domingo, 23 de setembro de 2012

Estelionato é tipo de diversas formas de corrupção

Não há como pensar em estelionato sem que rapidamente venha à mente um comportamento malicioso e envolvente. É o delito que se diferencia dos demais pela inteligência com que é cometido.
Certa oportunidade fui atender no Presídio Central de Porto Alegre um caso de estelionato em que a pessoa tinha 13 processos do mesmo tipo penal por fraudes em compra e venda de imóveis. Confessou ser o autor e, após uma conversa, passei para ele uma procuração. Nesse momento vi que não sabia escrever, sequer assinar o nome.
Eu lembro que parei, guardei toda documentação sem assinatura e perguntei quem ele estava tentando defender ou esconder. Demorou para reconhecer, mas disse que era o irmão dele, e me perguntou como eu havia descoberto. Eu respondi que estelionato não combinava com ele pelo fato de ele ser analfabeto, pois exigia algum requinte intelectual.
Nelson Hungria entendia que algumas fraudes são reconhecíveis a olho nu como infração penal, e a parva calliditas, que se abriga à sombra de uma proclamada naturalis licentia decipiendi. Há uma sutileza daquela gente inteligente que sabe tangenciar a lei penal e constitui a legião dos “criminosos astutos e afortunados” , nas próprias palavras do Mestre.
Não rara a jurisprudência que faz referência à falsa compreensão da realidade pela vítima e que o tipo penal se consubstancia após a conquista da confiança das vítimas. A conduta a ser analisada precisa para ser bem compreendida. Para tanto, é preciso ser bem demonstrada e provada, o que é bastante complicado, porque a habilidade do estelionatário em deixar poucas provas e sua sensibilidade de perceber mudanças de ambiente contribuem para esta realidade. Tanto isto é verdade que fica bem retratado nos casos que chegam ao judiciário:
PROVA. ESTELIONATO. PALAVRA DA VÍTIMA. VALOR. Em termos de prova convincente, a palavra da vítima, evidentemente, prepondera sobre a do réu. Esta preponderância resulta do fato de que uma pessoa, sem desvios de personalidade, não irá apontar desconhecido como autor de um delito, quando isto não ocorreu. E quem é acusado, em geral, procura fugir da responsabilidade de seu ato. Tratando-se de pessoa idônea, sem qualquer animosidade contra o agente, não se poderá imaginar que ela vá mentir em Juízo e acusar um inocente. No caso, as declarações das vítimas informam e convencem sobre o estelionato denunciado e seu co-autor, o ora apelante. E suas palavras receberam o apoio de testemunhas que presenciaram a preparação golpe praticado contra as primeiras. DECISÃO: Apelo defensivo desprovido. Unânime. (Apelação Crime 70010806800, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sylvio Baptista Neto, Julgado em 05/05/2005)
Todo segredo está precisamente na dissimulação de si mesma, imitando intenções honestas. O estelionato se opera, pois, com a fraude. Dos julgados estudados para este artigo a grande maioria dos agentes de alguma forma usou de maneira equivocada o artifício e o ardil, daí ser processado.
Tanto Hungria quanto Noronha, que usamos para também nomear para tantos outros autores que os seguiram, são categóricos ao afirmar que o artificio e o ardil são espécies do gênero meio fraudulento. Se os Tribunais vem entendendo até o silêncio como meio fraudulento, todo meio é valido se a intenção maliciosa é réplica aparente das intenções honestas, como já afirmado antes. Importa, pois, o dolo, a intenção de mascarar.
Nesta mesma linha e entre os autores mais modernos, o Dr. Cezar R. Bitencourt também considera que artifício e ardil são expressões genéricas, entende ainda desnecessário se fazer a precisão de conceito, pois são meramente exemplificativos da fraude penal.
Fazendo uma análise rápida sobre a vantagem ilícita e o prejuízo alheio, fica claro para quem lê que havendo a vantagem ilícita e não havendo o prejuízo alheio não há crime. Um não existe sem o outro para fins de tipificação de estelionato.
Exemplificamos:
APELAÇÃO CRIMINAL. ESTELIONATO. RIFA IRREGULAR. NOVA CONFECÇÃO DE CARTELAS E AGENDAMENTO DE DATA DE SORTEIO E PREMIAÇÃO, APÓS JÁ TER OCORRIDO SORTEIO E PREMIAÇÃO, EM RIFA DE CUNHO SOCIAL, PARA AQUISIÇÃO DE TRICICLO MOTORIZADO À DEFICIENTE FÍSICO. DOLO EVIDENCIADO. SENTENÇA CONDENATÓRIA MANTIDA. DOSIMETRIA DA PENA ALTERADA. Dolo de estelionato evidenciado. A simples extração de cartelas de rifa e premiação em sorteio, mesmo irregular, não caracteriza por si só estelionato, se não há intenção de auferir vantagem ilícita, em detrimento dos compradores das respectivas rifas, mas há estelionato se após a venda de números, sorteio e premiação, o réu agenda nova data para sorteio e continua vendendo as rifas, ocultando, propositalmente dos compradores, que o beneficiário já havia adquirido o triciclo motorizado e estava encerrada a premiação. Dolo evidenciado, pela forma pela qual se conduziu o réu, buscando auferir lucro na perpetuação da venda das rifas, tendo em vista que comissionado. Dosimetria da pena alterada. Revaloração das circunstâncias judiciais e redução das penas imposta. Inadmissibilidade de substituição, tendo em vista que o réu é reincidente em crime doloso (artigos 44, II e 77, II, ambos do Código Penal). APELO DEFENSIVO PARCIALMENTE PROVIDO. UNÂNIME. (Apelação Crime Nº 70045216520, Sexta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ícaro Carvalho de Bem Osório, Julgado em 30/08/2012)
Resta ainda uma análise do prejuízo causado, que precisa acompanhar os tempos atuais. Não podemos negar que o binômio, vantagem ilícita e prejuízo alheio tem que evoluir. Há que entender que uma empresa que é vitima de estelionato, de corrupção privada, causa danos irreparáveis quando de capital aberto, por exemplo.
Este crime é tão comum que, no meio corporativo, por exemplo, vemos diversas formas de fraudes que a empresa sofre. Uma mais atual é, por exemplo, o falso relatório de vendas para angariar bônus de final de ano. A fraude está na antecipação, e se dá apenas no papel, pois na realidade não aconteceu a venda. A empresa paga bônus por uma meta que não alcançou.
Esse avanço do estelionato dito corporativo é fato alarmante, mas fica fácil de ser identificado com a difusão rápida de boas regras de compliance: indicador mais do que suficiente para mostrar que as coisas não vão bem em determinado setor.
No que tange às fraudes corporativas, sabemos que na França e na Holanda, a corrupção privada é tratada como caso a ser resolvido no âmbito do Direito do Trabalho.
Não podemos negar, também, que atinge a marca da empresa e sua credibilidade junto ao público consumidor, fiel ou não. Há um mercado em potencial a ser conquistado que pode causar lesões patrimoniais sem precedentes.
Por tudo até dito resta claro, portanto, que diversas formas de corrupção no setor privado tem tipificação no estelionato. Não precisando de mais tipos penais para serem satisfeitos.

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