ao Estado, apenas seu domínio útil (seu uso) será de titularidade do particular. Não haverá aquisição da propriedade plena, mas apenas de parcela desse direito real de propriedade. Haverá um desdobramento dos poderes de proprietário, mas o Estado continuará sendo seu titular, tornando-se nu-proprietário, e o particular exercendo o domínio direito sobre o bem.

Nesse sentido foi o entendimento do legislador ao estabelecer no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) que o Estado deverá se valer, como instrumento de política urbana, dentre outros, da concessão de direito real de uso e da concessão de uso especial para moradia (art. 4º, inciso V, alíneas “g” e “h”). Ora, então se o próprio Estado contempla o dever de conceder esse direito real de uso e moradia sobre seus bens, inclusive como forma de concretizar o direito fundamental de moradia (art. 6º da Constituição), nada impede que o particular adquira tal direito real por meio da usucapião.

Com esse escopo de implementar o direito fundamental à moradia, a Lei 11.977/2009, que traçou as bases legais do programa “Minha Casa, Minha Vida”, trouxe normas a respeito da legislação fundiária de assentamentos urbanos, estabelecendo em seu art. 46 que “a regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. E dentre essas medidas jurídicas, a lei inclusive instituiu uma interessante nova espécie de usucapião, porquanto para essa nova modalidade, dispensou a propositura de ação judicial, facultando àquele que tenha obtido do poder público um título de “legitimação de posse”, requerer diretamente ao oficial de registro de imóveis, a conversão desse título em registro de propriedade (“Art. 60. Sem prejuízo dos direitos decorrentes da posse exercida anteriormente, o detentor do título de legitimação de posse, após 5 (cinco) anos de seu registro, poderá requerer ao oficial de registro de imóveis a conversão desse título em registro de propriedade, tendo em vista sua aquisição por usucapião, nos termos do art. 183 da Constituição Federal”).

Note-se que a legitimação de posse, no termos do art. 59 dessa mesma lei, é um direito conferido em favor do detentor da posse direta para fins de moradia.

Ora, se quem exerce a posse direta para fins de moradia de um imóvel público (evidentemente um imóvel não afetado) pode obter legitimação dessa posse, e empós, decorridos cinco anos, a propriedade plena desse imóvel mediante simples requisição ao oficial do registro de imóveis, evidentemente nada impede, caso seja necessário diante de uma inércia do poder público, que busque obter tais direitos pela via judicial.

Portanto, tudo isso conduz à conclusão de que mesmo tratando-se imóvel considerado público, é perfeitamente possível sobre ele incidir a usucapião, pelo menos para obtenção de uma parcela menor do direito de propriedade que é o direito de uso especial para moradia.

O uso dessas medidas jurídicas aqui discutidas resolveria a situação de muitos moradores da cidade de Primavera (SP), onde já há bastantes anos várias famílias exercem a posse para fins de moradia de casas construídas pelo Estado para os trabalhadores empregados na construção da hidrelétrica de Porto Primavera, sendo que de tempos em tempos são importunados pela CESP com ameaças de retomada dos imóveis, despejos, etc.. Não consta que tais imóveis tenham regular titulação, de maneira que esses moradores podem regularizar a situação de suas casas por meio da usucapião, livrando-se de uma vez por todas dos eventuais dissabores que CESP tenta causar, seja porque não há prova de que esses imóveis sejam públicos, seja porque, pelo tempo de posse, independentemente de trataram-se de imóveis públicos ou particulares, têm direito ao domínio útil ou ao uso especial de moradia.

Com cuidado, nem sempre uma mentira contada mil vezes será verdadeira.

DESCAMINHO NÃO É CRIME SEM LANÇAMENTO DE CRÉDITO

Por Durval Carneiro Neto

Considerando a política criminal adotada no Brasil, buscamos aqui defender que o delito de descaminho deve ser incluído na categoria dos crimes contra a ordem tributária, ocorrendo atipicidade nos casos em que tenha havido decretação administrativa de perdimento de mercadoria, por ausência de lançamento definitivo do tributo.

O caput do artigo 334 do Código Penal descreve a conduta proibida nos seguintes termos: "Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria". A segunda parte do dispositivo (com grifo) refere-se ao tipo legal do descaminho, enquanto a primeira parte tipifica o contrabando.

Especificamente quanto ao descaminho, reconhecemos que a jurisprudência é ainda conflitante no que concerne a sua natureza jurídica, a começar pelo fato de estar tipificado em capítulo do Código Penal que trata dos crimes contra a Administração Pública, razão pela qual, entendem alguns, não seria propriamente um crime contra ordem tributária de que trata a Lei 8137/90.

Diverge-se ainda sob o argumento de que o delito de descaminho visaria à proteção de outros bens jurídicos que não a mera arrecadação de tributos. Essas divergências têm implicações na incidência ou não do regime jurídico já reconhecido aos crimes fiscais, basicamente sob dois aspectos:

i) necessidade de lançamento definitivo (prévio esgotamento da via administrativo-fiscal) como elemento objetivo do tipo penal, consoante decidiu o STF em 10/12/2003 (HC 81.611-8/DF), entendimento que deu origem à Súmula Vinculante 24.

ii) extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo ou suspensão da pretensão punitiva em caso de parcelamento de tributo (art. 9º da Lei 10.684/2003).

O cerne da questão, por conseguinte, está em saber se uma pessoa acusada de descaminho (que geralmente teve toda a sua mercadoria sumariamente apreendida e confiscada pela Receita Federal, sem opção de pagamento de tributos correspondentes) deve de logo responder a um processo criminal, enquanto grandes sonegadores (que muitas vezes se valem de complexos esquemas fraudulentos para esquivar-se das obrigações fiscais, inclusive com emprego de “laranjas”) somente venham a responder criminalmente após o lançamento definitivo do tributo e ainda assim tenham a oportunidade de efetuar o pagamento da dívida tributária, livrando-se a qualquer tempo da responsabilidade criminal.

Esse último argumento, pautado na busca por justiça e equidade, conforme os ditames constitucionais, já seria suficiente a justificar um tratamento isonômico em relação ao descaminho. Não bastasse isso, consoante veremos, a solução aqui defendida encontra fundamento jurídico na própria legislação tributária, bem como nos parâmetros traçados pela jurisprudência no tocante à criminalidade fiscal.

Insuficiência do argumento legal-topográfico


O argumento legal-topográfico – o fato de o descaminho estar tipificado no Código Penal, em capítulo dos crimes contra a administração pública – obviamente não é suficiente a concluir que devesse merecer tratamento jurídico diferenciado dos demais crimes contra a ordem tributária.

Primeiro por uma razão histórica, porque à época da edição do Código Penal de 1940 ainda não havia tipificação geral dos crimes contra a ordem tributária, existindo apenas o tipo do art.334 referente ao contrabando e descaminho. Naquele contexto, as demais condutas violadoras da ordem tributária somente poderiam mesmo ser enquadradas como crimes contra a Administração ou ainda como estelionato ou falsidade. Com o advento da Lei 4.729/65, e depois com a Lei n. 8.137/90, a matéria passou a ser tratada em legislação penal específica, porém ainda assim o legislador optou por manter a tipificação do descaminho no art. 334 do CP, alterando apenas a redação da norma original.

Em segundo lugar, o referido argumento cai por terra diante do fato de que outros delitos vieram a ser também inseridos na redação do Código Penal, não obstante lhes tenha sido conferido o tratamento jurídico comum a todos os crimes fiscais. É o que ocorre, v.g., com o crime de sonegação de contribuição previdenciária (art.337-A do CP, introduzido pela Lei 9.983/2000, no mesmo capítulo dos crimes contra administração pública). Saliente-se que, antes da introdução deste dispositivo no Código Penal, a tipicidade da conduta se dava nos termos da referida legislação penal especial (art. 1º, I, da Lei 8.137/90 c/c art. 95 da Lei 8.212/91). O mesmo se deu com o tipo penal de apropriação indébito previdenciária, que também veio a ser posteriormente introduzido no Código Penal (art.168-A).

Identidade de bens jurídicos protegidos nos crimes contra a ordem tributária

O que se disse bem demonstra que todos os crimes fiscais inserem-se no contexto de proteção aos amplos interesses da Administração Pública, estejam eles tipificados no Código Penal ou em legislação esparsa.

E não poderia ser diferente, porque ao se buscar classificar a norma criminal com base no bem jurídico por ela tutelado, sobretudo nos chamados crimes complexos ou pluriofensivos[1], deve-se observar os elementos subjetivos do tipo penal (teoria finalista da ação).[2]

Sendo assim, ao se examinar o tipo penal do art. 334 do CP (caput, 2ª parte), vê-se que o bem jurídico tutelado é prioritariamente o mesmo dos demais crimes fiscais, ou seja, a ordem tributária em seu sentido amplo, consubstanciada no interesse da Administração Pública numa regular arrecadação de tributos para fazer frente às necessidades coletivas, bem como em aspectos extrafiscais.

Essa discussão sobre a natureza tributária do crime de descaminho é antiga no Brasil.

