domingo, 29 de abril de 2012

STF determina que PF e Procuradoria investiguem vazamento de inquérito



O presidente do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, determinou na noite desta sexta-feira (28) que a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República investiguem o vazamento de trechos do inquérito que tramita na corte sob segredo de justiça para apurar o envolvimento do senador Demóstenes Torres (DEM-GO) com o bicheiro Carlinhos Cachoeira. 
Nesta sexta, dia em que o documento foi liberado para comissões do Congresso Nacional pelo relator, ministro Ricardo Lewandowsky, o site de notícias Brasil 247 publicou na íntegra volumes do inquérito e o pedido de abertura de investigação feito pelo procurador-geral, Roberto Gurgel, ao Supremo.
Um oficial de justiça chegou a levar o inquérito ao Senado, para entregar ao presidente da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) criada para investigar o elo de políticos com Cachoeira. No entanto, o documento não foi entregue porque o presidente da CPMI, senador Vital do Rêgo (PMDB-PB), não se encontrava no gabinete.
De acordo com a assessoria do STF, Ayres Britto conversou com Lewandowsky na noite de sexta sobre o vazamento e decidiu enviar uma comunicação formal ao diretor-geral da PF, Leandro Daiello Coimbra, e ao procurador-geral, Roberto Gurgel, informando sobre o caso e pedindo a abertura de investigação para identificar os responsáveis pelo vazamento, que podem ser punidos civil e criminalmente.
O próprio Supremo realizou uma investigação preliminar, mas não identificou suspeitos. Até o momento, apenas os advogados das partes investigadas pela Polícia Federal tiveram liberado o acesso ao inquérito.
O bicheiro foi preso pela PF na Operação Monte Carlo, deflagrada em fevereiro para combater um esquema de exploração de jogo ilegal.
No material que compõe o inquérito, estão conversas telefônicas que revelam que o senador Demóstenes Torres (sem partido-GO) pode ter recebido até R$ 3,1 milhões do grupo do bicheiro Carlinhos Cachoeira. A defesa do senador disse que a informação é “fantasiosa”.
No pedido de abertura do inquérito, Gurgel diz que "em diálogo no dia 22 de março de 2011, às 11:18:00, entre Carlos Cachoeira e Cláudio Abreu [ex-diretor da Delta] não degravado pela autoridade policial, é expressamente referido que o valor de um milhão foi depositado na conta do Senador Demóstenes e que o valor total repassado para o Parlamentar foi de R$ 3.100.000,00 (três milhões e cem mil reais)."

sábado, 28 de abril de 2012

Juiz ensina homem a mentir quando estiver com outra

Por Rogério Barbosa

Um homem que se relaciona com duas mulheres tem de aprender a mentir para evitar litígios na Justiça. É fácil. Se ele receber a ligação de uma enquanto está com a outra, basta dizer que está na pescaria com os amigos. "Evita briga, litígio, quiproquó e não tem importância nenhuma. Isso não é crime. Pode passar depois lá no "Traíras" e comprar uns lambarizinhos congelados, daqueles de rabinhos vermelhos, e depois no ABC, comprar umas latinhas de Skol e levar para a outra. Ela vai acreditar que ele estava mesmo na pescaria. Trouxe até peixe. Além disso, ainda sobraram algumas latinhas de cerveja da pescaria...".
Quem ensina como um homem deve enganar uma mulher para evitar litígios desnecessários no Judiciário é o juiz Carlos Roberto Loiola, do 3º Juizado Especial de Divinópolis, de Minas Gerais. Ele analisou um processo de danos morais envolvendo duas mulheres que se relacionam com o mesmo rapaz, todo “saidinho” e metido a “rei da cocada preta”, como disse na sentença.
Para o juiz, decisão judicial é "um trem que todo cabra tem que entender". Na sentença, ele explicou com simplicidade a história do triângulo amoroso e como poderia ter sido o desfecho sem passar pelo Judiciário se o homem fosse um pouco mais astuto.
De acordo com a sentença, uma mulher procurou a Justiça para reclamar por ter levado uma surra da "outra", “com puxão de cabelo e unhada e tudo o mais que a gente pode imaginar de briga de mulher briguenta, dentro de sua própria casa, invadida por ela só porque ela estava com o "Nilson, no bem bom, fato que desagradou a agressora. Quer seus danos morais e não tem conversa de conciliação. Chega de perda de tempo”.
Mas a outra, “esperta, veio acompanhada de advogada porque percebeu que a coisa não está boa para ela não. E a Doutora advogada já despejou uma preliminar de inépcia de inicial e citou muita doutrina e jurisprudência para demonstrar que no mérito a autora não tem razão, porque houve agressões recíprocas”, relatou o juiz na sentença.
Segundo ele, o rapaz que chegou à audiência todo “tranquilo, se sentindo o rei da cocada, mais desejado que bombom de brigadeiro em festa de criança", poderia ter evitado que as duas mulheres com quem se relaciona, fossem parar na Justiça. Para o juiz, o rapaz poderia ter evitado toda a confusão. Mas “nem prá dizer que estava numa pescaria com os amigos! Foi logo entregando que estava com a rival. Êta sujeito despreocupado! Também, tão disputado que é pelas duas moças, que nem se lembrou de contar uma mentirinha dessas que a gente sabe que os outros contam nessas horas só prá enganar as namoradas. Talvez porque hoje isso nem mais seja preciso, como era no meu tempo de pescarias. Novas Leis de mercado."
De acordo com o processo, o rapaz afirmou: “Eu sou solteiro, gosto das duas, tenho um caso com as duas, mas não quero compromisso com nenhuma delas não senhor". Depois de ouvir o rapaz, o juiz achou que ele “estava tão soltinho na audiência, com a disputa das duas, que só faltou perguntar: '-tô certo ou errado?'."
O homem disputado pelas duas figurou no processo apenas como testemunha, já que foi de suas namoradas que exigiu indenização da “outra”. Após todo esse quiprocó, o juiz bem que ia fixar o valor da indenização em R$ 4 mil. Porém, na audiência, a autora da ação chamou a ré de "esse trem". O juiz não tolerou. Decidiu fixar a indenização em R$ 3 mil, considerando que "ela também não é santa não, deve ter retrucado as agressões".

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Jogo do bicho foi ilegalizado por moral anacrônica

