quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

STF derruba análise de vetos em ordem cronológica

O Supremo Tribunal Federal cassou nesta quarta-feira (27/2) a liminar concedida pelo ministro Luiz Fux que obrigava o Congresso a votar os vetos presidenciais em ordem cronológica. A maioria dos ministros acompanhou a divergência, aberta pelo ministro Teori Zavascki. O placar final ficou 6 a 4 pela cassação da liminar. Junto com Teori, votaram os ministros Dias Toffoli, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Carmen Lucia e Gilmar Mendes. Ficaram vencidos o relator, Luiz Fux, os ministros Marco Aurélio e Celso de Mello, e o presidente do STF, Joaquim Barbosa.
Mais novo ministro do Supremo, Zavascki disse que no caso houve uma utilização “exótica” do Mandado de Segurança com pedido de liminar — requerido pelo deputado federal Alessandro Molon (PT-RJ) para evitar que o Congresso derrubasse os vetos da presidente Dilma Rousseff à Lei dos Royalties.
Citando voto de Celso de Mello em um caso semelhante, Zavascki considerou que na situação não havia um direito líquido e certo violado ou defesa de prerrogativas do parlamentar, mas uma “indisfarçável pretensão de controle prévio de constitucionalidade formal de preceitos normativos”.
Segundo Teori, a jurisprudência do Supremo nega a possibilidade de qualquer forma de controle prévio de constitucionalidade das leis. Ou seja, enquanto uma norma não entrar em vigor, ela não pode ser objeto de análise pelo Judiciário. Como ainda há processos com questões semelhantes em andamento no Supremo, Zavascki determinou a cassação da liminar, mas deu provimento ao Agravo Regimental para que o caso siga para análise de mérito.
Rosa Weber acompanhou a fundamentação de Teori e afirmou que “o pedido de liminar foi deduzido no sentido de impedir a deliberação do veto 38/2012 [dos Royalties do petróleo]. Não foi para que os demais vetos fossem apreciados pelo Congresso”.
Dias Toffoli também acompanhou a divergência, mas por outro motivo. Apesar de reconhecer legitimidade no Mandado de Segurança, ele afirmou que não é possível extrair do artigo 66 da Constituição Federal a determinação de que os vetos sejam votados em ordem cronológica. Toffoli disse que o processo legislativo está sujeito a questões de urgência. “As questões de trancamento de pauta serão discutidas no mérito”, afirmou.
Lewandowski acompanhou o mesmo raciocínio e disse que a Constituição é clara nos casos em que determinada ordem deve ser respeitada.
Fazendo referência ao voto de Luiz Fux, que afirmara que a liminar não impediria o Congresso de analisar o Orçamento, Gilmar Mendes disse que “é preciso combinar com os russos”.
Gilmar classificou de “patológico” o atraso do Congresso na análise dos vetos, mas disse que isso é um “costume” incrustado entre os parlamentares. “Gostemos ou não, formou-se um tipo de costume constitucional que foi reconhecido e estabeleceu-se em norma regimental. No âmbito do congresso, não era objeto de contestação”.
Vencidos
Além de Fux, ficaram vencidos os ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Joaquim Barbosa. “As consequências da cassção da liminar são seriíssimas. Viabilizará um masscrre da minoria pela maioria. Consagrara um desrespeito manifesto à Constituição Federal. E se dará o dito pelo não dito”, disse Marco Aurélio.

Clique aqui para ler o voto do ministro Ricardo Lewandowski

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Para Eliana Calmon, transparência é a palavra de ordem do século XXI

A ministra Eliana Calmon, vice-presidente em exercício do Superior Tribunal de Justiça (STJ), defendeu a ampliação dos mecanismos de transparência no Poder Judiciário e a construção de uma relação madura entre a magistratura e a imprensa. Eliana Calmon proferiu palestra na manhã desta terça-feira (26) durante o Encontro Nacional de Comunicação do Poder Judiciário, que se realiza em Brasília.

Para a ministra – que também é diretora-geral da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados Ministro Sálvio de Figueiredo (Enfam) –, há dificuldade no relacionamento entre a mídia e a Justiça. “O Poder Judiciário foi o último a se abrir para a modernidade, para a era digital, em que prevalecem os meios de comunicação”, afirmou.

A magistrada entende que, até a promulgação da Constituição Federal de 1988, a magistratura era mais reservada, até porque a Justiça ainda não tinha o papel de fiscalizadora das políticas públicas do país, de garantidora dos direitos humanos e de protetora do cidadão frente aos poderes econômico e político.

“Prevalecia a ideia de que os assuntos do Judiciário deveriam ficar intramuros para preservar a imagem, a unidade e a respeitabilidade da magistratura”, disse. Entretanto, segundo Eliana Calmon, essa postura é incompatível com as prerrogativas de agente político adquiridas pelo Judiciário após a Constituição de 1988 e aprofundadas com a Emenda Constitucional 45, de 2004.

“Essa cultura hermética não resiste à necessidade de transparência que nos é imposta pela sociedade atual, por essa vida veloz que é fruto da atuação dos meios de comunicação”, afirmou.

Eliana Calmon avaliou que o Judiciário ainda está dotado de infraestrutura inadequada para atuar efetivamente como agente político, e que essa realidade se reflete nas dificuldades da Justiça em se comunicar. Para a magistrada, é essencial que o Judiciário construa uma relação mais efetiva com os meios de comunicação.

Segundo ela, “a transparência é a palavra de ordem do século XXI. A privacidade, que foi a tônica até o século passado, agora pode até atrapalhar. Nada se deve esconder, e quem vai levar não só as boas coisas que fazemos, mas também as mazelas, são os veículos de massa”.

Valorizar o assessor
Ao postular a construção de “uma relação madura” entre a Justiça e os órgãos de comunicação, a ministra defendeu o fortalecimento do papel do assessor de imprensa. “Tem magistrado que ainda pensa que a função do assessor é fazer propaganda. Isso é uma visão antiga. O assessor é quem leva a voz da imprensa, e consequentemente do povo, para o magistrado. E também que leva para as ruas a voz da Justiça”, definiu.

Eliana Calmon acredita que os magistrados devem aprimorar sua capacidade de comunicação, especialmente ao dar entrevistas, quando muitos acabam sendo excessivamente prolixos e perdem a oportunidade de esclarecer a sociedade. Entretanto, alertou contra aqueles mais vaidosos: “O juiz não é notícia. A notícia são os fatos trabalhados pelo juiz.”

Ao enfatizar que passou da hora de a magistratura perder o medo dos jornalistas, construindo uma relação madura e efetiva com a mídia, citou a expressão cunhada pelo ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto:

“Nós temos que acabar com essa cultura do biombo, de fuxicos, de bastidores. Muitos magistrados reclamam que a imprensa só veicula notícias ruins sobre o Judiciário. Mas isso acontece porque o Judiciário ainda é muito fechado. No dia em que esse poder for totalmente transparente, a prosa vai mudar, porque os jornalistas terão acesso às diferentes informações, não só às ruins."

Advogado não deve ser fiscal dos próprios honorários

Na última coluna abordamos a questão da existência ou não do dever de informar atos suspeitos de lavagem de dinheiro por parte do advogado em relação ao seu cliente. Ficou pendente a reflexão sobre outro problema da lei de Lavagem de Dinheiro relacionado à atividade advocatícia: o recebimento de honorários e os atos de branqueamento de capital.
O núcleo do problema: pode-se caracterizar o advogado que recebe dinheiro de origem infracional (ou suspeito de ter tal origem) como pagamento de honorários pelos serviços prestados como partícipe ou autor do crime de lavagem de dinheiro?
Rodrigo Rios trata do problema em obra específica sobre o tema e traz importantes julgamentos de outros países para reflexão[1]. Dentre eles, a conhecida decisão judicial na Alemanha, pela qual o Tribunal Superior de Hamburgo (Oberlandesgericht) entendeu não haver lavagem de dinheiro no caso de advogado acusado de receber honorários oriundos do tráfico de drogas para defender uma cliente. O Tribunal baseou sua decisão no direito fundamental de livre escolha do defensor por parte do réu, e o adequado exercício da defesa por parte do profissional (decisão do Oberlandesgericht de Hamburgo de 6 de janeiro de 2000). No entanto, em outro caso similar, o Tribunal Constitucional alemão (Bundesverfassungsgericht – BVerfg), em 30 de março de 2004, caracterizou como lavagem de dinheiro o recebimento de honorários por advogados que conheciam de forma segura (dolo direto) sua origem delitiva.
Embora as decisões tenham por base ordenamento jurídico distinto do nosso, os princípios discutidos são perfeitamente reconhecíveis e adequados ao sistema jurídico pátrio. Sob essa ótica, parece correta a primeira solução da jurisprudência alemã, que assegura o recebimento dos honorários — mesmo que maculados — e afasta sua ilicitude penal diante da importância do direito de defesa e de livre escolha do advogado.
Se observarmos com cuidado a lei brasileira de lavagem de dinheiro (9.613/98), o recebimento de honorários maculados não é conduta típica. Não se trata de ocultação ou dissimulação (artigo 1º, caput). O dinheiro recebido por profissional liberal, em contraprestação a serviços realmente efetuados, com a regular emissão de nota fiscal, não contribui para mascarar o bem, uma vez que seu destino é conhecido e registrado. Não há ato objetivo de lavagem do dinheiro. A transparência/formalidade do pagamento afasta a incidência do dispositivo[2].
Também não existem as demais formas típicas (parágros 1º e 2º) porque ausente a intenção de ocultar ou dissimular no recebimento do pagamento, elemento subjetivo inerente aos tipos penais em comento[3]. O advogado almeja apenas a remuneração por seus serviços e o fato de receber formalmente os valores aponta para a inexistência de qualquer vontade de contribuir para o seu encobrimento[4].
Importante levar em consideração que o escopo da lei de lavagem de dinheiro é garantir a rastreabilidade do capital para que as autoridades públicas possam conhecer o caminho entre a infração e o destino dos bens. Não se impõe ao advogado o dever de investigar a origem do dinheiro ou os atos que justificaram sua aquisição. Exige-se apenas que seu recebimento seja registrado e anotado, para que os responsáveis pela investigação — dentre os quais não está o profissional liberal — tenham à sua disposição elementos para construir a cadeia de distribuição de eventuais recursos ilícitos.
Diferente a situação do advogado que recebe os valores a titulo de honorários e devolve parte deles como suposto empréstimo ou pagamento de serviços inexistentes ao cliente, contribuindo para seu mascaramento. Nesse caso a conduta do profissional consolida o ato de reciclagem, caracterizando-se tipicamente a lavagem de dinheiro.
Fica claro, portanto, que o advogado não é imune à legislação de lavagem de dinheiro, e o fato do ato ser praticado por um causídico, ou no interior de um escritório não o protege da incidência da norma penal. Por outro lado, inadequado transformar o profissional em agente de investigação de seus próprios honorários, impondo-lhe um ônus inexistente em outras searas profissionais. Deixemos à polícia os encargos inquiridores e, ao advogado, o espaço lícito para seu livre exercício profissional.