Ainda durante a vigência do Decreto-lei 157/67, que previa regras de extinção de punibilidade em relação a todos os crimes envolvendo dívidas tributárias[3], o STF editou a Súmula 560[4] reconhecendo que o benefício haveria de ser aplicado também ao crime de descaminho, situação que só veio a ser modificada quando a Lei 6.910/81 revogou genericamente o benefício.

Isso demonstra que a política criminal vigente ao tempo do DL 157/67 levou em conta a identidade de bens jurídicos protegidos tanto na imputação de descaminho quanto nos crimes de sonegação tratados na Lei 4.729/65.

É certo que com a edição da Lei 8.137/90 (art.14), seguida depois pela Lei 9.249/1995 (art.34) e finalmente pela Lei 10.684/2003 (art.9º), restabeleceu-se no ordenamento jurídico brasileiro a possibilidade de extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo objeto do crime fiscal, tendo essa nova legislação se limitado a conceder o benefício aos acusados por crimes definidos na Lei 8.137/90 e nos artigos 168-A e 337-A do Código Penal, sem nada mencionar quanto ao tipo penal do art. 334.

Não obstante, parece-me que a mesma razão de tratamento isonômico que justificou a edição da antiga Súmula 560 do STF deve agora prevalecer, mormente em vista dos ditames igualitários da Carta Magna de 1988, não havendo razão jurídica para se diferenciar o descaminho e os demais crimes de natureza fiscal.

Ora, o descaminho nada mais é do que uma modalidade de sonegação fiscal especificamente relacionada a operações aduaneiras. O núcleo do tipo do art.334 ("iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto"[5]) é exatamente o mesmo da sonegação fiscal previsto no artigo 1º da Lei 8.137/90 ("suprimir ou reduzir tributo").

Não se diga simplesmente que o descaminho teria um ingrediente diferencial consistente na proteção do comércio e da indústria nacional, porque o mesmo se verifica em outras situações configuradoras dos delitos tipificados na Lei 8137/90, mormente quando estejam envolvidos impostos de importação e exportação, sem olvidar que a correlativa proteção de interesses extrafiscais é uma marca característica de toda legislação tributária, existindo ainda, ao lado disso, legislações penais que tratam especificamente dos crimes contra a ordem econômica (Lei 8.176/90) e contra a ordem financeira (Lei 7.492/86).

Sendo (a proteção do comércio e da indústria nacional) um ingrediente comum a diversos crimes de natureza econômica, não deve servir racionalmente como elemento diferenciador do regime jurídico, inexistindo, por conseguinte, uma razão lógico-jurídica para se tratar o descaminho de modo diferente dos demais crimes contra a ordem tributária.

No julgamento do HC 48.805-SP (STJ, relatora: ministra Maria Thereza de Assis Moura), deixou-se assentado que “o crime de descaminho é intrinsecamente tributário, ou seja, tutela-se o direito que o Estado tem de instituir e cobrar impostos e contribuições”.

Apesar de não se tratar ainda de matéria pacificada, já há outros precedentes do STJ caminhando nessa mesma linha, como se infere no teor da seguinte ementa:

PENAL – HABEAS CORPUS – DESCAMINHO – TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL – AUSÊNCIA DE PRÉVIA CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO NA ESFERA ADMINISTRATIVA – NATUREZA TRIBUTÁRIA DO DELITO – ORDEM CONCEDIDA.

1. Consoante recente orientação jurisprudencial do egrégio Supremo Tribunal Federal, seguida por esta Corte, eventual crime contra a ordem tributária depende, para sua caracterização, do lançamento definitivo do tributo devido pela autoridade administrativa.

2. O crime de descaminho, por também possuir natureza tributária, eis que tutela, dentre outros bens jurídicos, o erário público, deve seguir a mesma orientação, já que pressupõe a existência de um tributo que o agente logrou êxito em reduzir ou suprimir (iludir). Precedente.

3. Ordem concedida para trancar a ação penal ajuizada contra os pacientes no que tange ao delito de descaminho, suspendendo-se, também, o curso do prazo prescricional.



(HC 109205/PR, Relatora: Min.JANE SILVA, DJ de 09/12/2008).





Reforçando esta tese, podemos ainda mencionar as decisões do STF considerando que o tipo penal do art. 334 (caput, 2ª parte) não incide nas situações em que o valor tributário envolvido não conduziria à cobrança fiscal, aplicando-se, por conseguinte, o princípio da insignificância.[6] São os casos em que o valor estimado dos tributos respectivos não ultrapassaria R$ 10 mil (valor fixado pela Lei 11.033/04), porquanto o art. 20 da Lei 10.522/02 determina o arquivamento das execuções fiscais.



Essa aplicação do princípio da insignificância nas hipóteses de descaminho faz sobressair bem a natureza patrimonial do bem juridicamente protegido, quando se sabe que a jurisprudência não tem acolhido a aplicação deste princípio nos casos em que a lei penal protege valores não patrimoniais[7].





Descaminho como um crime fiscal material



Tal qual acontece com as modalidades de sonegação fiscal tratadas no art.1º da Lei 8.137/90, o descaminho há de ser considerado um crime material, porque exige, para a sua consumação, a ilusão no pagamento integral ou parcial do direito ou imposto.



A simples leitura do tipo (art.334, caput, 2ª parte) deixa transparecer que não se trata de crime meramente formal. A lei fala em iludir o pagamento, e não apenas em adotar medidas materiais com essa finalidade.



Serve aqui o mesmo raciocínio utilizado pela doutrina para distinguir os crimes materiais e formais tipificados na Lei 8.137/90. Ao diferenciar os crimes previstos nos arts. 1º e 2º desta Lei, José Paulo Baltazar Júnior leciona que os tipos penais nos crimes formais costumam ser construídos com expressões tais como “para”, “com o fim de”, “a fim de” etc.:



“A diferenciação mais aceita é no sentido de que o art.1º é um crime material por exigir a efetiva supressão ou redução do tributo, contribuição ou qualquer acessório para sua consumação. Já no art.2º inexiste essa referência no caput, estando mencionada a supressão ou redução do tributo no próprio inciso I, antecedido da proposição para. Ora, sempre que o tipo for construído com expressões tais como para, com o fim de, a fim de, etc., a elementar que se seguir constitui elemento subjetivo do tipo. Basta que o agente tenha aquela finalidade, ou seja, não é preciso que o que está descrito depois da preposição efetivamente se concretize para consumar o crime. Desse modo, se o contribuinte é autuado pela fiscalização tributária após ter cometido a falsidade tendente a reduzir o valor do tributo, estará consumado o delito do art.2º, I, ainda que não tenha vencido o prazo para o recolhimento (Seixas Filho: 426).



Daí resulta que o inciso I do art.2º é a forma tentada do art.1º. Assim, em vez de utilizar o art.14 do CP, para fazer a adequação típica da tentativa, utiliza-se o inciso I do art.2º.”[8]



Destarte, a consumação de descaminho exige que tenha havido entrada ou saída de mercadoria do País e que a autoridade competente constitua o crédito tributário que deixou de ser declarado nessa operação, caracterizando com isso ter havido imposto ou direito cujo pagamento foi iludido, consoante veremos no tópico a seguir.



Necessidade de prévio processo administrativo fiscal nas hipóteses de descaminho



Sendo um crime material de natureza tributária, cujo núcleo do tipo está em iludir o pagamento de direito ou imposto, o descaminho pressupõe que a autoridade fiscal competente determine e exija o crédito tributário por meio de um processo administrativo fiscal em que seja assegurada a ampla defesa e o contraditório.



Não vamos aqui nos estender num debate em torno do conceito de “tributo” na ciência jurídica, nem sobre a distinção entre “obrigação tributária” e “crédito tributário”, ou outros institutos estudados pelo Direito Tributário tais como “hipótese de incidência”, “fato gerador”, “lançamento ou crédito tributário”.



Ao menos para fins penais, esta questão foi superada pela jurisprudência do STF ao tratar dos crimes fiscais materiais. Pacificou-se que o prévio e definitivo lançamento tributário é requisito para se constatar a existência do “tributo” suprimido ou reduzido, de modo que antes disso o tipo penal simplesmente não se configura. Isto é, a existência do tributo é elemento objetivo do tipo[9] nos crimes materiais fiscais, tal como consta na Súmula Vinculante 24 do STF:



“Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, inciso I, da Lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo” (destaquei).



Esse preceito não decorre da suposta existência de um grau de comunicação entre as instâncias administrativa e criminal, nem tampouco do estabelecimento de uma regra de dependência decisória daquela em relação a esta. Ao que parece, o STF considerou simplesmente que a constituição formal do crédito tributário, por meio do lançamento definitivo, é pressuposto para a própria ocorrência do crime.



Há bons argumentos para se criticar esse posicionamento do Supremo[10]. Porém, havendo Súmula sobre o tema, discordar deste preceito vinculante soa como exercício de argumentação puramente dialético em torno da melhor política criminal a ser adotada na definição dos elementos de tipicidade nos delitos fiscais[11], tal como poder-se-ia também sustentar em relação à expressa previsão legal de extinção da punibilidade pelo pagamento[12]. Apesar de não considerarmos adequada esta política criminal que vem sendo adotada no Brasil, não é o que aqui se discute.



