terça-feira, 18 de setembro de 2012

As eleições municipais e o processo de democracia

As atuais eleições municipais serão sem dúvida aquelas em que a Justiça Eleitoral demonstrará o maior poder de intervenção no processo de escolha dos representantes do povo. Como sabem todos aqueles que lidam com o Direito Eleitoral em nosso país, a legislação hoje em vigor permite ao Judiciário uma ingerência no processo eleitoral absolutamente inédita em qualquer lugar do planeta.
Estudiosos do Direito Eleitoral, mesmo saudando, em unânime manifestação, o espetacular papel que a Justiça Eleitoral tem cumprido em nosso país desde que foi criada, vêm agora observando com honesta e sentida reserva o inadequado incremento das competências do Poder Judiciário no sistema eleitoral brasileiro.
O grande estudioso da democracia, Robert Dahl, vê na democracia contemporânea um sistema político dotado de seis pressupostos institucionais absolutamente simples de serem compreendidos: agentes públicos eleitos; eleições livres, justas e frequentes; liberdade de expressão; fontes de informação diversificadas; autonomia para as associações e cidadania inclusiva[1]. Como se vê, para nada disso a Justiça Eleitoral é condição indispensável. Na maior parte dos países democráticos, como se sabe, ela sequer existe. O Judiciário Eleitoral é, entretanto, uma experiência bem sucedida no caso brasileiro, mas deve ter muito cuidado para não ser vítima de suas virtudes e sucesso. Exceder naquilo deu certo é um mal muito comum aos seres humanos.
A Justiça Eleitoral hoje, não se limitando à certificação dos poderes dos candidatos vitoriosos, como sabemos todos, pode intervir e acaba intervindo no conteúdo e no próprio resultado do processo eleitoral. O magistrado eleitoral brasileiro, graças a uma jurisprudência e legislação cada vez mais ambiciosas, tem o poder não apenas de certificar os registros de candidaturas e proclamar e diplomar os eleitos, mas também de cassar mandatos alcançados com o voto popular, tornar inelegíveis os cidadãos e, inclusive, sindicar e censurar o que os candidatos podem dizer e os eleitores podem ouvir numa campanha eleitoral. Boa parte dessas funções, como é o caso do registro de candidatura, podem ser exercidas de ofício e incidem diretamente sobre alguns dos mais caros direitos fundamentais dos cidadãos. Aliás, nunca é demasiado lembrar: a capacidade de votar e a de ser candidato correspondem a direitos fundamentais dos mais prestigiados em todo mundo civilizado e democrático, não obstante sem muita cerimônia sofram, no Brasil, restrições impostas até mesmo por meros atos normativos secundários (Resoluções) da Justiça Eleitoral.
O juiz eleitoral acaba, inclusive, tendo influência mesmo do ponto de vista político sobre as eleições. Com efeito, como sabemos todos, basta a rejeição judicial, mesmo que provisória, de um registro de candidatura, ou apenas a censura a algumas veiculações de propaganda eleitoral, para que o candidato, ainda que alcance reformar definitivamente a decisão em instâncias superiores, acabe politicamente perdendo as eleições, já que o eleitor invariavelmente empresta acentuada importância às manifestações do Poder Judiciário.
Isso já seria o bastante para advertir o magistrado da extrema cautela como deve se mover com os poderes que lhe são conferidos em matéria eleitoral. Quando imaginamos que a democracia, como diz a Constituição, é um regime em que o poder emana do provo e em seu nome é exercido, fazendo-o diretamente ou por seus representantes eleitos, qualquer intervenção de qualquer órgão, seja da sociedade civil ou do Estado, no processo eleitoral, antes de tudo tem que ser observada com extremada prudência e muita reserva.
O Poder Judiciário, os promotores eleitorais, os advogados eleitorais, só podem pretender interferir na relação direta que deve existir entre o eleitor e o candidato quando isso se fizer realmente necessário. Com uma legislação tão interventiva como é a legislação que hoje disciplina as eleições, o que é reconhecido tanto por aqueles que a criticam como aqueles que a aplaudem, o medo é que assalte em todos nós, que atuamos com o direito, uma tentação de intervenção demasiada, para além, inclusive, do que já se manifesta na própria lei, de tal maneira que, ao invés de colaboramos para o processo de formação de vontade livre do povo, pois é disso que se cuida a democracia, acabemos por comprometer essa mesma liberdade do eleitor, que é quem, afinal de contas, numa democracia, deve ter a última palavra.
Como professor de Direito Constitucional e tendo sido professor de Direito Eleitoral por muitos anos, tenho insistido com meus alunos com o fato de que os protagonistas do processo democrático hão de ser, sempre e sempre, o candidato e eleitor. A Constituição não quer juiz, nem advogado, ou promotor, protagonizando processo eleitoral.