[1] Para um quadro completo da questão, ver Ríos, Advocacia e lavagem de dinheiro, p. 245-299.
[2] Nessa linha, Cabana, Los autores del delito de blanqueo, p. 167.
[3] Sobre o tema, ver BOTTINI, Pierpaolo Cruz e BADARÓ, Gustavo, Lavagem de dinheiro, p.130.
[4] Nesse sentido, Pérez Manzano, Neutralidad delictiva y blanqueo de capitales, p. 177; Ríos, Advocacia e lavagem de dinheiro, p. 145; Barros, Lavagem de dinheiro, p. 190.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

"Regra de três" na sustentação ajuda a fixar ideias

Por João Ozorio de Melo




Oradores, escritores e formadores de opinião sonham em perpetuar suas palavras na memória de seus ouvintes, de seus leitores, de seu público-alvo. Advogados e promotores se esforçam para perpetuar seus melhores argumentos nas mentes dos jurados. Entre eles, apenas os mestres da palavra conhecem, por dom natural ou aprendizado, um dos segredos da perenidade da mensagem, seja ela falada, escrita ou cantada: a "regra de três" do discurso.




A regra nada tem de matemática. Apenas ensina que o número certo de palavras que garante a eloquência discursiva para fixar a mensagem nas mentes é três — duas é pouco, quatro é demais. De acordo com o advogado e professor de Direito Elliott Wilcox, editor do site TrialTheather, isso é importante para advogados e promotores que precisam "dramatizar" alguns aspectos de suas alegações ou sustentações.



Um exemplo é o que advogados e promotores podem dizer para dar eloquência a um pedido aos jurados: "Que seja feita Justiça – hoje, amanhã e sempre!"



Uma rápida pesquisa na internet mostra que "hoje, amanhã e sempre" é o título de uma poesia de Tere Penhabe e de uma música de Nayara Rodrigues. Pode haver mais autores dessa expressão. Mas o que importa, na opinião de Wilcox, é que as três palavras sejam separadas por três pontinhos, porque eles expressam a pausa que dá eloquência à expressão: "Hoje... Amanhã... E sempre". A primeira pausa é curta. A segunda, mais demorada, segundo ensina aos adeptos do preciosismo.



Em todo o seu pronunciamento no tribunal do Júri ou em um tribunal superior, o advogado ou promotor deve fixar na mente de sua audiência três pontos fundamentais, os mais importantes de toda sua linha de argumentação. Pode ser um, dois ou quatro. Mas, para expressar da melhor maneira possível a mensagem, é melhor que sejam três, diz o especialista.



A história está recheada de exemplos de frases memoráveis, em que a expressão inesquecível é formada por três palavras — talvez seja uma questão de ritmo. E não precisamos pesquisar na internet para lembrá-las:



- "Vim, vi, venci" — "veni, vidi, vici", em latim. Agora, a pesquisa ajuda: a frase teria sido dita por Júlio César, depois de vencer uma batalha, em uma mensagem ao Senado romano. A intenção dele era fixar essa mensagem na mente dos senadores, porque Roma passava por uma guerra civil. Alternativas com duas ou quatro palavras: "Vim, vi"; ou "vim, vi, venci e... o quê? Voltei?". Nenhuma delas é boa.



- "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" (Liberté, Egalité, Fraternité). Não é possível esquecer esse slogan da Revolução Francesa, convertido posteriormente em "princípios universais". A frase foi cunhada por Jean-Jacques Rousseou. Possíveis alternativas às três palavras soariam ou pegariam mal: "Liberdade e Fraternidade"; ou "Liberdade, Igualdade, Fraternidade e... o quê? Guilhotina?".



Wilcox dá dois exemplos americanos e um oferecido à posteridade por Shakespeare:



- "Vida, liberdade e busca da felicidade" ("Life, Liberty and the pursuit of Happiness"). A frase imortal da Declaração de Independência dos Estados Unidos, proferida por Thomas Jefferson, descreve os "direitos alienáveis" dos cidadãos, como parte da crença de que "todos os homens são criados iguais". São mais de três palavras, mas "pursuit of happiness" é uma expressão consagrada. Portanto, no conjunto, são três ideias.



- "Amigos, Romanos, Compatriotas ("Friends, Romans, Countrymen"), concedei-me sua atenção". Faz parte do discurso de Marco Antônio na peça "Julius Caesar", de Shakespeare. Foi um discurso feito no funeral de César, bastante analisado, porque Marco Antônio promete a Brutus não colocar a culpa nele e nos conspiradores, mas o faz de uma forma indireta. Em sua oratória aos romanos, ele afirma, por exemplo, que não vai colocar a culpa em Brutus, porque ele é um homem honrado — e assim por diante. No final das contas, a turba se volta contra Brutus e os conspiradores.



- "Estalo, Estalido e Estouro!" ("Snap, Crackle and Pop"!). São os nomes dos personagens-mascotes do anúncio de um cereal vendido nos Estados Unidos.



A regra de três também é usada nos EUA por alguns comediantes, com sucesso. O criador do programa Story Theater, Doug Stevenson, explica como funciona. Os comediantes conseguem um efeito humorístico com quebra da sequência ou de um padrão. Por exemplo: "Maçãs... Laranjas ... Compensados" — para fazer uma brincadeira com tábuas de compensado. O ator e comediante Steve Martin usa três frases, em vez de três palavras, para fazer o "juramento do inconformista" na abertura de seu show: "Prometo ser diferente... Prometo ser único... Prometo não repetir os que os outros já disseram".



No tribunal do Júri, os jurados não vão se lembrar de todos os argumentos e provas apresentadas nas alegações. Por isso, melhor é escolher os três pontos mais importantes, os que devem necessariamente ficar na mente dos jurados, e lhes dar eloquência com três palavras, três frases ou três exemplos. Se houver dois, encontre mais um. Se houver quatro, dispense o mais fraco, recomenda Wilcox. Na hora da decisão, eles podem esquecer muita coisa, mas não irão esquecer dos pontos principais, construídos de acordo com a "regra de três".

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Hipossuficiência e TV a cabo, fatos ou interpretação?