Vale dizer, o presente texto não se ocupa em questionar o mérito da decisão do STF retratada na Súmula 24. Toma-a simplesmente como premissa e, a partir daí, busca prolongar o debate jurídico apontando argumentos que, numa lógica sistemática, tornam forçosa a aplicação do mesmo entendimento às hipóteses de descaminho.

Ressalte-se que apesar de a Súmula Vinculante 24 fazer menção à modalidade de sonegação fiscal prevista no art.1º, I, da Lei 8.137/90, a mesma razão justifica idêntico tratamento jurídico em relação aos demais crimes fiscais materiais.



De mais a mais, homenageia-se o princípio constitucional da isonomia – uma vez que a política criminal na área fiscal tem notadamente se voltado à arrecadação como fator preponderante[13] – bem como aos princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade, porquanto, nos casos de descaminho que já comportem a mais pesada das sanções administrativas, o confisco, tal já se revela suficiente a inibir a prática de novos delitos, bastando para isso que haja a devida fiscalização pela polícia administrativa.



Perdimento de bens como obstáculo à incidência do tipo penal do descaminho



Ao lado das situações em se procede ao desembaraço aduaneiro, mediante lançamento fiscal definitivo do tributo incidente sobre os bens importados ou exportados, com aplicação de multa se detectada alguma irregularidade, há situações em que o Fisco dá início a um procedimento confiscatório.



São os casos em que a autoridade fiscal, após apreender a mercadoria, vem a aplicar a pena de perdimento, uma sanção administrativa prevista em norma legal (art. 105 do DL 37/66) e em regulamento aduaneiro (art. 689 do Decreto 6.759/2009), mas que acaba por impedir o próprio lançamento fiscal. Vale dizer, ao invés de simplesmente liberar a mercadoria e proceder regularmente à constituição do crédito tributário sonegado, acrescido de penalidades pecuniárias, a Receita Federal instaura de logo um outro processo administrativo para legitimar o confisco dos bens.



Ao assim proceder, o Órgão Fiscal não pode lançar o tributo, haja vista que a lei prevê a expropriação de bens, os quais inclusive poderão ser objeto de alienação ou incorporação[14], ressarcindo ao Erário o que deixou de ser recolhido. Tributar, nessa situação, configuraria até mesmo um enriquecimento sem causa por parte do Estado.



De fato, a importação de mercadorias, ao desamparo de guia de importação ou documento de efeito equivalente, é qualificada como “dano ao erário” punido com a pena de perdimento, consoante previsto no art.23, I e parágrafo1º do Decreto 1.455/76, com a redação dada pela Lei 10.637/2002, bem como no art. 689 do Decreto 6.759/2009 (Regulamento Aduaneiro). E o “dano ao erário”, por si só, não pode servir como hipótese de incidência tributária.



Se a mercadoria importada ilegalmente vem a ser confiscada pela Administração, não cabe cobrança de tributo a ela referente. Aliás, a mesma razão pela qual não se deve utilizar tributo com efeito de confisco (CF/88, art. 150, IV) justifica que não se deva fazer incidir tributo sobre bem confiscado.



Saliente-se que não se fala aí propriamente em “tributo”, porquanto não houve sequer prévio lançamento tributário, muito menos definitivo[15]. O que há, nesses casos, é uma mera estimativa do valor que poderia ter sido lançado caso tivesse havido o regular desembaraço aduaneiro, ou seja, do dano que seria experimentado pelo Erário e que é compensado pelo perdimento. É assim que o art.776 do Regulamento Aduaneiro estabelece que na formalização do processo administrativo fiscal, para aplicação da pena de perdimento, a autoridade poderá indicar um “montante correspondente” àquele que “seria devido” na importação regular[16]. E essa locução “seria devido”, no texto do regulamento, denota bem a idéia de que, com o confisco, nada pode ser cobrado a título de tributo.



Tanto isso é verdade que, se porventura tiver havido declaração de importação, a posterior decretação de perdimento do bem dá ao antigo proprietário até mesmo o direito de pedir de volta o tributo que eventualmente tenha adiantado ao fazer a declaração. Confira-se, nesse sentido, o seguinte trecho de julgado:



“A pena de perdimento dos bens é consectário lógico da situação ora desfavorável aos agravantes, em face da reforma da sentença concessiva do mandado de segurança, segundo orientação do Excelso Pretório. Os tributos pagos, por ocasião da internação dos automóveis no País, não têm o condão de tornar legal a importação e podem ser recuperados pelos agravantes mediante ação de repetição de indébito. Precedentes”[17] – destaquei.



Na verdade, como dito, o confisco de bens é incompatível com a tributação. Se houver decretação de perdimento, tem-se uma espécie de extinção antecipada da potencial obrigação tributária que sequer vem a ser constituída, pois a pena administrativa impede a incidência do tributo ou, como se queira, a ocorrência do fato gerador do imposto aduaneiro, obstando o próprio desembaraço.



Isso se extrai inclusive da redação do art.71, III, do Regulamento Aduaneiro, ao tratar do imposto de importação:



“Art.71. O imposto não incide sobre:



(...)



III - mercadoria estrangeira que tenha sido objeto da pena de perdimento, exceto na hipótese em que não seja localizada, tenha sido consumida ou revendida (Decreto-Lei 37, de 1966, art. 1º, parágrafo 4o, inciso III, com a redação dada pela Lei 10.833, de 2003, art. 77)”.



A interpretação desse dispositivo revela que os bens apreendidos pela Administração Fiscal e submetidos a processo administrativo de perdimento de mercadoria[18] não sofrem a incidência do imposto de importação. A tributação só seria cabível se, na hipótese de perdimento, não houvesse meios para se apreender a mercadoria e concretizar o confisco.



O mesmo se diga do imposto de produtos industrializados (IPI), cujo fato gerador na importação somente ocorre com a conclusão do desembaraço aduaneiro[19], assim como a contribuição para o PIS/PASEP-importação e a COFINS-importação.[20]



Ora, não sendo hipótese de incidência tributária, sequer se poderia falar em ilusão do pagamento de imposto ou direito. Logo, o núcleo do tipo penal do art.334 não ocorre.





Registre-se não se tratar de situação de extinção da punibilidade por aplicação analógica do art.9º da Lei 10.684/2003.[21] Cuida-se, sim, de impedimento à própria formação do crédito tributário que constituiria o elemento objetivo do tipo penal de descaminho.



Ressalva em relação ao contrabando



Cabe, por derradeiro, ressalvar que a identidade de bens jurídicos ora defendida somente há de se aplicar ao crime de descaminho, não ocorrendo no caso de contrabando, apesar de ambos estarem tipificados no mesmo dispositivo do art. 334 do CP.



No dizer de Mirabete, “embora, pela disjuntiva ou tenha a lei tratado os termos como sinônimos, contrabando, em sentido estrito, designa a importação ou exportação fraudulenta da mercadoria, e descaminho o ato fraudulento destinado a evitar o pagamento de direitos e impostos”.[22]



Com efeito, a análise dos elementos do tipo do contrabando (“importar ou exportar mercadoria proibida”) revela claramente que não se trata de proteger a ordem tributária consubstanciada prioritariamente na arrecadação de tributos, mas, sobretudo, impedir a entrada no país de produtos considerados nocivos sob vários aspectos.

No descaminho, a simples entrada ou saída do produto, por si só, não é crime, se o agente não ilude o pagamento do imposto; enquanto, no contrabando, o crime se consuma com a simples entrada ou saída do produto proibido, sem se falar em incidência de tributos. Ambos são crimes materiais, porém no descaminho o núcleo do tipo está na ilusão do pagamento.



Daí porque o descaminho é um crime de natureza tributária, diferentemente do contrabando, conforme explica Luiz Régis Prado:



“num enfoque moderno, contrabando passou a denotar a importação e exportação de mercadoria proibida por lei, enquanto que descaminho significa a fraude ao pagamento de tributos aduaneiros. Diferenciam-se, pois, porque enquanto este constitui um crime de natureza tributária, clarificando uma relação fisco-contribuinte, o contrabando expressa a importação e exportação de mercadoria proibida, não se inserindo, portanto, no âmbito dos delitos de natureza tributária. Assim, ao serem vedadas a importação ou exportação de determinada mercadoria, a violação legal do preceito estatal constitui um fato ilícito e não um fato gerador de tributos”.[23]



O contrabando, portanto, segue sendo punível independentemente de constituição de crédito tributário.



Do que acima se expôs, podemos traçar as seguintes etapas para o raciocínio conclusivo:



8.1) O fato de o descaminho estar tipificado no Código Penal, em capítulo dos crimes contra a administração pública não obsta que tenha o mesmo tratamento jurídico conferido aos demais crimes contra a ordem tributária previstos na Lei 8.137/90. Todos os crimes fiscais inserem-se no contexto de proteção aos amplos interesses da Administração Pública, estejam eles tipificados no Código Penal ou em legislação esparsa.