Em vários filmes de fantasia, desses que envolvem dragões e outros tipos de bestas mitológicas, sempre existe um segredo atrás de uma grande e impressionante cachoeira. Ali pode estar a toca do dragão, a gruta que serve de casa para o heroi, o tesouro. O que quer que esteja ali, a cachoeira, com a sua imponência, com o jorrar da sua água vívida, teima em esconder.
Fiquei pensando nisso enquanto acompanhava (e continuo acompanhando) o jorrar de notícias, trechos de conversas telefônicas, documentos conseguidos com exclusividade (alguns ao arrepio do sigilo legal, por sinal), enfim, tudo e mais um pouco sobre “Carlinhos Cachoeira” e sua enorme rede de contatos e negócios. É mesmo irônico que o apelido desse personagem seja Cachoeira, porque, no caso dele, é justamente atrás desse jorrar de notícias e informações que se esconde o que é mais importante, mas que poucos parecem tentar encontrar.
O jogo do bicho faz parte da história do Brasil. Parece que ele nasceu mais ou menos junto com o primeiro Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, no bairro de Vila Isabel, então de propriedade do nobre que o criou: o Barão de Drummond. Passou de um sorteio interno ao Zoológico para um jogo de apostas e assim ficou, mais ou menos inerme, até ser ilegalizado em 1941.
O Decreto-Lei 3.688/1941, aprovado unilateralmente por um presidente-ditador sem Congresso funcionando, e apelidado de Lei de Contravenções Penais, tem um interessante capítulo, o capítulo VII da sua Parte Especial. É neste capítulo, dedicado às “contravenções relativas à polícia de costumes”, que figura o artigo 58: “Explorar ou realizar a loteria denominada jogo do bicho, ou praticar qualquer ato relativo à sua realização ou exploração”. Esse artigo é, na verdade, um tipo especial de proibição relativamente à proibição geral a jogos de azar contida no artigo 50.
A razão oficial para proibir o jogo do bicho e os jogos de azar em geral pode ser encontrada nos consideranda de outro Decreto-Lei. O de 9.215/1946, que revogou a revogação do mencionado artigo 50, considerando, entre outras coisas, que “a repressão aos jogos de azar é um imperativo da consciência universal” e que “a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro e contrária à prática e à exploração e jogos de azar”.
Foi, portanto, sob essa justificativa claramente moralista (e hoje anacrônica) que o jogo do bicho passou de prática popular a ilícito penal. É bem verdade que a ilegalização do jogo do bicho não veio sob uma roupagem jurídica muito severa. Imagino que ninguém em 1940-41 tenha pensado em transformar o jogo do bicho em crime, punido com pena de reclusão ou detenção. Acharam por bem colocá-lo com um ilícito penal menor, uma contravenção, bem próxima de outras contravenções similares, tais como a vadiagem (artigo 59: “Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho [...]”), a mendicância (artigo 60: “Mendigar, por ociosidade ou cupidez”; artigo revogado desde 2009), e a embriaguez pública (artigo 62: “Apresentar-se publicamente em estado de embriaguez, de modo que cause escândalo [...]”).
Foi também nesse contexto de moralismo anacrônico que se criaram as bases para que, muitas décadas depois, alguém como Carlinhos Cachoeira aparecesse, ficasse milionário, e, aparentemente, passasse a dominar a política do estado de Goiás, além de negócios no Brasil inteiro. Olhando para trás parece realmente incrível que um movimento tão inocente, movido por um chamamento da “consciência universal”, fizesse um estrago tão grande na política criminal brasileira.
Tornado ilegal, mas ainda parte da cultura popular, o jogo do bicho estava aberto a quem tivesse a logística criminal para monopolizá-lo. E, assim, aos poucos, fortunas foram feitas e famílias de exploradores do jogo do bicho criaram máfias dignas de histórias napolitanas ou sicilianas. Obviamente, já que o jogo era ilegal, as famílias monopolistas tinham de criar e manter uma rede de colaboradores, seguranças privados e agentes públicos corruptos, de modo que os pontos de apostas fossem divididos com o menor trauma possível, quer entre famílias, quer com o Estado. No belo romance “Agosto”, Rubem Fonseca retrata bem a penetração da polícia do Rio de Janeiro pela propina das famílias monopolistas do jogo do bicho. É claro que, naquela época, as drogas ainda não eram tão duramente ilegalizadas quanto se tornariam ao longo da segunda metade do século XX, quando elas tomaram o lugar do jogo do bicho como negócio ilegalizado mais lucrativo.
Essa configuração criminológica de tipo familiar/monopolista/mafioso fez com que as sucessivas gerações dessas famílias monopolistas acumulassem significativa riqueza. Essa riqueza tinha de ser escoada, lavada e contabilizada, para que pudesse gerar a moeda mais importante de uma sociedade capitalista-hierárquica como a brasileira: artigos de luxo. E daí vem empresas (de fachada ou não), laranjas, contas off shore e toda uma engenharia clandestina que procura tornar o bicheiro (um “contraventor” que atenta contra a “consciência universal”) em empresário (uma figura invejada e profícua, que consome e comanda).
Na busca por apagar a desvalorizada identidade de bicheiros, os membros das famílias monopolistas passam a investir em outras atividades sociais, que lhes rendam identidades valorizadas. É novamente irônico, neste ponto, que uma dessas atividades, seja o carnaval, especificamente o carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro. A ironia está em que uma atividade ilegalizada por conta da sua afronta a valores “morais, jurídicos e religiosos do povo brasileiro” busque refúgio simbólico justamente na atividade e momento social em que todos os valores moralistas e religiosos se encontram oficialmente suspensos no Brasil, com direito a autorização de nudez, sexo casual em público e outras heresias mais.
De qualquer modo, juntando a ilegalização de uma atividade culturalmente normal para o povo, com o consequente monopólio da atividade tornada ilegal, com a necessidade das famílias monopolistas do jogo do bicho de buscar identidades socialmente valorizadas, chegamos a Carlinhos Cachoeira. Ao que tudo indica, trata-se de uma pessoa que enriqueceu com o monopólio do jogo do bicho, monopólio que lhe foi fornecido pela ilegalização desta atividade, muitas décadas antes.
Cachoeira, no entanto, não queria (somente) ser o bicheiro, um pária social, mas o empresário, um membro da elite. Para isso, utilizou o dinheiro que o monopólio do bicho lhe deu para criar negócios, fazer amizades com políticos e (outros) empresários, financiar campanhas eleitorais. Enfim, tudo o que o seu dinheiro pôde comprar para que ele tivesse acesso ao bem mais valorizado nas relações cotidianas do Brasil: o contato com gente “poderosa”, “influente”.
A estratégia, também ao que parece, só não deu certo porque a marca de bicheiro é poderosa, e porque as instituições do Estado cismam em manter essa paradoxal relação com os monopolistas do jogo do bicho: milhões de reais em recursos públicos para investigar uma mera contravenção penal; milhões de reais em dinheiro do bicho para financiar carnavais, políticos e empresários. Um círculo vicioso que, como uma cachoeira, esconde o real problema: a insustentável ilegalização do jogo do bicho.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

JUROS COMPOSTOS EM EMPRÉSTIMOS BANCÁRIOS EM DECISÃO NO STJ

Incluído, nesta quarta-feira (25/4), na pauta da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o julgamento de dois recursos especiais repetitivos que tratam da cobrança de juros compostos por parte dos bancos foi suspenso após um breve e intenso debate entre os ministros. Depois do relator, ministro Luis Felipe Salomão, proferir seu voto pela admissibilidade da cobrança, e ser acompanhado pela ministra Nancy Andrighi, a ministra Maria Isabel Gallotti pediu vista do processo.O julgamento interrompido na tarde desta quarta se refere aos Recursos Especiais 973.927-RS e 1.003.530-RS, votados sob o rito dos recursos repetitivos, que envolvem o chamado anatocismo, isto é, a capitalização de juros, ou a cobrança de juros sobre juros. Como os dois recursos tratavam de casos idênticos, o relator optou por julgar sob o rito apenas o de número 973.927, do banco Sudameris, cuja decisão se aplicará a todos os demais. O REsp 1.003.530-RS é do banco ABN Amro Bank, antigo banco Real, comprado pelo banco Santander.
Nos dois processos, os recorridos são clientes bancários de ambas as instituições. A Justiça de segundo grau havia decidido pela impossibilidade de se capitalizar via juros compostos.
Já os requerentes contaram com a ajuda do Banco Central (Bacen) e da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), admitidos como amicus curiae no julgamento. O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) entrou como amicus curiae em favor dos clientes dos bancos. Apenas o Banco Central teve representante que usou da palavra para fazer sustenação oral.
Ao pedir vista, a ministra Maria Isabel Gallotti prometeu trazer seu voto já na próxima sessão. Segundo o ministro Luis Felipe Salomão, são incomuns pedidos de vista em julgamentos sob o rito dos recursos repetitivos, justamente por tratarem de entendimentos já consagrados pela jurisprudência da corte. A jurisprudência reiterada do STJ reconhece que o anatocismo é permitido para contratos feitos após a edição da Medida Provisória 2.170 e se expressamente pactuados entre as partes.
De acordo com o relator, a discussão desta quarta não se referiu ao mérito da matéria, mas à dúvida sobre “o conceito de expressa pactuação da capitalização” entre instituição financeira e cliente. Para o ministro, cabe a capitalização “quando vir expresso o acordo”. “São milhares de processos que estão presos na instância de origem aguardando esse julgamento”, disse Salomão.
De acordo com a representação dos clientes, a capitalização de juros é proibida pelo artigo 591 do Código Civil, que permite apenas a capitalização em prazos maiores que um ano, e entrou em vigor em 2003, depois da Medida Provisória 2.170/2001, que autorizou a cobrança em períodos menores. Alegam também que a previsão de cobrança está vinculada a uma medida provisória que tratava de outras matérias, o que incorre na não observância da Lei Complementar 95/1998, que dispõe sobre a elaboração de leis. De acordo com os requeridos, não havia quaisquer critérios de urgência e relevância que justificassem a edição da Medida Provisória 2.170/2001.
A posição do governo federal foi manifestada pelo procurador-geral do Banco Central, Isaac Sidney Menezes Ferreira, que, em sustentação oral, defendeu a cobrança de juros compostos. O Bacen foi admitido como amicus curiae no processo a convite do próprio relator, ministro Luis Felipe Salomão. Para o Bacen, a capitalização de juros não prejudica diretamente o cliente, uma vez que padroniza a cobrança de juros e o sistema financeiro, estimulando a competitividade entre os bancos, e permite o alongamento dos prazos dos empréstimos, aumentando a disponibilidade de crédito.
"A capitalização não ocorre apenas nos empréstimos que os bancos concedem, mas também nos juros que o banco paga em suas captações, a exemplo da poupança", afirmou o procurador.
Em sua sustentação, Ferreira esclareceu que a discussão deveria ser orientada por preocupações referentes à eficiência do sistema financeiro e, que, do ponto de vista do custo do empréstimo, não faz diferença se o anatocismo for ou não autorizado. "A mesma remuneração do empréstimo pode ser obtida mediante juros simples ou juros compostos", disse. De acordo com o procurador, a utilização de juros compostos, desde que prevista em contratos, é benéfica para o cliente e para o sistema financeiro.
"Suponhamos que um cliente se depara com duas ofertas de empréstimo, ambas calculadas com juros simples. Uma, pelo prazo de três meses, a uma taxa mensal de 1,5226%. Outra, pelo prazo de 12 meses, a uma taxa mensal de 1,6301%. Se, impressionado pela menor cifra, o cliente escolhe o primeiro empréstimo, fica em condições piores, pois pagará a mesma taxa por um empréstimo de menor prazo, já que ambas as taxas correspondem a juros compostos de 1,5% ao mês", exemplificou.
Quanto aos argumentos jurídicos, o órgão defende que o Código Civil, uma regra geral, não se sobrepõe a norma especial mesmo no caso de se constatar vício formal na norma que estabelece o anatocismo. O Bacen ainda entende que não se pode atacar a necessidade da MP no STJ, já que isso implicaria controle de constitucionalidade, competência do Supremo Tribunal Federal. O STF ainda não terminou o julgameno da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.631, que trata do tema.
“O guerreado artigo 5º da MP 2.170 consagra prestação de informações mais transparentes para o cliente do que o próprio Código de Defesa do Consumidor”, disse Isaac Ferreira. “Enquanto o CDC apenas demanda do fornecedor informações sobre o montante dos juros e a efetiva taxa anual aplicada, o artigo 5º exige que o banco apresente planilha de cálculo que evidencie o valor principal da dívida, seus encargos e despesas contratuais, a parcela de juros e os critérios de sua incidência e a parcela correspondente a multas e demais penalidades contratuais” afirmou.
REsp 973.927/RS
REsp 1.003.530/RS