Parte do título não é criação minha: é de Nietzsche. A partir dela — e, convenhamos, tem um belo apelo estético —, fomentou-se no imaginário jurídico uma espécie de niilismo pós-moderno. Há um vídeo no YouTube com uma aula Magna no STF, em que um importante professor inicia exatamente assim a sua exposição sobre “hermenêutica”: “Fatos não há; só há interpretações”. Vibração da plateia.
Ora, se não há fatos e só há interpretações, então posso dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. Posso negar a história. Posso maquiar os “fatos” — afinal, eles não “existem”... Com isso, no âmbito do direito, pode-se dizer, por exemplo, que “a interpretação é um ato de vontade”. Claro. Mas, que vontade? Vontade de quem? Ora, o que querem dizer – os niilistas do direito – é que a interpretação é um ato de vontade... de poder, eu acrescentaria.
Aliás, foi Kelsen quem disse que a interpretação feita pelos juízes é um ato de vontade. E assim o fez para justificar a divisão de sua Teoria Pura do Direito em dois planos: o andar de cima, puro, límpido, asséptico, onde se localizaria a ciência do direito, neutral; já o andar de baixo é o da impureza, onde se localiza a decisão judicial. Ali, segundo o mestre de Viena, “faz-se politica jurídica”. Por isso, para ele, a sentença é um ato de vontade. Pronto. Está explicado porque Kelsen é um decisionista. A sentença é norma. E por isso seu positivismo é normativista.
Mas não são somente os “adeptos” da parte do andar de baixo da Teoria Pura do Direito que compreendem deste modo. Todos os axiologistas ou voluntaristas, que pensam que o positivismo é apenas o velho exegetismo, de um modo ou de outro acabam caindo nessa falácia relativista. Afinal, se o direito não é igual à lei, quem vai dizer o que é o direito é o juiz (ou o tribunal). Amarras para isso? Ora, lance-se mão da grande invenção contemporânea, a ponderação. Ou uma metodologia qualquer. E, pronto. Lá está um “pós-positivista” talhado à machado (não de Assis).
Aqui, antes de tudo, quero apenas replicar: disse tudo isso para afirmar minha posição, no sentido de que “só há interpretações porque há fatos”. Ou seja, sou antirrelativista. Da cepa.
O grau zero e o encobrimento de sentido
Introduzi essa temática para falar de várias coisas. Mas, antes de entrar nas “várias coisas”, lembro da crítica mordaz feita por Orwell, em seu 1984 (escrito em 1948), em que o Ministério da Guerra era chamado de Ministério da Paz, o da Fome chamava-se da Fartura (e assim por diante). Era a novilíngua. A língua do poder, a linguagem politicamente correta. Isso se repete em outro livro de Orwell, A Revolução dos Bichos. Ali também os animais tem uma nova linguagem para tratar das coisas.
Esse grau zero é muito comum nos tempos de fragmentação “pós-moderna”, em que não há mais fundamento(s). Digo algo porque digo. E pronto. E isso valerá se tenho o lugar da fala. Se tenho o Skeptron (na Ilíada, o sujeito só pode falar da guerra se receber o Skeptron; no livro Lord of the Flies, os meninos repetem esse ritual, só podendo falar quem receber a concha), posso falar e, fundamentalmente, nominar. E posso até neonominar. Posso trocar o nome das coisas. Afinal, “fatos não há; só há interpretações”. A vontade do poder (Wille zur Macht), que Heidegger denominou de “O último princípio epocal da modernidade”. Manejado atualmente, produz algum estrago. E não é só no direito.
Mas, de forma consciente ou inconsciente — a questão da vontade aqui não importa, o fato é que, quando somos atirados no rio da história, a impossibilidade de recuperarmos todo o sentido produzido em tempos anteriores, algo que decorre de nossa finitude, acaba necessariamente por nos levar a um fenômeno que podemos nomear de “encobrimento do sentido”. Questões triviais explicam isso. É o que veremos a seguir.
A história
A Folha de S.Paulo de 10 de fevereiro 2013 denuncia livros escolares (História do Brasil – Império e República e Quinhentos Anos de História do Brasil) utilizados em escolas militares, em que o golpe militar de 1964 é mostrado como uma “revolução” feita “por grupos moderados e respeitadores da lei e da ordem”. Ora, se fossem respeitadores da lei, não deveriam ter respeitado a Constituição? Patético. Outro erro é dizer que Castello Branco foi eleito pelo Congresso, como se houvesse sido declarada a vacância do cargo. Com relação à Guerrilha do Araguaia, não há uma linha sobre os desaparecimentos. Enfim, são exemplos de “grau zero”. A história é aquilo que “eu quero que ela seja”. Afinal, fatos não existem; o que existe são meras interpretações... Há pouco tempo, no Rio Grande do Sul, um sujeito escreveu uma porção de livros negando o holocausto. O STF, acertadamente, condenou-o por crime de racismo.
O cotidiano
No cotidiano é comum ver a publicidade maquiando “fatos”, redefinindo-os ao bel prazer dos intérpretes. A linguagem do politicamente correto é um bom exemplo. O sujeito que é careca é chamado de “indivíduo destituído de cobertura capilar”. Ascensorista vira “assessor vertical”. Motorista é oficial de transportes. Professor é trabalhador da educação. E trabalhador se transforma em “colaborador”. Por isso as seguidas tentativas de reescrever textos clássicos, como os de Monteiro Lobato. Aluno passa a ser “consumidor”. A aula vira “produto”. Já não se reforma um túnel; faz-se a “revitalização” (argh!). Como “fatos não há; só há interpretações”, tentaram criar uma imagem positiva do dono da boate Kiss. Como se fosse possível na vida real repetir o personagem de Robert de Niro no filme Mera Coincidência, que era um “maquiador” de fatos — por exemplo, no filme, para encobrir um assédio sexual a uma menor praticada pelo presidente dos EUA no Salão Oval, o cleaner de Niro cria uma guerra ficta contra a Albânia. Genial, não? Afinal, se tudo é relativo...
O direito
No direito, o relativismo é a regra. Diz de boca cheia: “Não há verdades”. Cada um diz o “que pensa”, segundo sua interpretação. “O juiz boca da lei morreu”, dizem os jovens neopentecostais do direito. E eu pergunto: e no lugar deles o que colocam? “O juiz dono da lei?” Esse faz o que quer com o sentido da lei.
Com o relativismo, cria-se um grau zero de sentido: os sentidos das palavras ficam líquidos, fugidios. Anêmicos. A palavra “necessitados” — como veremos na sequencia — se transforma em seu contrário. Com esse “grau zero de sentido”, é possível fazer qualquer coisa. Algo como o cinema novo (ao contrário do que dizia Glauber Rocha – uma câmera na mão e uma ideia na cabeça —, tem-se “um manual ou livro simplificador na mão e nenhuma ideia na cabeça”). E tudo pode ser judicializado. Um aluno quer escrever sobre Jesus e os presos. O professor lhe diz que isso não é apropriado para uma monografia. E o que faz o aluno? Ingressa em juízo. Ainda bem que o Poder Judiciário barrou a pretensão. O aluno acreditou mesmo que “tudo é relativo”!
Na trilha do niilismo/relativismo, no Rio Grande do Sul uma mãe queria que um pai fosse obrigado a visitar os filhos sob pena de multa de R$ 2 mil por não visita. Corretamente, a 8ª Câmara Cível do TJ-RS rechaçou a pretensão. Ou seja, o TJ gaúcho não embarcou nessa novilíngua do politicamente correto.
Mas, há bem mais coisas. Já veremos.
“Querer o bem com demais força”
Há uma passagem em Grande Sertão: Veredas, na qual Guimarães Rosa, pela boca de Riobaldo, diz o seguinte: “querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal por principiar.” Absolutamente genial! A lógica diz muita coisa aqui. Os excessos no desejo do bem, da vida boa, pode levar à sua total inversão, tornando-se um mal desejo.
Mas será que é só isso? Por certo que não. Sabemos que Grande Sertão:Veredas é uma teodicéia; uma busca pela prova da existência de Deus e, consequentemente, do diabo. Se estudarmos filosofia medieval, veremos que Duns Escoto, um importante nominalista, escreveu em uma de suas obras sobre a vontade e a sua busca. Perguntava-se: a vontade, entendida nos termos vigentes à época, deve buscar o justo ou o meramente útil? A resposta de Duns Escoto passava pela afirmação da busca pelo justo. Mas não “a todo o custo”. Explicava ele o “desvio” a que pode incorrer a vontade quando busca cegamente o justo. O Exemplo trazido pelo filósofo é o da “queda de Lúcifer”. Para Duns Escoto, a queda de Lúcifer ocorreu exatamente por isso, por um desejo descomedido para encontrar o bem. Ele deseja de forma descomedida ou exagerada o bem para alguém que ele amava ou que ele queria bem. Eis que o sentido se mostra, agora, des-coberto.
Essa é, portanto, uma situação interessante. Nossa relação com a história — com as pirâmides do espírito — pode ora encobrir, ora descobrir o sentido. É um jogo binário ao qual todas as disciplinas hermenêuticas estão sujeitadas. O direito, evidentemente, não fica fora disso.
Com efeito, vejamos o que acontece com recente notícia veiculada sobre a Defensoria pública do Estado de Mato Grosso. Segundo consta, os defensores daquele estado ajuizaram uma Ação Civil Pública em face de empresas de telecomunicações – entre elas, NET, Sky e Claro – visando a impedir (obrigação de não fazer) que elas cobrassem pela instalação do chamado “ponto extra” nas residências dos respectivos usuários. Alguém diria: belo gesto. Boníssima intenção.
No entanto, a principal questão, penso eu, não passa pela juridicidade ou não da cobrança do ponto extra (ou de qualquer eletrodoméstico ou similar que a classe média adquira). Posso considerar, por vários motivos, a cobrança injusta ou até mesmo ilegal e, como particular, posso buscar os meios adequados para fazer valer a minha pretensão.
Na verdade, devemos perguntar por outro aspecto do problema: a Defensoria é parte legítima para propor a referida ACP? Alguém poderia vir com uma pronta resposta, a partir da legislação aplicável ao caso, e responder: sim, a lei autoriza que a Defensoria pública seja parte autora em ACPs. Logo veremos isso.
O que é “necessitado”?
Vamos avançar, quem sabe começando a discussão por outro diploma normativo, por exemplo... a Constituição? Nos termos do artigo 134 da CF a Defensoria Pública prestará orientação jurídica e defesa, em todos os graus, dos necessitados. Note-se a palavra empregada pelo texto: necessitados. Já o artigo 5o, inciso LXXIV, afirma que o Estado prestará assistência jurídica — privilegiadamente através das defensorias — aos que comprovarem insuficiência de recursos. Que outra leitura podemos fazer desse texto: “LXXIV — o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”? Tem de provar. Portanto, “necessitados” não é um conceito qualquer (Gadamer diz: "se queres dizer algo sobre um texto, deixe primeiro que o texto te diga algo!). Não é relativo. Não há niilismo que salve. Há que provar. Ou seja: o Estado somente prestará assistência judiciária gratuita a quem comprovar ser hipossuficiente. Para os demais o Estado não garante essa assistência. Fosse eu um exegeta do século XIX, invocaria o in claris cessat interpretatio...! Ou ainda adágios rasos como “não há palavras inúteis na lei”.
Assim, por uma questão de lógica elementar e de hermenêutica mesmo para iniciantes, tem-se que “se a CF diz que a Defensoria defende os necessitados, não pode defender os não necessitados”. Se eu quisesse ir mais fundo na questão, poderia dizer que não estamos em uma idealista/idealizada (não sei se seria bom ou ruim), em que, utopicamente, não haveria advogados privados. Logo, se jovens estudam direito, pagam para estudar nas mais de mil faculdades de direito de nossa Terra de Vera e Santa Cruz, não se lhes pode tirar o “emprego” de advogar para aqueles que a Constituição não incluiu como beneficiários da defesa gratuita feita pela Defensoria: a-valorosa-categoria-dos-não-necessitados. Ou seja, não quero ser um “originalista” (já me acusaram disso), mas onde está escrito “necessitados”, penso que devemos ler... “necessitados”, também denominados pós-modernamente de hipossuficientes (ou não privilegiados, para usar uma expressão em um voto do STF sobre a matéria).
