sexta-feira, 31 de outubro de 2008

PROVA ILÍCITA É LEGITIMA SE USADA EM LEGITIMA DEFESA

(Por: Zélio Maia da Rocha)

Como regra geral os direitos fundamentais podem ser objeto de restrição mesmo quando expressamente não previsto no texto constitucional. Há aquelas hipóteses em que o legislador constituinte já promoveu o adequado balizamento impondo limites ao direito fundamental, como é o caso, v.g., do sigilo das comunicações telefônicas que, pelo disposto no artigo 5°, inciso XII, da Constituição, somente por ordem judicial e desde que para investigação criminal ou instrução processual penal é que se poderá promover a quebra do sigilo das comunicações telefônicas e tudo nos termos do que vier a ser definido em lei.
Ao se investigar o texto constitucional há de se perquirir se é possível a limitação dos direitos fundamentais quando não houver explícita previsão constitucional. A resposta se impõe afirmativa eis que os direitos fundamentais são, como regra geral, relativos. Afirmar o absolutismo dos direitos fundamentais como regra geral é promover uma negação geral dos próprios direitos fundamentais na medida em que o exercício absoluto de um direito fundamental conduziria à completa anulação dos direitos fundamentais de terceiros. Exemplificando: se o direito fundamental de livre manifestação do pensamento não pudesse sofrer restrições, a ninguém seria dado o direito de invocar a tranqüilidade de seu lar para impedir, por exemplo, que alguém, usando amplificador de som, expusesse seu pensamento a qualquer ora do dia ou da noite.
É claro que os direitos fundamentais exigem, para sua interpretação, uma compatibilização para se evitar colidência insuperável, pois os direitos fundamentais terão, necessariamente momentos de colisão, mas que devem ser resolvidos sem sua anulação. Aí reside o relativismo dos direitos fundamentais.
Quando a relativização dos direitos fundamentais vem expressamente prevista no texto constitucional, isso não gera qualquer dificuldade para o intérprete uma vez que a taxatividade constitucional supera qualquer dúvida quanto ao problema. A dúvida surge, no entanto, naquelas hipóteses em que o constituinte não contemplou a possibilidade de limitação ao direito fundamental de forma expressa, cabendo ao intérprete, nesses casos, buscar a solução à luz da hermenêutica constitucional, que nem sempre é de fácil compreensão.
Uma coisa é certa, porém: a ausência de previsão constitucional expressa não pode ser interpretada como impossibilidade de limitação. A limitação pode ocorrer nesses casos, desde que pautada em balizas seguras que darão ao intérprete constitucional elementos delimitadores para justificar a limitação de um direito fundamental.
Inicialmente deve ser identificada a motivação hábil a justificar a limitação de um direito fundamental. Aqui solução é facilmente estabelecida pelo intérprete na medida em que o direito fundamental poderá ser limitado com vista à preservação de outro direito fundamental ou de um interesse coletivo.
Outro elemento, este sim mais complexo, que deve ser atendido pelo intérprete reside no seguinte questionamento: até que ponto um direito fundamental pode sofrer restrições?
Aqui temos que investigar o princípio da proporcionalidade em seu critério de razoabilidade. Toda norma constitucional, quando sofre limitações deve preservar seu núcleo central. Quando o texto magno informa, em seu artigo 9°, parágrafo 2°, que o trabalhador em greve será punido quando incorrer em abuso, é evidente que o legislador infraconstitucional, ao editar a lei referida não pode punir o grevista por todo e qualquer ato que repute, a seu juízo, abusivo. O juízo de avaliação do que é abusivo deve ser feito preservando o núcleo essencial da constituição sobre o tema, que é o direito de fazer greve. E como isso será alcançado? Promovendo um juízo de razoabilidade com o objetivo de que a norma regulamentadora proporcione os meios hábeis a se alcançar os fins constitucionais (princípio da proporcionalidade pelo critério da razoabilidade).
Com essas rápidas considerações conclui-se que: os direitos fundamentais, como regra geral, podem sofrer limitações e tais ao serem exercitadas dever respeitar o princípio da proporcionalidade. Em apertada síntese: os limites impostos aos direitos fundamentais são limitados pelo princípio da proporcionalidade a fim de preservação do conteúdo nuclear da norma constitucional.
Em razão disso, se discute a possibilidade de relativização da garantia constitucional de inadmissibilidade das provas ilícitas.
Da proteção constitucional das provas ilícitas
Reza o artigo 5°, inciso LXVI, da Constituição que: “São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meio ilícito;”.
Discute-se da possibilidade ou não desse preceito constitucional ter caráter absoluto. Inicialmente façamos aqui algumas considerações sobre a terminologia constitucional.