terça-feira, 24 de abril de 2012

Advogado consegue acesso a autos sigilosos




O sigilo do foro privilegiado pode ser relativizado quando dele depende a produção de prova para outro caso, com teor semelhante. Com esse entendimento, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça permitiu que o criminalista Alberto Zacharias Toron, do Toron, Torihara e Szafir Advogados, tivesse acesso a autos que tramitam no Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, no qual um promotor é acusado de ter matado uma família em um acidente de trânsito. A decisão foi unânime.
O criminalista defende, em outra ação penal, um caminhoneiro que transpôs o canteiro central da Rodovia Presidente Dutra. Na pista contrária, ele colidiu com vários carros e matou nove pessoas. Ele foi denunciado e pronunciado por homicídio qualificado com dolo eventual. Ou seja, será julgado pelo Tribunal do Júri.
Apesar de o motorista ser primário e sem antecedentes criminais, o Ministério Público entendeu que ele assumiu o risco do homicídio, já que dirigia em alta velocidade e estava embriagado. Ficou preso por três anos. “Tempos depois, um promotor de Justiça dirigindo nas mesmas condições, em excesso de velocidade e embriagado, veio a matar marido, mulher e uma criança que trafegavam numa moto. O promotor, porém, foi denunciado por homicídio culposo”, narra Toron.
Dada a semelhança entre os dois casos, o criminalista pediu que o juiz do Júri de Jacareí (SP), onde corre o caso, requeresse uma cópia da denúncia ao Órgão Especial do TJ paulista. O pedido foi negado. Mais tarde, em grau de recurso, foi a vez de o TJ-SP negar o pedido.
Já no Superior Tribunal de Justiça, o relator do pedido, ministro Jorge Mussi, afirmou que “é exatamente a aparente simetria entre os fatos que justifica o pedido do paciente em ter acesso à cópia da exordial de outra ação penal, visando o cotejo entre aquela e a sua acusação”. Além disso, o voto conclui que “há constrangimento ilegal a ser sanado pela angusta via mandamental, uma vez que a negativa do pedido de produção de prova da defesa não me pareceu adequadamente fundamentada pelo Juízo processante”.
Com a decisão, a 1ª Vara Criminal de Jacareí agora vai solicitar ao Órgão Especial uma cópia da denúncia do promotor.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

CAMPANHA ELEITORAL - COMO EVITAR PROBLEMAS COM DOAÇÕES

Um amigo que queira incentivar a campanha de um candidato imprimindo santinhos não poderá fazê-lo, a não ser que seja dono de uma gráfica. Caso contrário, o favorzinho poderá ser o motivo pelo qual as contas do candidato não serão aprovadas. Essas e outras dicas estão na cartilha publicada pelo Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, com o intuito de explicar a Resolução 23.376 do Tribunal Superior Eleitoral.
O modelo brasileiro de angariação de fundos para candidatos, que permite ao candidato buscar diretamente com o empresariado o financiamento de sua campanha, requer cuidados específicos. Não é permitido, por exemplo, o recebimento de dinheiro de entidade de classe ou sindical, de organizações da sociedade civil de interesse público, de concessionário ou permissionário de serviço público, de entidades beneficentes religiosas e de entidades esportivas.
Vale lembrar que o sistema de busca de financiamento é responsabilizado por diversos escândalos que sugerem o envolvimento de políticos com empresários e o chamado "caixa 2" de campanhas — o mais famoso foi reconhecido por lideranças do PT no caso do mensalão.
A preocupação com o financiamento das campanhas aumentou depois do dia 1º de março, quando o TSE decidiu que, para concorrer às eleições municipais deste ano, não basta aos candidatos terem apresentado as contas de campanha das últimas eleições (2010), mas também é necessário que os números tenham sido aprovados. Isso vale também para que o candidato que não tenha as contas desse pleito aprovadas seja impedido de efetuar seu registro de candidatura nas próximas eleições.
Regras claras
A cartilha do TRE-RJ, que visa diminuir os problemas com contas, tão comuns nas cortes eleitorais, explica que existem dois tipos de recursos: os financeiros e os estimáveis em dinheiro. “Os financeiros são os provenientes de doações em dinheiro, cheques, transferências etc. Os estimáveis em dinheiro são serviços ou bens doados ou emprestados, que podem ser mensurados em dinheiro.”
O candidato poderá doar para sua candidatura recursos de valor estimado, como seu carro ou outro bem, mas é necessário que esses bens tenham sido adquiridos em período anterior ao pedido de registro da candidatura.
A doação de pessoa física é limitada a 10% dos rendimentos brutos auferidos em 2011, declarados à Receita Federal do Brasil, excluindo-se as doações estimáveis em dinheiro relativas à utilização de bens móveis ou imóveis com valor de até R$ 50 mil. Já as doações de pessoa jurídica podem chegar a, no máximo, 2% do faturamento bruto da doadora auferido em 2011.
Se os recursos arrecadados não forem suficientes para cobrir as despesas de campanha, o candidato poderá receber doações para cobri-las. “Se restar dívida a ser quitada, o partido político poderá assumir a dívida de campanha do candidato”, diz a cartilha. Nesse caso, o candidato deverá apresentar declaração assinada pelo presidente do órgão partidário regional, a autorização da direção nacional e o cronograma de pagamento.

sábado, 21 de abril de 2012

Tempo em poder de assaltante não configura sequestro



O período em que uma pessoa passa sob domínio de um assaltante não caracteriza sequestro. Este foi o entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo ao condenar um homem por roubo, mas absolvê-lo da acusação de sequestro. Ele havia sido preso em flagrante utilizando o cartão de crédito da vítima, após roubá-la e permanecer com ela em seu poder por 40 minutos. De acordo com o relator do processo, desembargador Willian Campos, mesmo que o acusado tenha permanecido com a vítima por quase uma hora, "a privação momentânea da liberdade da vítima de roubo faz parte da própria violência tipificadora deste delito, não há se falar também em sequestro, pois ocorreria, então, um 'bis in idem' evitado, adotando-se o princípio da consunção".
O homem e seu comparsa foram presos em flagrante por policiais enquanto utilizavam o cartão da vítima em um estabelecimento comercial. Antes disso, segundo a denúncia, o assaltante abordou a vítima, uma mulher e, simulando ter uma arma, pediu o cartão bancário, ameaçou-a de morte e violência sexual, e a manteve sob a guarda de seu comparsa enquanto sacava dinheiro em caixas eletrônicos. Ele exigiu que ela fingisse que eram namorados e chegou a beijá-la e tocá-la nos seis e nádegas.
Após fazer dois saques, os homens liberaram a mulher, mas foram presos por policiais em um posto de gasolina.
Estupro negadoSe o assaltante faz “um mero toque superficial e fugaz" no corpo da vítima (seios e nádegas), no intuito de disfarçar seu delito, tentando fazer parecer aos transeuntes ser ele namorado ou marido da vítima, não se prova o dolo exigido pelo tipo previsto no artigo 214 do Código Penal (atentado violento ao pudor), segundo a câmara.
De acordo com o relator, "embora tenha o agente passado as mãos pelo corpo da vítima e dado beijos em seu rosto, circunstâncias que devem ser levadas em consideração para o recrudescimento da pena, não há provas quanto ao dolo exigido pelo crime de atentado violento ao pudor".
“Ademais, trata-se de crime grave, cuja ocorrência deve ser reconhecida tão somente se inequívoco o fim lascivo objetivado pelo agente, de modo que se as provas colhidas geraram dúvidas e tornaram controversa a acusação do réu, impõe-se a absolvição com fundamento no (antigo) artigo 386, VI (atual VII) do CPP”, concluiu.
A condenação levou em conta que acusado, além de se aproveitar da vítima, ameaçou levá-la até a favela para abusar dela e então matá-la, “incutindo-lhe terror e trauma psicológico”, para majorar a pena em 1/6, determinando as penas para quatro anos e oito meses de reclusão e 11 dias-multa pelo roubo, e sete anos de reclusão e 11 dias-multa pela extorsão, em regime fechado.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

LAVAGEM DE DINHEIRO INDEPENDE DE PRESCRIÇÃO DE CRIME ANTECEDENTE

Por Luiz Flávio Gomes

*A extinção da punibilidade pela prescrição dos crimes antecedentes não implica atipicidade da lavagem de dinheiro. O posicionamento é da 5ª Turma do STJ no Habeas Corpus 207.936/MG, julgado em 27 de março de 2012, relatado pelo ministro Jorge Mussi.
A expressão “lavagem de dinheiro” ou “lavagem de capitais” tem origem nos EUA (money laudering), e data de meados de 1920, quando criminosos de Chicago começaram a utilizar lavanderias para movimentar o dinheiro oriundo da venda de bebidas alcoólicas, que era proibida naquela época. O vínculo entre a lei seca (norteamericana) e o fortalecimento do crime organizado é mais do que evidente (cf. BURGIERMAN, Denis Russo, O fim da guerra, São Paulo: Leya, 2011).
A lavagem, no nosso país, é o método pelo qual bens, direitos e valores obtidos com a prática de crimes anteriores “determinados” são integrados ao sistema econômico-financeiro, com a aparência de terem sido obtidos de maneira lícita.
Neste sentido é que o crime de lavagem pressupõe a existência de um crime antecedente.
De acordo com a Lei 9.613/1998, artigo 1º, são crimes antecedentes: I - tráfico de drogas; II - terrorismo e seu financiamento; III- contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; IV - extorsão mediante sequestro; V - crime contra a Administração Pública; VI – crime contra o sistema financeiro nacional; VII – crime praticado por organização criminosa e VIII – praticado por particular contra a administração pública estrangeira.
A própria lei de lavagem, no entanto, explicita que, embora a lavagem pressuponha um crime antecedente, o processo e julgamento dos crimes de lavagem independem do processo e julgamento dos crimes antecedentes (artigo 2º, inciso II, da Lei 9.613/1998).
Assim, a jurisprudência orienta que, se o crime antecedente prescreve, não necessariamente o crime de lavagem é atípico. Isso porque o crime de lavagem de dinheiro é delito autônomo, independente de condenação ou da existência de processo por crime antecedente.
Confira-se a ementa do informativo 494 do STJ, no qual se relatou o julgado em comento:
PRESCRIÇÃO. CRIME ANTECEDENTE. LAVAGEM DE DINHEIRO.
A extinção da punibilidade pela prescrição quanto aos crimes antecedentes não implica o reconhecimento da atipicidade do delito de lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei n. 9.613/1998) imputado ao paciente. Nos termos do art. 2º, II, § 1º da lei mencionada, para a configuração do delito de lavagem de dinheiro não há necessidade de prova cabal do crime anterior, mas apenas a demonstração de indícios suficientes de sua existência. Assim sendo, o crime de lavagem de dinheiro é delito autônomo, independente de condenação ou da existência de processo por crime antecedente. Precedentes citados do STF: HC 93.368-PR, DJe 25/8/2011; HC 94.958-SP, DJe 6/2/2009; do STJ: HC 137.628-RJ, DJe 17/12/2010; REsp 1.133.944-PR, DJe 17/5/2010; HC 87.843-MS, DJe 19/12/2008; APn 458-SP, DJe 18/12/2009, e HC 88.791-SP, DJe 10/11/2008. HC 207.936-MG, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 27/3/2012.
Com a devida vênia, só discordamos do ponto em que se afirma que não é preciso prova cabal do crime anterior. Pensamos que essa prova deve ser inequívoca, o que não afeta a independência do crime de lavagem.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Remanescentes de quilombo ganham terra por usucapião