Não estou descobrindo nada de novo, mas sigo a linha que o STF adotou quando dos julgamentos das ADIs 2903 e 3022 (também ADI 558-MC/RJ; RESP 912849-RS; AC 2008.70.00.014882-0/PR). Bem sei que há uma lei posterior às ADIs, dando legitimidade para a Defensoria Pública propor ACPs. Pois é nisso que reside o problema. Por isso, há uma ADI tramitando na Suprema Corte. E sei também que há uma Repercussão Geral já aceita (ARE 690838, relatada pelo ministro Dias Toffoli) em dezembro de 2012, portanto, bem recentemente. O processo chegou ao Supremo porque o município de Belo Horizonte recorreu de decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que reconheceu a legitimidade da Defensoria para propor ação civil pública na defesa de interesses e direitos difusos. Segundo a decisão do TJ-MG, a própria natureza dos direitos difusos, previstos no inciso I do parágrafo único do artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), torna “impraticável” que a Defensoria Pública tenha de demonstrar a hipossuficiência (indivíduo sem recursos para pagar um advogado particular) de cada pessoa envolvida na demanda para legitimar sua atuação. De acordo com o TJ-MG, em caso de defesa de interesses difusos (aqueles que pertencem a um grupo, classe ou categoria indeterminável de pessoas reunidas entre si pela mesma situação de fato), é “impossível individualizar os titulares dos direitos pleiteados”.
Pronto. Esse é o busílis da questão. Teria o TJ-MG razão ao dizer que, como é impossível provar a hipossuficiência de cada pessoa, logo, também os não necessitados podem vir a ser beneficiados? Ou teria razão o município de Belo Horizonte, que diz ser impossível provar quem é e quem não é hipossuficiente, é que a Defensoria não poderia ajuizar ACP? Mais: alega o município que, pelo fato de a CF falar em “necessitados”, a Defensoria não tem legitimidade para pleitear direitos que são difusos.
Chamo a atenção também para a matéria da ConJur, que trata de expediente que tramita no Conselho Nacional do Ministério Público (Defensoria não pode extrapolar funções institucionais). No expediente, consta manifestação do conselheiro Almino Afonso, observando que “há casos de membros da Defensoria Pública desempenhando o papel do MP não só em Minas, mas em todo o país”. O relator afirmou ainda que, além da insegurança jurídica provocada pela sobreposição de atividades, resta o “prejuízo ao atendimento individual e ao acesso à Justiça pela população desassistida”. Sem maior juízo de valor, alguma coisa está acontecendo, pois não? Não é implicância minha, por favor, mas vejam este caso: sempre achei que um cidadão — mesmo alguém tido por contraventor da lei — somente deve desocupar sua casa por ordem judicial. Pois descubro que no Tocantins, a Defensoria inventou a “Notificação para desocupação”. O que seria isto? Pior: como o cidadão — no caso em pauta, o marido acusado por delito da Lei Maria da Penha — é pobre, tem-se que ele, ao mesmo tempo em que é “tirado” da casa pela “notificação” (que ele cumpriu), na medida em que é hipossuficiente, será, inexoravelmente, defendido pela mesma Defensoria... Os leitores percebem o que quero dizer? Essa questão se complica mais ainda quando a Defensoria atua, em alguns casos, como assistente (de acusação) da vítima. Nesse sentido, temos de discutir coisas como ocorrem (ou ocorreram) em alguns municípios em que, antes de a Defensoria colocar um defensor para o acusado em casos da Lei Maria da Penha, destina(va) defensor para funcionar como assistente de acusação da mulher-vítima.
Ainda: o que dizer de uma ação (AP Cível 95.0134956-0/DF – TRF 1ª Região) para a defesa do direito de contribuintes do Imposto de Importação de automóveis?
Como estudioso da Constituição, penso que a resposta está, digamos assim, na sua “letra” (de novo, aceito o risco de ser chamado de “originalista”). Qual é o sentido que se projeta a partir do desenho institucional traçado pela Constituição para essa importantíssima Instituição chamada Defensoria? Cabe-lhe o assessoramento jurídico e a eventual defesa dos... necessitados. E que, conforme manda a Constituição, comprovem insuficiência de recursos. Claro, para justificar os gastos que o Estado tem com a manutenção do aparato que compõe a estrutura das defensorias, deve haver uma delimitação de sua atuação. Delimitação quer dizer: atuará de acordo com o que a Constituição estabeleceu como objeto de sua atuação: os necessitados que comprovem a hipossuficiência (nesse sentido, pode-se afirmar, inclusive, que há uma espécie de presunção, não de hipossuficiência, mas, ao contrário, uma vez que a Carta manda comprovar; fosse o contrário, provavelmente a Constituição teria invertido esse ônus, determinando, textualmente, que o Estado é que deveria provar o estado de não hipossuficiência). Desculpem-me por ser quase-tautológico.
A “viúva” e a eficiência
Há que se ter claro que essa questão provém, inclusive, de uma necessidade de otimização da ação estatal: gente demais cuidando de um mesmo conjunto de atividades pode dar muito errado (lembrem-se do que disse Guimarães Rosa: querer demais o bem...). Eis que, seria de se perguntar, o que justificaria a movimentação de todo aparato da Defensoria do Estado do Mato Grosso para defender os usuários dos serviços daquelas empresas que, ao que consta, não atingem — primordialmente — os necessitados. Muito pelo contrário, em um país como o nosso, serviços de TV a cabo são quase que privativos da classe média. Talvez hoje, diante do novo milagre econômico — e que bom que estejamos vivendo isso —, também a classe média-baixa tenha acesso a esse tipo de serviço. Mas, de qualquer modo, convenhamos: alguém que contrata esse tipo de serviço e que possui mais de um televisor em sua residência não se enquadra, exatamente, nos limites semânticos da palavra “necessitados” (ou de hipossuficiente ou de não privilegiado). A menos que tenhamos como certo dizer que “o conceito de necessitados é aquilo que cada um disser que é”.
Alguém poderia dizer: mas isso é uma ofensa aos direitos do consumidor. Você é um conservador! Está contra o CDC etc. E, com certeza, a maioria dos moradores da cidade beneficiada dirá que a Defensoria agiu bem ao ingressar com a referida ação! Certo, certo... e certo. Mas, eis então que seria de se perguntar: o tal Código de Defesa do Consumidor não exige que haja, em cada Estado da Federação, uma delegacia e uma promotoria especializadas na apuração de infrações de consumo? O Ministério Público é, pela Constituição, parte legítima para propor ACP. Então, pelo “princípio” da eficiência —que faz parte da Constituição, posto lá por emenda constitucional —, por que a combalida "viúva" deve pagar duas instituições para fazer a mesma coisa?
É isso que quero discutir. Por que o Estado deve pagar duas instituições para fazer a mesma coisa e, pior, ficarem disputando quem melhor defenderá os pobres (ou até os não pobres)? Até arriscaria perguntar: por que razão o MP não fez ação civil nesse sentido? Claro que, fosse eu membro do MP do Mato Grosso, responderia: não fiz provavelmente porque há outras coisas mais importantes a fazer no Estado do que defender possuidores de mais de uma TV e que tenham pontos extras em suas casas”. Em um país em que milhões ainda não foram, sequer, inseridos no mercado de consumo e em que direitos sociais básicos como habitação, salubridade, transporte, educação e saúde ainda capengam, essa resposta seria bastante acertada. Provavelmente me dariam razão os habitantes de Cuiabá. Parece-me que são questões privadas que devem ser tratadas por cada morador que possui mais de uma TV. Aliás — e vou aqui fazer (mais) uma defesa dos advogados que tem seus escritórios espalhados por todo o Brasil —, para o que, então, serve tanta gente a se formar nas faculdades? Serão eles, no futuro, todos juízes, promotores, defensores, delegados, procuradores do Estado, da União, escrivães etc. —espero não esquecer nenhuma profissão e também nem estou hierarquizando? Quem (ainda) quer ser advogado “privado”?
A colonização do mundo da vida
Tenho isso muito claro — e uma pitada de liberalismo às vezes faz bem: o sujeito que tem várias TVs, ao meu sentir, em um país carente de recursos, se quiser vá a juízo disputar se deve ou não pagar os ponto extras da TV a cabo... Mas que vá contratando o seu próprio advogado. E pagando-o. Por que temos que estatizar um montão de coisas que são de âmbito privado? Aliás, no fundo, paradoxalmente, há algumas ações que enfraquecem a cidadania. As pessoas já não reivindicam. Correm a juízo. Nem mesmo os vereadores legislam ou organizam a sociedade. Qualquer problema, correm ao MP e à Defensoria que, por sua vez, entrarão em juízo. Ao invés de fortalecermos a cidadania, fortalecendo as organizações de pessoas, substituímos elas... ingressando com ações. Espero que compreendam o que quero dizer. Não devemos terceirizar a cidadania a esse ponto. Não se deve tutelar as pessoas. E pessoas tuteladas não reivindicam. Por isso um autor do porte de Habermas faz uma crítica ao direito quando ele “coloniza o mundo da vida”. Substituir o cidadão — mormente em questiúnculas privadas — é colonizar seus direitos. E sua vida.
Lembro, por outro lado, que, na ADI 2.903, o STF declarou inconstitucional um dispositivo de lei estadual que determinava que a Defensoria defenderia os funcionários públicos acusados de processos administrativos e judicias. O STF disse que havia um problema fulcral na Lei: o fato de que, no meio dos funcionários públicos, por certo, estariam inúmeros que não se enquadravam no conceito de hipossuficientes (muitos, provavelmente, proprietários de várias TVs e assinantes de TV a cabo, com pontos extras, se me entendem a metaforização). Ou seja, os funcionários públicos do referido Estado federado que não comprovassem ser hipossuficientes, deveriam pagar seu próprio advogado. Simples, pois. E correto.
MP e Defensoria: stakeholders
Dizendo de outro modo e resumindo. Desse jeito o prejuízo maior será mesmo do próprio consumidor que verá seu dinheiro ser gasto excessivamente duas vezes: para pagar o ponto extra e para pagar a Defensoria e o MP para atuarem na mesma esfera de competência. Minha proposta: vamos sentar em torno de uma mesa e vamos definir quem faz o que. Urgentemente. Parênteses: poderia falar aqui de outras situações (e há inúmeras). De todo modo, tratarei de outros exemplos em outra coluna. Minha intenção é aprofundar o debate e fortalecer o diálogo com – e entre - as Instituições envolvidas.
Portanto, na esteira do que vem ocorrendo em vários lugares do mundo e é objeto de profundas pesquisas aqui no Brasil, proponho um diálogo institucional (por exemplo, essa questão assume relevância em países como Nova Zelândia, Canadá, em que a “divisão de poderes” assume novas perspectivas, para além da judicialização). Não são instituições adversárias, são stakeholders.
Em suma, faço essas reflexões com toda a lhaneza. A Defensoria é instituição importantíssima. O Ministério Público também. Despiciendo dizer isso. Mas está na hora de discutirmos atribuições e competências, para que a população (necessitados e não necessitados) não tenha que pagar muita gente para fazer a mesma coisa. Por isso, o judiciário julga, o MP... bem, assim por diante. Já deveríamos saber o resto da frase. Mas parece que ainda não sabemos.
Numa palavra: essa discussão ocorre em um espaço no qual o sentido não pode ficar encoberto. Não há grau zero de sentido. Ou é, ou não é. Contra o niilismo de que “fatos não há, só há interpretações”, ouso dizer que “só há interpretações porque há fatos”. Portanto, estes “não são qualquer coisa”.
De outra banda, não basta simplesmente querer fazer o bem. Sempre é bom lembrar: “Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal por principiar...” Bem, esse Guimarães Rosa sabia um pouco das coisas!