8.2) O descaminho nada mais é do que uma modalidade de sonegação fiscal especificamente relacionada a operações aduaneiras. O núcleo do tipo do art.334 ("iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto") é exatamente o mesmo da sonegação fiscal previsto no artigo 1º da Lei 8.137/90 ("suprimir ou reduzir tributo").



8.3) Havendo decisões do STF aplicando o princípio da insignificância em hipóteses de descaminho, fica evidente a natureza patrimonial do bem juridicamente protegido, já que a jurisprudência tem afastado a aplicação deste princípio nos casos em que se busca proteger valores não patrimoniais, tais como a fé pública.



8.4) O descaminho é um crime material, porque exige, para a sua consumação, a ilusão no pagamento integral ou parcial do direito ou imposto. A simples leitura do tipo (art.334, caput, 2ª parte) deixa transparecer que não se trata de crime meramente formal. A lei fala em iludir o pagamento, e não apenas em adotar medidas materiais com essa finalidade.



8.5) A consumação de descaminho exige que tenha havido entrada ou saída de mercadoria do País e que a autoridade competente apure e exija o crédito tributário que deixou de ser declarado nessa operação, configurando a ilusão do pagamento.



8.6) O STF considerou o prévio e definitivo lançamento tributário como elemento objetivo do tipo penal nos crimes fiscais materiais (Súmula Vinculante n. 24). Esse preceito não decorre da existência de um grau de comunicação entre as instâncias administrativa e criminal, nem tampouco do estabelecimento de uma regra de dependência decisória daquela em relação a esta. Considerou-se simplesmente que a constituição formal do crédito tributário, por meio do lançamento definitivo, é pressuposto para a própria ocorrência do crime.



8.7) Apesar de a Súmula Vinculante n. 24 apenas fazer menção à modalidade de sonegação fiscal prevista no art.1º, I, da Lei 8.137/90, a mesma razão justifica idêntico tratamento jurídico em relação aos demais crimes fiscais materiais, como é o caso do descaminho.



8.8) A importação de mercadorias, ao desamparo de guia de importação ou documento de efeito equivalente, é qualificada como “dano ao erário” punido com a pena de perdimento, consoante previsto no art.23, I e parágrafo 1º do Decreto 1.455/76, com a redação dada pela Lei 10.637/2002, bem como no art. 689 do Decreto 6.759/2009 (Regulamento Aduaneiro).



8.9) Se a mercadoria importada ou exportada ilegalmente vem a ser confiscada pela Administração, não cabe cobrança de tributo a ela referente. E se porventura tiver havido declaração de importação, a posterior decretação de perdimento do bem dá ao antigo proprietário o direito de pedir de volta o tributo que eventualmente tenha adiantado ao fazer a declaração.



8.10) O confisco de bens é incompatível com a tributação. Se houver decretação de perdimento, tem-se uma espécie de extinção antecipada da potencial obrigação tributária que sequer vem a ser constituída, pois a pena administrativa impede a incidência do tributo ou a ocorrência do fato gerador do imposto aduaneiro, obstando o próprio desembaraço.



8.11) O Regulamento Aduaneiro, ao tratar do imposto de importação (art.71, III), diz expressamente que não incide o imposto sobre mercadoria estrangeira que tenha sido objeto de pena de perdimento. O mesmo ocorre em relação ao imposto sobre produtos industrializados (arts. 238 c/c 570, parágrafo1º, II c/c 571 do Regulamento Aduaneiro), assim como a contribuição para o PIS/PASEP-importação e a COFINS-importação (art.250 c/c 71, III).



8.12) Não sendo hipótese de incidência tributária, sequer se poderia falar em ilusão do pagamento de imposto ou direito. Logo, o núcleo do tipo penal do art.334 não ocorre.



8.13) Ao contrário do tipo penal do descaminho (CP, art. 334, 2ª parte), que busca proteger a ordem tributária consubstanciada na arrecadação de tributos, o tipo penal do art.334, caput, 1ª parte, visa impedir a entrada no país de produtos considerados nocivos sob vários aspectos, daí porque o contrabando segue sendo punível independentemente de constituição de crédito tributário.



Em suma, para a configuração do crime de descaminho, tal como tipificado no ordenamento jurídico brasileiro (art.334, caput, 2ª parte), faz-se necessário que tenha havido o lançamento definitivo do crédito tributário, de modo a se identificar o tributo objeto de ilusão. Não constituído o tributo ou tendo havido a decretação de perdimento de bens, não há justa causa para a persecução criminal.




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[1] Conforme leciona Francisco de Assis Toledo, “os crimes complexos são em geral crimes pluriofensivos por lesarem ou exporem a perigo de lesão mais de um bem jurídico tutelado”. In Princípios básicos de Direito Penal, 5.ed., Saraiva, p.145.



[2] O latrocínio, por exemplo, apesar de ser um crime hediondo que atinge também a vida, encontra-se tipificado no Código Penal no capítulo dos crimes contra o patrimônio (art.157, §3º, 2ª parte), com destaque para o elemento subjetivo do tipo, razão pela qual não vem sendo considerado como da competência do tribunal do júri (Súmula 603 do STF).



[3] Além de se referir aos crimes fiscais previstos na Lei n. 4729/65, o art.18, §2º do DL 157/67 também determinava a extinção da punibilidade quando a imputação penal estivesse relacionada a falta de pagamento de tributo.



[4] “A extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido estende-se ao crime de contrabando ou descaminho por força do art.18, §2º, do Decreto-lei 157/1967”.



[5] A doutrina considera que a expressão “pagamento de direito”, no art.334, está “no seu sentido histórico, como apelido dos antigos gravames que pesavam sobre importação (‘direitos de importação’, ‘direitos aduaneiros’ e ‘direitos alfandegários’)”. Maximiliano Roberto Ernesto Führer e Maximilianus Cláudio Américo Führer. Código Penal comentado. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.633.



[6] Confira-se, v.g. os julgados no HC n. 99.594 e no HC n. 94.058.



[7] Não fosse o descaminho essencialmente um crime contra a ordem tributária, não se poderia sequer aplicar esse vetor, já que a jurisprudência tem afastado a incidência do princípio da insignificância nos casos em que, mesmo sendo irrisório o dano patrimonial experimentado, o tipo penal busque proteger valores não patrimoniais, tais como a fé pública. Nesse sentido, v.g, o posicionamento do STF no HC n. 93251/DF.



[8] Crimes federais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p.360.



[9] Registre-se que houve divergências entre os ministros do STF sobre a natureza jurídica do lançamento definitivo em relação ao crime contra ordem tributária, notadamente se seria condição objetiva de punibilidade ou elemento normativo do tipo. Do que restou consignado na ementa do HC n. 81.611-SP (relator Min. Sepúlveda Pertence), uma ou outra solução em nada alteraria o resultado ali proclamado, pois “embora não condicionada a denúncia à representação da autoridade fiscal (ADInMC 1571), falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da L. 8137/90 - que é material ou de resultado -, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento, quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo”. Não obstante, ao que parece a Súmula Vinculante n. 24, ao falar que “não se tipifica”, seguiu o entendimento de que seria elemento objetivo do tipo.



[10] Cite-se, por exemplo, o excelente texto de Douglas Fischer (Procurador Regional da República na 4ª Região), intitulado “A impunidade: sonegação fiscal e exaurimento da esfera administrativa - ainda sobre os problemas derivados do precedente do STF no HC nº 81.611- SP e seu confronto com o que decidido no HC nº 90.795- PE”. Disponível em: www.anpr.org.br/portal/.../Artigo_Sonegacao_DouglasFischer.doc. Acesso em maio/2010.



[11] O próprio Douglas Fischer, ao afirmar ser equivocado o entendimento do STF em termos de consistência lógico-sistêmica, reconhece que o debate naquele artigo é eminentemente dialético. Idem.



[12] Nesse caso, consideramos razoável a posição de Douglas Fischer quanto sustenta que a benesse da extinção da punibilidade pelo pagamento de tributos, prevista no artigo 9º, § 2º, da Lei 10.684, seria materialmente inconstitucional, por violação da Proibição de Proteção Deficiente (Untermaβverbot). Ib idem.



[13] O que é bastante discutível sob o prisma de uma adequada política criminal, porém, como dito anteriormente, não é o objeto deste ensaio.



[14] O art.803 do Regulamento Aduaneiro prevê três destinações para os bens confiscados, a depender do caso: 1) alienação; 2) incorporação; 3) destruição ou inutilização.



[15] Na referida linha de entendimento seguida pelo STF.



[16] “Na formalização do processo administrativo fiscal para aplicação da pena de perdimento, na representação fiscal para fins penais e para efeitos de controle patrimonial e elaboração de estatísticas, a Secretaria da Receita Federal do Brasil poderá: (...) II – aplicar a alíquota de cinqüenta por cento sobre o valor arbitrado das mercadorias apreendidas para determinar o montante correspondente à soma do imposto de importação e do imposto sobre produtos industrializados que seriam devidos na importação”.



