domingo, 9 de setembro de 2012

TRIBUNAL DO JÚRI - Os dez mandamentos da inquirição cruzada no Júri

Em 1975, o advogado Irving Younger subiu uma montanha no Colorado e anunciou aos operadores do Direito "Os Dez Mandamentos da Inquirição Cruzada" — aquela em que o advogado ou promotor interroga a testemunha da outra parte. Desde então, a palestra do advogado, gravada em vídeo, é apresentada todos os anos aos participantes da conferência anual do Instituto Nacional de Advocacia no Tribunal do Júri, em Flagstaff Mountain, uma montanha a oeste de Boulder, no Colorado.
Como em todos os mandamentos que se prezam, há uma ameaça para quem não os cumprir, disse Younger. O advogado que não os honrar, desejará que o chão da sala do tribunal se abra e o engula, para que ele se livre para sempre do constrangimento que passou. Para que não os esqueçam, os mandamentos estão insculpidos na tábua de Younger. São eles:
  1. Seja breve;
  2. Faça perguntas curtas, com palavras fáceis de entender;
  3. Sempre faça perguntas indutoras de resposta (leading questions);
  4. Nunca faça uma pergunta cuja resposta você não saiba;
  5. Ouça a reposta da testemunha;
  6. Não discuta com a testemunha;
  7. Não permita à testemunha que repita as respostas dadas na inquirição direta;
  8. Não permita à testemunha que explique suas respostas;
  9. Não faça perguntas em demasia;
  10. Reserve o último ponto da inquirição cruzada para os argumentos finais. 
Os fatos e as testemunhas
O propósito fundamental desses mandamentos é o de controlar a testemunha, diz o advogado Ben Rubinowitz, que assina o blog Nita City, do Instituto Nacional de Advocacia no Tribunal do Júri. Como bom operador do Direito, ele interpreta os mandamentos de Younger, sem necessariamente observar a ordem em que foram enunciados:
Mandamentos 2 e 3 — Todas as perguntas devem ser curtas, com palavras fáceis de entender e indutoras de reposta. O que são perguntas "indutoras de resposta"? São perguntas em que o advogado (ou promotor) coloca as palavras na boca da testemunha. Elas são apelidadas de "óleo de rícino" (castor oil), porque esse é um remédio que sempre produz o resultado esperado. Por exemplo, se for necessário determinar que a luz do semáforo estava vermelha, o advogado (e sempre o promotor, também) não pergunta "Qual era a cor da luz do semáforo?". Em vez disso, pergunta: "A luz do semáforo estava vermelha, correto?". Esse tipo de pergunta produz um "sim" como resposta, sem maiores conjecturas por parte da testemunha.
Há desdobramentos dessa regra. O primeiro é o de que nenhuma pergunta deve conter mais do que um fato. Por exemplo, o advogado quer estabelecer que, quando a testemunha viu que o sinal estava vermelho, ela estava sentada em seu carro, ouvindo o rádio e que o carro estava parado perto da calçada. Uma pergunta longa poderia ser: "É verdade que você estava sentado em seu carro, que estava parado perto do meio-fio, com o rádio ligado, quando observou que o sinal estava vermelho?". A testemunha pode responder "sim". Mas pode também querer reordenar os fatos ou, de uma forma geral, discordar da descrição. Isso não acontece se o advogado se atém a um fato de cada vez, com perguntas curtas, indutoras de resposta "sim". Veja os exemplos abaixo:
1 — Você estava sentado em seu carro, certo?
2 — Seu carro estava parado ao lado do meio-fio, correto?
3 — O rádio estava ligado, sim ou não?
4 — E quando você estava sentado em seu carro, parado ao lado do meio-fio, com o rádio ligado, você olhou para o semáforo, correto?
5 — E a luz do farol estava vermelha, certo?
A pergunta 4 contém mais de um fato. Mas, a não ser pela última frase, todas as anteriores já foram confirmadas com um "sim". O advogado apenas relembrou aos jurados tudo o que já foi confirmado pela testemunha.
O segundo desdobramento dos mandamentos 2 e 3: o enunciado que precede a pergunta indutora de resposta não pode ter mais do que cinco palavras (sem contar conjunções, pronomes etc). O uso de perguntas curtas é a maneira mais fácil de exercer controle sobre a testemunha. Ao obter concessões para cada fato novo que é apresentado, com o propósito de chegar a um determinado objetivo, o advogado fecha as portas que possibilitariam à testemunha escapar da linha de inquirição que lhe interessa.