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Grampo de cliente com advogado não viola prerrogativas

Por unanimidade, o Pleno do Tribunal Regional Federal da 5ª Região arquivou procedimento administrativo aberto contra a juíza Ethel Francisco Ribeiro, da 4ª Vara Federal de Pernambuco. Ela havia sido acusada de abuso de autoridade e denunciação caluniosa pela OAB de Pernambuco, que ingressou com representação criminal no Ministério Público Federal. A entidade alegou que a juíza deu causa à abertura de inquérito policial contra o advogado Antonio Madruga Godói, imputando-lhe crime que ela sabia que ele não havia cometido, bem como por abuso de autoridade ao negar acesso da OAB-PE aos áudios da investigação.
O relator do processo, juiz convocado Francisco Calvalcanti, afirmou que “não há como imputar à magistrada Ethel Franscisco Ribeiro o cometimento do crime de denunciação caluniosa, vez que o MPF foi o responsável por requisitar a instauração do inquérito”. Segundo Calvalcanti, é “dever do magistrado, diante da possibilidade da prática de qualquer delito de ação penal de iniciativa pública, encaminhar ao Ministério Público as peças de informação, consoante o artigo 40 do CPP, de maneira que a execução de tal diligência não implica crime de denunciação caluniosa”.
Godói decobriu, em 2012, que conversas suas com um cliente investigado foram gravadas pela Polícia. Pediu, então, que os grampos fossem retirados do processo criminal por violação do sigilo da relação advogado-cliente. Passaram-se 90 dias, mas Ethel não havia decidido sobre a suspensão das provas. O advogado, então, entrou com uma representação na OAB pernambucana, levando, como prova, as gravações das conversas. Sua iniciativa ofendeu a juíza, que determinou à Polícia Federal a abertura de inquérito por uso não autorizado de provas colhidas pela Justiça.
O caso foi parar no TRF, nas mãos do desembargador Geraldo Apoliano, que, monocraticamente, determinou o trancamento do inquérito. “O propósito do paciente foi preservar as suas prerrogativas profissionais, enquanto advogado, na relação cliente-profissional”, determinou ele.
Já o juiz Cavalcanti, relator no Pleno do TRF, salientou que o fato de terem sido gravadas conversas entre o advogado e seu cliente “não constitui, por si só, ofensa à liberdade de trabalho do advogado e às suas prerrogativas funcionais”. Para o juiz, “ao se autorizar a interceptação das comunicações telefônicas de determinado terminal, não há como se determinar, previamente, o conteúdo e os interlocutores das conversas que serão gravados”.
No que se refere à imputação pela OAB-PE de abuso de autoridade, o juiz entendeu que “o indeferimento do pedido de assistência da OAB não configura o tipo de abuso de autoridade, por atentado aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional”. Destacou o relator que o inquérito não tinha como alvo o advogado, o que demonstraria a ausência de interesse da OAB no conteúdo das comunicações telefônicas interceptadas e que o acesso aos dados violaria o sigilo da interceptação que deve ser restrito às partes diretamente interessadas e aos demais envolvidos na persecução como promotor, juiz e autoridade policial.
Prática repetida
Em episódio semelhante, um inquérito envolvendo o empresário Carlinhos Cachoeira incluiu no processo conversas por e-mail da ex-mulher, Andréa Aprígio, também investigada, com seu advogado, o criminalista Paulo Sérgio Leite Fernandes, como noticiou a ConJur no último dia 6. Os diálogos tratavam da cobrança de honorários pelos serviços, o que levou o advogado a protestar contra a indiscrição da Justiça Federal de Goiás. O juiz do caso, Alderico Rocha Santos, prometeu avaliar a situação.
Em resposta, a seccional paulista da OAB, informou ter instaurado instrução para investigar a divulgação, no processo, da troca de mensagens entre cliente e advogado — clique aqui para ler. “É inaceitável que qualquer autoridade possa, a pretexto de investigar conduta de seu patrocinado, bisbilhotar diálogos e violentar o sigilo das relações profissionais estabelecidas ente advogado e cliente, quando o causídico não é alvo de perquirição“, disse o presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB-SP, Ricardo Toledo Santos Filho. Com informações da Assessoria de Imprensa dos Juízes Federais do Brasil.
Clique aqui para ler a decisão.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Processo eletrônico cria exigências não previstas na lei

Por Luiz Salvador

A segurança jurídica está em discussão na implantação a “fórceps” do peticionamento eletrônico exclusivo, sem outras opções antes existentes.
Ninguém pode ser contra a modernidade, desde que essa venha para atender aos cidadãos de modo geral e não servir-se da ferramenta obrigatória e exclusiva para indeferir processamento de recursos tempestivos, para atender a interesses corporativos de membros do Poder Judiciário que o usam para liquidar processos, limpando suas pautas, fazendo crescer a níveis exponenciais as estatísticas de “produção” dos tribunais e dos membros do Poder Judiciário, criando-se a exclusão digital e a insegurança jurídica, ao arrepio das garantias constitucionais vigentes.
Ao que parece, as estatísticas de produção do número de processos "julgados" tornou-se um fim em si mesma, nada importando a qualidade desses julgamentos!
O sistema tem que atender aos jurisdicionados e não a interesses corporativos de magistrados que querem se livrar da responsabilidade constitucional de entregar o bom direito a quem seja seu detentor. O sistema tem que ser intuitivo, como o é o para fazermos compras pela internet. Se algum dado estiver faltando, o sistema tem que avisar para que o usuário possa corrigir a exigência no ato. Os tribunais estão legislando por atos administrativos internos, criando novos regramentos processuais e normativas a encargo dos advogados. E tudo implantado com rapidez sem que todos os advogados estejam readequados às novas exigências.
Mais devagar com o andor, porque o santo é de barro: O sistema eletrônico não pode prejudicar os jurisdicionados com exigências e regramentos administrativos que criam novas exigências procedimentais e processuais que extrapolam a previsão legal. O sistema de peticionamento eletrônico é bem vindo, mas sua implantação não pode ser a toque de caixa como está ocorrendo, em prejuízo dos jurisdicionados. O serviço tem que atender não só ao interesse do Poder Judiciário que tem permitido, pelo não processamento do recurso, a diminuição das demandas judicializadas.
Luiz Salvador é presidente da ALAL, diretor do Departamento de Saúde do Trabalhador da JUTRA, assessor jurídico de entidades de trabalhadores, membro integrante do corpo técnico do Diap, do corpo de jurados do Tribunal Internacional de Liberdade Sindical (México), da Comissão Nacional de Relações internacionais do Conselho Federal da OAB e da comissão de juristas responsável pela elaboração de propostas de aprimoramento e modernização da legislação trabalhista instituídas pelas Portarias-MJ 840, 1.787, 2.522/08 e 3105/09.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Prazo máximo para prisão preventiva é um começo


Em 14 de setembro de 2012 foi publicada a Lei 12.714 (que entrará em vigor 365 dias depois da sua publicação), que “dispõe sobre o sistema de acompanhamento de execução das penas, da prisão cautelar e da medida de segurança”.
De acordo com a referida lei, os dados e as informações da execução da pena, da prisão cautelar e da medida de segurança deverão ser mantidos e atualizados em sistema informatizado de acompanhamento da execução da pena.
Embora a lei denomine em seu artigo 1o “sistema informatizado de acompanhamento da execução da pena”, o sistema inclui informações sobre todas as fases processuais, incluindo data para encerramento do inquérito e oferecimento da denúncia, por exemplo. Também não é demais atentar para o fato de que na epígrafe da lei o sistema não se destina apenas ao acompanhamento da execução da pena, mas se estende à prisão cautelar e à medida de segurança.
Podemos verificar, ademais, que a lei, no artigo 3º, atribui a cada autoridade atuante no sistema penal a responsabilidade pela inserção de determinadas informações.
Assim, caberá à autoridade policial, “por ocasião da prisão”, inserir no sistema as informações sobre nome, filiação, data de nascimento e sexo do preso; data da prisão ou da internação; comunicação da prisão à família e ao defensor; o tipo penal e a pena em abstrato.
Ao magistrado “que proferir a decisão ou acórdão” caberá inserir no sistema informações quanto ao tempo de condenação ou de medida aplicada; aos dias remidos; e à utilização de equipamentos de monitoração eletrônica pelo condenado.
O diretor do estabelecimento prisional deverá inserir informações sobre os dias de trabalho ou estudo; o atestado de comportamento carcerário; e as faltas graves.
O diretor da unidade de internação deverá inserir os dados sobre o exame de cessação da periculosidade, no caso de medida de segurança.
Algumas perplexidades surgem de imediato: o que ocorrerá se o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, der ao fato definição jurídica diversa da que fez o delegado, já que este é quem tem atribuição para inserir a informação referente ao tipo penal no sistema? Vejam que o Ministério Público não é autoridade “alimentadora” do sistema, portanto, não pode corrigi-lo ou alterá-lo. A eventual (e provavelmente necessária) correção demandará, burocraticamente, decisão judicial.
Isso implica dizer que o sistema terá um “diálogo” com a pessoa errada, já que o dominus litis, quem deve tipificar a conduta em última e mais circunstanciada análise, não é a mesma pessoa que irá informar o sistema.
Outra, no mínimo interessante previsão, é que o magistrado incumbido de “alimentar” o sistema é aquele que proferiu decisão ou acórdão. Como a lei não especifica a espécie de decisão, parece que refere-se a decisão de qualquer natureza, não apenas sentença. Isso é muito importante quando verificamos que ele é incumbido de inserir no sistema informações a respeito do “tempo de condenação ou da medida aplicada”. A pergunta é: a que “medida” o texto legal se refere? Se for apenas referente às medidas de segurança, o objeto da lei, tal qual descrito na sua epígrafe, torna-se inócuo e parcial, porquanto o mesmo se refere não apenas à pena e a medida de segurança, mas também à prisão cautelar.
A melhor interpretação, constitucionalmente adequada e em favor rei, inclusive dando um passo (embora ainda lento) na direção da observância dos direitos fundamentais, mormente no que concerne à limitação do tempo de prisão cautelar tal como previsto no artigo 7º do Decreto 678/1992 (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), é que a “medida” a que se refere o texto da lei inclui as medidas cautelares, incluindo a prisão preventiva e temporária.
Assim, torna-se uma obrigação do magistrado “que proferir a decisão” de decretação da prisão cautelar ou de conversão da prisão em flagrante em preventiva inserir no sistema o tempo de duração desta medida, obrigando todas as agências do sistema penal à observância do prazo por ele mesmo fixado.
Isso implica dizer que afora os confusos e permissivos limites temporais de duração da prisão preventiva construídos pela jurisprudência à guisa de prazo legal, sempre renegados por hipóteses excludentes da obrigação de observá-los convenientemente aplicados conforme o caso concreto, podemos compreender que o juiz passa a ter um papel ativo não apenas na observância do prazo prisional, mas na fixação prévia deste, isto é, na determinação do prazo máximo de duração da prisão preventiva no ato da decisão que impõe a medida restritiva cautelar.
Esta é uma interpretação que se aduna ao sistema acusatório, pois que o sigilo dos atos processuais e, sobretudo, o desconhecimento das regras atinentes ao processo penal são características inquisitórias próprias dos mais sombrios procedimentos do Santo Ofício.
Ainda que a lei processual penal não fixe com exatidão tempo máximo de duração das prisões cautelares, é conditio sine qua non de existência de um processo de garantias que seus agentes, sobretudo aquele que se submete ao exercício do poder (leia-se, o acusado), conheça previamente suas regras. A surpresa não é parte do jogo processual penal.
Não saber o prazo máximo que deve durar a prisão cautelar é desconhecer o direito à liberdade. E desconhecer o direito à liberdade é negar o direito à liberdade.
Por isso, conquanto não se possa afirmar que a obrigação do juiz fixar previamente o prazo de duração da prisão preventiva seja um avanço, vez que deveria haver definição do prazo máximo em lei, é um começo.