Menos de um mês antes do Supremo Tribunal Federal julgar a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003, que regulamenta identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, a 4ª Vara Federal de Santos, em São Paulo, determinou a transferência de terras de uma empresa para um grupo de famílias descendentes de quilombolas. A sentença foi proferida no último dia 24 de março, em Ação de Usucapião impetrada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que representou as famílias.
No caso, a Advocacia-Geral da União (AGU), por meio da Procuradoria Federal Especializada do Incra, entrou, em movimento inédito, como substituta processual às famílias dos descendentes de quilombolas. Em vez de representar o Incra, agiu em nome da Associação de Remanescentes de Quilombos do Bairro André Lopes, na cidade de Eldorado Paulista, no Vale do Ribeira, sul de São Paulo.
Para isso, usou do Decreto 4.887/2003, que trata da desapropriação de terras em nome de descendentes de quilombolas. O artigo 15 do decreto autoriza o Incra a representar “os interesses dos remanescentes das comunidades dos quilombos das questões surgidas em decorrência da titulação de suas terras”. Alegou, então, legitimidade extraordinária para representar as famílias paulistas.
As terras pertenciam à empresa Alagoinha Empreendimentos, mas, de acordo com documentos apresentados pelo Incra ao juízo, eram ocupadas “há muito mais de dez anos” pelas famílias, “de forma mansa, pacífica e ininterrupta”. Com isso, o prazo para a companhia alegar a propriedade da terra já havia prescrito, configurando o usucapião dos descendentes de quilombolas.
Diferentemente do que acontece com as terras de reservas indígenas, que pertencem à União, mas são ocupadas pelos índios, os terrenos ocupados pelos quilombolas são de sua titularidade. Isso de acordo com o que está descrito no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT): “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
Então, em vez de expropriar a terra e repassar a propriedade, o órgão pediu para que a Justiça declarasse a posse, por direito, das famílias, sem que precisassem ser "atravessadas". Fazer o contrário, afirma o Incra, seria um “verdadeiro atentado ao erário”. O pedido foi aceito pelo juiz, e a Ação de Usucapião foi acolhida pela 4ª Vara Federal de Santos.
Ocupantes por direito
Para comprovar que as famílias do bairro André Lopes são, de fato, descendentes de ex-escravos quilombolas, o Incra apresentou um relatório técnico-científico de autoria do Instituto de Terras de São Paulo (Itesp), ligado à Secretaria de Justiça do governo estadual. O estudo afirma que a história do bairro André Lopes, no Vale do Ribeira, remonta ao século XVII, quando a região era usada para exploração de ouro.
O relatório do governo de São Paulo conclui que o bairro faz parte “um conjunto maior de inúmeras comunidades rurais de população afrodescendente no Vale do Ribeira, cujas origens remontam à história do ciclo minerador iniciado na região no século XVII, e à história do ciclo rizicultor [de plantações de arroz], que teve seu ápice no século XIX”.
Conclusão semelhante à da Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, que diz serem "descendentes de homens e mulheres negros escravizados, e cujas origens estão diretamente ligadas à história da escravidão ocorrida no Vale do Ribeira”.
Baseada nos documentos e no que diz o artigo 68 do ADCT, a juíza do caso, Alessandra Nuyens Aguiar Aranha, decidiu pelo “reconhecimento da posse centenária, ininterrupta e pacífica das terras dos quilombos aos seus remanescentes, no momento da promulgação da Constituição Federal de 1988, cabendo-lhes declarar o direito à aquisição da propriedade ocupada de forma coletiva”.
Competência usurpada
Por mais que a posição do Incra, e a decisão da Justiça Federal, tenha sido inovadora, elas podem cair por terra. É que a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003, em que se baseou a AGU para fazer o pedido, está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal.
Em Ação Direta de Inconstitucionalidade interposta pelo antigo PFL, hoje DEM, é alegado que o decreto usurpou a competência do Congresso Nacional para tratar de questões fundiárias. Diz o partido que somente leis podem tratar de procedimentos que acarretem em despesas ao erário, como no caso de expropriação de terras pelo Incra em nome de comunidades quilombolas.
O caso deve ser discutido pelo Supremo nesta quarta-feira (18/4), e está sob relatoria do ministro Cezar Peluso. Será o último grande caso relatado por Peluso enquanto ele ainda está, formalmente, na presidência. A partir da quinta-feira (19/4), o ministro deixa o cargo nas mãos do atual vice-presidente, ministro Ayres Britto.