[17] TRF da 1ª Região, AI 01000231438, Rel. Des. Fed. Cândido Ribeiro, 11/11/1997.



[18] O art.689 do Regulamento aduaneiro prevê a pena de perdimento em várias hipóteses, dentre elas quando a mercadoria estrangeira for “encontrada ao abandono, desacompanhada de prova de pagamento dos tributos aduaneiros” ou ainda quando “exposta à venda, depositada ou em circulação comercial no País, se não for feita prova de sua importação regular”.



[19] Conforme o art.238 do Regulamento Aduaneiro: “O fato gerador do imposto, na importação, é o desembaraço aduaneiro de produto de procedência estrangeira”. Ao lado disso, o art.571 estabelece que “desembaraço aduaneiro na importação é o ato pela qual é registrada a conclusão da conferência aduaneira”. Saliente-se ainda que, nos termos do art.570, §1º, II, a não-apresentação de documentos exigidos pela autoridade aduaneira faz com que se interrompa a conferência aduaneira, impedindo o prosseguimento do despacho aduaneiro.



[20] O art.250 do Regulamento Aduaneiro prevê expressamente a não incidência dessas contribuições no tocante aos bens objeto de perdimento tratados no referido art.71, III.



[21] Até porque um argumento nesse sentido encontraria um forte obstáculo no direito positivo brasileiro, porquanto as hipóteses de extinção do crédito tributário são aquelas taxativamente previstas em lei, ex vi do art.97, VI, do CTN.



[22] Manual de Direito Penal, vol. 03, Atlas, p.368.



[23] Curso de Direito Penal brasileiro, vol. 4, RT, 2001, p.558.

sábado, 26 de junho de 2010

MEDIDA DE EXCEÇÃO - GRAVAÇÕES EM PRESÍDIO DO PARANÁ OCORREM DESDE 2007

Por Alessandro Cristo

Não é só em Campo Grande que as conversas entre presos e seus advogados são espionadas pela Justiça e o Ministério Público. Uma representação entregue nesta sexta-feira (25/6) pela seccional paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil ao Conselho Federal da entidade denuncia que presídios do Sul não estão livres das câmeras indiscretas nos parlatórios. Autorizada por um colegiado de juízes de execução penal no Paraná, a gravação em aúdio e vídeo das conversas na Penitenciária Federal de Catanduvas, ao contrário do que ocorre em Mato Grosso do Sul, é institucionalizada. Advogados e presos sabem que estão sendo monitorados. Por ordem da Justiça, agentes penitenciários informam a situação aos defensores assim que estes põem os pés no presídio, sem exceção.

A prática vem desde 2007. Catanduvas, presídio de segurança máxima, é destino dos criminosos mais perigosos do país, chefes do crime organizado. O estabelecimento já abrigou Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira Mar, e Márcio Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, ambos ligados ao Comando Vermelho, que age nos presídios fluminenses. Segundo o colegiado de juízes da Seção de Execução Federal que ordenou as escutas, foi depois de episódios em que advogados atuaram como mensageiros da organização, levando para fora da detenção ordens para a prática de crimes, que se resolveu monitorar, com o conhecimento de detentos e advogados, todas as conversas nos parlatórios.

A decisão só chegou recentemente ao conhecimento da seccional, segundo o secretário-geral da entidade, Juliano Breda. Em ofício encaminhado ao comando nacional da OAB, o advogado revela despacho de fevereiro em que os juízes Sérgio Fernando Moro, da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba, e Leoberto Simão Schmitt Junior, substituto na 3ª Vara, autorizam a prorrogação das gravações no presídio de Catanduvas por 180 dias. O despacho atende a um pedido do diretor da penitenciária, Fabiano Bordignon, para “monitoramento ambiental do contato entre presos do Presídio Federal de Catanduvas e os seus visitantes, inclusive advogados, além da realização de outras escutas ambientais no presídio”.

Para Breda, o comportamento é inconstitucional, além de violar a privacidade entre advogado e cliente prevista na Lei federal 8.906/1994, o Estatuto da OAB. “O conteúdo da decisão revela um grave e frontal atentado contra as prerrogativas profissionais dos advogados, ao determinar que todos — absolutamente todos — os contatos entre presos e advogados na Penitenciária Federal de Catanduvas sejam monitorados e gravados, independentemente da existência de indícios da prática de infração penal pelos defensores”, diz o ofício. A situação já chegou ao conhecimento do presidente da OAB, Ophir Cavalcante Junior, que prometeu tomar providências.

Classe suspeita
O monitoramento não inclui defensores públicos, autoridades públicas e membros do Ministério Público e do Poder Judiciário, que segundo o juiz federal Sérgio Moro, “não estão sujeitos a cooptação com os criminosos”, por não terem “vínculo estreito” com os detentos e poderem não retornar mais ao presídio em caso de pressão das organizações. Para o secretário-geral da OAB-PR, é uma “injustificável discriminação aos advogados privados”. Segundo Ophir Cavalcante, a diferenciação é “uma maneira indireta de dizer que apenas o advogado pode ser sócio do crime”.

O presidente da OAB afirma que o monitoramento de entrevistas só é permitido pela lei se o advogado estiver sob investigação. “Fora de indiciamento em processo criminal, a medida é arbitrária e uma tentativa de se justificar que, para combater o crime, pode-se violar o princípio da ampla defesa.”

A explicação da Justiça está no intuito para o qual os presídios federais foram criados, em 2006. O sentido era o de isolar chefes do crime, principalmente depois dos atentados organizados pelo chamado Primeiro Comando da Capital, o PCC, organização com atuação dentro e fora das detenções. Em maio de 2006, ataques planejados a delegacias e bases policiais, além de ameaças de bomba, provocaram pânico na população paulistana. A ordem para os ataques saiu de dentro dos presídios.

Em março de 2009, a advogada Elker Cristina Jorge foi acusada de ter levado uma carta do PCC aos chefes do Comando Vermelho em Catanduvas. A carta, interceptada com a advogada, era, segundo a Justiça, uma espécie de reconciliação entre as organizações, com relatos de ordens para crimes e retaliações. Segundo a direção do presídio, a advogada fez mais de 70 visitas a prisioneiros desde 2007, o que motivou sua prisão em flagrante. Pelo menos oito episódios semelhantes foram relatados pelo diretor de Catanduvas, Fabiano Bordignon, o que inclui uma suposta ordem para o assassinato de um juiz estadual de execução penal.

“Os fatos confirmam a necessidade de um controle dos contatos dos presos com os seus visitantes”, diz decisão colegiada de maio de 2009, proferida por seis juízes de execução federal do estado. Segundo Moro, a medida protege os próprios advogados, já que “evita que eles sejam pressionados a servir como mensageiros”, e fecha a brecha mantida aberta pela legislação mesmo nos presídios federais, onde o contato com o mundo exterior é restrito. “Os presos persistem recebendo visitas de familiares, inclusive visitas íntimas, e de advogados”, justifica a decisão, “o que tem frustrado os objetivos principais do sistema”.

Estado de sítio
Embora reconheça que a medida é de exceção, Moro afirma que sua manutenção é necessária devido ao “perfil dos criminosos nos presídios federais”. “Eles estão sob regime de exceção, todo presídio de segurança máxima precisa ter controle do contato do preso com o mundo exterior”, diz.

Ao renovar a autorização das gravações, em fevereiro, Sérgio Moro e Leoberto Schmitt justificaram a prorrogação por não haver “motivos para alterar o decidido”. No entanto, a Lei de Interceptações Telefônicas, a Lei 9.296/1996, prevê que deve haver motivo específico para prorrogar as escutas, e não para interrompê-las. Os períodos autorizados são de 15 dias, prorrogáveis por mais 15, e não de 180 dias, como diz a decisão. “A escuta em parlatório não é regulada pela Lei de Interceptações”, contesta Moro.

O juiz também interpreta o artigo 41 da Lei de Execuções Penais para manter o procedimento. O parágrafo único do dispositivo relativiza o direito do preso de ter “contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes”. Para Moro, quando a Lei 7.210/1984 afirma que os direitos podem ser “suspensos ou restringidos”, dá abertura para as gravações.

As escutas, em sua opinião, não violam o direito dos presos à ampla defesa. “O objetivo é prevenir a prática de novos crimes, e não investigar os passados”, explica. Segundo o juiz, provas colhidas durante as gravações não podem ser usadas nos processos em andamento. “O conteúdo vai para o Judiciário, que resolve se encaminha ou não ao Ministério Público, se houver a prática de novos crimes”, diz. “Até hoje, isso tem sido resguardado, e nenhum advogado reclamou. Pode-se dizer que é feito com concordância das partes, porque ninguém se opôs.”

Controle do Judiciário
O caso deve ser encaminhado ao Conselho Nacional de Justiça, segundo o presidente da Ordem, Ophir Cavalcante. Ele prometeu expor, na próxima segunda-feira (28/6), a questão aos membros do Conselho Federal, e sugerir a representação. “Não é um ato jurisdicional, é administrativo”, explica. Por esse motivo, ele afirma não caber Mandado de Segurança contra a decisão. O secretário da OAB-PR, no entanto, afirma que entrará com o MS para fechar as duas frentes.

