sexta-feira, 20 de agosto de 2010

ARMA DE FOGO DESMUNICIADA: É CRIME?

POR: LUIZ FLÁVIO GOMES
- Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP, Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG e Co-coordenador dos cursos de pós-graduação transmitidos por ela. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Twitter: www.twitter.com/ProfessorLFG. Blog: www.blogdolfg.com.br - Pesquisadora: Christiane de O. Parisi Infante.

Em 06 de agosto de 2010 o site do Supremo Tribunal Federal (STF) destacou decisão do Ministro Gilmar Mendes nos autos do HC 104.410 (STF, HC 104.410, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 30.06.2010). Eis a notícia:

Supremo suspende ato do STJ que manteve condenação de agricultor por porte de arma desmuniciada

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que manteve condenação de primeira instância ao agricultor gaúcho A.L. Ele foi condenado à pena de 15 dias de prisão pelo crime de vias de fato (artigo 21, da Lei de Contravenções Penais) e a um ano de detenção pelo crime de porte de arma de fogo (artigo 10, caput, da Lei 9.347/97), substituída por pena restritiva de direito.

(...)

O caso

Na denúncia oferecida pelo Ministério Público (MP) contra o agricultor consta que, no dia 15 de fevereiro de 2003, ele praticou vias de fato contra outra pessoa, em um bar. A polícia foi chamada, mas ao chegar não encontrou mais os envolvidos na briga.

Informada quanto ao veículo utilizado pelo agressor, a polícia encontrou o veículo estacionado e, em seu banco traseiro, uma arma calibre 32, enrolada em uma camisa. O próprio agricultor, localizado posteriormente, assumiu a propriedade da arma sem registro, admitindo também não ter autorização para portá-la.

Decisão

“Em um juízo preliminar, considero plausível a pretensão da defesa, por estar em consonância com vários julgados deste STF”, disse o ministro Gilmar Mendes, ao citar o Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) 81057. Ainda no mesmo sentido menciono recente julgado da Segunda Turma da Corte, o HC 99449.

Assim, sem prejuízo de reexame da matéria, a ministra (sic) deferiu pedido de medida liminar para suspender, até o julgamento final do presente habeas corpus, a eficácia do acórdão proferido pelo STJ nos autos de Recurso Especial. Posteriormente, os autos serão encaminhados para a Procuradoria-Geral da República (PGR), para parecer.

Fonte: www.stf.jus.br, 06 ago. 2010.

A função do Direito penal é a proteção de bens jurídicos relevantes diante de ataques concretos e intoleráveis (essa é a premissa da nossa teoria constitucionalista do delito). Para que se justifique a tipificação penal de uma conduta é necessário verificar se houve (ou não) lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico protegido (desvalor do resultado jurídico).

Para os que entendem que a arma de fogo desmuniciada possui potencialidade lesiva concreta bastaria a ação (desvalor da ação) para a configuração do crime, pois cuidaria de perigo abstrato.

O crime (portar arma de fogo), no plano formal, é de mera conduta. No plano jurídico-material é um crime de perigo (perigo de lesão). Por força do princípio da ofensividade, sem a comprovação efetiva do perigo (concreto) não existe crime.

O bem jurídico protegido é a incolumidade pública (de forma direta) assim como bens jurídicos pessoais tais como a vida, integridade física etc. (de forma indireta). A arma de fogo (municiada ou desmuniciada) tem poder de intimidação, mas no caso da arma de fogo o perigo concreto exige: (a) idoneidade ofensiva da arma e (b) disponibilidade de uso.

Arma desmuniciada não provoca risco concreto para ninguém, logo não serve para a configuração do delito (isolado, de porte de arma). Ela serve para intimidar (e é por isso que pode configurar o delito de roubo, quando usada no contexto de uma subtração).

Para Verônica Correia Canal não se justifica a tipificação do porte de arma desmuniciada ou a posse de munição: “uma vez compreendido na tipicidade material a verificação de ausência efetiva e concreta da lesão ao bem jurídico do fato punível, esta conduta não será materialmente típica, excluindo a própria tipicidade”.