FONTE: CONJUR

domingo, 15 de abril de 2012

CNDT - CERTIDÃO NEGATIVA DE DÉBITOS TRABALHISTAS PODE SER PORTA PARA FRAUDES IMOBILIÁRIAS

A Lei 12.440 foi sancionada em meados do ano passado para instituir a Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas (CNDT), com o fito de – pelo que indicam seus dispositivos – conferir ao procedimento licitatório instrumento de aferição da regularidade trabalhista dos participantes e interessados.
Assim é que a referida lei – de apenas quatro artigos – dispôs no primeiro sobre a instituição da certidão retro nominada e no quarto e último sobre o termo de sua vigência, tendo destinado os demais – terceiro e quarto – para alterar dispositivos da Lei 8.666/1993 – conhecida por lei das licitações, para acrescentar a exigência aos participantes de comprovação de regularidade trabalhista e para determinar a apresentação da CNDT como prova de inexistência de débitos inadimplidos perante a Justiça do Trabalho.
Em vigor desde 9 de janeiro passado, a Lei 12.440 possibilita aos interessados a obtenção de certidão “expedida gratuita e eletronicamente, para comprovar a inexistência de débitos inadimplidos perante a Justiça do Trabalho”.
Segundo a lei, obstará a emissão da CNDT o inadimplemento de obrigações estabelecidas em sentença condenatória transitada em julgado proferida pela Justiça do Trabalho ou estabelecidas em acordos judiciais trabalhistas, inclusive quanto aos recolhimentos previdenciários, honorários, custas, emolumentos ou a recolhimentos determinados em lei, assim como o inadimplemento de obrigações decorrentes de execução de acordos firmados perante o Ministério Público do Trabalho ou Comissão de Conciliação Prévia.
Dispõe ainda que serão emitidas certidões negativas e certidões positivas com efeito de negativa, quando verificada a existência de débitos garantidos por penhora suficiente ou com exigibilidade suspensa, sem previsão legal para a emissão de certidão positiva.
Ocorre que a Corregedoria Nacional de Justiça, órgão do Conselho Nacional de Justiça, pela Recomendação 3/2012, em 15 de março passado, resolveu “recomendar aos tabeliães de notas que cientifiquem as partes envolvidas da possibilidade de obtenção prévia de Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas (CNDT), nos termos do art. 642-A da
CLT, com a redação dada pela Lei 12.440/2011”, fazendo constar da escritura lavrada que a cientificação foi efetivamente realizada, nas seguintes hipóteses:
I – alienação ou oneração, a qualquer título, de bem imóvel ou direito a ele relativo;
II – partilha de bens imóveis em razão de separação, divórcio ou dissolução de união estável.
Por sua vez, a Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, pelo Provimento 08/2012, resolveu alterar as Normas de Serviço para reiterar e estabelecer a cientificação das partes sobre a CNTD como obrigação dos tabeliães e escreventes autorizados e como condição de validade e solenidade da escritura.
Essas normas administrativas tiveram por conseqüência prática a mera alteração dos padrões escriturais dos tabelionatos com a inclusão da “cientificação às partes” nos instrumentos públicos e, também, a exigência dessa declaração de ciência pelos Oficiais de Registro de Imóveis não apenas para os instrumentos públicos, mas, também, para os instrumentos particulares admitidos por lei para as operações acima, dando início a uma verdadeira torrente de devoluções de instrumentos levados ao registro.
Dessa forma, o documento criado para atender às necessidades do procedimento licitatório no âmbito dos Poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, órgãos da administração direta, os fundos especiais, as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, de interesse limitado aos interessados em participar de licitações e contratos da administração pública tornou-se obrigatório para a realização de transações na esfera privada.
Não bastasse sua obrigatoriedade – reitere-se, não decorrente de lei – a referida certidão apresenta problemas suficientes para, ao invés de “contribuir para que sejam evitadas discussões sobre eventual fraude à execução”, nos exatos termos dos considerandos do CNJ, estimular e promover a realização dessas fraudes.
Em rápido exame é possível apontar as seguintes anomalias prejudiciais à segurança jurídica do negócio:
(a) A recomendação do CNJ para a cientificação da existência e acesso à CNDT mascara a real necessidade de consulta aos tribunais regionais do trabalho;
(b) Pelo Ato 1/2012 do Gabinete da Presidência do TST ao regulamentar a expedição da CNTD o tribunal “criou” um pré-cadastro onde permanecerão acobertados por 30 dias os débitos trabalhistas inadimplidos, com o direito de, nesse período, emissão de certidão negativa ao interessado;
(c) A advertência expressa pelo tabelião quanto à existência e possibilidade de acesso a essa certidão torna sua obtenção obrigatória pelas partes.
Num tempo em que os magistrados da Justiça Trabalhista exibem ‘sangue nos olhos’ em relação ao reclamado e estão sempre prontos para desconsiderar a personalidade jurídica, para a penhora ou o arresto de bens do devedor, é nos tribunais regionais – isto é, na ação não julgada, na ação com sentença não transitada em julgado, ou, na ação com sentença condenatório ainda não inadimplida pelo devedor – que reside o risco potencial da fraude à execução de que trata a recomendação do CNJ, por isso, tornou-se imprescindível – antes da realização de qualquer negócio jurídico – a pesquisa nos para apurar a existência de ação em andamento contra o vendedor ou, ainda, contra pessoa jurídica da qual eventualmente seja ou tenha sido sócio ou administrador.
Nesse sentido, a solenidade de cientificação das partes sobre a possibilidade de obtenção da CNDT pode desviar dos riscos a atenção do adquirente de boa-fé, levando-o a acreditar que a certidão emitida pelo tribunal superior seja suficiente para a operação.
Cabe ressaltar que a CNDT aponta – exclusivamente – as obrigações inadimplidas estabelecidas em sentença condenatória transitada em julgado proferida pela Justiça do Trabalho ou em acordos judiciais trabalhistas, inclusive no concernente aos recolhimentos previdenciários, honorários, custas, emolumentos ou recolhimentos determinados em lei e as decorrentes de execução de acordos firmados perante o Ministério Público do Trabalho ou Comissão de Conciliação.
O prazo de carência criado pelo Tribunal Superior do Trabalho pode ser justificável em relação aos objetivos iniciais da lei, assegurando a comunicação da inscrição do débito ao devedor e proporcionando-lhe o prazo de 30 dias para a regularização, em consonância com as normas que regem a inscrição do devedor fiscal no Cadastro Informativo de créditos não quitados do setor público federal – CADIN, de forma a não impedir a participação de devedores pontuais nos certames licitatórios.
No entanto, sua aplicação nas operações imobiliárias revela-se uma porta escancarada para a fraude, concedendo ao devedor a certidão negativa de débitos indicativa da lisura das transações e o tempo suficiente para alienar todo o seu patrimônio.
Ademais, parece-nos a advertência expressa e solene do tabelião quanto à existência e possibilidade de acesso à certidão negativa de débitos trabalhistas – CNDT torna sua obtenção obrigatória, posto que a desatenção das partes possa eliminar a presunção de boa-fé da transação, voltando-se contra aqueles mesmos que o Conselho Nacional de Justiça pretendeu proteger com a recomendação aqui tratada.
Finalmente, com relação aos contratos particulares admitidos por lei entendemos que tanto a recomendação do CNJ quanto a determinação do CG do TJ-SP não se aplicam aos contratos firmados entre particulares. Quanto aos contratos firmados com a interveniência de instituição financeira, entendemos aplicáveis apenas nas operações realizadas sob a égide da Lei 4.380/64, isto é, no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Advogado é condenado por uso ilícito de escutas telefônicas

Advogado que faz uso de gravações telefônicas com finalidade diferente da que foi autorizado judicialmente deve pagar indenização. O entendimento é da 10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que manteve a condenação de advogado que fez uso ilícito de escutas telefônicas autorizadas pela Justiça. Agora, o advogado está obrigado a pagar R$ 40 mil para a ex-mulher de um cliente seu.
No acórdão, que teve como relator o desembargador Jorge Alberto Schreiner Pestana, consta que o fato de o advogado não usar as escutas da forma como a Justiça determinou é o suficiente para condená-lo a pagar indenização. O acórdão também cita o os incisos X e XII do artigo 5º da Constituição, que menciona a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. A decisão menciona, ainda, o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que no capítulo III aborda o sigilo profissional.
A escuta foi autorizada pela Justiça gaúcha para averiguar possíveis ameaças de morte ao então marido da autora da ação. No entanto, o advogado do ex-cônjuge utilizou as gravações com a intenção de produzir prova de traição no processo de separação judicial que seu cliente movia contra ela, desvirtuando a finalidade da autorização das gravações.
Segundo a mulher, o advogado revelou os fatos que provocaram a separação em reunião do condomínio em que ela residia e atuava como síndica. O fato foi confirmado por testemunhas. Por conta disso, ela passou a ouvir xingamentos de vizinhos e empregados do condomínio, chegando a ser proibida de ingressar no prédio.
Alegando que os fatos lhe causaram forte depressão e abalo psicológico, ela entrou na Justiça contra o advogado. A decisão da Vara Cível de Caxias do Sul deu ganho de causa à mulher. Ele foi condenado a pagar R$ 50 mil. No recurso impetrado por ele, o TJ-RS apenas reduziu a indenização de R$ 50 mil para R$ 40 mil. Também participaram da sessão de julgamento os desembargadores Paulo Roberto Lessa Franz e Túlio Martins. Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-RS.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

OPERAÇÃO MONTE CARLO - ATÉ VOCÊ PROTÓGENES!

O deputado federal Protógenes Queiroz (PC do B/SP) foi flagrado em conversas suspeitas com acusado de envolvimento com a máfia dos caça-níqueis. Nas escutas telefônicas da operação monte carlo, da Polícia Federal, que investiga um suposto esquema de tráfico de influência do bicheiro Carlinhos Cachoeira, o deputado e delegado licenciado da Polícia Federal dá instruções ao araponga Idalberto Matias Araújo, conhecido como Dadá, sargento da Aeronáutica que trabalhou com Queiroz na operação Satiagraha. Os arquivos de áudio foram disponibilizadas pelo jornal O Estado de S. Paulo.




Chamado de professor por Dadá, Protógenes dá orientação supostamente sobre como agir em depoimento, marca encontros a caminho do aeroporto e em hotel. Em uma das conversas, na qual o araponga liga para ele, o deputado explica sua ausência no hotel em que era aguardado. “Tive que vir para um encontro da Comissão de Constituição e Justiça e estou na Câmara [dos Deputados]”, diz ele, antes de marcar o encontro para 13h.



Quando conduziu a operação satiagraha, que investigou o banqueiro Daniel Dantas, o então delegado Protógenes contestou afirmações de a prática de grampo estava desenfreada e que o país vivia em estado policial permanente. Nos três diálogos, que vieram a público nesta quarta-feira (11/4), no entanto, ambos conversam sem mencionar assuntos ou nomes de pessoas, fazendo apenas referências, demonstrando temerem a escuta de terceiros. As gravações mostram que o deputado e o araponga evitam conversar, marcando sempre encontros presenciais.



Na época da operação satiagraha, foi Dadá quem apresentou o então delegado ao agente aposentado do antigo SNI Francisco Ambrósio do Nascimento. Nascimento foi contratado diretamente como investigador particular por Protógenes, que teria pago pelos serviços com dinheiro público.



Documentos mostram que o delegado licenciado pagou R$ 1,5 mil por serviços terceirizados em favor do "analista de dados" Francisco Ambrósio do Nascimento. O ex-agente do SNI foi apontado como coordenador do esquema de espionagem montado pelo então delegado. Ao fim da operação Satiagraha, Dadá foi indiciado por ter supostamente levado informações sigilosas para casa.