Para Ophir, embora os casos de cooptação de advogados nos presídios sejam graves, não podem justificar a violação da dignidade e o direito à defesa de todos os presos, já que há detentos vindos de todo o Brasil a Catanduvas. “Isso abre a porta para o arbítrio e a falência do princípio da ampla defesa”, afirma. “Juiz não pode ter a brilhante ideia de monitorar tudo e todos para alcançar o advogado envolvido.”

Meios e fins
Nessa sexta, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa criticou as escutas feitas em parlatórios nos presídios federais. As primeiras denúncias foram feitas contra a prática no presídio federal de Campo Grande. A acusação é investigada em processo administrativo no Ministério da Justiça, por meio de inquérito policial, e a participação de procuradores está sendo verificada em processo aberto na Comissão Permanente do Sistema Penitenciário criada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (Processo 000.000.00745/2009-15).

De acordo com o IDDD, “as conversas mantidas entre advogado e cliente são invioláveis e seu sigilo é assegurado pela Constituição. Nem mesmo uma decisão judicial pode abrir caminho para a escuta nos parlatórios, lembrando que é este o único lugar destinado para que o preso possa com liberdade conversar com seu defensor e, com isso, propiciar o pleno exercício do direito de defesa”. A nota é assinada pela presidente da entidade, Marina Dias.

O Instituto dos Advogados Brasileiros também protestou, afirmando repudiar “enfaticamente tal iniciativa, eis que, vulnerando a inviolabilidade da comunicação do advogado com seu cliente, afronta a Constituição Federal e o Estatuto da Advocacia”, segundo seu presidente, Fernando Fragoso.

Já a Associação Nacional dos Procuradores Federais, a exemplo da Associação dos Juízes Federais do Brasil, saiu em defesa do juiz federal Odilon de Oliveira, que autorizou as gravações em Mato Grosso do Sul. “A inviolabilidade da relação entre advogado e cliente, garantida em lei, não pode ser usada para a prática de crimes. A autorização judicial de gravação de conversas entre presos e advogados, envolvidos nos crimes praticados por seus clientes, não viola as garantias fundamentais contidas na Constituição da República, ao contrário, é instrumento indispensável à manutenção da ordem pública e do Estado de Direito”, diz, em nota, o presidente da associação, Antonio Carlos Bigonha.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

BAFÔMETRO FORA DOS PADRÕES FUNDAMENTA PEDIDO DE HABEAS CORPUS

Um réu denunciado por dirigir sob efeito de álcool ajuizou Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal alegando a ilicitude da prova para extinguir a Ação Penal a que ele responde na comarca de Congonhas (MG). De acordo com a defesa do réu, o bafômetro estava fora dos padrões estipulados pelo Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia).

Para o advogado, a prova é ilícita porque a última calibragem do aparelho usado para fazer o teste teria sido feita em janeiro de 2007, mais de dois anos antes dos fatos apontados na denúncia. Ele aponta que a Portaria 06/2002, do Inmetro, estipula que os bafômetros devem ser verificados anualmente para conferência da calibragem.

Assim, se o aparelho foi utilizado de forma ilícita, o resultado por ele produzido também foi ilícito e, por isso, não pode ser admitido como prova no processo contra seu cliente, diz o advogado.

Além disso, tomando-se por base a lei vigente à época dos fatos, o que a denúncia relata não caracteriza tipo penal, diz o defensor, uma vez que, no caso, não houve dano ou perigo de dano a nenhum objeto de tutela penal, conclui a defesa ao pedir o trancamento da Ação Penal.

Segundo a denúncia, durante uma fiscalização de rotina, Policiais Rodoviários Federais abordaram o homem na BR 040 e o submeteram ao exame do bafômetro, constatando que ele apresentava concentração de 0.44 miligramas de álcool por litro de ar expelido, quantidade superior à permitida por lei. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

FALTA DE PROVAS - TRANCADA AÇÃO CONTRA PROCURADOR REGIONAL

O Supremo Tribunal Federal trancou a ação penal contra o procurador regional da República João Sérgio Leal Pereira, que tramitava no Superior Tribunal de Justiça. Ele foi denunciado, em 2005, pelos crimes de formação de quadrilha, estelionato e exploração de prestígio em continuidade delitiva e em concurso material.

O ministro Eros Grau, relator do Habeas Corpus, determinou o trancamento da ação penal por falta de justa causa. A única prova que consta nos autos de seu envolvimento no esquema que beneficiava empresas ligadas ao grupo Schincariol são escutas telefônicas. O grampo foi invalidado pelo STJ, por ter sido feito antes da constituição do crédito tributário.

“Ainda que se pudesse considerar válida a denúncia em relação ao paciente, lastreada apenas nas interceptações invalidadas pelo STJ, a única imputação cabível seria a do tráfico de influência”, explicou.

De acordo com o ministro, não há outra fonte autônoma de provas, o que impediria o prosseguimento da ação penal. A defesa alegou que a denúncia contra o procurador era inepta porque faltava lastro probatório mínimo para dar respaldo à ação penal.

Em 2005, a Polícia Federal, com apoio da Receita Federal e do Ministério Público, prendeu 70 pessoas envolvidas em um esquema criminoso que beneficiava empresas ligadas ao grupo Schincariol. O grupo era investigado por crimes de formação de quadrilha, sonegação fiscal e fraude no mercado de distribuição de bebidas. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.

HC 90.094

terça-feira, 8 de junho de 2010

REVELAR SEGREDO A QUEM JÁ SABE NÃO É CRIME

Por Geiza Martins

Segredo é o que deve ser mantido em sigilo, sem qualquer divulgação. Se o funcionário conta o fato sigiloso a quem dele já possui conhecimento, não se consuma a infração penal. Com esse entendimento, a desembargadora federal Assusete Magalhães determinou o trancamento em definitivo do inquérito da Polícia Federal aberto para investigar suposto tráfico de influência do ex-deputado federal pelo PT de São Paulo e advogado Luiz Eduardo Greenhalgh dentro do Palácio do Planalto.

A decisão, por unanimidade, foi tomada pela 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que confirmou ordem da juíza Maria de Fátima Paula Pessoa Costa, da 10ª Vara Federal do Distrito Federal. Em junho de 2009, a juíza ordenou o arquivamento do inquérito. O Ministério Público Federal recorreu e o caso chegou ao TRF-1.

Durante as investigações da Operação Satiagraha, a Polícia Federal interceptou telefonemas de Greenhalgh para Gilberto Carvalho, chefe de gabinete da Presidência da República. Nas ligações, efetuadas em 2008, o ex-deputado pediu a Carvalho que verificasse se a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) estava vigiando Humberto Braz, executivo do banco Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas, alvo da operação. Greenhalgh é advogado de Daniel Dantas.

Assusete baseou-se em jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que determina o trancamento quando é configurada “hipótese extraordinária”. A desembargadora destacou que diálogo e os depoimentos transcritos de Gilberto Carvalho e Greenhalgh “demonstram que, naquela ocasião, o próprio policial militar já havia revelado, à Polícia Civil do Rio de Janeiro, a sua identidade e o fato de estar a serviço da Presidência da República”.

A relatora ainda ressaltou que, embora Carvalho tenha afirmado a Greenhalgh que a Abin não estava investigando Humberto Braz, “nada foi revelado quanto ao conteúdo ou à natureza do serviço executado”. Assusete citou a própria decisão de primeira instância que diz: “É importante lembrar que nem mesmo sigilosa era a condição funcional de tal ‘araponga’, pois foi ele mesmo – segundo se depreende dos autos – quem se apresentou em público como tal. Portanto, não havia mais como se considerar como sigilosa qualquer informação a respeito”.

REVELAR SEGREDO A QUEM JÁ SABE NÃO É CRIME

Por Geiza Martins

Segredo é o que deve ser mantido em sigilo, sem qualquer divulgação. Se o funcionário conta o fato sigiloso a quem dele já possui conhecimento, não se consuma a infração penal. Com esse entendimento, a desembargadora federal Assusete Magalhães determinou o trancamento em definitivo do inquérito da Polícia Federal aberto para investigar suposto tráfico de influência do ex-deputado federal pelo PT de São Paulo e advogado Luiz Eduardo Greenhalgh dentro do Palácio do Planalto.

A decisão, por unanimidade, foi tomada pela 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que confirmou ordem da juíza Maria de Fátima Paula Pessoa Costa, da 10ª Vara Federal do Distrito Federal. Em junho de 2009, a juíza ordenou o arquivamento do inquérito. O Ministério Público Federal recorreu e o caso chegou ao TRF-1.

Durante as investigações da Operação Satiagraha, a Polícia Federal interceptou telefonemas de Greenhalgh para Gilberto Carvalho, chefe de gabinete da Presidência da República. Nas ligações, efetuadas em 2008, o ex-deputado pediu a Carvalho que verificasse se a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) estava vigiando Humberto Braz, executivo do banco Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas, alvo da operação. Greenhalgh é advogado de Daniel Dantas.

