quinta-feira, 5 de julho de 2012

Não é razoável equiparar lavagem de dinheiro ao homicídio




As recentes alterações aprovadas na Lei 9.613/98 pelo Congresso Nacional (PLS 209/03) encontram-se submetidas à sanção da Presidência da República. Dentre os diversos pontos polêmicos observados no texto final, não pode passar despercebido o aumento da pena incidente para o delito. A sanção penal, que antes já era exagerada, agora ganha contornos de evidente excesso legislativo. A pena máxima foi elevada para 18 anos de reclusão. Se houver reiteração delitiva (muito frequente, diga-se de passagem), poderá ser exasperada em até 2/3 (§ 4° do art. 1°). Ou seja: a pena máxima abstrata prevista para hipóteses tais pode atingir 30 anos, a mesma de um homicídio qualificado (art. 121, § 2°), de um latrocínio (art. 157, § 3°) ou de uma extorsão mediante sequestro com morte (art. 159, § 3°).
Tenhamos presentes algumas premissas básicas: não ignoramos a legitimidade da criminalização da lavagem de dinheiro, tampouco a necessidade de uma intervenção penal inteligente e efetiva. Mas há um longo caminho a ser percorrido para aceitarmos que tais premissas possam nos conduzir, necessariamente, a um recrudescimento da sanção penal prevista para o delito. Nem mesmo convenções internacionais (Palermo e Mérida, por exemplo) ou recomendações de organismos internacionais (Gafi, por exemplo) podem ser avocadas, ipso factu, para justificarem o aumento da pena.
Uma rápida comparação com as penas previstas para o delito de lavagem de dinheiro na legislação comparada, inclusive de outros países que também assumiram semelhantes compromissos internacionais relacionados ao tema, pode nos trazer gratas surpresas.
Na Europa: 3 meses a 5 anos é a pena da lavagem de dinheiro na Alemanha (§ 261 do StGB); 6 meses a 6 anos na Espanha (art. 301 do CP); 6 meses a 5 anos em Portugal (art. 368-A do CP); 15 dias a 5 anos na Bélgica (art. 505 do CP); 5 anos ou 10 anos (cfe. a hipótese delitiva) na França (arts. 324-1/324-2 do CP); 4 a 12 anos na Itália (art. 648-bis do CP); 3 anos ou multa e 5 anos ou multa (quando grave) na Suíça (art. 305-bis/305-ter do CP).
Na América Latina: o México aprovou em maio de 2012 uma recente reforma nos crimes de lavagem de dinheiro, prevendo as penas de 3 meses a 3 anos para o encubrimiento, e de 5 a 15 anos para operaciones com recursos de procedência ilícita (arts. 400/400-bis do CP); na Argentina, recente alteração legislativa (Ley 26.683/2011) atribuiu a pena de 3 a 10 anos de prisão (art. 303 do CP).
Portanto, o Brasil já possuía, na redação original da Lei 9.613/98, uma pena privativa de liberdade muito além do que era exigido pela política criminal internacional. Agora, o aumento da pena máxima de 15 para 18 anos atinge níveis intoleráveis — ainda mais se considerarmos que o combo do legislador também prevê a exclusão da exigência de crime antecedente e a possibilidade de branqueamento de valores procedentes de contravenções penais.
A pena máxima de 18 anos é próxima da pena máxima do homicídio (20 anos — art. 121 do CP). Um delito de lavagem de dinheiro é de especial gravidade. Não contestamos isso. Mas aceitarmos que a sua gravidade, em abstrato, possa ser bastante próxima à prevista para a tutela penal do direito mais fundamental dentre todos os fundamentais (o direito à vida) é um demasiado excesso.
O paralelo entre as penas do homicídio e da lavagem de dinheiro no direito comparado também é um importante recurso para percebermos o exagero tupiniquim.
Na Alemanha, a pena máxima da lavagem de dinheiro (5 anos) equivale à pena mínima do crime de homicídio (§ 212 do StGB). Na Espanha, onde a pena máxima da lavagem de dinheiro é de 6 anos, o homicídio é punido com a pena de 10 a 15 anos (art. 138 do CP). Na Itália, a pena máxima da lavagem é de 12 anos, enquanto o homicídio possui apenamento mínimo em 20 anos. Por fim, em Portugal, o homicídio (art. 131 do CP) possui pena de 8 a 16 anos, bem maior que a sanção da lavagem (6 meses a 5 anos).
Ou seja: em todos esses países, a punição do branqueamento, a despeito de severa, fica muito aquém das sanções penais previstas para crimes capitais. No Brasil, a pena mínima da lavagem (3 anos), com boa vontade, até pode ser reputada válida diante da pena mínima de um homicídio (6 anos). Mas a mesma proporção não foi seguida quanto à pena máxima de ambos os crimes, que quase se equivalem.
Inúmeros outros argumentos poderiam se somar para chegarmos à conclusão de que o PLS 209/03, também no que tange ao aumento da pena prevista para o tipo penal do artigo 1° da Lei 9.613/98, é inconstitucional, porquanto ofensivo ao princípio da proporcionalidade. O legislador foi muito além de qualquer critério de razoabilidade conferido para o legítimo exercício da discricionariedade legislativa.
Havendo o excesso, é função do Poder Judiciário, caso aprovado o projeto de lei, decretar a inconstitucionalidade do aumento da pena. Lembremos que o assunto não é novo: o ministro Celso de Mello, nos autos do HC 92.525, ao verificar que a alteração legislativa (Lei 9.426/96) promovida no artigo 180 do Código Penal puniu de forma mais severa a receptação por dolo eventual do que a praticada por dolo direto, suspendeu cautelarmente a eficácia da condenação do paciente como incurso na sanção do parágrafo 1° do artigo 180, haja vista a flagrante inconstitucionalidade em que incorreu o legislador.

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