O texto constitucional é claro e taxativo ao vedar, por completo, a utilização de provas obtidas por meio ilícito assim, não há que se falar em mitigação, abrandamento, do preceito constitucional que veda o uso de provas ilícitas. E não se argumenta, como querem alguns, que as provas ilícitas podem, em alguns casos (quando a única e quando para beneficiar o réu) possam ser utilizadas. Não. Sou da compreensão da absoluta e irrestrita inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente. Esse posicionamento não é isolado, ao contrário, encontra respaldo irrestrito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
O que muitos não compreendem talvez é a afirmação de que: a prova quando produzida para defesa própria pode ser utilizada. Sim, pode, e quando tal ocorre não se está utilizando prova ilícita, mas sim prova lícita. Ora, se se produz uma prova em legitima defesa (como é comum se ouvir) não se está admitindo uma prova ilícita em caráter excepcional, mas sim está-se a admitir uma prova lícita pela forma como foi produzida.
Explica-se:
O que é a legítima defesa que não a extração da ilicitude da conduta? Pois bem. Quando alguém produz uma prova em legítima defesa exclui-se a ilicitude para torná-la lícita. Nesta situação não há que se falar em prova ilícita admitida, mas sim em prova produzida de forma lícita e, portanto, admitida.
Outro, aliás, não é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que reiteradamente rechaça o uso de provas ilícitas e, como não poderia ser de outro modo confirma o uso de provas lícitas decorrentes de condutas que, em regra seriam ilícitas mas que ganham status de lícitas quando produzidas para uso em defesa de interesse próprio, verbis:
"EMENTA: CONSTITUCIONAL. PENAL. GRAVAÇÃO DE CONVERSA FEITA POR UM DOS INTERLOCUTORES: LICITUDE. PREQUESTIONAMENTO. Súmula 282-STF. PROVA: REEXAME EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO: IMPOSSIBILIDADE. Súmula 279-STF. I. - gravação de conversa entre dois interlocutores, feita por um deles, sem conhecimento do outro, com a finalidade de documentá-la, futuramente, em caso de negativa, nada tem de ilícita, principalmente quando constitui exercício de defesa. II. - Existência, nos autos, de provas outras não obtidas mediante gravação de conversa ou quebra de sigilo bancário. III. - A questão relativa às provas ilícitas por derivação "the fruits of the poisonous tree" não foi objeto de debate e decisão, assim não prequestionada. Incidência da Súmula 282-STF. IV. - A apreciação do RE, no caso, não prescindiria do reexame do conjunto fático-probatório, o que não é possível em recurso extraordinário. Súmula 279-STF. V. - Agravo não provido" (AI 50.367-PR, 2ª. Turma. Rel. Min. Carlos Velloso. J. 01/02/05. DJ 04/03/05.). (sem grifo no original).
Assim, é incorreto afirmar que, em alguns casos, a provas ilícitas são admitidas. Não. As provas ilícitas nunca são admitidas, e nesse contexto a norma constitucional não admite temperamentos.
E porque tal posicionamento?
Admitir que o Estado, na sua função jurisdicional, admita prova ilícitas é jogar na vala da ilegalidade e da lei da selva todos os investigados e/ou processados e, o que é mais grave, os simples suspeitos, fazendo com que a segurança jurídica dos cidadãos de bem seja colocada em plano secundário gerando inquestionável descrédito no próprio Estado que passaria a utilizar-se de provas ilicitamente produzidas colocando-se no mesmo patamar daqueles que descumprem a lei.
Em lapidar decisão proferida nos autos do RE 251.445 o ministro Celso de Mello bem abordou o tema da absoluta proscrição da provas ilícitas que, pela lucidez da manifestação, trago à colação:
“Assentadas tais premissas, devo reiterar, na linha de diversas decisões por mim proferidas no âmbito desta Corte Suprema, que ninguém pode ser denunciado, processado ou condenado com fundamento em provas ilícitas, eis que a atividade persecutória do Poder Público, também nesse domínio, está necessariamente subordinada à estrita observância de parâmetros de caráter ético-jurídico cuja transgressão só pode importar, no contexto emergente de nosso sistema normativo, na absoluta ineficácia dos meios probatórios produzidos pelo Estado. Impõe-se registrar, até mesmo como fator de expressiva conquista dos direitos instituídos em favor daqueles que sofrem a ação persecutória do Estado, a inquestionável hostilidade do ordenamento constitucional brasileiro às provas ilegítimas e às provas ilícitas. A Constituição da República, por isso mesmo, tornou inadmissíveis, no processo, as provas inquinadas de ilegitimidade ou de ilicitude.”
Assim, e ancorado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não há como defender a admissão de provas com violação da garantia constitucional que proporciona segurança jurídica ao jurisdicionado de que não poderão ser utilizadas provas produzidas de forma ilícita.