André Luiz Martins entende que inexiste lesividade jurídica na arma desmuniciada e defende que a punição adequada para o caso é a administrativa.

Em julgamento ocorrido em 11 de maio de 2010 o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela irrelevância do fato de a arma de fogo estar ou não desmuniciada para afastar a incidência da causa de aumento de pena prevista no art. 157, § 2º, I, do Código Penal (CP).

O relator destacou diversos argumentos em defesa de sua tese: - que a qualidade de potencial lesivo integra a própria natureza do artefato; - que a causa de aumento de pena traduz a mensuração de culpabilidade; - que independentemente de estar carregada ou não, a própria arma pode ser usada como instrumento para causar lesões físicas. E concluiu: “Fundamental é a conseqüência gerada no ânimo da vítima. (...) Em tal circunstância, para afastar a incidência da sanção, cumpriria comprovar que ela não influenciou no ânimo do sujeito passivo”.

No mesmo sentido decidiu o STF no julgamento do HC 96.072/RJ. O relator recordou que: - o tipo previsto no art. 10 da Lei 9.437/97 (revogado pela Lei 10.826/03) não fazia qualquer registro quanto à necessidade de se aferir o seu potencial de lesividade; - o art. 14 do Estatuto do Desarmamento tipificou criminalmente a simples conduta de portar munição (a qual, sem a arma, não possui potencial lesivo) e – as Leis n. 9.437/97 e n. 10.826/03 visaram garantir a segurança da coletividade.

O Ministro Ricardo Lewandowski concluiu que: “O tipo penal de perigo abstrato, no caso sob exame, visa a impedir que sejam praticadas certas condutas antes da ocorrência de qualquer resultado lesivo, garantindo, assim, de forma mais eficaz, a proteção de um dos bens mais valiosos do ser humano, que é a sua própria vida”. A proteção pode ser mais “eficaz”, mas também é flagrantemente inconstitucional (porque o perigo abstrato viola o princípio da ofensividade, na medida em que antecipa a tutela penal exageradamente). Esse tipo de Vorfeldcriminalizierung conflito com a concepção constitucionalista do delito.

Assim, para os defensores dessa posição, a hipótese é de crime de perigo abstrato, para o qual não importa o resultado concreto.

Em sentido diverso entendeu a Segunda Turma do STF (vencida a Min. Ellen Gracie) apreciando habeas corpus no qual se discutia se o porte de arma de fogo desmuniciada e enferrujada configura, ou não, o crime tipificado no art. 14 da Lei 10.826/03. Segundo o Min. Eros Grau não é possível caracterizar como crime o porte ilegal de arma desmuniciada não submetida a exame pericial para atestar, ou não, sua potencialidade lesiva.

Em julgamento no qual se discutia sobre a incriminação (ou não), à luz do art. 10, caput, e inciso IV, da Lei 9.437/97, do fato de o agente, portador de condenação anterior por crime contra o patrimônio, trazer consigo, à cintura, arma de fogo desmuniciada, foi feita distinção de duas situações, à luz do princípio da disponibilidade:

(...) (1) se o agente traz consigo a arma desmuniciada, mas tem a munição adequada à mão, de modo a viabilizar sem demora significativa o municiamento e, em conseqüência, o eventual disparo, tem-se arma disponível e o fato realiza o tipo; (2) ao contrário, se a munição não existe ou está em lugar inacessível de imediato, não há a imprescindível disponibilidade da arma de fogo, como tal - isto é, como artefato idôneo a produzir disparo - e, por isso, não se realiza a figura típica.

Não devemos confundir poder de intimidação (da arma desmuniciada ou de brinquedo) com potencialidade lesiva. Resta evidenciado que não há potencialidade lesiva concreta na arma desmuniciada. Entender de outra forma implicaria em violação ao princípio da ofensividade e desrespeito ao caráter fragmentário e subsidiário do Direito penal.

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