Usar palavras simples, fáceis de entender, por todas as pessoas nas conversações cotidianas também é uma forma eficaz de manter o controle sobre a testemunha. O advogado deve, definitivamente, evitar o uso de "juridiquês" (ou "legalês") e de qualquer tipo de jargão e terminologia erudita, que leve a inquirição para além da compreensão da testemunha ou dos jurados. Um termo mal-entendido pode levar a um "não", quando a resposta esperada é um "sim". A linguagem dos programas populares de TV é um bom exemplo de palavras do cotidiano. O advogado deve ser tão claro quanto possível para manter o controle da situação.
Mandamento 4 – Nunca faça uma pergunta cuja resposta você não saiba com antecedência.
Mandamento 6 – Não discuta com a testemunha.
Mandamento 7 – Não permita à testemunha que repita as respostas dadas na inquirição direta (a que foi feita pela parte que a arrolou).
Mandamento 8 – Não permita à testemunha que explique suas respostas. Eis as explicações:
Quando a testemunha foge do controle, o advogado começa a se sentir frustrado, constrangido. Muitas vezes, ele expressa sua frustração e constrangimento discutindo com a testemunha. Ou fazendo perguntas mais agressivas, cujas respostas ele não conhece com antecedência — e, portanto, correndo riscos desnecessários.
Por que uma testemunha escapa das rédeas curtas em que deve ser mantida? Pelos motivos já vistos, como os de não fazer perguntas curtas, com palavras simples e indutoras de respostas, e por outras razões, tais como: a) O uso de adjetivos ou de generalizações; b) O uso de frases como "você testemunhou na inquirição direta que..." ou afirmações semelhantes.
Na inquirição cruzada, os advogados tendem a levantar inconsistências e contradições no depoimento de testemunhas na inquirição direta (as testemunhas da outra parte), esperando causar um efeito devastador. Mas é preciso distinguir o que a testemunha disse ou não disse (o que não é relevante) dos fatos que ela descreveu (o que é relevante). O que não é relevante não deve ser revolvido.
Depois, mesmo em questões relevantes, é preciso considerar o perigo de perguntas que contêm frases do tipo "você testemunhou na inquirição direta que...". As respostas são imprevisíveis. A testemunha pode dar respostas como "não foi bem isso que eu disse", "não me recordo" ou "o senhor está tentando colocar palavras na minha boca". Ou responder "não", quando o esperado era um "sim".
Além do mais, o uso de frases como "você testemunhou na inquirição direta que..." pode resultar em violação do mandamento 7: "Não permita à testemunha que repita as respostas dadas na inquirição direta".
Na inquirição cruzada, a testemunha se torna, com frequência, mais agressiva e pode responder algo como: "Ah, sim, mas o que eu quis realmente dizer era...", o que viola o mandamento 8: "Não permita à testemunha que explique suas respostas". Frases como essa colocam a testemunha na defensiva — ou a tornam agressiva — o que a faz escapar do controle do inquiridor. E tendem a levar a uma discussão com a testemunha.
O uso de adjetivos ou de generalizações na formulação das perguntas também pode levar a desentendimentos ou discordâncias, que podem levar a respostas inesperadas. E, às vezes, a discussões com a testemunha. Considere essas perguntas, feitas na inquirição cruzada:
1 — O rádio estava ligado muito alto, não estava?
2 — Você o viu bem de perto, não foi?
3 — Você sempre breca forte nessas situações, não é verdade?
4 — Você fez uma investigação cuidadosa, correto?
No exemplo do rádio, a pressa em determinar que o som estava muito alto pode resultar em respostas inesperadas (em vez de "sim"), tais como: "Eu não diria muito alto"; "Depende do que se considera muito alto"; "Não necessariamente". "Para mim, é o normal" e assim por diante. A testemunha já estará fugindo do controle. Se é importante determinar para o júri que o rádio estava muito alto, o advogado deve ter paciência e chegar lá passo a passo, com perguntas que resultem em respostas "sim" — a não ser que um "não" não faça diferença. Veja o que deve ser perguntado:
– O rádio estava ligado, sim?
– Sim.
– Você sempre liga o rádio do carro?
(resposta "sim" ou "não" não faz diferença).
– Você estava ouvindo músicas, correto?
– Sim.
– Era possível ouvir a música, sim?
– Sim.
– A altura do som era boa, correto?
– Sim.
– Superava o barulho das pessoas na rua, certo?
– Sim.
– Estava acima do barulho do tráfego, verdade?
– Sim.
– Estava mais alto que o barulho das pessoas e do tráfego, correto?