Dias desses li num órgão de comunicação social que quem quisesse vencer as próximas eleições deveria contratar um bom advogado. Infelizmente, suspeito que o diagnóstico seja correto, pois, tudo, no processo eleitoral brasileiro, vai-se confiando ao Poder Judiciário. Quem bem observar o Direito Eleitoral em nosso país irá concluir que, por trás de uma retórica de sacralização do eleitor, o que se vem verificando desde sempre é uma enorme desconfiança com a sua capacidade de proceder à melhor escolha possível. Essa desconfiança, por óbvio, não se pode manifestar abertamente por autoridades públicas, porquanto absolutamente contrária aos desígnios da nossa democrática Constituição de 1988. Mas, fora dos acontecimentos oficiais, escuta-se aqui e ali que uma intervenção judicial nas eleições é benéfica para o Brasil, pois o eleitor não sabe votar.
Aliás, a desconfiança com o eleitor comum sequer é nova e se insere numa vetusta tradição em que se busca contrapor as supostas misérias da democracia, na qual prepondera o cidadão comum, às supostas qualidades da aristocracia (que pode ser o partido único dos países socialistas, ou, no caso brasileiro, como muitos acreditam, o Poder Judiciário), aristocracia sempre tida por bem informada, detentora da verdade e de qualidades extraordinárias. O problema é que os fatos, sempre teimosos, não se revelam assim como planejado.
Noberto Bobbio, na sua Teoria das Formas de Governo, refere a discussão relatada por Heródoto, na sua História (Livro III, §§ 80-82), entre três persas - Otanes, Megabises e Dario, o que pode ter sido a origem da discussão sobre a tipologia das melhores formas em que os homens poderiam ser governados. Segundo o grande mestre italiano, o episódio teria ocorrido na segunda metade do século VI antes de Cristo, mas o narrador, Heródoto, escreve no século seguinte.
Do que aqui me interessa é o registro, já ali, de uma longa tradição de desconfiança em relação à capacidade do povo de escolher livremente seus governantes, pois suspeito que boa parte da legislação que confere a juízes, promotores e advogados o poder de intervir no resultado do processo eleitoral, muito se deve a essa antiga tradição de uma inaceitável suspeita em relação à capacidade do eleitor de, livremente, formar a sua vontade no processo eleitoral. Paradoxalmente, confere-se poder de intervenção judicial nas eleições para que o eleitor possa decidir de forma livre. Obviamente, quando se incrementa em excesso essa intervenção, nem é o eleitor quem decide nem muito menos de forma livre. Mas voltando à narrativa de Heródoto, já ali se registra, na opinião de Megabises, a suspeita com relação à capacidade do regime democrático em encontrar os mais qualificados para o governo, ao mesmo tempo em que se deposita uma quase infinita fé em confiar nossos destinos a alguma espécie de aristocracia, em que os melhores fossem chamados a governar (cito):
Megabises: A massa inepta é obtusa e prepotente; nisto nada se lhe compara. De nenhuma forma se deve tolerar que, para escapar da prepotência de um tirano, se caía sob a da plebe desatinada. Tudo o que faz, o tirano faz conscientemente; mas o povo não tem sequer a possibilidade de saber o que faz. Como poderia sabê-lo, se nunca aprendeu nada de bom e de útil, se não conhece nada disso, mas arrasta indistintamente tudo o que encontra no seu caminho? Que os que querem mal aos persas adotem o partido democrático; quanto a nós, entregaríamos o poder a um grupo de homens escolhidos dentre os melhores - e estaríamos entre eles. É natural que as melhores decisões sejam tomadas pelos que são melhores (N. Bobbio. A teoria das formas de governo. Trad. Sérgio Bath, Brasilia: UnB, 10 ªed.).
Ora, nada justifica a crença em regimes aristocráticos e muito menos a descrença no eleitor e, respectivamente, nas qualidades da democracia.
Segundo Ulrich Preuβ, a superioridade normativa da democracia sobre as outras formas de poder assenta-se precisamente na ideia de que o domínio apenas pode ser considerado legítimo quando ele está a serviço da vontade daqueles que são dominados, sendo por eles, direta ou indiretamente, exercido[2]. A ideia básica de que é possível compatibilizar liberdade e domínio é apenas constitutiva e característica da singularidade do modelo de domínio democrático. Outras concepções de domínio, é certo, fazem variadas promessas de salvação e com isso fundamentam a necessidade da mais profunda subordinação do indivíduo às exigências daquele plano de salvação – mas só a democracia é um modelo de autodomínio dos seres humanos. Essa qualidade única, contudo, faz da democracia suscetível, é certo, em modo muito específico, às fraquezas da natureza humana[3].
Outras formas de poder (teocracia, monarquia, aristocracia, ditadura) prometem exercer o domínio através de indivíduos especialmente qualificados (santos, homens ungidos por Deus, guerreiros, sábios e outros indivíduos com qualidades da mesma extraordinária estatura). A democracia não. Ela se contenta e promete exercer o poder através do “ordinary man”, ou seja, seu funcionamento baseia-se na intelectualidade e na moral do homem comum, ou no dizer, de Ulrich Preuβ, a democracia, diversamente dos demais sistemas de domínio, sustenta humildemente o seu funcionamento na mediocridade do ser humano (Durchschnittlichkeit der menschen)[4].