terça-feira, 10 de abril de 2012

STJ precisa cumprir seu papel constitucional


É praticamente lugar comum, a quem se anima a analisar o funcionamento da Justiça, o problema da sua excessiva demora, para o que contribuiria o “excessivo número de recursos”. Não há como a demora deixar de ser proporcional à sobreposição de juízos a respeito do mesmo litígio. Porém, não é racional tentar eliminar o tempo do processo simplesmente descartando os recursos.
O real problema não está na sua existência, mas na mitificação do duplo grau de jurisdição, na não percepção de que o tempo do processo é um ônus – que, assim, deve ser distribuído mediante a execução na pendência da apelação – e na impossibilidade de a Corte incumbida de dar unidade ao direito federal cumprir com a sua missão.
O duplo grau não é garantia constitucional ou princípio fundamental de justiça. Na verdade, a suposição de que o duplo grau é algo imprescindível é que atenta contra os direitos fundamentais à tutela efetiva e tempestiva. Dois juízos repetitivos sobre o mérito, independentemente do litígio discutido, fazem do primeiro grau uma extenuante e inútil antessala, à espera do pronunciamento do tribunal – nesse sentido visto como única e verdadeira decisão.
Como é óbvio, não se propõe a eliminação da apelação, porém a sua restrição diante de casos simples - que envolvem particularmente questões de fato de menor complexidade -, como os relativos a indenização em virtude de acidente de trânsito ou a locação. Não é preciso dizer que isto cortará o tempo e o custo do processo pela metade e descongestionará os tribunais, hoje obrigados a contarem com excessivo número de assessores para darem conta da desumana e irracional carga de trabalho imposta aos desembargadores[1].
Para os casos em que a apelação não pode ser suprimida, basta considerar outro ponto que também não deveria gerar dúvida. É preciso perceber, de vez por todas, que o tempo não é algo neutro – como desejaram os doutrinadores do século XX -, mas um ônus, que assim deve ser distribuído entre os litigantes. Ora, se a sentença é um ato em princípio legítimo, que declara - após o devido contraditório - o direito, a supressão dos seus efeitos, até que o tribunal se pronuncie, é algo completamente destituído de boa lógica. Se o direito do autor foi declarado, após a participação das partes no procedimento de primeiro grau, o tempo do recurso deve ser suportado pelo demandado e não pelo demandante.
A suposição de que o tempo do recurso deve recair sobre as costas do autor apenas encontra racionalidade quando baseada na premissa de que o tempo do processo é um problema do demandante. Ou em outra, tão absurda quanto a primeira, de que a sentença do juiz de primeiro grau não merece credibilidade, devendo sempre ser vista com reservas.
A execução da sentença na pendência da apelação é algo insuprimível num sistema judicial marcado pelos direitos fundamentais à tutela efetiva e tempestiva. E, além disso, necessária para resgatar a dignidade das decisões do juiz de primeiro grau. Se a sentença não produz efeitos, se assemelha a um projeto de decisão, e o juiz que a profere, por consequência, assume a função de um instrutor. Além de usurpar o poder dos juízes e violentar os direitos fundamentais do jurisdicionado, isso desgasta a credibilidade do Judiciário perante a população. Assim, é chegado o momento de se ter execução na pendência da apelação, instituindo-se, ao seu lado, a possibilidade de se suspender os efeitos da sentença e de se exigir prestação de garantia, num verdadeiro sistema de pesos e contrapesos[2].
Por fim, cabe tratar da questão que hoje mais interessa, diante da recente proposta de introdução da técnica da “relevância da questão federal” no Superior Tribunal de Justiça. Para que a questão seja bem situada importa perguntar a razão pela qual uma Corte necessita de uma técnica de seleção de recursos.
Seria absurdo afirmar que é apenas para eliminar o excesso de trabalho do tribunal. A racionalização do trabalho judicial é uma consequência da adoção da técnica, mas evidentemente não está na sua essência. Esta técnica é utilizada quando se quer otimizar ou criar uma “Corte de Precedentes”, compreendida como corte que tem a função de desenvolver e transformar o direito mediante a instituição e a revogação de precedentes.
Uma “Corte de Precedentes”, ao exercer sua função de colaborar com a construção do direito, não pode se desligar do seu dever de tutelar a coerência do direito, a segurança jurídica e a igualdade perante as decisões judiciais. A Corte deixa, assim, de objetivar apenas a tutela do litigante mediante a correção da interpretação do direito e passa a estar consciente de sua missão de revelar o sentido do direito, bem como de sua responsabilidade perante o futuro.
A Corte tem função proativa, prevenindo agressões ao Direito e permitindo a sua evolução e transformação. Se o STJ tem a função de dar unidade ao direito federal mediante a instituição de precedentes, os seus ministros e turmas, assim como os tribunais inferiores, deles não podem divergir. O precedente pode ser revogado pela Corte quando presentes circunstâncias que assim aconselhem, tomando-se a cautela de não violar a confiança justificada dos jurisdicionados, mediante a atribuição, se for o caso, de efeitos prospectivos à decisão revogadora.
Por sua vez, os tribunais inferiores, diante do precedente, devem bem operar com a técnica da distinção (distinguishing), evitando aplicar o precedente em face de casos diversos. Tem-se, nesta dimensão, verdadeira unidade do direito federal, real dignidade das decisões da Corte, evitando-se a violação da segurança jurídica e da igualdade perante o direito. Como consequência, há tutela jurisdicional muito mais tempestiva e barata e maior chance de surgimento de acordos, evitando-se a litigiosidade diante da solução já expressa no precedente[3].
O STJ, a despeito da sua missão constitucional de dar unidade ao direito federal, hoje não tem condições adequadas para exercer funções proativas. Muitas vezes, por exercer função unicamente reativa, acaba assumindo a natureza de um terceiro grau de jurisdição. A técnica de seleção de recursos, voltada à individualização de questão jurídica relevante para a evolução e a transformação do direito, tem grande importância nas modernas Cortes Supremas, inclusive para que seus membros possam se dedicar às questões de real relevância. Além das supremas cortes norte-americana e inglesa, as cortes supremas da Alemanha e da Áustria utilizam tal técnica - ainda que de formas diferentes. Sabem estas Cortes que o emprego desta técnica nada tem a ver com diminuição de trabalho, mas com a necessidade de participarem do desenvolvimento do direito, assegurando a sua distribuição de modo isonômico.
É preciso que o sentido do direito federal tenha estabilidade e que os precedentes sejam criados e revogados apenas quando necessário em face da evolução da concepção geral do direito e da própria realidade social. Com isso a vida dos processos não ultrapassará, em regra, o segundo grau de jurisdição, priorizando-se a tempestividade da tutela jurisdicional, a economia de gastos financeiros e a racionalidade do serviço dos Tribunais e do próprio STJ, além de - e isto é mais importante – a coerência da ordem jurídica, a segurança e a igualdade perante o direito. Portanto, é muito importante a iniciativa do STJ, de proposta de emenda constitucional, dirigida a instituir técnica de seleção de recursos a partir do critério de “relevância da questão federal”.
Note-se que as três questões analisadas permitem o resgate do valor do juiz de primeiro grau, a racionalização da tarefa dos tribunais e que o STJ exerça a sua missão constitucional de dar unidade ao direito, estando todas intimamente relacionadas. São elas imprescindíveis para a racionalização do sistema judicial e para que o Poder Judiciário passe a exercer as funções que dele não podem ser subtraídas na contemporaneidade.

[1] Conforme proposta que fizemos em 1996, “Tutela antecipatória, julgamento antecipado e execução imediata da sentença”, São Paulo, Ed. RT, 1996.
[2] Conforme proposta que fizemos em 1996, Tutela antecipatória, julgamento antecipado e execução imediata da sentença, São Paulo, Ed. RT, 1996.
[3] Ver Luiz Guilherme Marinoni, Precedentes Obrigatórios, São Paulo, Ed. RT, 2010, 2a. ed.
Luiz Guilherme Marinoni é professor titular de Direito Processual Civil da UFPR, pós-doutorado na Università degli Studi di Milano

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Prescrição em perspectiva extingue processos em MS



Apesar de o Superior Tribunal de Justiça ter pacificado, em súmula, não ser possível usar a chamada prescrição em perspectiva de penas criminais para por fim a processos, um juiz de Mato Grosso do Sul tem usado o instituto para extinguir casos em que, se esperasse até a sentença, decidiria pela absolvição, já que a pena estaria prescrita. 
Fábio Henrique Rodrigues de Moraes Fiorenza, juiz federal da 5ª Vara Federal de Mato Grosso do Sul, tem justificado assim suas decisões: “é patente e seguro, dada a prova já produzida até aqui, que a pena fixada numa eventual sentença condenatória estará fulminada pela prescrição”, e afastado a aplicação da Súmula 438 do Superior Tribunal de Justiça.
De acordo com a súmula, “é inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal”. O juiz concorda. "A regra desse enunciado visa a inibir aqueles casos em que o magistrado, ao receber a denúncia, calcula a pena provável com base apenas nos fatos nela narrados e com fundamento nisso extingue o processo, ignorando que circunstâncias que influenciem na pena possam vir à tona no curso da instrução", disse em uma das decisões. No entanto, em casos concretos, tem visto brechas que permitem o contorno à orientação.
Em caso recente, o Ministério Público Federal havia oferecido denúncia há mais de oito anos por apropriação indébita. De acordo com o juiz, a pena máxima aplicável seria de um ano e quatro meses de reclusão, já que não houve circunstância agravante ao crime. Mesmo que ele reconhecesse e aplicasse agravantes ex officio, com base no inciso I do artigo 387 do Código de Processo Penal, de acordo com critérios já utilizados pelo juiz em outros processos, a pena só não estaria prescrita se fossem reconhecidas como negativas sete das oito circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal e duas agravantes, ou seis daquelas circunstâncias e três destas. Em outras palavras, para restar punição a ser aplicada, a pena teria de ser maior que quatro anos de reclusão. 
“Este magistrado nunca reconheceu tantas circunstâncias judiciais e/ou legais negativas a um réu numa ação penal, e, pela análise da instrução até agora decorrida, não seria neste caso que tal ocorreria”, explicou.
“Não se pode dizer que a decisão que ora se profere está sendo tomada independentemente da existência ou sorte do processo penal, eis que, além de já ter se dado quase toda a instrução, ainda que se considere o melhor cenário possível para a acusação em relação à prova faltante, a pena já estará prescrita, pois nem este juízo vislumbra e nem o MPF apontou qualquer fundamento para fixá-la em montante superior a quatro anos de reclusão”. 

