A Justiça absolve porque o inquérito é mal feito. A afirmação é do ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, o entrevistado do programa Roda Viva, da TV Cultura, desta segunda-feira (15/12). Para o ministro, a sensação de frustração e de impunidade pelas decisões do Judiciário, na maioria dos casos deve ser creditada à polícia que produz operações pirotécnicas e relatórios com técnicas de romance: “As operações são feitas como uma ação de marketing”.
Gilmar Mendes explica que as denúncias não se sustentam quando submetidas ao contraditório. Segundo o ministro, os juízes devem julgar e não apenas condenar. “E é bom que seja assim para a segurança de todos. Hoje é seu inimigo, amanhã pode ser você”, afirma. O ministro citou o caso de integrantes do PCC que foram soltos pelo STF porque a Justiça de São Paulo extrapolou o prazo para ouvi-los.
Como exemplo de apuração mal feita, Gilmar Mendes também lembrou do pedido de prisão da repórter Andrea Michael, da Folha de S.Paulo, feito pelos delegados encarregados de investigar supostos crimes financeiros do banqueiro Daniel Dantas, na chamada Operação Satiagraha. O pedido foi rejeitado pelo juiz federal Fausto Martin de Sanctis. “Prisão preventiva de jornalista não acontecia nem no regime soviético”, afirma. Gilmar Mendes revelou que o próprio comando da PF, ao saber do pedido esdrúxulo (a jornalista fizera uma reportagem correta) procurou pelo juiz para apontar o exagero. A informação, disse, foi do ministro da Justiça Tarso Genro.
Outro exemplo foi a denúncia contra um juiz paulista que, por engano, informara em sua declaração de Imposto de Renda que possuia pouco mais de 9 mil dólares no Afeganistão. O erro derivara da digitação do código de país no formulário eletrônico — o que a própria Receita Federal informara ser um equívoco recorrente. Posteriormente a declaração foi retificada mas, ainda assim, a Polícia Federal e o Ministério Público mantiveram as acusações de evasão de divisas e sonegação.
Áudio do grampo
Na uma hora e meia do programa, apresentado por Lílian Witte Fibe e com participação dos jornalistas Eliane Cantanhêde (Folha), Carlos Marchi (O Estado de S.Paulo), Reinaldo Azevedo (Veja) e Márcio Chaer (Consultor Jurídico), o ministro teve oportunidade de debater ao vivo as polêmicas que marcaram o ano.
A apresentadora abriu o programa questionando sobre o áudio do grampo da conversa entre o ministro e o senador Demóstenes Torres (DEM-GO). O ministro respondeu que não é ele quem deve apresentar o áudio. “Não me cabe demonstrar se existe áudio. Sou vítima desse processo”, afirma. Ele negou que o grampo tenha vazado do Supremo.
Gilmar Mendes afirmou, sem citar nomes, que a reunião da Polícia Federal, na qual o delegado Protógenes Queiroz foi afastado da Operação Satiagraha, mostra indícios de que o STF era alvo de uma operação de inteligência. “Que tipo de operação de inteligência é essa?”, questionou o ministro. Mais tarde, o ministro informaria o nome de um agente que se teria infiltrado no STF: Távora.
Na entrevista, o ministro explicou porque o pedido de Habeas Corpus do banqueiro Daniel Dantas ao Supremo Tribunal Federal foi julgado por ele logo após a prisão. “Há muita desinformação nessa questão”, afirmou, lembrando que a defesa do banqueiro entrou com o HC em abril logo depois que a Folha noticiou que havia uma operação contra o banqueiro. O processo passou por todas as instâncias e só foi julgado pelo STF depois que a prisão aconteceu.
Segundo o ministro, a segunda ordem de prisão, dada horas depois do HC, foi uma afronta à decisão do STF. “A ordem de prisão foi gestada durante a madrugada”, disse o ministro, lembrando que o De Sanctis mandou prender Dantas na mesma manhã em que ele foi solto a primeira vez.
O ministro reafirmou que o segundo pedido de prisão tinha os mesmos fundamentos do primeiro. No julgamento de mérito do HC, nove ministros manifestaram-se pela punição do juiz. No Roda Viva, Gilmar Mendes criticou inclusive como foi noticiado em alguns sites o segundo HC. “Como pode um delegado dar um drible da vaca em um ministro do STF?”
A jornalista Eliane Cantanhêde, da Folha, perguntou ao ministro por que Dantas ficou tão pouco tempo preso ao mesmo tempo em que um rapaz de 18 anos que tentou roubar o seu cordão de ouro em uma praia em Fortaleza e a pichadora Carolina Mota não conseguiram a liberdade. “Não vou responder a essa pergunta”, disse o ministro. Ele lembrou que a jornalista escreveu um texto em julho chamado “Cordãozinho de ouro”, em que faz o mesmo tipo de questionamento. Gilmar Mendes explicou para ela que os casos citados não chegaram ao Supremo e, por isso, não poderia ele julgar. “Não me cabe decidir sobre eles”, diz.
Jornalistas de aluguel
Questionado por Márcio Chaer, diretor da revista eletrônica Consultor Jurídico, se quando fala de milícia jurídico-policial, na qual juízes, promotores e policiais atuam em sintonia, o ministro estaria também se referindo a jornalistas de aluguel. Gilmar Mendes explicou que não conhece casos concretos de jornalistas contratados por determinados grupos. “Mas, é claro que pode haver”, afirmou.