Portanto, como na democracia o funcionamento do poder não se assenta, de saída, em nenhuma espécie de super-homem, de qualidades excepcionais, muitos acreditam que, desconsiderando-se o acaso ou a sorte, apenas por uma conformação institucional extremamente hábil é que se poderá esperar que o poder acabe exercido por pessoas especialmente qualificadas. Entretanto, como se sabe, a queixa que se ouve de regra sobre um suposto fracasso da democracia funda-se basicamente na suspeita de que até agora não se conseguiu encontrar um sistema eleitoral ou mecanismo seguro de ordem a assegurar que o domínio democrático traga para o exercício do poder as pessoas mais qualificadas. Mas será que essa suspeita corresponde aos fatos? Será mesmo que a democracia falha onde os demais regimes se mostram vitoriosos? Provavelmente, não!!
O que se vê em toda parte é que, na sua modéstia, de não prometer mais do que o exercício do poder pelo homem comum, a democracia vai se revelando muito melhor sucedida do que todos os demais sistemas, que trazem como promessa governantes extraordinariamente bem preparados. Com efeito, basta um olhar superficial pela realidade para se constatar que os países democráticos lograram trazer muito mais benefícios e felicidade aos seus povos.
Como se sabe, os regimes totalitários e autocráticos e ditaturas de todos os tipos, mascarando-se ou não como regimes democráticos, não têm pejo em anunciar a certeza de que o governo é ali exercido pelos melhores, ao incrível fundamento de que o seu sistema de poder assenta-se em mecanismos de filtros e controles especialmente bem dispostos (que podem envolver até a manifestação de Deus, como no caso das monarquias absolutas que se autolegitimavam num sistema de sucessão hereditária certificada por uma suposta escolha divina).
A democracia, ao contrário, pressupõe a humildade de confiar o poder, como já se disse, à Sua Excelência, ao eleitor, ou seja, ao cidadão comum. Nela, certamente, todos também têm a expectativa de que, ao final, o poder seja entregue aos melhores capacitados na sociedade, mas isso não é o fundamental para que a escolha seja considerada funcional no regime democrático. O que importa é que, disputando-se as eleições com máximo de igualdade e liberdade, os cidadãos, os homens comuns, em sua maioria, tenham a palavra final.
Aqueles que buscam e esperam, com a institucionalização de filtros e controles cada vez mais sofisticados, a segurança de que a democracia ou qualquer outro regime possa oferecer a certeza dos melhores, desconhecem a natureza das instituições humanas.
Nenhuma instituição humana pode pretender a perfeição do governo das coisas e dos homens. Ninguém o conseguiu: nem o partido único do regime burocrático - socialista, nem o Reich dos mil anos de Hitler , nem o rei filósofo de Platão. Suspeito que o Poder Judiciário, no Brasil, também não o conseguirá.
Aliás, onde essa ideia de perfeição e pureza nos negócios humanos foi levada muito a sério desaguou-se em ditaduras e totalitarismo. Na sua esplêndida obra, A sociedade aberta e seus inimigos, a tônica de Karl Popper é a de demonstrar que todo aquele que, cuidando de organizar o poder, anuncia a perfeição na terra dos homens acaba entregando autocracia ou totalitarismo de algum gênero. O primeiro deles, como se sabe, foi Platão e o seu rei filósofo. Do que dele restou, deixo, para terminar, a crítica do grande Karl Popper[5]:
Que monumento de pequenez humana é essa ideia do rei filósofo! Que Contraste entre ela e a simplicidade e humanidade de Sócrates, que advertia o estadista contra o perigo de deixar-se deslumbrar por seu próprio poder, excelência e sabedoria, e que tentava ensinar-lhe o que mais importa: o fato de sermos, todos, frágeis seres humanos! E como se desce, desse mundo de ironia e razão e veracidade, ao reinado do sábio de Platão, cujos poderes mágicos o elevam muito acima dos homens comuns, embora não tão alto que dispense o uso de mentiras ou despreze o triste mercado de cada curandeiro, a venda de feitiços, de encantamentos criadores de raça, em troca de poder sobre seus concidadãos”.

[1] R. Dahl. Sobre a democracia. Brasilia: UnB, 2009, p. 47 ss.
[2] Ulrich Preuβ. Die Bedeutung kognitiver und moralischer Lernfähigkeit für Demokratie, in Demokratisierung der Demokratie. Frankfurt: Campus Verlag, 2003, p. 259 ss.
[3] Ulrich Preuβ. Die Bedeutung kognitiver und moralischer Lernfähigkeit für Demokratie, ibdem.
[4] Ulrich Preuβ. Die Bedeutung kognitiver und moralischer Lernfähigkeit für Demokratie, p. 260.
[5] K. Popper. A sociedade aberta e seus inimigos. Trad. Milton Amado. BH: Itatiaia; SP: Edusp, 1987, p. 173.
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.

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