Outra coisa, porém, é utilizar-se de provas que, em princípio seriam ilícitas, mas que, conforme o modo de sua produção, tornam-se provas lícitas.
É o caso da ementa acima transcrita onde se verifica que a gravação de diálogo por um dos interlocutores, quando ou outro não tem ciência, constitui-se em prova ilícita. Perderá, no entanto, o caráter de ilicitude se essa prova for produzida para defesa própria. Veja que não estamos aqui diante de mitigação do uso de provas ilícitas, pois tal possibilidade, como visto, não existe. Trata-se aqui do uso de uma prova lícita eis que produzida em legítima defesa.
Assim, se a pessoa, na busca de preservar direito próprio promove gravação de uma conversa (telefônica ou ambiental) como meio de defesa não estará praticando nenhuma ilicitude, mas sim agindo em legítima defesa. Não seria crível que, v.g., alguém submetido a uma situação de extorsão, não possa gravar a prática delituosa para usar como prova. Ora se se pode até mesmo tirar a vida de alguém no exercício da legítima defesa, com mais razão deve ser admitida a produção da referida gravação a fim de prevenir direitos e provas para defesa futura. Nesse sentido, aliás, o entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal, verbis:
"Captação, por meio de fita magnética, de conversa entre presentes, ou seja, a chamada gravação ambiental, autorizada por um dos interlocutores, vítima de concussão, sem o conhecimento dos demais. Ilicitude da prova excluída por caracterizar-se o exercício de legítima defesa de quem a produziu. Precedentes do Supremo Tribunal HC 74.678, DJ de 15-8- 97 e HC 75.261, sessão de 24-6-97, ambos da Primeira Turma." (RE 212.081, Rel. Min. Octavio Gallotti, julgamento em 5-12-97, DJ de 27-3-98). No mesmo sentido: HC 75.338, Rel. Min. Nelson Jobim, julgamento em 11-3-98, DJ de 25-9-98.
Assim, aquele que está sendo submetido a algum constrangimento, especialmente se tal constrangimento for caracterizador de conduta ilícita, está sim autorizado a promover gravação dialógica (telefônica ou ambiental) por si ou por terceiros, desde que tal se dê para usar como instrumento de defesa e, para tal, não se exige autorização judicial, pois não se trata de interceptação telefônica de que nos fala o artigo 5°, inciso XII, in fine, da Constituição.
Estamos aqui diante de situação em que um dos interlocutores está promovendo a gravação e, portanto, não há que se falar em autorização judicial prévia. Apenas para traçar parâmetro com outras condutas, indaga-se: É possível matar alguém de forma lícita? Claro. Quando no exercício do direito de defesa. Assim, e no mesmo tirocínio, indaga-se: é possível gravar a conversa sem o consentimento de um dos interlocutores de forma lícita? Sim, desde que no exercício do direito de defesa. Para as duas indagações a regra é a ilicitude, mas o Direito de defesa torna as condutas lícitas.
Para promover a gravação da relação dialógica por um dos interlocutores (ou com o seu consentimento), não há a proteção da denominada clausula de reserva jurisdicional até porque é o próprio interlocutor quem está promovendo a gravação e para defesa de direito seu em razão de estar sendo submetido a situação caracterizadora de crime ou ao menos de constrangimento e o que se procura com a gravação é a preservação de situação probatória que não se terá outra oportunidade para sua produção.
Repita-se, no entanto, que na esteira da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, não se está aqui a sustentar o uso de prova ilícita, mas sim o uso de prova lícita que ganha esse status pelo modo de sua produção (defesa própria).

Conclusão
Assim sendo, e à guisa de conclusão, pode-se afirmar que a prova ilícita não pode ser admitida em nenhuma situação, tendo pois, a garantia constitucional insculpida no artigo 5°, inc. LVI, da Constituição, caráter absoluto.
Por outro lado, a prova que, em princípio seria ilícita, pode tornar-se lícita se for produzida em defesa própria, como é o caso da gravação da relação dialógica ambiental por um dos interlocutores (ou por terceiro mas com o seu consentimento) desde que tal prova destine-se ao exercício do direito de defesa.
Como se percebe, pois, a gravação ambiental de uma conversa por um dos interlocutores, quando os demais não tenham conhecimento, como regra geral deve ser tida como prova ilícita, contudo se a colheita dessa prova se dá no exercício do direito de defesa, é uma prova lícita, logo plenamente hábil a ser utilizada como instrumento probatório para comprovação de ilícitos praticados contra o interlocutor que promoveu ou autorizou a gravação.

*Zélio Maia da Rocha: é procurador do Distrito Federal, advogado e professor de Direito Constitucional.
fonte: CONJUR

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