– Sim.
Já é o suficiente para os jurados determinarem que o som do carro estava muito alto, correto? E a testemunha, em nenhum momento, fugiu do controle do advogado. O uso de adjetivos e generalizações abre espaço para a testemunha discordar do advogado na inquirição cruzada. E, mais que isso, indica a ela, muito cedo, aonde o advogado quer chegar, o que a predispõe a interromper o seu percurso, se puder. E isso pode levar a discussões com a testemunha.
Mandamento 9 – Não faça perguntas demais.
Mandamento 10 – Reserve o ponto fundamental para os argumentos finais. Perguntar demais é como falar demais. Pode ter o mesmo efeito desastroso. Sempre escapará alguma coisa da qual se há de arrepender. Basta uma pergunta malfeita, inapropriada, fora de hora, para abrir espaço para respostas arrasadoras. Por que advogados fazem, às vezes, esses tipos de pergunta. Pelo gosto do poder de dominar a situação e a testemunha, que já parece indefesa. E, principalmente, por excesso de confiança, que leva a descuidos. Cada pergunta deve ser pensada, calculada, medida — e indispensável. O advogado não deve fazer qualquer pergunta que não seja útil para os jurados entenderem o caso.
Reservar o ponto fundamental para os argumentos finais significa fazer a inquirição da testemunha, sobre o que é mais importante no caso, de tal forma que os jurados cheguem sozinhos à conclusão esperada pelo advogado. Isto é, em vez de resolver o enigma para os jurados nas alegações finais, o advogado pode ir oferecendo progressivamente ao júri as principais peças do caso, na apresentação das provas e da inquirição das testemunhas.
Ao final, os jurados resolvem sozinhos o enigma. Enquanto os jurados podem descartar, até com alguma facilidade, conclusões oferecidas por advogados, eles se apegam às conclusões a que chegaram por conta própria. E dificilmente abrem mão delas. O momento em que uma conclusão estala na mente do jurado é chamado pelo autor de "o momento do Eureka". Levar o jurado a chegar a uma conclusão desejável é uma arte, uma excelente técnica de persuasão, já apresentada na ConJur.
Mandamento 5 – Ouça a resposta da testemunha. Se o advogado não presta atenção nas respostas da testemunha, os jurados tão pouco, como já foi mencionado em reportagem anterior da ConJur sobre a estrela do julgamento. Além disso, uma resposta da testemunha pode fornecer ao advogado a oportunidade impagável para criar na mente dos jurados "o momento do Eureka": "Ah, então é isso!". Tudo que o advogado tem a fazer é seguir o fio da meada, para realçar a importância de um ponto fundamental, levantado pela testemunha da outra parte.
Mas muitos advogados, que pensam que já conhecem a resposta e estão pensando na próxima pergunta, deixam a oportunidade escoar pelo ralo. Normalmente, em inquirições — como em entrevistas jornalísticas — não é preciso ficar pensando na próxima pergunta, enquanto a testemunha fala, quando se presta atenção à resposta da testemunha (ou do entrevistado). A resposta pode sugerir a próxima pergunta. Veja a diferença entre essas perguntas:
– Você estava bebendo no bar, correto?
– Não sei o que o senhor quer dizer com "bebendo".
– Você tomou alguns drinques, certo?
– Não, eu tomei dois drinques.
– Você ficou bêbado, não é?
– Bêbado, não. Ao contrário.
– Você tomou muitos drinques, não é verdade?
– Se o senhor considera dois muito.
E veja essas perguntas, em que o advogado aproveita as respostas da testemunha para manter o controle da situação:

– Você estava bebendo no bar, correto?
– Não sei o que o senhor quer dizer com "bebendo".
– OK, você não sabe o que eu quero dizer com "bebendo", sabe?
– Não.
 – Mas o senhor sabe o que "beber" significa, não sabe?
– Sim.
– E você sabia o que "beber" significa em março de 1978, correto?
– Sim.
 – Você também sabe que as pessoas que bebem podem ficar bêbadas, não sabe?
– Sim.
 – E que as pessoas que ficam bêbadas podem se tornar desordeiras, correto?
– Sim.
– Você ficou bêbado e desordeiro naquela ocasião?
– Não me lembro.
– Mas você sabe que as pessoas que ficam bêbadas e desordeiras normalmente não se lembram disso, não é?
– Sim.
Não se lembrar é normal. Os operadores do Direito (e também muitos jornalistas) nunca se lembram do mandamento número 1.
Mandamento 1 – Seja breve.

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