sábado, 9 de novembro de 2013

Valor venal não se confunde com valor econômico do imóvel

O tempo ensina-nos que tratar de temas polêmicos exige alguns cuidados. Desta feita o primeiro exercício que nos obrigamos é mantermos firmes os calços no terreno da técnica, restringindo assim a linguagem quanto a qualquer tipo de digressão acerca de critérios políticos; assim não adentraremos as estranhezas de alguns, quanto à votação da matéria relativa ao IPTU paulista na Casa Legislativa Municipal, por entender que critérios afeitos à matéria política devem ser discutidos em campo sobre o qual não pretendemos refletir nestas breves linhas.
A carga tributária em nosso país como sabido é escorchante. Segundo o último estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), em média são 148 dias por ano de trabalho para pagar tributos. Em 2014 os paulistas terão uma missão ainda maior, o IPTU da cidade fora majorado para alíquotas máximas de 25% para imóveis residenciais e 35% para imóveis comerciais.
Algumas entidades, dentre elas minha amada OAB-SP se insurgiram de forma muito importante chegando a enviar ofícios ao Prefeito de São Paulo, clamando por “princípios” riquíssimos da ordem jurídica; dentre eles a interpretação do imposto conforme a função social da propriedade e a vedação da utilização de exações tributárias com efeito de confisco.
Sobre tal estrada é que pretendemos tecer alguns comentários, não dotados de paixão, tampouco ódio, no máximo certo inconformismo com a excrescência que vem norteando o sistema tributário nacional.
O IPTU como todo tributo tem sua gênese na Constituição da República. Está lá cravado no artigo 156, I da Carta Magna a possibilidade do Município tributar as hipóteses de incidência tributária decorrente do fato de ser o contribuinte proprietário de imóvel urbano. Evidentemente que a competência tributária é indiscutível por parte do Município; todavia não está este desobrigado da observância de todo plexo constitucional envolto no tema: eis o início da celeuma.
Seria lícito o aumento da carga tributária correspondente ao IPTU nos percentuais propostos – que se diga varia muito, desde a diminuição da alíquota até o atingimento do máximo proposto – sem que houvesse o ferimento de princípios e regras constitucionais sensíveis e que merecem a reprimenda judicial?
A forma de fixação do reajustamento do IPTU por alguns municípios deu origem à Súmula 160 do Superior Tribunal de Justiça, que narra: “É defeso, ao município atualizar o IPTU, mediante decreto, em percentual superior ao índice oficial de correção monetária”.
A discussão à época de edição da Súmula do STJ girava em torno da possibilidade do IPTU ser majorado por simples decreto – ato privativo do executivo sem a tramitação pelo legislativo municipal – ou se seria necessário todo tramite legislativo relativo às leis. Todavia o que chamava atenção nos Recursos Especiais que deram azo à Súmula foi a motivação do Executivo de alguns estados – cite-se Rio Grande Do Sul, Mato Grosso do Sul, Ceará – vez que afirmavam que se tratava apenas de reajuste do valor venal do imóvel, inclusive com ares de reposição.
A legalidade restrita, que é um princípio regente em matéria tributária, obstou – como deveria ter feito de fato – qualquer tipo de interpretação extensiva ou analógica tanto da regra contida no Código Tributário Nacional como do próprio texto constitucional; assim se pronunciando o STJ fixando entendimento da matéria na Súmula precitada.
animus hoje em dia por parte do Poder Executivo é que traz grande similitude, qual seja: uma releitura do valor venal do imóvel. Resta-nos então saber se é possível um aumento de uma só tungada de percentuais que fariam qualquer país desenvolvido passar por verdadeira revolução social, especialmente pela progressão prevista para os próximos anos; há na verdade uma tentativa de mitigação de um reajuste muito maior, ainda que seja conhecido o mecanismo de trava e seus não menos exorbitantes percentuais.
A Constituição Federal traz vedação da utilização de tributos com função confiscatória. O texto do artigo 150, IV da Magna Carta está inserido no contexto das limitações do Poder de Tributar, e o Capítulo neste caso é importante para chegarmos a uma interpretação do texto, dentro do contexto para não corremos o risco que se transforme em pretexto.
Como dito o contexto do capítulo da Constituição é aquele atinente às “limitações” do ente tributante; assim só é passível de limite função de visivelmente exorbite os estreitos limites legais impostos ao Estado, especialmente quando sua atuação impedir o livre exercício de um direito individual, no caso em comento especialmente a propriedade privada.
Traçando um paralelo sobre o que seria exorbitante, e com a promessa de retornarmos ao tema com uma tomada de posição sobre o assunto, em recente decisão na Ação Direta de Inconstitucionalidade o Supremo Tribunal Federal afastou a incidência de uma multa aplicada sobre questão atinente ao ICMS aplicada na proporção de 25%. A decisão do Decano Celso de Melo na ADI 1.075-MC traz algumas importantes lições que tomamos por análise para a conclusão relativa ao IPTU.
A primeira é de que o Supremo Tribunal Federal deu conta de uma interpretação extensiva à regra do “não confisco” prevista no texto constitucional, aplicando-a as multas e não somente aos tributos, como dito literalmente no texto constitucional. Tal situação se mostra muitíssimo acertada na medida em que já chegamos a conviver com multas por atraso na ordem de 500, 300 ou 100%; um verdadeiro achaque. Daí se extrai que o conceito de confisco – que se diga não encontra definitividade no ordenamento jurídico – comporta uma carga de subjetividade do julgador ao aplicá-lo.
Levando-se em conta o “pacote” estaríamos frente a uma situação do IPTU de aumento real insustentável em alguns bairros. Volto a dizer que nossa discussão não é em relação a uma ou outra alíquota e sim quanto aos aspectos legais da tomada de decisão.
