sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Para tribunais, Serasa fornece dados ilegais

Graças aos serviços da Serasa Experian é possível saber que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso deve ter ido à joalheria Tiffany uma semana antes do último dia dos namorados, no dia 5 de junho, quando a loja consultou seu nome na Serasa. Já o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva parece ter ido às compras nas lojas de departamento Nosso Lar, que tem filiais em Tocantins e no Pará — e buscou saber seu crédito no último dia 7. Também se pode verificar que o perfil do senador Ivo Cassol na Serasa foi consultado pela Petrobras Distribuidora 15 dias antes de ele ser condenado pelo Supremo Tribunal Federal. Já a construtora MRV Engenharia andou procurando mais informações sobre a saúde financeira do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral.
Até o começo da semana, as informações acima podiam ser acessadas por qualquer assinante dos serviços da Serasa, por cerca de R$ 10 a consulta. Depois que a ConJur publicou reportagemrevelando as distorções das avaliações do serviço, repercutida pela colunista Mônica Bergamo, do jornal Folha de S.Paulo, os relatórios sobre esses e outros políticos foram removidos do sistema, segundo o jornal. São diversas as suposições que podem ser feitas com as relações entre os políticos e as empresas que consultaram seus nomes, mas o entendimento da Justiça a respeito tem se firmado em um só: é ilegal. Mostrar os últimos estabelecimentos que consultaram o perfil do consumidor na Serasa vai contra o Código de Defesa do Consumidor, segundo os tribunais de Justiça de São Paulo e do Rio Grande do Sul. 
“Não pode haver, como se pretende, supremacia do interesse dos estabelecimentos comerciais e bancários sobre o do consumidor, invadindo a privacidade deste, com a revelação desautorizada de suas eventuais relações comerciais”, diz acórdão da corte paulista em Ação Civil Pública que condenou a Serasa a pagar R$ 100 mil por manter o cadastro. A decisão é de 17 de janeiro deste ano — cabe recurso.
Segundo o acórdão, cujo relator é o desembargador Carlos Henrique Miguel Trevisan, o registro de consultas anteriores — também chamado de “cadastro de passagens” — vai contra o CDC porque o sistema não dá ao consumidor o conhecimento das informações a seu respeito que constam do banco de dados, impedindo, assim, que possa ser exigida a retificação de eventuais inexatidões anotadas, “além de permitir interpretação imprecisa acerca das informações cadastradas”.
As interpretações em questão vão além da bisbilhotice sobre a vida de famosos — como saber por que o site ingresso.com se preocupou em buscar o crédito do senador Renan Calheiros (foto) em abril deste ano ou por que o Banco do Nordeste andou procurando informações sobre o possível candidato a presidente da República Eduardo Campos. As interpretações que chegam ao Judiciário são de lojistas que, ao verem um histórico de consulta, negam-se a dar crédito a um cidadão, imaginando que ele já esteja comprometido com as lojas ou instituições financeiras que constam na lista.
“O prejuízo e a discriminação fazem parte desse jogo pesado onde empresas avaliam consumidores como números e já não há mais a preocupação com a fidelização do cliente. Sabe-se que o consumo aumenta, e se aquele consumidor não adquirir determinado produto ou serviço, outro virá em seu lugar”, afirma o advogado Rogério Rocha, sócio do escritório Péricles, Rocha, Mundim e Advogados Associados. 
O sistema da Serasa estabelece, com base em dados obtidos para outras finalidades, uma classificação das pessoas segundo sua possibilidade de adquirir crédito, explica o advogado Paulo Donadelli, especialista em Direito Constitucional do escritório Vianna & Gabrilli. “Como se fosse estabelecido um sistema de ‘castas’ de crédito, sem que o cidadão sequer saiba que foi classificado.”
Não é apenas a lista de consultas anteriores que tem chegado às cortes. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina também tem decidido que só a inclusão de dados no sistema sem comunicar ao consumidor em questão é ilegal e que o cidadão merece ser indenizado por isso. Vale dizer que, pelas decisões da corte, o simples fato de o cadastro existir, gerando uma “possível restrição ao crédito”, motiva indenização.
No TJ do Rio Grande do Sul já são várias as ações em que ficou decidido também que é necessária a aprovação do consumidor para que haja um cadastro a seu respeito. “É abusiva a prática comercial de utilizar dados negativos dos consumidores para lhes alcançar uma pontuação, de forma a verificar a probabilidade de inadimplemento. Sem dúvidas, este sistema não é um mero serviço ou ferramenta de apoio e proteção aos fornecedores, como quer fazer crer a demandada, mas uma forma de burlar direitos fundamentais, afrontando toda a sistemática protetiva do consumidor, que inegavelmente se sobrepõe à proteção do crédito”, diz decisão da desembargadora Marilene Bonzanini.
