sexta-feira, 22 de setembro de 2017

INTERESSE PÚBLICO - Colaboração premiada e direito de mentir são incompatíveis

Os fatos atuais
Não é propósito deste artigo examinar detalhes da atuação do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot no caso da delação de Joesley Batista. O que se pretende é examinar e discutir, sob a perspectiva do Direito Constitucional, o instrumento da confissão premiada. É preciso fazer uma distinção entre o mau uso desse instrumento, e sua provável eficiência quando bem empregado.
Para evidenciar o mau uso, tomam-se como base depoimentos à imprensa. O delegado federal, presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) — jornal O Estado de S. Paulo, 18.9.17 —, disse que o MP errou ao não periciar os áudios da JBF: “Pela nossa doutrina, foi um erro técnico não ter levado o material apresentado à análise logo que recebido. Essa é uma etapa fundamental, um protocolo padrão não só no Brasil como em todo o mundo”. Em síntese, houve, sim, um grave erro.
Dessa gravação decorreram o inusitado perdão concedido aos irmãos Batista e a precipitada acusação feita ao presidente Michel Temer. Esses dois episódios causaram perplexidade na opinião pública e deflagraram uma enorme instabilidade política e econômica, com graves prejuízos para o país. Denúncia contra qualquer presidente da República é coisa séria, pois sempre causará um terremoto político e um abalo nas instituições, repercutindo gravemente na economia e na ordem social.
Até o Supremo Tribunal Federal foi atingido. Como é sabido, o ministro Edson Fachin deu automática cobertura aos “erros” do PGR. “No entender deste relator, após o oferecimento da denúncia, nenhum outro ato de processamento é cabível em face do presidente da República, sem que se obtenha previamente referida autorização por parte do Poder Legislativo”. (O Estado de S. Paulo, 17.9.17, p. A3). No entender do ministro, o STF é apenas um moleque de recados do PGR; como qualquer office boy, recebe o papel com a denúncia e entrega no protocolo da Câmara Federal. Esse comportamento foi sufragado pela corporação.
Nesse mesmo sentido se manifestou o ministro Dias Toffoli, ao afirmar que não caberia ao STF rever o acordo feito pelo PGR: “O Estado é um só. Ele fez acordo. Não dá para dar com uma mão e tirar com a outra”. Esqueceu-se o ministro de que no Estado Democrático de Direito, não há ato de autoridade imune ao controle judicial.
Nessa mesma linha, o ministro Luiz Fux considerou que Rodrigo Janot foi ingenuamente ludibriado por Joesley Batista. Mais arguto foi o ministro Gilmar Mendes, que, dirigindo-se diretamente a Fachin, afirmou: “Tão poucas pessoas na história do STF correm o risco de ver o seu nome e o da própria Corte conspurcados por decisões que depois vão se revelar equivocadas”. (O Estado de S. Paulo, 13.9.17, capa)
No momento atual, depois que o consagrado e respeitável escritório Trench, Rossi e Watanabe revelou o comportamento espúrio de duas de suas advogadas com o agente duplo Marcelo Miller, braço direito do PGR, é impossível deixar de considerar a existência de uma trama, que foi se desenvolvendo ao longo do tempo, no curso da qual ocorreu a premeditada gravação, que nada teve de fortuita. A OAB está devendo uma palavra sobre o comportamento do advogado Marcelo Miller.
Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo (15.9.17, p. A2), disse o desembargador Aloísio de Toledo Cesar: “O pior deste quadro é que o criminoso Joesley parece não ter agido sozinho quando gravou a conversa com Michel Temer. Realmente, são fortes os indícios de que ele teve como parceiro um procurador da República da confiança do procurador-geral. Qualquer procurador de Justiça sabe que o presidente da República, por ter foro privilegiado, só pode ser gravado por decisão do STF, por meio de um de seus ministros”. O vício jurídico é incontestável.
Enfim, tudo isso serve para mostrar o que não deveria ter sido feito. Resta agora examinar qual deverá ser, no futuro, a utilização da legislação existente, para um eficiente combate à corrupção.
O suporte constitucional
O artigo 5º da Constituição Federal, em seu inciso LIV, afirma o princípio geral do devido processo legal. Tal princípio estabelece uma garantia para os administrados, e cria um dever para todo e qualquer órgão, entidade ou agente público. A Administração Pública, em qualquer nível, toma decisões por meio de processos regularmente formalizados. Os administrados sempre precisam saber quais teriam sido os motivos, de fato e de direito, que levaram o agente público a decidir desta ou daquela maneira, pois a vontade do agente público não é livre.
Quando se trata de uma acusação, o princípio geral do devido processo legal é reforçado pelo disposto no inciso LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. A mais elementar providência concernente ao direito de defesa é a de ouvir o acusado. Não há autoridade pública imune a esse dever elementar.