Artigos

15fevereiro2013
EXECUÇÃO PENAL

Prazo máximo para prisão preventiva é um começo

Em 14 de setembro de 2012 foi publicada a Lei 12.714 (que entrará em vigor 365 dias depois da sua publicação), que “dispõe sobre o sistema de acompanhamento de execução das penas, da prisão cautelar e da medida de segurança”.
De acordo com a referida lei, os dados e as informações da execução da pena, da prisão cautelar e da medida de segurança deverão ser mantidos e atualizados em sistema informatizado de acompanhamento da execução da pena.
Embora a lei denomine em seu artigo 1o “sistema informatizado de acompanhamento da execução da pena”, o sistema inclui informações sobre todas as fases processuais, incluindo data para encerramento do inquérito e oferecimento da denúncia, por exemplo. Também não é demais atentar para o fato de que na epígrafe da lei o sistema não se destina apenas ao acompanhamento da execução da pena, mas se estende à prisão cautelar e à medida de segurança.
Podemos verificar, ademais, que a lei, no artigo 3º, atribui a cada autoridade atuante no sistema penal a responsabilidade pela inserção de determinadas informações.
Assim, caberá à autoridade policial, “por ocasião da prisão”, inserir no sistema as informações sobre nome, filiação, data de nascimento e sexo do preso; data da prisão ou da internação; comunicação da prisão à família e ao defensor; o tipo penal e a pena em abstrato.
Ao magistrado “que proferir a decisão ou acórdão” caberá inserir no sistema informações quanto ao tempo de condenação ou de medida aplicada; aos dias remidos; e à utilização de equipamentos de monitoração eletrônica pelo condenado.
O diretor do estabelecimento prisional deverá inserir informações sobre os dias de trabalho ou estudo; o atestado de comportamento carcerário; e as faltas graves.
O diretor da unidade de internação deverá inserir os dados sobre o exame de cessação da periculosidade, no caso de medida de segurança.
Algumas perplexidades surgem de imediato: o que ocorrerá se o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, der ao fato definição jurídica diversa da que fez o delegado, já que este é quem tem atribuição para inserir a informação referente ao tipo penal no sistema? Vejam que o Ministério Público não é autoridade “alimentadora” do sistema, portanto, não pode corrigi-lo ou alterá-lo. A eventual (e provavelmente necessária) correção demandará, burocraticamente, decisão judicial.
Isso implica dizer que o sistema terá um “diálogo” com a pessoa errada, já que o dominus litis, quem deve tipificar a conduta em última e mais circunstanciada análise, não é a mesma pessoa que irá informar o sistema.
Outra, no mínimo interessante previsão, é que o magistrado incumbido de “alimentar” o sistema é aquele que proferiu decisão ou acórdão. Como a lei não especifica a espécie de decisão, parece que refere-se a decisão de qualquer natureza, não apenas sentença. Isso é muito importante quando verificamos que ele é incumbido de inserir no sistema informações a respeito do “tempo de condenação ou da medida aplicada”. A pergunta é: a que “medida” o texto legal se refere? Se for apenas referente às medidas de segurança, o objeto da lei, tal qual descrito na sua epígrafe, torna-se inócuo e parcial, porquanto o mesmo se refere não apenas à pena e a medida de segurança, mas também à prisão cautelar.
A melhor interpretação, constitucionalmente adequada e em favor rei, inclusive dando um passo (embora ainda lento) na direção da observância dos direitos fundamentais, mormente no que concerne à limitação do tempo de prisão cautelar tal como previsto no artigo 7º do Decreto 678/1992 (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), é que a “medida” a que se refere o texto da lei inclui as medidas cautelares, incluindo a prisão preventiva e temporária.
Assim, torna-se uma obrigação do magistrado “que proferir a decisão” de decretação da prisão cautelar ou de conversão da prisão em flagrante em preventiva inserir no sistema o tempo de duração desta medida, obrigando todas as agências do sistema penal à observância do prazo por ele mesmo fixado.
Isso implica dizer que afora os confusos e permissivos limites temporais de duração da prisão preventiva construídos pela jurisprudência à guisa de prazo legal, sempre renegados por hipóteses excludentes da obrigação de observá-los convenientemente aplicados conforme o caso concreto, podemos compreender que o juiz passa a ter um papel ativo não apenas na observância do prazo prisional, mas na fixação prévia deste, isto é, na determinação do prazo máximo de duração da prisão preventiva no ato da decisão que impõe a medida restritiva cautelar.
Esta é uma interpretação que se aduna ao sistema acusatório, pois que o sigilo dos atos processuais e, sobretudo, o desconhecimento das regras atinentes ao processo penal são características inquisitórias próprias dos mais sombrios procedimentos do Santo Ofício.
Ainda que a lei processual penal não fixe com exatidão tempo máximo de duração das prisões cautelares, é conditio sine qua non de existência de um processo de garantias que seus agentes, sobretudo aquele que se submete ao exercício do poder (leia-se, o acusado), conheça previamente suas regras. A surpresa não é parte do jogo processual penal.
Não saber o prazo máximo que deve durar a prisão cautelar é desconhecer o direito à liberdade. E desconhecer o direito à liberdade é negar o direito à liberdade.
Por isso, conquanto não se possa afirmar que a obrigação do juiz fixar previamente o prazo de duração da prisão preventiva seja um avanço, vez que deveria haver definição do prazo máximo em lei, é um começo.
Antonio Eduardo Ramires Santoro é advogado, professor adjunto da UFRJ e professor da Universidade Gama Filho e da Emerj. Doutor e mestre em Filosofia (UFRJ). Mestre em Direito (Universidade de Granada, Espanha)

No Júri, primeira impressão é decisiva na inquirição


A primeira impressão é a que fica. Essa é a frase lapidar, muito conhecida, pouco valorizada, que todo advogado criminalista deveria inscrever a ferro e fogo em sua própria mente. Não apenas por causa do marketing pessoal. Primeiras impressões são essenciais para o sucesso no Tribunal do Júri, porque ficam definitivamente marcadas nas mentes dos jurados. Há provas científicas. "São quase impossíveis de reverter ou de desfazer", diz o site de Psicologia Mind Tools.
A primeira impressão pode ser decisiva, por exemplo, na inquirição direta de testemunhas, especialmente quando o inquirido é o próprio réu. O advogado pode criar ou destruir a credibilidade da testemunha com a escolha de suas perguntas iniciais. As respostas às primeiras perguntas podem resultar em boa ou má impressão que os jurados terão da testemunha — e das quais não conseguirão se livrar, por mais que os fatos indiquem um caminho diferente na sequência.
Para exemplificar, o advogado e professor de Direito Elliott Wilcox relata o que ocorreu em um julgamento em que a defesa considerou que o testemunho do réu era importante para ganhar o caso. Um traficante fora acusado de vender drogas a um agente federal disfarçado, com a intermediação do réu, segundo a Promotoria. A defesa estava certa de que poderia demonstrar a inocência do réu na transação, bem como que alguns fatos foram distorcidos e algumas declarações foram mal interpretadas. E, por fim, que o traficante agiu de forma totalmente independente quando vendeu cocaína ao agente federal.
O advogado também sabia que o caso tinha alguns pontos fracos e decidiu esclarecê-los para os jurados desde logo. Essa é uma técnica da inquirição direta. Se a defesa deixa de mencionar problemas do réu na inquirição direta, quando ele serve de testemunha, o promotor pode fazer um estrago na inquirição cruzada, porque não deixará de fazer as perguntas comprometedoras. Mas se a defesa discute o problema com o réu na inquirição direta, esvazia a força destruidora da inquirição cruzada. Se o promotor voltar a fazer as mesmas perguntas, estará perguntando o que já foi perguntado e produzirá um sentimento de desconforto nos jurados, que podem nem levar a sério sua inquirição.
Os problemas do réu que precisavam ser esclarecidos por seu advogado — antes que o fossem pelo promotor — eram esses: ele estava desempregado há dez anos, por causa de um problema físico, e já fora condenado três vezes por crimes diferentes e sem relação com o caso. O advogado o fez, mas no pior momento: no início da inquirição, quando a primeira impressão é criada. Foi assim:
Advogado: Onde o senhor trabalha?
Réu: Não trabalho há dez anos, por causa de meu problema físico.
Advogado: O senhor já foi preso alguma vez?
Réu: Sim.
Advogado: Quantas vezes?
Réu: Três vezes.
Entende-se que, depois que essa primeira má impressão é registrada na mente dos jurados, todas as perguntas e respostas subsequentes não ajudariam o réu. Isso porque as respostas do réu são reconstruídas nas mentes dos jurados, de acordo com o que ficou registrado na impressão inicial. Assim:
Advogado: O senhor conhecia Archie (o traficante)?
Réu: Sim. O filho dele e meu filho estudam na mesma escola.
Registro na mente do jurado: desempregado e três vezes condenado era conhecido do traficante.
Advogado: O senhor frequentava a casa de Archie?
Réu: Não. Nunca fui à casa dele.
Registro na mente do jurado: desempregado e três vezes condenado diz que não frequentava a casa do traficante.
Assim, os pontos fracos do depoimento do réu só devem vir à tona depois que a credibilidade do réu é instituída. A partir daí, suas respostas, mesmo as mais difíceis, podem até "cair bem", como demonstração de sinceridade. De qualquer forma, o que permanece na mente dos jurados é a impressão inicial. Se ela foi boa, o que vier depois, bom ou ruim, não terá tanta influência na formação de seu conceito sobre o réu.
O escritor Ted Simendinger, especializado em formação de líderes, diz que as evidências científicas são virtualmente unânimes na constatação de que as pessoas confiam muito mais em suas opiniões iniciais do que em qualquer informação posterior, "porque o que vemos primeiro representa a verdade". Por isso, diz ele, "impressões são formadas rapidamente e mudadas lentamente". Não importa se é justo ou não. O que importa é que esse processo faz parte da natureza humana.
As impressões iniciais se estendem muito além do relato e da acumulação dos fatos, ele diz. Primeiras impressões são difíceis de apagar porque, uma vez formadas, as pessoas não se esforçam — nem querem se esforçar — para mudá-las. "O que buscamos, depois de formar a primeira impressão, são informações que as validem, não que as contrariem. Como encontramos na vida o que buscamos, tendemos a encontrar essa validação. O processo de mudança é muito mais lento", afirma.
Um estudo do Departamento de Psicologia da Universidade de Nova York mostrou que as primeiras impressões são feitas em duas regiões do cérebro. As primeiras impressões chegam primeiro às amígdalas — não as da garganta, mas as do cérebro, a mesma região que processa o instinto de sobrevivência. As amígdalas podem identificar quase que instantaneamente o que é seguro e o que é perigoso. Em seguida, a informação é passada para a outra região, o neocórtex, que a processa.
Se a pessoa evita um acidente por uma reação rápida, isso é um trabalho da amígdala — e essa sensação permanece no cérebro por um longo tempo. E não há raciocínio lógico que a apague, tão facilmente. O mesmo processo ocorre quando uma pessoa tem um primeiro contato com qualquer outra pessoa: as primeiras impressões são processadas no eixo amígdalas-neocórtex. Raciocínios lógicos não as conseguem apagar rapidamente. Se conseguem, o fazem apenas parcialmente, para determinadas circunstâncias.
Por isso, a primeira impressão, a primeira imagem, a primeira frase são importantes, quando se há que lidar com jurados. Na inquirição direta, trabalhar a primeira impressão é fundamental. Mas cada coisa tem seu lugar. Na alegação inicial, o que fica na mente dos jurados é a frase inicial — a que abre a história que o advogado (ou promotor) vai contar aos jurados. Na alegação final, a frase de abertura também é importante, mas o advogado pode comentar um ou mais pontos fracos do caso logo de início, para usar, em seguida, o poder das conjunções adversativas: "O réu está desempregado, já foi condenado três vezes por outros tipos de crime, mas, apesar disso...".
FONTE: CONJUR