Assusete baseou-se em jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que determina o trancamento quando é configurada “hipótese extraordinária”. A desembargadora destacou que diálogo e os depoimentos transcritos de Gilberto Carvalho e Greenhalgh “demonstram que, naquela ocasião, o próprio policial militar já havia revelado, à Polícia Civil do Rio de Janeiro, a sua identidade e o fato de estar a serviço da Presidência da República”.

A relatora ainda ressaltou que, embora Carvalho tenha afirmado a Greenhalgh que a Abin não estava investigando Humberto Braz, “nada foi revelado quanto ao conteúdo ou à natureza do serviço executado”. Assusete citou a própria decisão de primeira instância que diz: “É importante lembrar que nem mesmo sigilosa era a condição funcional de tal ‘araponga’, pois foi ele mesmo – segundo se depreende dos autos – quem se apresentou em público como tal. Portanto, não havia mais como se considerar como sigilosa qualquer informação a respeito”.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

INTERCEPTAÇÃO SEM FIM - MINISTÉRIO PÚBLICO CONTRIBUI COM IMPUNIDADE AO INSISTIR EM ESCUTAS

Por David Rechulski

Pela segunda vez, o Superior Tribunal de Justiça acaba de decidir que as escutas telefônicas prorrogadas por 16 vezes sem maiores explicações pela Justiça Federal paranaense excederam os limites do que seria razoável e, portanto, devem ser retiradas do processo criminal.

A decisão é emblemática e está em linha com os princípios basilares de um Estado Democrático de Direito, em que os fins não podem ser argumento apto para sustentar os desvios nos meios de obtenção das provas. O devido processo legal é assegurado a todos, indistintamente, sendo uma garantia constitucional, tal como o direito à privacidade.

Enquanto muitos membros do Ministério Público e da própria Polícia Judiciária não compreenderem isso, em toda a plenitude de sua essência, ao contrário de assegurarem a devida e justa punição aos autores de crimes graves, sobretudo os que envolvam corrupção e crimes financeiros, onde as interceptações telefônicas e telemáticas são ferramentas de investigação da mais alta importância e utilidade, — desde que utilizadas dentro dos limites impostos pela legislação—, estarão contribuindo obliquamente para a impunidade e até maculando injustamente a imagem do próprio Poder Judiciário.

É óbvio que a maior parte da opinião pública terá sempre dificuldades significativas para compreender os conceitos e premissas de legalidade que permeiam quaisquer decisões que acabem se desdobrando na anulação de processos e desentranhamento de provas ilícitas, e, assim, por via direta de consequência, beneficiando os autores dos crimes nelas revelados, criando assim uma falsa imagem de condescendência, favorecimento e impunidade!

Todavia, por mais alto que seja o custo desse desgaste da imagem institucional do Poder Judiciário, ele ainda assim se justificará plenamente para que não tenhamos, jamais, um Estado policialesco, onde os direitos e garantias dos cidadãos sejam relegados a um plano secundário, de somenos importância, fazendo desabrochar o câncer da insegurança jurídica, muito mais maléfico e letal!

Que a coragem de decisões como esta sejam um espelho de muitas outras no mesmo sentido, como foram, na história recente, as decisões da Corte Suprema quando o Ministro Gilmar Mendes iniciou uma cruzada (que ainda será devidamente reconhecida) e foi naturalmente acompanhada pela maioria dos demais Ministros do STF, contra os abusos e excessos da pirotecnia investigativa que, então, só servia a emprestar eco para a execração pública, algo incompatível com qualquer premissa do que se convencionou chamar de Justiça!

sexta-feira, 4 de junho de 2010

O USO DO PODER JUDICIÁRIO PARA FINS LUCRATIVOS

Por Pedro Benedito Maciel Neto

Durante as eleições de 2008 na condição de advogado tive a oportunidade de, numa preliminar de defesa em processo eleitoral, denunciar a aparente utilização do Poder Judiciário para fins político-eleitorais, através da judicialização de fatos políticos e de sua midiatização quase que imediata. É verdade que a preliminar não mereceu atenção expressa do então juiz eleitoral, mas a representação foi julgada improcedente.

Bem, sabemos que quando as relações entre o sistema judicial e o sistema político atravessam um momento de tensão ocorre a denominada judicialização da política (há judicialização da política sempre que os tribunais, no desempenho normal das suas funções, afetam de modo significativo as condições da ação política), no Brasil a judicialização é grandemente de responsabilidade da classe política que se mostrou por muito tempo incompetente.

Penso que também que o excesso da judicialização conduz à politização da justiça, que é muito pior que a judicialização, pois como ensina o Sociólogo Português Boaventura Santos, pode comprometer significativamente a harmonia entre os Poderes e a própria democracia.

Esse fato, segundo o Professor Boaventura, pode ocorrer por duas vias principais: uma, de baixa intensidade, quando membros isolados da classe política são investigadores e eventualmente julgados por atividades criminosas que podem ter ou não a ver com o poder ou a função que a sua posição social destacada lhes confere, o que é, na minha maneira de ver, positivo.

Mas há outra espécie de judicialização, a de alta intensidade, que ocorre quando parte da classe política, não se conformando ou não podendo desenvolver a luta pelo poder pelos mecanismos habituais do sistema político democrático, transfere para os tribunais os seus conflitos internos através de denúncias, podendo, algumas vezes, ter como aliados membros do Ministério Público ou do Poder Judiciário.

Penso que é mais ou menos isso que o PSDB fez nas eleições em Campinas no ano de 2008, e isso pode se reproduzir nas eleições presidenciais de 2010.

O PSDB, um partido de importância enorme na minha cidade e no Brasil e que, em tese, possui conteúdo e propostas, acabou por renunciar ao debate democrático e optou por deslocar para a Justiça Eleitoral conflitos que não são, a priori, jurídicos ou judiciais.

E o que é pior, muitos de nós tem a impressão que alguns representantes do Ministério Público se prestaram e se prestam a fazer a luta política ao invés de cumprir seu dever constitucional, o que é no mínimo lamentável.

Exemplo típico do que estou dizendo é episódio recente, amplamente divulgado pela revista Veja, envolvendo Vaccari, tesoureiro do Partido dos Trabalhadores e o MP de São Paulo. Com possível objetivo político-eleitoral o Ministério Público bandeirante denunciou o tesoureiro, mas a denuncia foi rejeitada pelo Juiz Eleitoral por falta de provas.

Contudo a revista Veja, apesar de rejeitada a denuncia, apresentou ao seu leitor Vaccari como sendo um exemplo de corrupto da pior qualidade, mas tecnicamente não há nem denuncia, quanto mais processo contra ele.

A revista esqueceu-se de dizer também que o Ministério Público Federal de São Paulo já havia informado, em nota oficial, que o material que recebeu da Procuradoria-Geral da República e que Lúcio Bolonha Funaro, apresentado pela revista como o “bom e arrependido moço”, é na realidade um doleiro denunciado pelo MPF por formação de quadrilha e lavagem de dinheiro e que o processo que tramita na Justiça Federal não faz nenhuma menção ao ex-presidente da Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo (Bancoop) João Vaccari Neto, atual tesoureiro do PT.

O Ministério Público de São Paulo também não fez questão de esclarecer o erro de informação da revista. Por quê?

A Veja “esqueceu-se” de esclarecer ao seu leitor que a denúncia feita pelo Ministério Público de São Paulo contra João Vaccari Neto foi rejeitada pelo Judiciário por falta de provas. O texto da tradicional revista passa a impressão ao leitor que há um processo, quando na realidade não há. O Ministério Público nesse caso, em tese, fez uso indevido do Poder Judiciário e a Judicialização do fato e sua midiatização transformaram Vaccari em inimigo público.

A revista de maior circulação do país também não informou o seu leitor que o Ministério Público de São Paulo passou ainda pelo vexame de ver o juiz negar o bloqueio das contas da Bancoop (Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo) e adiar a decisão sobre a quebra do sigilo bancário e fiscal do tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, afirmando em seu despacho publicado no Diário Oficial que não havia embasamento técnico em parte do pedido feito pelo Promotor.

O juiz corajosamente afirmou no seu despacho que, na questão da Bancoop e de João Vaccari, não seria possível desconsiderar o fato de o caso ter voltado à tona a apenas meses das eleições, em sendo assim para que tais informações não contaminassem a investigação ou, noutro sentido, que esta não venha a ser utilizada por terceiros para manipulação da opinião pública por propósitos políticos o pedido foi indeferido.

Não se pode desconsiderar a repercussão política que qualquer fato passa a ter a partir do momento em que um simples requerimento do Ministério Público é divulgado pela imprensa, antes mesmo que fosse apresentado ou apreciado pelo Juízo.

Mas voltemos a Campinas.

O objetivo dessa tática antidemocrática (renunciar ao debate democrático e judicializar e midiatizar todos os fatos) é obter, através da mídia, a exposição judicial do adversário, qualquer que seja o desenlace, para enfraquecê-lo ou mesmo liquidá-lo politicamente, algo no mínimo questionável sob o ponto de vista ético e democrático.

