domingo, 3 de novembro de 2013

Publicidade e fundamentação são dois lados da mesma moeda

POR: José Levi Mello do Amaral Júnior é professor de Direito Constitucional e doutor em Direito do Estado pela USP, e procurador da Fazenda Nacional.

O inciso IX do artigo 93 da Constituição de 1988 dispõe que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.
Estabelece-se, aqui, uma distinção: decisões jurisdicionais são “fundamentadas”, enquanto decisões administrativas, inclusive de tribunais, são “motivadas” (expressão constante do inciso X do mesmo artigo 93). A distinção talvez pareça perfunctória a alguém, mas tendo sido estabelecida pela Constituição, convém seja observada pelo intérprete.
O dispositivo agita dois elementos normativos da maior importância: (1) a publicidade obrigatória de todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário; e (2) o dever de fundamentar toda decisão tomada pelos órgãos do Poder Judiciários. Em regra, julgamentos secretos e decisões não fundamentadas são nulos.
Por outro lado, a publicidade admite exceção em favor da reserva. A exceção originariamente prevista pela Constituição era em favor do “interesse público”, mas, ainda assim, apenas limitando “a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”.
A Emenda Constitucional 45, de 2004, restringiu a exceção, especificando melhor os seus termos: a lei poderá “limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”, mas, apenas e tão-somente, “em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.”
A publicidade ampla e irrestrita como regra é inerente a todo e qualquer julgamento, inclusive no Supremo Tribunal Federal. O Direito comparado conhece diversos exemplos de Supremas Cortes e de Tribunais Constitucionais que julgam reservadamente, de modo a preservar os seus membros, o máximo possível, do clamor popular e outras pressões externas de qualquer espécie.
A Suprema Corte norte-americana, por exemplo, realiza sessões públicas para ouvir e questionar os representantes das poucas causas que ela aceita julgar (a Suprema Corte escolhe os casos que merecem a sua atenção e decisão). Em tais sessões, os Justices nem sequer debatem entre si. Quando muito se limitam a arguir os representantes das partes. No entanto, o julgamento propriamente dito — inclusive os debates entre os Justices — é reservado, com posterior divulgação por escrito da opinião da corte, com ou sem divulgação de opinião vencida.
Também é interessante o depoimento de Gustavo Zagrebelsky, que integrou e presidiu a Corte Constitucional italiana e cujos juízes reúnem-se em dois ambientes do Palazzo della Consulta: na sala de audiência pública e na câmara de conselho. Ele disse:
“Na contígua sala de audiência pública, esses se dispõem ao longo de uma mesa aberta de um lado, uma ferradura, o presidente ao centro e sete juízes à direita e sete juízes à esquerda, em ordem inversa de antiguidade no cargo. A disposição assegura que todos se vejam em volta, quais pessoas viventes e não entidades inertes, como acabariam se pudessem — ao invés — darem de ombros. O semicírculo, do lado aberto da mesa, tem o banco dos advogados e o espaço reservado à imprensa e ao público: em uma palavra: é dirigido ao mundo externo. Em certo sentido, exprime a idéia de abertura, de congraçamento, de troca. A audiência é, para registro, tempo de escutar e de buscar boas razões, onde quer que elas possam se encontrar. (...) Os juízes vêem e são vistos; examinam e — no que deixam transparecer de suas expressões — são examinados.
A seguir, concluída a audiência pública, quando se trata de decidir, os juízes se 'retiram'. Abre-se então um espaço temporal e uma dimensão espiritual diversos. Neste 'retirar-se', cada contato com o exterior é interrompido. Os juízes se encontram a sós com eles mesmos. Aquilo que está fora, o mundo em função do qual se reúnem, continua existindo, mas apenas nas representações de quem está dentro.
O cenário muda segundo um ritual carregado de significado. Outros símbolos. O lado da mesa que na audiência pública estava aberto, agora se fecha, para que seja claro que, a partir deste momento, os juízes contam apenas com as suas próprias forças. (...) As legítimas influências de antes se tornam ilegítimas interferências. O trabalho comum não deve ser perturbado. (...)” (ZAGREBELSKY, Gustavo. Principî e voti. La Corte Costituzionale e la politica, Turim: Einaudi, 2005, p. 11-13)
Os órgãos judicantes brasileiros em geral, e o Supremo Tribunal Federal em particular, praticam alto grau de transparência e abertura. Apenas excepcionalmente há julgamentos reservados, como em casos sobre Direito de Família. Porém, não se pode menosprezar o cuidado de reserva havido em parte dos trabalhos de Supremas Cortes e Tribunais Constitucionais de outros países: decorre de uma preocupação compreensível de resguardar o mais possível a independência da magistratura contra pressões externas.
Quanto à fundamentação, na precisa síntese do ministro Celso de Mello, é ela “pressuposto de legitimidade das decisões judiciais” (HCn. 80892). A consistência da fundamentação é parte importante da legitimação das decisões proferidas pelo Poder Judiciário. Conforme a própria Constituição, decisão judicial destituída de fundamentação é nula. Isso vale para qualquer decisão judicial, não apenas para as finais de mérito.
As decisões judiciais lidam com a vida, com a liberdade e com o patrimônio das pessoas. Portanto, repercutem sobre o que há de mais precioso para a vida individual e social. Logo, devem ser fruto da prudência, do cuidado, do estudo atento e dedicado de cada problema levado a juízo. A fundamentação documenta e explica este exercício tão delicado confiado aos magistrados.
Ademais, as partes interessadas em recorrer contra decisões judiciais precisam conhecer as razões – os fundamentos – que levaram ao desfecho do caso. Sem esta ciência, nem sequer é possível conceber o recurso (ou, mais precisamente, não é possível recurso quanto à questão de fundo, mas apenas e tão-somente quanto à ausência – ou grave carência – de fundamentação).
Ausência ou carência de fundamentação ensejam número considerável de decisões dos tribunais de apelação, dos Tribunais Superiores e, inclusive, do Supremo Tribunal Federal. É razão bastante comum para a concessão de Habeas Corpus para derrubar decretos de prisão temporária ou preventiva. Porém, o problema não pode — e não deve — ser imputado, simplesmente, aos juízos recorridos. Há, nisso, reflexo de problema estrutural maior: número insuficiente de juízes, de varas, de servidores etc.
Enfim, tanto publicidade como fundamentação das decisões judiciais desempenham papéis que são essenciais à transparência do Poder Judiciário. A fundamentação, para que haja possibilidade de controle e de recurso relativamente à decisão. A publicidade, para que se possa conhecer o debate que levou à decisão, inclusive no que se refere aos seus fundamentos. Portanto, publicidade e fundamentação são as duas faces de uma mesma moeda. Complementam-se na busca de algo indispensável em um regime democrático: dar a devida satisfação acerca das decisões do poder público — inclusive em juízo — aos seus destinatários, os cidadãos. 

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