Erros e riscos
Se a própria existência dos dados é um problema para a Justiça e para os consumidores, a qualidade das informações é um problema também para o lojista ou para a instituição financeira que se fia na Serasa para conceder ou negar crédito. Dois dias depois de a revista eletrônica Consultor Jurídiconoticiar que as informações que a Serasa Experian passa ao mercado são pura fantasia, a empresa tirou de seu sistema dados de políticos como Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva, usados como exemplos pela reportagem. O login e a senha usados para acessar as informações também foram cancelados pela Serasa nove horas depois da publicação da notícia.
As informações dos políticos mostram que o serviço prestado pela Serasa é fantasioso. O crédito sugerido para a presidente da República é de R$ 2,1 mil; para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, R$ 778; para Lula (foto), R$ 10.894; e para o presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, R$ 25.896. (veja tabela abaixo)
O serviço também se presta a dizer a renda presumida de cada cliente. Nesses dados também ficam claros os erros. O ministro Joaquim Barbosa, cuja remuneração bruta de R$ 31 mil é pública e consta no próprio site do STF, tem, para a Serasa, renda mediana de R$ 2.986. A presidente da Republica, Dilma Rousseff, teria renda de R$ 3,7 mil.
Para o consumidor, tais distorções são péssimas, simplesmente porque levam muitas vezes a que seja negado crédito a uma pessoa que realmente possui capacidade financeira, explica Ana Paula Oriola de Raeffray, sócia do Raeffray Brugioni Advogados. 
A solução apresentada pela Serasa para a insegurança causada pelos erros em seus cadastros é que os clientes busquem informações de outras fontes que não o serviço que pagam à Serasa para obter. A afirmação está em notificação recebida pela ConJur, na qual, em vez de responder às perguntas feitas pela reportagem, a Serasa Experian exigiu que o site tirasse do ar a notícia que tratava do assunto. 
Dados públicos
Cabe lembrar que o cadastro é feito com diversas informações cedidas pelo poder público. O Tribunal Superior Eleitoral tem discutido um acordo entre a corte e a Serasa que previa o envio de dados de eleitores à empresa. O acordo foi anulado pela presidente do tribunal, ministra Cármen Lúcia, e a corte concedeu prazo para que a Serasa se manifeste.  
Para o advogado Antonio Fernando Pinheiro Pedro, os dados e informações pessoais fornecidos por obrigação legal a tribunais e órgãos públicos constituem direitos públicos individuais constitucionais sob guarda das instituições. Negociar esse patrimônio ou cedê-lo a terceiros por qualquer forma que não seja mediante mandado judicial obtido no bojo de procedimento processual, diz o advogado, “constitui improbidade administrativa”.
É dever do Estado garantir o sigilo, que pode ser afastado em situações excepcionais, como por exemplo, em convênios com outros entes públicos visando melhorar o próprio serviço do Estado, explica o advogado eleitoral Dyogo Crosara. Em recente convênio firmado com o Ministério da Previdência, lembra ele, o cruzamento do cadastro eleitoral com o banco de dados do INSS permitiu checar se pessoas que já faleceram ainda constavam como aptas na lista de eleitores, bem como permitiu o cancelamento de aposentadorias de pessoas que no cadastro eleitoral apareciam como mortas.
Já no convênio com a Serasa "não há interesse público que justifique a quebra do sigilo das informações do cadastro eleitoral, bem como a entidade que receberia os dados não é uma entidade pública, mas sim um ente privado", diz o advogado.
Veja abaixo alguns exemplos da disparidade entre o limite de crédito sugerido pela Serasa Experian e a renda presumida também pela empresa:
NomeLimite de crédito sugeridoRenda presumida
Joaquim Barbosa25.8962.986
Henrique Eduardo Alves15.67616.315
Renan Calheiros12.74111.912
Lula10.8943.232
Ivo Cassol8.1039.757
Sérgio Cabral4.3734.615
Geraldo Alckmin2.93311.110
Daniel Dantas2.7306.516
Tiririca2.19812.553
Dilma Rousseff2.1013.700
José Serra2.0983.416
Abílio Diniz2.04214.230
Aécio Neves1.6609.368
Demóstenes Torres1.6213.014
Nicolau dos Santos Netto1.6002.860
Paulo Maluf1.5512.607
Marina Silva1.5475.508
Natan Donadon1.1651.902
Eduardo Campos9382.971
Fernando Henrique Cardoso7781.207
Protógenes Queiroz7514.788
Carlinhos Cachoeira31913.391
Eike BatistaNão disponível14.462
 

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