A valorização imobiliária é algo sensível. Todavia quanto tempo dura tal fenômeno econômico? Há algum estudo sério que determine que realmente tal valorização imobiliária é perene e não fruto de uma sobrevalorização imobiliária, muitas vezes trazida por meras especulações financeiras? Caso haja algum tipo de bolha imobiliária, e, sobrevindo uma desvalorização repentina do imóvel, terá o contribuinte direito à devolução do “indébito” pago com uma base de cálculo inflada eventual falta de critério na avaliação do quantum pelo poder público?
O que quero dizer é que o valor venal do imóvel não pode ser confundido com o valor econômico e efêmero do imóvel. Embora muitos especialistas, alguns dos quais temos um estimado respeito dão como certo o conceito de que valor venal nada mais é do que o valor possível diante da venda imediata do bem, uma análise mais detida e atual leva a outro tipo de conclusão. Pensemos:
A recente crise no mercado imobiliário americano demonstra que nem sempre o bem imóvel - especialmente quando necessário o fomento de crédito para sua compra – pode efetivamente valer o que se diz que vale. Quero dizer que é necessário em termos econômicos uma visão de mercado e não isoladamente do imóvel ou área que está inserido.
Não é proporcional um aumento que chegue, por exemplo, ao teto do reajuste para áreas comerciais em 35%. Tal reajuste pode – e certamente irá – inviabilizar negócios, uma vez que será repassado ao consumidor final. Ou há alguém que duvide que o dono de imóvel locado a um restaurante não irá repassar o aumento ao locatário, que por sua vez irá repassa-lo ao preço da comida e assim sucessivamente em uma cadeia que nitidamente fere qualquer tipo de razoabilidade.
Como se convencer do ponto de vista legal de que um imóvel possa de um exercício para o outro ter se valorizado em 20 ou 35%? Sempre ressaltando que não nos propomos a discutir as alíquotas bairro a bairro. O discurso que se trata de um reajuste visando a readequação do imposto à valorização imobiliária não se sustenta, e o critério é simples: hipóteses de incidência ou fatos gerados pretéritos já foram devidamente tributados, não servindo sequer de argumento retórico. Do ponto de vista legal, há um desarrazoado aumento da carga tributária de um exercício para outro em patamares elevadíssimos que podem sim, a depender do caso concreto, estorvar direitos individuais e inviabilizar atividades econômicas.
Antevendo quem se ponha a dizer que o IPTU é imposto fiscal, não dotado de extrafiscalidade e que deveríamos excluir de nosso pensamento critérios econômicos e de mercado para lhe avaliar, devemos uma breve digressão, ainda que as páginas deste veículo nos impeçam de um debate mais aprofundado. Há muito que o IPTU carrega boa parte de extrafiscalidade. Tal assertiva não fazemos de forma isolada, há nomes de relevo que igualmente enxergam a aludida e(in)volução da exação. [i]
Basta analisar a atuação pública na esfera imobiliária, criando institutos como a outorga onerosa do direito de construir que visa criar ferramenta de negociação para construção em determinadas áreas, e assim evoluindo em uma atuação tipicamente financeira, permitindo maior possibilidade de área construída mediante paga.
A própria análise empírica da atuação da administração pública na organização do zoneamento e ocupação da cidade de São Paulo dá claros contornos extrafiscais a atual majoração. Se tomarmos por base a extrafiscalidade “como uso de fórmulas jurídico-tributárias para obtenção de metas que prevalecem sobre os fins simplesmente arrecadatórios de recursos monetários.” [ii] Temos claramente presente no IPTU critérios outros que não aqueles arrecadatórios pertinentes à fiscalidade. Apenas para que não reste dúvida basta avaliar as recentes tentativas de reurbanização de centro da cidade, que tem como escopo principal uma melhor adequação dos princípios da finalidade social da propriedade à realidade paulistana utilizando como chamariz benefícios na interpretação do próprio IPTU.
A fixação do reajuste em patamares como os aprovados na famigerada votação pelos Vereadores da Cidade de São Paulo impede em muitos casos o exercício do direito de propriedade; a depender da atividade pode configurar confisco caso inviabilize financeiramente a atividade; e pode em muitos casos ser impeditivo a configuração plena da moradia como direitos social do cidadão nos termos do artigo 6º da Constituição Federal; todos argumentos embalados pelo função social da propriedade que deve ser observada também pelo Poder Público e não só pelos particulares.
Relembrando o pai da filosofia do pessimismo Arthur Schopenhauer que afirma que “a vontade é o que há de mais comum e de pior em nós, e que devíamos ocultá-la como a se faz com a genitália[iii]” podemos concluir que a vontade em majorar a já escorchante carga tributária pelo Poder Público em nosso país – seja qual for a esfera – toma proporções inacreditáveis e nos faz repensar até com o que não concordamos dentro do pessimismo propriamente dito.
Definitivamente uma forma de criar ferramentas de exação tributária tem sido criar um texto, e aplicá-lo fora do contexto, e longe de mim dizer que tal exercício passa a ser pretexto...

[i] “No mundo moderno, entretanto, dificilmente um imposto deixa de ter função também extrafiscal. Assim, existem formulações relativas ao imposto em estudo pretendendo atribuir a este função extrafiscal, especialmente com o fim de desestimular vultosas imobilizações de recursos em terrenos para fins meramente especulativos” (Machado, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, 31ª edição, pag. 410).
[ii] Carvalho, Paulo De Barros. Direito Tributário Linguagem e Método, 3ª edição, pág. 246.
[iii] Schopenhauer, Arthur. A Arte de conhecer a si mesmo, pág. 3.

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