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

BANCO DO BRASIL ADOTA POLÍTICA DE DESISTÊNCIA DE AÇÕES JUDICIAIS

 Com 850 mil processos tramitando na Justiça, o Banco do Brasil (BB) adotou uma política de redução de litígios. Para isso, está desistindo de recorrer em causas que já têm entendimento pacificado nos tribunais, muitas delas envolvendo seus clientes.

A nova estratégia do banco foi apresentada nesta terça-feira (6) ao presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Felix Fischer, que recebeu três dirigentes do BB: César Borges, vice-presidente de governo; Danilo Angst, vice-presidente de controles internos e gestão de riscos, e Antônio Machado, diretor jurídico.

Só no STJ, o BB é parte em aproximadamente seis mil processos. O banco já começou a protocolar petições de desistência de recursos que tratam de matérias sumuladas ou de temas com jurisprudência consolidada no Tribunal, especialmente nas Turmas especializadas em direito privado.

“O nosso objetivo é reduzir drasticamente o número de ações em todas as esferas do Judiciário”, explicou Danilo Angst. “O que o banco quer é aderir e contribuir com o grande esforço de reduzir o número de processos na Justiça”, completou César Borges.

Para atingir esse objetivo, o BB está atuando em duas frentes: na conciliação com os clientes e na identificação da origem do problema que acaba gerando ações judiciais. Boa parte dos casos vai parar nos juizados especiais. A intenção é encerrá-los na própria agência bancária.

57 milhões de clientes

O BB é o maior banco da América Latina. Tem 57 milhões de clientes e agências em todos os municípios brasileiros. Para atender às demandas judiciais dessa gigantesca estrutura, o banco conta com 52 assessorias jurídicas espalhadas pelo país, com 850 advogados próprios, além dos escritórios de advocacia terceirizados. O foco dessa equipe agora, segundo o diretor jurídico, Antônio Machado, é evitar que um conflito vire ação judicial.

“O que se espera do STJ e de todo o Judiciário é que, na medida em que a gente diminua o número de processos, a prestação jurisdicional sobre o mérito tenha melhor qualidade, pois o juiz vai se ocupar daquilo que realmente é relevante”, afirmou Machado. “E queremos contribuir com isso, pois sabemos que esse é o anseio do Judiciário e da sociedade”, concluiu.

Fonte: http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=107613#

Normas sobre lavagem aumenta procura nos escritórios

Por Elton Bezerra

Com a nova Lei de Lavagem e a resolução do Coaf que obriga consultorias a informar operações de clientes suspeitas de lavagem de dinheiro, os escritórios de advocacia especializados no tema têm registrado aumento na procura de esclarecimentos sobre o assunto. “Depois da alteração produzida no meio do ano passado que acabou regulamentada no começo deste ano, começamos a receber mais consultas não só de instituições financeiras como, de entidades obrigados a apresentar comunicado ao Coaf”, diz Maurício Silva Leite, do Leite Tosto Advogados.
De acordo com a Resolução 24 do Coaf, as consultorias deverão implantar procedimentos para a identificação do beneficiário final da operação e obtenção de informações sobre o propósito e a natureza do negócio. Qualquer operação superior a R$ 30 mil paga em espécie ou cheque ao portador deverá ser comunicada ao Coaf. Além de consultorias, as novas regras valem também para prestadores de seviço de assessoria, auditoria, contadoria, aconselhamento ou assistência, e abrange pessoas físicas ou jurídicas não submetidas a regulação de órgão próprio.
Segundo o advogado David Rechulski, as empresas estão preocupadas com a possibilidade de serem condenadas por responsabilidade objetiva em caso de lavagem de dinheiro. “É um alcance estruturado muitas vezes em circunstâncias que não estão no controle absoluto da empresa, mas podem repercutir na própria companhia”, afirma. Ele diz que tem recebido consultas de muitas empresas do ramo imobiliário, como construtoras.
Bancos
Já os bancos têm redobrado a atenção em casos de risco potencial de lavagem de dinheiro. Segundo reportagem do jornal Valor Econômico, as instituições estão mais rigorosas na análise de remessas do exterior, o que tem provocado maior lentidão nessas operações. De acordo com o jornal, fontes de instituições financeiras dizem que, com os procedimentos mais rígidos, os executivos dos bancos podem responder a processo como pessoa física.
Na avaliação do advogado Eduardo Fleury ao jornal, o banco pode inclusive ser responsabilizado por essas operações. Segundo ele, a precaução das instituições financeiras já vinha aumentando antes mesmo da nova legislação. "O ambiente mudou nos últimos anos e não apenas no Brasil."
Além da nova lei de lavagem, o jornal cita pressões da comunidade internacional e regras mais rígidas do Banco Central como as responsáveis pela dificuldade na liberação das remessas do exterior. De acordo com o jornal, com essas novas regras, os bancos passaram a adotar procedimentos mais minuciosos e, em alguns casos, pedem aos clientes documentos que comprovem até o último grau de controle acionário de uma empresa.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