Sobre a atuação da imprensa e do Ministério Público, o presidente do STF citou o caso de Eduardo Jorge, ex-secretário-geral do governo FHC. Em 2000, ele saiu do cargo depois de ser crucificado em público injustamente. “Eduardo Jorge foi vítima da mídia e do Ministério Público”, afirmou Gilmar Mendes. Ele disse que se o secretário-geral tivesse sido preso na época do escândalo, o juiz que desse um HC a seu favor seria sacrificado.
Gilmar Mendes entende que existe diferença de acesso à Justiça para quem é rico ou pobre. No entanto, ele argumenta que o CNJ está trabalhando para eliminar a distorção. Como exemplo, ele cita os mutirões carcerários. “Nessa área ninguém vai me dar lição”, disse ao ser pressionado pela apresentadora. O ministro defendeu novamente o fortalecimento das Defensorias Públicas, mas afirmou que isso não basta. Como o país tem mais de 400 mil presos, mesmo que o número defensores fosse multiplicado por dez, o problema continuaria. “É uma tarefa de toda a sociedade”, afirma.
Lei de Anistia
Já o jornalista Reinaldo Azevedo, blogueiro da revista Veja, perguntou sobre a ação que pede a revisão da Lei da Anistia. O ministro reafirmou que o texto constitucional é claro em dizer que o terrorismo é imprescritível. Questionado se as ações contra a Ditadura Militar podem ser consideradas terrorismo, o ministro preferiu se esquivar. “Quero que essa questão seja discutida na ADPF”, afirma.
Sobre as denúncias de corrupção contra juízes, Gilmar Mendes afirma que são casos episódicos passíveis de acontecer em qualquer classe. Para ele, a corrupção no Judiciário deve ser combatida e o CNJ está fazendo esse trabalho.
O foro privilegiado também foi novamente defendido pelo ministro. Até 2001, o Supremo não podia julgar parlamentares sem a autorização do Congresso, lembrou o ministro. A partir de então, ele diz que os processos contra as autoridades começaram a fluir. Para o ministro, o foro privilegiado é necessário para que se mantenha a governabilidade. “Imagine o presidente Lula respondendo a processos criminais em todo o país”, afirmou. Na primeira instância, segundo o ministro, é muito fácil ter uma denúncia aceita.
Gilmar Mendes ainda comentou no Roda Viva sobre os excessos das Medidas Provisórias, o poder de investigação do Ministério Público e a fidelidade partidária.
Raposa Serra do Sol
O presidente do STF explicou que as 18 condições que o tribunal deve impor às demarcações de terras indígenas são uma leitura crítica do texto constitucional. “A Constituição prevê certo ativismo judicial”, diz, ao classificar esse debate de velho. O STF teve que estabelecer condições sobre a questão indígena porque precisava dar uma resposta às diferenças de interpretação sobre o assunto.
O ministro foi questionado se irá entrar na carreira política. “Não pensei ainda”, afirma. Ele argumentou que ainda tem muito tempo de tribunal e que também tem uma atividade acadêmica. “Não tenho problemas de vagas”, afirmou.
Um telespectador questionou o ministro com base na revista CartaCapital, dizendo que os processos contra o seu irmão Chico Mendes, prefeito de Diamantino (MT), não chegam nem na primeira instância da Justiça de Mato Grosso. “Olha que desinformação. Se não chegaram à primeira instância, eles não existem”, ironizou. Ele se negou a responder a questão por entender que quem a publicou não tem seriedade.
Gilmar Mendes também comentou o debate intelectual entre os filósofos alemães Carl Schmitt e Hans Kelsen. O primeiro defende que o presidente é quem deve ser o guardião da Constituição, enquanto o segundo diz que deve ser um tribunal constitucional. “Esse pensamento do Carl Schmitt não se sustenta porque pressupõe uma unidade que não existe”, afirma. Carl Schmitt, que era um dos ideólogos do nazismo, foi citado pelo juiz Fausto de Sanctis em uma palestra.
Ele ainda explicou a tese da Constituição aberta, do alemão Peter Häberle. O Supremo vem adotando medidas que se encaixam nessa perspectiva como a adoção do amicus curie e das audiências públicas.
Sobre a chegada de sete ministros indicados pelo presidente Lula, Gilmar Mendes avalia que eles mudaram o tribunal, no entanto, entende que os antigos também estão fazendo uma releitura da Constituição. O decano Celso de Mello, por exemplo, evoluiu a sua posição sobre a prisão por dívida.
Ele ainda reafirmou que os direitos humanos são para todos, inclusive para pessoas que não são das mais elevadas. “A Madre Teresa de Caucutá raramente pede um Habeas Corpus.”
Segundo o ministro, o juízo constitucional deve tomar posições anti-majoritárias. “Não estou disputando um campeonato de popularidade”, afirma. Para ele, há um problema na estrutura do Judiciário já que 30% dos HCs são concedido pelo Supremo depois de passarem por todas as instâncias. “Há déficits que precisam ser concertados no Judiciário.”
Revista Consultor Jurídico, 16 de dezembro de 2008
Um comentário:
Este cidadão é meu ídolo. As posições dele são serenas, imparciais como deveriam ser de todo jurista togado. As afirmações não são políticas, ele não joga para a platéia principalmente quando faz críticas ao próprio judiciário. Pena que a presidência do STF não possa ser vitalícia.
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