PRECATÓRIOS DEVEM SER ACEITOS COMO BENS A PENHORA EM EXECUÇÃO FISCAL

Por Glaucio Pellegrino Grottoli

Não é de hoje que se ouve falar do tema. Desde que me formei já fui consultado inúmeras vezes por clientes sobre a possibilidade de apresentação de garantias mediante precatórios. Apesar de parecer razoável, sob o ponto de vista estritamente financeiro, esta prática sempre foi rechaçada pelos procuradores.
Isso porque, se eu devo para alguém que, ao mesmo tempo, deve para mim, é ilógico que não se aplique a compensação consagrada no Código Civil. É burro e ineficiente querer que o contribuinte comprometa parte de seu patrimônio imediatamente e, em contrapartida, aceite entrar na interminável fila de pagamento de precatórios.
Como já citei em textos anteriores, a ânsia arrecadatória aliada à não redução da máquina administrativa faz com que os contribuintes sejam expostos, cada vez mais, a abusos por parte da administração tributária. E, novamente, o Fisco fica no mais completo conforto. De um lado, posterga a devolução do valor do precatório por anos e anos, às vezes fazendo com que outro ente federativo assuma a sua dívida, mas, de outro, exige a penhora da parcela do contribuinte que entende mais líquida e rápida de ser convertida em pecúnia.
Ora, se é facultado ao credor a compra de imóveis públicos do ente federado mediante a apresentação de precatórios conforme a Constituição Federal dispõe, por que não permitir a garantia de execução fiscal mediante a entrega do mesmo? Ou o valor do precatório para pagamento de imóveis é diferente do valor do mesmo para a garantia de tributos em discussão?
Novamente, sob o ponto de vista meramente financeiro/econômico, nenhuma das partes saiu prejudicada. As dívidas se compensam até onde forem equivalentes evitando que, de um lado, o contribuinte comprometa parte de seu patrimônio e, de outro, o recebimento automático pelo Fisco do valor devido retirando o precatório da fila de pagamento.
Com o simples aceite do precatório – seja como pagamento, seja como garantia – estaria se dando mais celeridade ao processo de execução. O que acontece nos dias de hoje é a recusa do precatório pela Fazenda, a concordância de alguns juízes que partilham do entendimento de que a Fazenda pode recusar a penhora, o que desencadeia, na maioria das vezes, uma batalha recursal para a aceitação do precatório.
Somente depois de decidida a celeuma em torno da penhora/pagamento é que a execução volta ao seu curso normal, fazendo com que ambas as partes, Fazenda e contribuinte, gastem tempo, dinheiro e paciência em uma discussão que poderia ter sido decidida pela lógica financeira, e não sob argumentos jurídicos que, a cada nova Emenda Constitucional que trata do assunto, se torna mais favorável ao contribuinte.
Isso é ineficiente do ponto de vista processual e fere o princípio da eficiência administrativa. Se o crédito apresentado no precatório é líquido e certo, a penhora deveria ser aceita de pleno, evitando-se o arrastar, às vezes por anos e anos, da discussão judicial, economizando dinheiro público, dinheiro do contribuinte e, porque não dizer, as páginas e mais páginas de publicações sobre o tema, inclusive esta.

domingo, 8 de abril de 2012

"A política é o exercício da capacidade de julgamento"