É preciso repensar o modelo cautelar no processo penal

As estatísticas sobre prisões provisórias no Brasil não são nada animadoras. De acordo com o último relatório do Departamento Penitenciário Nacional, do Ministério da Justiça, a população carcerária atingiu, em junho de 2012, 549 mil presos, com a proporção de 288 presos por 100 mil habitantes.[1] Em 1992, esse número era de 74 presos por 100 mil habitantes, o que corresponde a um aumento de 380,5%, enquanto que, no mesmo período, a população brasileira cresceu apenas 28%. Segundo levantamento do anuário World Prison Brief (WPB), o crescimento da população carcerária no Brasil, nas últimas duas décadas, só foi superado pelo do Cambodja.
Além do preocupante crescimento da população carcerária, o que mais chama atenção no relatório é o número de pessoas presas em caráter provisório. Do total de presos, 191 mil são de pessoas aguardando julgamento, muitas delas amontoadas em unidades prisionais superlotadas e sem as mínimas condições de higiene, como se constatou nos mutirões carcerários realizados pelo Conselho Nacional de Justiça[2], sem contar que mais de 40 mil presos encontram-se, irregularmente detidos em delegacias de polícia, muitos inclusive já sentenciados.
Houve, no Brasil, nas últimas décadas, um notório incremento no uso da prisão cautelar. Em 1990, a proporção entre presos definitivos e provisórios era bem diferente do que se observa atualmente. Havia, naquele ano, 90 mil presos, dos quais apenas 18% (16,2 mil) eram presos provisórios. Entre 1990 e 2012, contudo, enquanto o número de presos definitivos aumentou 490%, o número de presos provisórios, no mesmo período, cresceu, espantosamente, 1.093%, alcançando, em junho de 2012, cerca de 40% da população carcerária.
Os mutirões carcerários coordenados pelo CNJ demonstraram que a falência do sistema prisional não pode ser dissociada das sérias deficiências do sistema de justiça criminal. A par dos inúmeros casos de prisões provisórias com prazo alongado, sem conclusão da instrução e sem sentença de primeiro grau, dois exemplos parecem ilustrar o quadro de abuso eloquente: no Espírito Santo encontrou-se acusado preso provisoriamente há 11 anos; no Ceará, verificou-se um quadro ainda mais grave, uma pessoa presa há mais de 14 anos em caráter provisório.
Nesse contexto, a edição da Lei 12.403/11, que ampliou consideravelmente o rol de medidas cautelares à disposição do juiz (CPP, art. 319), apresenta-se como relevante instrumento no esforço de alteração desse quadro. Trata-se de medidas que podem ser adotadas de ofício ou a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou a requerimento do Ministério Público (CPP, art. 282, §2º). E o mais importante: contam com prioridade em relação à prisão preventiva (CPP, art. 282, §6º)[3].
De acordo com a nova redação do artigo 310 do CPP, o juiz, ao receber o auto de prisão em flagrante, deve adotar uma das seguintes providências: a) relaxar o flagrante, se ilegal; b) converter a prisão em flagrante em prisão preventiva, se presentes os requisitos do artigo 312 do CPP e não for possível a sua substituição por medida cautelar diversa da prisão; c) conceder liberdade provisória mediante imposição de uma, ou mais de uma, das medidas cautelares previstas no artigo 319 do CPP, entre as quais a fiança.
O artigo 319 do CPP elenca as seguintes medidas cautelares alternativas à prisão, que podem ser determinadas isolada ou cumulativamente (CPP, art. 282, §1º): comparecimento periódico em juízo, proibição de acesso ou de frequência a determinados lugares, proibição de manter contato com pessoa determinada, proibição de ausentar-se da comarca ou do país, recolhimento domiciliar nos períodos noturnos e nos dias de folga, suspensão do exercício da função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira, internação provisória, monitoração eletrônica e fiança.
Conforme observado na obra Prisão e Medidas Cautelares, Comentários à Lei 12.403, “o sistema processual brasileiro sempre se caracterizou pela bipolaridade (ou binariedade): prisão ou liberdade”. [4] Não sendo cabível a liberdade provisória com ou sem fiança, não dispunha o juiz, portanto, de outras medidas substitutivas da prisão cautelar, passando esta, em muitos casos, a ser a regra, desnaturando por completo o seu caráter de excepcionalidade.
Retrata-se na referida obra um interessante contraste do sistema então vigente com o modelo concebido pela Lei 12.403/11:
“Nosso sistema carecia de medidas intermediárias, que possibilitassem ao juiz evitar o encarceramento desnecessário. Essa bipolaridade conduziu à banalização da prisão cautelar. Muita gente está recolhida em cárceres brasileiros desnecessariamente. O novo sistema (multicautelar — art. 319 do CPP), oferece ao juiz várias possibilidades de não encarceramento.”
E assim prossegue-se, com inegável propriedade:
“Para contornar o problema prisional decorrente do excesso de prisioneiros, não basta apenas apostar nas penas e medidas alternativas à prisão, que são aplicadas no momento da condenação definitiva. O cenário nacional exigia (urgentemente) medidas que possibilitassem alternativas também à prisão cautelar, já que esta é a principal responsável pela superlotação carcerária.”
Um nítido exemplo disso pode ser observado na quantidade de Habeas Corpus em tramitação no Superior Tribunal de Justiça, aproximadamente 200 mil. E o que impressiona ainda mais é que metade deles, conforme dados da distribuição até 2011, deu entrada naquela Corte nos últimos três anos. Somente em 2012, até no final de setembro, foram ajuizados mais de 25 mil novos HCs. Como grande parte desse acervo tem por objeto a concessão de liberdade provisória, resta clara a urgência de se repensar o modelo cautelar no processo penal, o que se espera seja alcançado com as modificações trazidas pela nova lei. No Supremo Tribunal Federal, esse impacto também é visível. De acordo com estatísticas da Corte, apenas em 2012, até o mês de agosto, foram concedidos 221 HCs, grande parte por excesso de prazo.
Além das medidas cautelares, uma medida que poderia ter impacto positivo é a apresentação do preso em flagrante ao juiz. Cuida-se de procedimento expressamente previsto em tratados dos quais o Brasil faz parte, já incorporados ao Direito interno, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 9º, item 3, primeira parte do Decreto 592/92 — Pacto de Nova Iorque) e Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7º, item 5, primeira parte do Decreto 678/92 — Pacto São José da Costa Rica).
Conforme bem lembrado por Delmanto Júnior, “desde que o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque, existe, em nosso ordenamento, o dever (reiteradamente desrespeitado) de as autoridades policiais apresentarem a um juiz de Direito o preso em flagrante”.[5]
Trata-se, portanto, de importante mecanismo de controle da legalidade das prisões em flagrante, prevenindo-se prisões ilegais e até torturas no ato da prisão, situações constatadas nos mutirões carcerários realizados pelo Conselho Nacional de Justiça e constantemente noticiadas pela imprensa.
Diante desse quadro, mostra-se oportuna a iniciativa do CNJ em dar cumprimento às citadas imposições legais, conforme deliberação plenária daquele órgão em procedimento específico sobre o tema.[6]
Esse procedimento precisa ser efetivamente aplicado pelos próprios magistrados. Estudos indicam que, até aqui, a Lei 12.403/2011 teve pouco impacto na diminuição da população carcerária brasileira. Embora o número de presos provisórios tenha crescido menos (em 2011, o aumento foi de 1%, ao passo que em 2010 foi de 2,9%), ainda há 217 mil pessoas encarceradas provisoriamente. E no estado de São Paulo, onde se concentra grande parte da população carcerária do país, a situação é ainda pior. O número de presos provisórios desse estado aumentou, no mesmo período, em 3,6%, o que representa mais do que o triplo do percentual nacional[7].
De qualquer sorte, é importante ressaltar que, agora, dispõe o juiz, portanto, com um amplo leque de medidas cautelares diversas da prisão preventiva e que podem ser adotadas como providência mais justa ao caso concreto. É necessário, contudo, que tais medidas sejam efetivamente aplicadas. De nada adiantarão as mudanças implementadas se não houver, da parte do Judiciário, a clara percepção de que as medidas viabilizadas pela nova lei contam com prioridade em relação à prisão preventiva, e que esta, após a vigência da Lei 12.403/2011, somente se justifica quando devidamente demonstrada a inadequação das cautelares à disposição do juiz.[8]
Um dado importante sobre a cultura do encarceramento no âmbito do próprio Judiciário foi revelado em diagnóstico publicado pelo Ministério da Justiça em 2010, sob o título Dez anos da política nacional de penas e medidas alternativas. Registrou-se nesse estudo que:
“Característica essencial das penas e medidas alternativas é que elas se constituem como sanção que não implica a privação de liberdade. Ante o perfil do autor do fato e da conduta praticada, a melhor maneira de promover sua responsabilização são as sanções a serem cumpridas em meio aberto. Nesses casos, a prisão, dadas suas consequências sociais e econômicas, é intervenção a ser evitada. No entanto, embora pareça contraditório, ainda é grande o número de réus sancionados por penas ou medidas que aguardam o julgamento do seu processo preso provisoriamente.”[9]
Esse fenômeno, de acordo com o citado estudo, foi identificado por pesquisa realizada em cinco unidades da federação brasileira — Belém, Distrito Federal, São Paulo, Pernambuco e Porto Alegre—, em processos de furto. Constatou-se que, nas localidades pesquisadas, embora para a maioria dos réus sejam aplicadas penas e medidas alternativas, grande parte deles passa pela prisão cautelar. Assim concluiu Barreto (2007), autor da pesquisa citada no diagnóstico:
“Verifica-se que dos processos concluídos em que houve aplicação de pena, mais de dois terços resultaram em alternativa à prisão em São Paulo, Recife, Belém e Distrito Federal. Apenas em Porto Alegre este número é inferior a 50% [...].O tempo médio de prisão provisória para réus cujo processo teve como conclusão alguma medida alternativa à prisão é bastante significativo. Por exemplo, em todas as cidades, o tempo médio de prisão provisória dos réus condenados a cumprir penas restritivas de direito foi superior a um mês, sendo que em Recife esse número superou quatro meses e em Belém quase chegou a 10 meses.”[10]
Esse dado, como se percebe, parece confirmar a utilização abusiva da prisão provisória.
A superação desse quadro vergonhoso no sistema prisional exige um mutirão institucional com a cooperação proativa de todos os setores envolvidos, tendo em vista também uma efetiva revisão da justiça criminal.

[1] Ministério da Justiça, Departamento Penitenciário Nacional, Sistema Integrado de Informações Penitenciárias – InfoPen
[2] Dados do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, de acordo com a última atualização(2012).
[3] Trata-se de uma das diversas leis que resultaram do II Pacto Republicano, assinado em abril de 2009 pelos presidentes dos três poderes com o objetivo de implementação de políticas públicas com foco na agilidade e efetividade da Justiça e na concretização dos direitos fundamentais.
[4] GOMES, Luiz Flávio e MARQUES, Ivan Luís (org.). Prisão e Medidas Cautelares, Comentários à Lei 12.403, de 4 de maio de 2011. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 25.
[5] Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Ano 18. Ed. Especial/agosto, 2010, p. 31, cit. por ANIELLO, Aufiero, Prisão, Medidas Cautelares e Liberdade Provisória. Manaus:Editora Aufiero, 2011, p. 90).
[6] Processo de Ato Normativo nº 0001731-41.2012.2.00.0000. Encontra-se em elaboração no CNJ, em cumprimento à deliberação do Plenário, projeto de resolução disciplinando o assunto. Sobre o mesmo tema, tramita no Senado Federal o projeto de lei 554/2011, que altera o §1º do art. 306 do CPP para determinar a apresentação do preso à autoridade judicial no prazo de 24 horas após a sua prisão em flagrante.
[7] Cf. dados do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, citados na matéria “Lei da nova fiança não reduz lotação de cadeias”, publicada na Consultor Jurídico em 2 de julho de 2012. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-jul-02/lei-cautelares-completa-ano-nao-reduz-lotacao-cadeias.
[8] Em um ano de vigência da reforma processual, o número de presos provisórios aumentou de 218 mil em junho de 2011 para 232 mil em junho de 2012, quando, pela lógica do sistema, esperava-se que diminuísse. Esse dado, por si só, sinaliza que os juízes ainda persistem na decretação de prisões preventivas como regra, e não como exceção. Bastante oportuna, portanto, pesquisa em andamento no Conselho Nacional de Justiça pela qual se pretende saber quais e quantas medidas cautelares foram aplicadas, ou não, no período de vigência da Lei 12.403/11.
[9] Dez anos da política nacional de penas e medidas alternativas (Redação: Fabiana Costa Oliveira Barreto), Ministério da Justiça, Brasília, 2010.
[10] BARRETO, Fabiana Costa Oliveira. Flagrante e prisão provisória em casos de furto: da presunção de inocência à antecipação de pena. São Paulo: IBCCRIM, 2007.