O professor Boaventura Santos afirma que no momento em que ocorre judicialização de alta intensidade a classe política, ou parte dela, renuncia ao debate democrático e transforma a luta política em luta judicial, mas fica muito pior quando se identifica prováveis verdadeiras joint ventures entre membros da classe política, membros do ministério público e da imprensa.

Penso que não é fácil saber o reflexo do impacto da judicialização e midiatização de fatos políticos (que passam a ser vistos como fatos judiciais) no sistema político, no sistema judicial ou na sociedade, mas seria possível afirmar que isso “... tende a provocar convulsões sérias no sistema político”¹ e na própria sociedade.

Nesse sentido é possível afirmar que os que alguns dirigentes de partido político fizeram em Campinas nas eleições de 2008 afastam a social-democracia de suas tradições democráticas e nega a tradição republicana. O Poder Judiciário tem de estar atendo e o Ministério Público deve refletir sobre tudo isso.

Essa judicialização da política pode a conduzir à politização da Justiça, a qual por seu turno consiste num tipo de questionamento da justiça que põe em causa, não só a sua funcionalidade, como também a sua credibilidade, ao atribuir-lhe desígnios que violam as regras da separação dos poderes dos órgãos de soberania.

Ademais, a politização da justiça coloca o sistema judicial numa situação de stress institucional que, dependendo da forma como o gerir, tanto pode revelar dramaticamente a sua fraqueza como a sua força², essa é a opinião do Professor Boaventura Santos.

A politização da justiça, que ocorreu em Campinas, buscou transformar a plácida obscuridade dos processos judiciais na trepidante ribalta midiática dos dramas judiciais e talvez isso ocorra novamente nessas eleições. É assim que se constrói o debate democrático?

Esta transformação é problemática devido às diferenças entre a lógica da ação midiática, dominada pela instantaneidade, e a lógica da ação judicial, dominada por tempos processuais lentos. É certo que tanto a ação judicial como a ação midiática partilham o gosto pelas dicotomias drásticas entre ganhadores e perdedores, mas enquanto o primeiro exige prolongados procedimentos de contraditório e provas convincentes, a segunda dispensa tais exigências. Em face disto, quando o conflito entre o judicial e o político ocorre na mídia, estes, longe de ser um veículo neutro, são um fator autônomo e importante do conflito.

E, sendo assim, as iniciativas tomadas para atenuar ou regular o conflito entre o judicial e o político não terão qualquer eficácia se os meios de comunicação social não forem incluídos no pacto institucional. É preocupante que tal fato esteja a passar despercebido e que, com isso, se trivialize a lei da selva midiática em curso.

O uso do Judiciário, o deslocamento desmedido de questões políticas para o campo judicial pode revelar ausência de espírito democrático, bem como, em tese, verdadeira litigância de má-fé de quem usa e desvirtua em verdade o processo eleitoral para atingir seus fins, procede de modo temerário e provoca, através de representações, cautelares e ações diversas, vários incidentes infundados³.

E o que mais me entristece é que apesar de a Constituição Federal (organizada em Títulos, esses divididos em Capítulos, que são sistematizados em seções) prever no artigo 133 (inserido na Seção III, que trata da Advocacia e da Defensoria, do Capitulo IV, que trata das funções essenciais à Justiça (o Ministério Público e Advocacia) do Titulo IV da Constituição, o qual trata da “Da Organização dos Poderes”) que o Advogado é indispensável à administração da Justiça, parte do Ministério Público e do Poder Judiciário insista em desqualificar a advocacia.

Tudo isso no contexto da politização do Judiciário e do próprio Ministério Público. Evidentemente me refiro a caso concreto em curso, razão pela qual não me é autorizado detalhar, apenas conceituar.

A advocacia “função essencial à Justiça” confere inviolabilidade aos atos e manifestações do advogado no exercício da profissão, nos limites da lei, mas pasmem leitores um Ilustre Representante do Ministério Público ao invés de requerer a quebra do sigilo bancário e telefônico dos investigados, num inquérito policial relacionado intrinsecamente a processo eleitoral, requereu a oitiva do advogado da vitima, sugestionando expressamente que o meu colega advogado estava artificiosamente criando fatos. Uma barbaridade.

Estou na realidade cansado de assistir inerte às reiteráveis violações às garantias dos advogados, no exercício do direito de defesa dos interesses e direitos de seus clientes e da própria sociedade e quem vive a advocacia e da advocacia sabe a que estou me referindo.

Não fosse real e significativo esse fato, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado não teria convocado, em Julho de 2009, audiência pública para debater o Projeto de Lei 83/08, que objetiva criminalizar a violação de qualquer uma das prerrogativas estabelecida no artigo 7° da Lei 8.906/94.

Lei Federal afirma que “não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público”, mas as diferenças de tratamento entre advogados e promotores são gritantes. Nas audiências na Justiça Federal, por exemplo, o Ministério Público senta à direita do magistrado. Um símbolo sobre o qual temos de refletir. E não é só, o Ministério Público pode ter acesso a todas as provas, mas nós advogados, mesmo com procuração, temos de requerer vistas ao magistrado, apesar de a lei federal dizer que os advogados não estão subordinados nem a magistrados nem aos Promotores.

E não é só. Os Promotores e Magistrados podem circular livremente pelos Tribunais, no horário que for preciso, enquanto nós advogados só podemos circular em horário de expediente, a todo o momento se identificando com a carteira profissional e com algum constrangimento muitas vezes.

O fato é que a advocacia está sob risco e isso é efeito colateral do processo de judicialização da política o qual transborda, para a politização da Justiça, ou do Poder Judiciário e não se pode perder de vista que o Ministério Público, o Poder Judiciário e a Advocacia são, antes de tudo, instituições de Estado, e não de governo. Assim, é imprescindível que sua atuação fique acima de circunstâncias ou convicções políticas.

DIREITO AMBIENTAL - ECONOMIA NÃO PREVALECE SOBRE PROTEÇÃO AMBIENTAL

No Direito Ambiental moderno, a leitura que se faz do meio ambiente não é só jurídica. É essencialmente ecológica. A nova abordagem parte do princípio de que o Direito, sozinho, é incapaz de resolver os problemas advindos da complexidade ambiental. Dessa forma, a 2ª Turma do Superior tribunal de Justiça manteve, no ano passado, uma decisão judicial proibindo a queimada de palha como método preparatório para colheita de cana-de-açúcar no interior paulista.

Segundo o STJ, é preciso dar um tratamento interdisciplinar à interpretação das normas que tutelam o meio ambiente, cuja preservação, muitas vezes, transcende a capacidade dos estudos e práticas existentes.

De acordo com reportagem produzida pela Assessoria de Imprensa do STJ, o processo originou-se de uma Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público de São Paulo, que pediu além da proibição da queimada para a proteção do meio ambiente e da saúde dos trabalhadores que fazem o corte da cana, a condenação dos infratores, mediante indenização. O pedido foi aceito pela primeira instância e mantido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

Os produtores alegaram no STJ que a decisão da Justiça paulista violou o artigo 27 do Código Florestal Brasileiro. O dispositivo proíbe o uso de fogo em florestas e outras formas de vegetação, mas prevê uma exceção: autoriza o emprego de fogo se peculiaridades locais ou regionais justificarem tal prática em atividades agropastoris e florestais. Neste último caso, a lei ressalva que deve haver permissão do Poder Público para a realização da queimada.

O relator, ministro Humberto Martins, destacou a necessidade de o desenvolvimento ser sustentável, e votou pela manutenção da proibição dessas queimadas. Ao decidir, disse que quando há formas menos lesivas de exploração o interesse econômico não pode prevalecer sobre a proteção ambiental.

Além de refletir a tendência de admitir a proteção da natureza pelos valores que representa em si mesma, e não apenas pela utilidade que tenha para o ser humano, a decisão da 2ª Turma foi paradigmática também por reconhecer o caráter transdisciplinar do Direito Ambiental.

Segundo o ministro Martins, a interpretação das normas que tutelam o meio ambiente não comporta apenas a utilização de instrumentos estritamente jurídicos. “As ciências relacionadas ao estudo do solo, ao estudo da vida, ao estudo da química, ao estudo da física devem auxiliar o jurista na sua atividade cotidiana de entender o fato lesivo ao Direito Ambiental”, afirmou.

O relator citou estudos científicos para comprovar os efeitos danosos da queima da palha da cana-de-açúcar, pois elas liberam gases nocivos não apenas à saúde do homem, mas de várias espécies vivas. E observou a existência de medidas tecnológicas atuais capazes de substituir a queimada sem inviabilizar a atividade econômica da indústria.

A decisão do STJ priorizou os interesses difusos e coletivos referentes à saúde e ao equilíbrio ecológico em relação a interesses individuais que poderiam se beneficiar do aproveitamento do meio ambiente. E ajudou, assim, a consolidar uma jurisprudência mais ativa e avançada na área do Direito Ambiental.