Entrevista concedida pelo filósofo Michael Sandel ao jornalista Jorge Pontual, do programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30.
Michael Sandel - 05/04/2012 [globo.com]Jorge Pontual – Olhando à distância, a vida parece ter um rumo. Mas dentro do fluxo constante de pessoas e ideias, alguns momentos podem mudar tudo. Tomamos milhares de decisões e a partir delas construímos nossas histórias, nossas identidades e nossa sociedade. A ação, ou a falta dela, determina nosso futuro. Como então separar o que é certo do que é errado? Na politica, no trabalho, na filosofia, na vida.
Há trinta anos no curso Justiça, na Universidade de Harvard, o filósofo Michael Sandel usa questões do dia-a-dia, para discutir com os alunos os valores éticos. O curso virou livro e uma série de vídeos, que se tornou um dos maiores sucessos na internet, vista por milhões de pessoas em todo o mundo. O curso é pioneiro no projeto visionário de Sandel, a globalização da educação. Ele vem ao Brasil em agosto, e recebeu o Milênio em Harvard para discutir política, corrupção, desigualdade social, democracia e justiça.
Leia a entrevista:
Jorge Pontual — A principal coisa que está acontecendo no Brasil é uma classe média emergente. Dezenas de milhões de pessoas que eram pobres hoje são da classe média. Nós temos muito orgulho disso. Mas, ao mesmo tempo, a profunda desigualdade que existia no Brasil ainda existe. Nós temos um número muito pequeno de pessoas muito ricas, que é como se morassem em um país diferente. Podemos dizer que não há noção de comunidade. O que pensa disso?
Michael Sandel — Certo. A desiguldade entre ricos e pobres é uma das questões centrais da justiça. E temos visto, em vários países, inclusive nos Estados Unidos, uma desigualdade crescente entre ricos e pobres. Uma das maneiras de lidar com isso, uma das correntes, é a posição individualista simples do laissez faire, do livre mercado, que diz: “Se você compra e vende suas capacidades e seus bens no livre mercado, você tem o direito de ficar com tudo o que ganhar, e é errado o governo taxar seu tão suado dinheiro”. Essa é uma visão. Mas há outra corrente que diz que não, que isso não é verdade, que as desigualdades muitas vezes refletem que a injustiça se estabelece desde o início de nossa vida em sociedade. Algumas pessoas nascem em famílias afluentes, outras nascem em famílias pobres. Algumas têm ótimas oportunidades de ensino, outras têm pouca ou nenhuma chance de ter um bom ensino. Portanto, essa segunda corrente diz que, ao pensar em justiça e desigualdade, devemos perguntar: “Supondo que não saibamos como será seu futuro na sociedade... Você não sabe se será rico ou pobre, forte ou fraco, saudável ou doente. Então, com que princípios de justiça você concordaria se não soubesse que futuro teria?” Essa é a segunda corrente, e ela leva a um sistema mais igualitário. E a terceira corrente, que eu discuto também, se preocupa com essa grande lacuna entre ricos e pobres, mas por uma razão diferente, e não só pela preocupação com a injustiça para com os de classe mais baixa, que sofrem com suas desvantagens, mas também pela preocupação com a comunidade, o que traz de volta o que você mencionou há pouco. De acordo com essa corrente, a terceira corrente, se tivermos uma lacuna grande demais entre ricos e pobres, será muito mais difícil sustentar uma noção de comunidade, a noção de que a vida social é um projeto comum que envolve uma cidadania compartilhada, na qual os cidadãos se sentem comprometidos uns com os outros porque estão comprometidos com um projeto comum. Então, há essa terceira corrente que se preocupa com a desigualdade a partir do ponto de vista da coesão social, da solidariedade e da comunidade.
Jorge Pontual — Outro grande problema do Brasil é a corrupção. No ano passado, em 2011, não sei quantos ministros, talvez seis ou sete, foram exonerados por causa de escândalos de corrupção. O governo está tentando fazer uma limpeza, mas isso está em toda a parte. Os brasileiros são céticos com relação à política. Todos pensam que todos os políticos fazem isso. E, aqui, a influência do dinheiro na política tem aumentado. A próxima eleição será a primeira depois que a Suprema Corte autorizou doações ilimitadas para as campanhas politicas por parte das empresas. O que você diz sobre isso?
Michael Sandel — Isso remete à questão do que é a politica como vocação, como chamado. Qual é o propósito da política? Muitas vezes, quando a corrupção está espalhada e o ceticismo é alto, há um sentimento generalizado de que a política se resume a interesses próprios. Por isso, podemos não gostar, mas somos capazes de entender quando agentes públicos tratam suas funções como se servissem para deixá-los ricos. Na verdade, o que isso reflete é a perda do sentimento de virtude cívica, de responsabilidade pública. E acho que um dos maiores desafios para o Brasil, para os EUA, para qualquer sociedade democrata, é cultivar e desenvolver, entre os cidadãos em geral, a noção de que a vida pública tem sua dignidade e sua importância, porque é a expressão do que é ser cidadão: ser capaz de ter um sistema de governo que pertence a todos nós, que não pode ser comprado por interesses específicos. Hoje, os EUA estão diante de uma campanha presidencial em que uma quantidade enorme de dinheiro está sendo doada aos dois lados, e grande parte desse dinheiro não tem uma finalidade específica. Nem os próprios candidatos são capazes de controlar para onde vai esse dinheiro exatamente. E isso também é um tipo de corrupção, ainda que seja legal. Nossa Suprema Corte, como você mencionou, decidiu recentemente, há cerca de dois anos, derrubar as restrições que limitavam o financiamento de campanha feito com dinheiro privado, e estamos vendo o resultado disso. E esse resultado é que essas campanhas políticas estão inundadas de dinheiro, um dinheiro que não precisa ter um fim específico, e por isso só já é um tipo de corrupção, embora seja algo legal. Isso corrompe o que a virtude cívica e a vida cívica deveriam ser. É uma violação dos ideais mais profundos, na minha opinião, da democracia. A ideia de toda a democracia é dar a todos os cidadãos um poder de palavra, uma opinião de como são governados. Então, eu espero que, no caso do nosso sistema, nós consigamos encontrar uma maneira de limitar o papel do dinheiro nas campanhas eleitorais. Quanto à questão mais ampla do ceticismo, nós precisamos criar um sentimento de que o governo democrático pertence a todos e de que há uma responsabilidade cívica compartilhada para tanto. Mas está se tornando cada vez mais difícil desenvolver e promover isso em nossa sociedade atual. Acho que é por isso que as pessoas estão tão frustradas com a política.
Jorge Pontual — Uma coisa horrível que acontece aqui — e o Brasil, até agora, está livre disso — é o nível do discurso político. As acusações, a polarização ideológica. É como se o outro lado fosse o Mal. Eu moro nos EUA há 16 anos, e vi isso acontecer durante esse período de tempo. Quando eu me mudei para cá, não era assim. Qual é sua solução para isso?
Michael Sandel — Certo. Bem, é verdade, eu concordo com você que nossa política, nosso discurso político, consiste em grande parte, de acusações, e há pouquíssimas argumentações sérias sobre os grandes problemas. E o discurso democrático deveria tratar disso. Eu acho que nossa política se tornou muito gerencial e tecnocrática e focada demais em questões econômicas limitadas. Isso tem deixado de lado questões genuinamente politicas, inclusive questões éticas e questões espirituais que surgem no debate político e, muitas vezes, é a direita religiosa que quer levar questões ligadas aos valores, à moralidade e à religião, para a política, mas a esquerda ou os liberais dizem: “Não, isso é intolerância”. Eu acho que o discurso público democrático deveria acolher debates morais e espirituais e que os cidadãos não deveriam ser forçados a deixar para trás suas convicções morais e espirituais quando entram na arena pública. Não estou dizendo que todos irão concordar se houver um debate mais robusto, do ponto de vista moral, porque as pessoas discordam quanto a grandes questões éticas, a questões morais e espirituais. Mas eu acho que é um erro fingir que a política possa ser neutra em relação a essas importantes questões.
Jorge Pontual — Dê um exemplo de uma questão que interesse a todos.
Michael Sandel — Bem, a área que eu gostaria de começar seria uma questão que discutimos antes: o que fazer com relação ao aumento da desigualdade? Você sabe qual é o percentual da riqueza, nos EUA, que está nas mãos do 1% mais rico? Qual seria seu chute?
Jorge Pontual — 40%?
Michael Sandel — Exato! Você está muito bem informado.
Jorge Pontual — Eu li seu livro.
Michael Sandel — E Warren Buffett recentemente disse que paga proporcionalmente menos impostos que sua secretária. Essa é uma questão econômica: “Qual deveria ser a alíquota dos impostos?” “O que deveríamos fazer sobre a distribuição de renda?” Mas não é apenas uma questão econômica. É uma questão de justiça e, para debatê-la como uma questão de justiça, apropriadamente, devemos ouvir pessoas com diferente visões éticas, diferentes morais e tradições religiosas, para tentar falar sobre como é uma sociedade justa. O que temos muito nos EUA é a tendência a pensar que discutir moralidade e valores na política resume-se a falar de aborto e casamento homoafetivo. Esses são dois temas que surgem quando pensamos em trazer moralidade para o debate político.
Jorge Pontual — E aí não há interesse comum.
Michael Sandel — Exato.
Jorge Pontual — Há uma polarização.
Michael Sandel — A tendência é essa. Mas acho que deveríamos nos dar conta de que os grandes problemas econômicos que enfrentamos estão relacionados à justiça, a uma boa sociedade, e não podemos responder a essas questões sem falar de tradições morais, éticas e espirituais. As pessoas irão discordar, mas pelo menos aprenderemos a ter o hábito de debater juntos, em público de ouvir um ao outro, de tratar até mesmo tradições com as quais podemos discordar de uma maneira respeitosa. Do contrário, não creio que trataremos a questão da desigualdade. A menos que façamos dela uma questão moral, que percebamos que é uma questão de justiça, e que todos sejam livres para trazer suas convicções morais e espirituais sobre essas questões fundamentais.
Jorge Pontual — Isso foi o que o presidente Obama fez durante a sua campanha: ele introduziu essa discussão acerca da moralidade no discurso político, não foi?
Michael Sandel — É interessante. Ele fez isso durante a campanha e isso foi um rompimento com o que muito liberais e democratas anteriores haviam feito. Eles tendiam a ser mais tecnocráticos e a se sentir desconfortáveis com questões morais e espirituais.
Jorge Pontual — Tradicionalmente, eles não falam de religião e moral.
Michael Sandel — E a força de Obama, que veio da tradição liberal e progressista, foi dizer: “não podemos ignorar as questões morais e espirituais”. Fazer isso é um engano, pois assim deixamos os recursos morais mais ricos e poderosos nas mãos dos conservadores religiosos apenas. Ele estava certo sobre isso, e não só sobre isso. Acho que foi isso que o tornou atraente. As pessoas querem que a vida pública trate de questões importantes e, às vezes, de grandes questões morais. Ele fez isso com grande sucesso durante a campanha, mas não foi tão bem-sucedido na hora de transferir esse idealismo moral e cívico para o governo, para a presidência. E o grande desafio dele agora é se reconectar com esse grande vocabulário moral, pois é isso que move, impressiona e inspira as pessoas.
Jorge Pontual — Talvez seja porque o poder sempre requer um meio-termo, e você acaba abrindo mão dos seus valores morais também. Que outro presidente americano foi um grande líder moral? Lincoln?
Michael Sandel — Lincoln é um bom exemplo. Se analisar os discursos dele, seus famosos discursos, ele era muito sintonizado com as questões morais e espirituais da política. É por isso que nos lembramos dele. Então, eu acho que a verdadeira liderança política requer que os líderes políticos não só adotem a linguagem moral e espiritual na política, como também estimulem nos cidadãos a capacidade de fazer isso e, de certo modo, convidar os cidadãos a se tornar filósofos. Há uma sede disso. Porque, com frequência, os políticos não nos permitem fazer isso.
Jorge Pontual — É muito emocionante assistir às suas palestras e ver aqueles jovens se levantando e falando de coisas das quais as pessoas normalmente não falam. O que é um bem maior? O que é a liberdade? E o fato de você levar até eles Aristóteles, essa ideia do propósito maior. Há uma palavra...
Michael Sandel — Sim, telos.
Jorge Pontual — Fale sobre isso. Como os jovens se relacionam com isso?
Michael Sandel — Antes de mais nada, eu quero apresentar aos estudantes e aos leitores do livro as principais ideias filosóficas que informam os políticos contemporâneos. Na maior parte das vezes, há um choque entre os que acreditam em livre mercado, direitos de propriedade, ideias libertárias e ideias utilitárias — como aumentar o PIB — e aqueles que dizem que precisamos ter um estado de bem estar social decente, que respeite os direitos dos pobres e garanta que eles tenham uma rede de proteção. São debates que todos já conhecem: mais impostos, menos impostos, mais regulação pelo governo, menos regulação pelo governo. Esses debates todos conhecem. Mas eu quero ir além desses debates para lembrar aos estudantes de que há uma outra maneira de enxergar a vida pública. Aristóteles, com sua ideia do telos, ou “propósito”, dizia que os telos da comunidade política não é primordialmente econômico, não é apenas outra maneira de conseguirmos o que queremos, enquanto consumidores individuais. Isso é um mercado. Pode ser um mercado grande, pode ser um mercado global, mas não é uma comunidade política. E a razão de não ser, nas palavras dele, é porque a comunidade politica deve servir a algo maior, deve servir a uma vida boa. A razão pela qual nos reunimos em comunidades políticas é para nos melhorar, para elevar nosso caráter, para aprender a debater uns com os outros, para exercitar nossa capacidade de julgamento. Esse é o telos para Aristóteles, o telos de uma comunidade política, e está ligado à nossa natureza humana, ao que é ser um ser humano. Essa ideia é verdade. Não poderíamos nos realizar completamente como seres humanos vivendo uma vida puramente privada, como consumidores, pois a vida é muito maior do que isso. Os seres humanos se moldam ao se comprometerem uns com os outros, em uma vida em comum, deliberando, compartilhando regras. Isso afeta nosso caráter, nossa capacidade de desenvolver um juízo de valor, preocupações e um sentimento de responsabilidade mútua para com os outros. Com isso, voltamos ao que eu sugeria antes. Eu não acho que podemos ou devemos separar questões relativas à vida com conforto de questões políticas e de como devemos governar a sociedade.
Jorge Pontual — Isso me lembra da ideia do conceito narrativo do ser, de que somos parte de uma narrativa maior. Minha narrativa pessoal é parte de uma narrativa maior. Explique isso.
Michael Sandel — Certo. Isso é abordado ao fim do livro, ao fim das palestras. Há uma tendência a achar que a liberdade maior, ser um ser humano livre, é ser capaz de me definir sozinho, sem referência ao meu passado, às minhas tradições, à minha criação, à minha cultura.
Jorge Pontual — Um ser abstrato.
Michael Sandel — Um ser abstrato, um “eu” abstrato. O indivíduo puramente autocriado. Essa ideia tem um lado que nos confere muito poder, mas acho que é equivocada. Eu acho que é uma ilusão. O que ela não tem, como você disse, é o aspecto narrativo da identidade. Quem eu sou é algo inseparável da minha história, da narrativa da minha vida, que me posiciona no mundo. Relativamente a um passado, a uma tradição, a uma família, um bairro, uma comunidade, um país, em suma, a uma sociedade global. Mas as narrativas, as histórias dessas características, dessas identidades, são parte do que me torna quem eu sou. Esse é o conceito narrativo do ser, que eu privilegiei como uma espécie de contrapeso ao individualismo radical para o qual estamos caminhando nesta sociedade voltada para o consumo e o mercado.
Jorge Pontual — Você alerta seus estudantes de que a filosofia moral, toda essa discussão, é perigosa, pois após questionar o que é familiar, você nunca mais será o mesmo.
Michael Sandel — Exato.
Jorge Pontual — Depois você começa a se perguntar o que o motiva.
Michael Sandel — Certo. É verdade. E os alunos me procuram após a aula ou até anos depois e dizem: “isso foi exatamente o que aconteceu comigo”. Quando você começa a questionar as certezas estabelecidas e convenções, a vida nunca mais será a mesma. Esse é o perigo de se estudar filosofia política assim, mas também é a beleza e a felicidade disso. Por que o que significa, no final das contas, a meu ver, ser um ser humano, é questionar, é não se acomodar com relação às nossas certezas. Filosofia é isso. Então, esse desassossego, esse desconforto, são o primeiro passo da educação, são o primeiro passo a ser dado na educação cívica e, nesse sentido, o primeiro passo para quem aspira a uma vida boa.