segunda-feira, 9 de maio de 2011

EM CRIME SEXUAL, ÚLTIMA PALAVRA É DA MULHER

Por Fábio Tofic Simantob

A sociedade brasileira comemorou no último dia 8 de março o Dia Internacional da Mulher num momento em que se presencia uma acirrada polêmica nos tribunais sobre a correta aplicação da Lei Maria da Penha. Enquanto o Ministério Público briga para, mesmo nos casos de lesão leve contra a mulher, deter o poder incondicional de processar os agressores varões, algumas Cortes, a exemplo do STJ, vêm dando decisões que colocam freios à atuação do órgão acusador, condicionando-a a prévia autorização da mulher agredida.

As lesões leves na acepção jurídica do nosso Código Penal são todas as que deixam algum vestígio, mas, por exemplo, não acarretam perigo de vida ou não impossibilitam o ofendido de realizar suas ocupações habituais por mais de 30 dias, não acarretam perda permanente de membro ou função corporal, enfim, são lesões que machucam, mas não causam maiores danos à integridade física. Grosso modo, são as lesões que provocam hematomas. No caso de ocorrerem lesões desta natureza, a Lei 9.099/95 já estabelecia que a ação penal só pode ser iniciada se houver concordância da vítima e, como a Lei Maria da Penha silencia a respeito, passou a prevalecer o entendimento de que mesmo no caso de violência contra a mulher continuaria valendo a mesma regra geral.

Discordando desse entendimento, porém, o Procurador Geral da República intentou recentemente uma Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.424 perante o STF, em que é relator o ministro Marco Aurélio, na qual, invocando a Constituição Federal, pede que a Suprema Corte dê à Lei Maria da Penha interpretação segundo a qual a vontade da mulher é dispensável para abrir processo contra o agressor.

Na verdade, a Constituição não desce a este tipo de minúcias e, por óbvio, nada prevê a respeito de como deve ser a persecução penal nas lesões praticadas contra a mulher. O que busca o Procurador Geral com a Adin proposta no Supremo é, no frigir dos ovos, uma interpretação subliminar de alguns princípios abstratos e genéricos previstos na Constituição Federal, como o da dignidade da pessoa humana, para daí concluir que seria inconstitucional deixar à mercê delas a decisão de mandar ou não seus agressores para o banco dos réus.

Legítima ou não a pretensão do Procurador Geral, fato é que se a lei Maria da Penha não estabeleceu de forma clara e taxativa que a atuação do Ministério Público nos casos de lesão leve à mulher devesse ser diferente das lesões leves em geral, não cabe ao STF dar maior alcance ao poder estatal, onde o legislador houve por bem não fazê-lo.

Ainda que se pudesse extrair do texto constitucional alguns princípios dos quais se infere a intenção de dar a mais ampla e irrestrita proteção às mulheres, tais postulados não permitem, em seara de rigorosa legalidade como a penal, interpretações subliminares da Carta Magna, visando a suprir lacunas deixadas pelo legislador ordinário.

Assim, enquanto uma lei promulgada pelo Congresso Nacional não dispuser de modo contrário, continua vigorando para as lesões leves, inclusive as cometidas contra mulheres, mesma regra geral prevista há dezesseis anos na Lei 9.099/95 (que instituiu os juizados especiais): processo contra o agressor, só com a concordância da pessoa agredida.

Agora, se quisermos deixar um pouco de lado o tecnicismo jurídico e encarar a questão sob o ponto de vista da política criminal, a controvérsia nos levará à mesma conclusão. Promover uma ação penal nas lesões leves (aquelas que não acarretam maiores consequências à saúde) à revelia da mulher não seria mais uma forma de violentar sua vontade?

O argumento comumente usado para justificar a super proteção da mulher, indo inclusive contra sua própria vontade, é o mesmo que levou o legislador a abolir a ação penal privada nos crimes sexuais: o medo que elas têm de denunciar o agressor pode prejudicar a cessação da violência.

Se o argumento parece difícil de ser superado no tocante aos crimes sexuais, é verdade também que, sobre a questão aqui tratada, a desproporcionalidade entre a lesão leve e a drástica ação estatal contra o companheiro pode se tornar um segundo drama para o sexo feminino.

A discussão não é se estes agressores devem ser punidos ou não – não há dúvida de que devem –, mas sim se a atuação punitiva do Estado nestes casos mais leves não deve respeitar a vontade da mulher. Afinal de contas, mais importante do que proteger a mulher contra pequenas lesões é proteger seu direito ao livre arbítrio, à livre escolha, seu direito de resignar-se frente às pequenas adversidades do lar, seu direito de viver seus próprios dramas, suas mazelas, sem a exposição a vexame do vizinho ou da comunidade. Ser dona da própria felicidade ou da própria tristeza, ser senhora do seu destino e dona das próprias dores.

Quando quiser mandar o pai de seus filhos para a cadeia, sua palavra deve ser levada em conta, mas enquanto preferi-lo em casa, porque é mal menor do que não ter um pai para educar os filhos, sua vontade deve ser respeitada. Caso contrário, estaremos caindo na mesma tentação do machismo de sempre: tratar a mulher como objeto e não como um sujeito de direitos, com vontades e determinações.

É claro que nas lesões mais graves, o legislador foi sábio ao não condicionar o processo a qualquer vontade da vítima; nas leves, porém, o direito de escolha da mulher parece ainda se sobrepor ao interesse do Estado de punir o agressor. Como lembra a célebre passagem de Tolstoi, “as famílias são felizes à mesma maneira e infelizes cada qual ao seu modo”, de forma que respeitar as pequenas infelicidades alheias também é forma de zelar pelo respeito à intimidade e à vida privada, vigas mestras de um Estado Democrático de Direito.

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