Pode-se agora passar ao cerne da questão, que está no inciso LXIII, desse mesmo artigo 5º da CF: “O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado...”. Obviamente, em consonância com os incisos acima referidos, o direito de permanecer calado não se aplica apenas ao preso, mas, sim, a todo e qualquer acusado. Esse direito de permanecer calado significa que nenhum acusado é obrigado a se auto incriminar, ou a colaborar com a acusação. O silêncio não pode ser tomado como confissão. Juridicamente, quem cala não consente.
Entretanto, no âmbito do Direito Penal, o direito de ficar calado foi transformado em direito de mentir, como um instrumento de defesa. Confira-se os seguintes fragmentos da jurisprudência: “STJ - HC 219516 SP 2011/0227843-8, Rel. Ministra LAURITA VAZ - 3. O fato de o acusado eventualmente ter mentido durante seu interrogatório não constitui motivação idônea para a exasperação da pena-base. Com efeito, é dado ao réu o direito de se autodefender de modo amplo e irrestrito, cabendo exclusivamente ao órgão acusatório colher as provas suficientes para a condenação.”; “STJ - HC 103746 MS 2008/0074229-0, Rel. Ministro JORGE MUSSI - 5. Não há como valorar em desfavor do acusado, a título de má personalidade, o fato de, quando interrogado, ter negado a verdade acerca dos fatos criminosos, pois, diante do sistema de garantias constitucionais e processuais penais vigentes, e constatando-se ainda que não está obrigado legalmente a dizer a verdade, nada mais fez do que exercitar seu direito à não auto-incriminação”. Como se nota, a jurisprudência toma como algo inquestionável o direito de mentir.
Há uma interessante jurisprudência sobre o assunto, mostrando as origens do direito ao silêncio e afirmando que não existe o direito de mentir: “TRF-3 - HC 124111 SP 2006.03.00.124111-4, Rel. JUIZ MÁRCIO MESQUITA - 2. A garantia insculpida no artigo 5º, inciso LXIII, que dispõe que "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado", tem origens na 5a Emenda a Constituição dos Estados Unidos da América, que estabelece que "no person... shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself" , ou, em tradução livre, que "nenhuma pessoa será compelida, em nenhuma causa criminal, a ser testemunha contra si mesmo".3. Referida garantia, conhecida na doutrina norte-americana como "privilege against self-incrimination", ou privilégio contra auto-incirminação, não inclui, nos Estados Unidos da América, onde nasceu — como se entende por estas terras brasileiras — nem mesmo o direito do réu a mentir, ainda que sobre fatos relativos à acusação que lhe é feita, mas apenas e tão somente o direito de permanecer calado”
O que se passará a demostrar, doravante, é a incompatibilidade entre a colaboração premiada e o direito de mentir. A colaboração premiada foi importada do direito norte americano, onde não existe o direito de mentir. Ao contrário do que ocorre no Brasil, lá mentir é algo extremamente grave.
A lei de organizações criminosas
Nenhum dispositivo legal pode ser interpretado isoladamente, fora do contexto no qual está inserido. Diante disso é forçoso um exame mais amplo da Lei 12.850 de 2/8/13. Conforme o artigo 3º dessa lei, a colaboração premiada é apenas um entre os oito meios de obtenção de provas. Não é o caso de um exame de cada um deles; para os fins deste estudo, é suficiente comparar a colaboração premiada com a ação controlada e a infiltração de policiais em organizações criminosas.
A colaboração premiada traz implícita uma renúncia ao direito ao silêncio. O acusado que, voluntariamente, colaborar com a investigação, poderá ter sua pena reduzida. Não basta que o acusado mencione delitos que teriam sido cometidos por outras pessoas; é essencial que as informações prestadas sejam verdadeiras e aptas para a comprovação dos delitos apontados. O benefício pode chegar até o perdão judicial, mas desde que, da colaboração, resultem proveitos concretos, tais como a identificação dos integrantes da organização criminosa e sua estrutura de funcionamento, e a recuperação do produto ou do proveito obtido pela organização criminosa.
Atendidos todos esses requisitos legais, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia, porém, desde que o colaborador não seja o líder da organização criminosa e seja o primeiro a prestar colaboração quanto aos delitos em apuração. Além disso, nos termos do §14, “Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade.” Note-se que não há expressamente, um dever de falar a verdade, mas apenas um compromisso.
Havendo uma disciplina legalmente estabelecida e uma série de requisitos para a obtenção dos benefícios, é óbvio que os atos praticados por qualquer autoridade envolvida no processo, sempre estarão sujeitos ao controle judicial. A autonomia e independência do Ministério Público não o torna soberano; imune às exigências legais. Tanto a denúncia, quanto o benefício, e muito especialmente o perdão absoluto, podem e devem ser objeto de controle judicial. Nem o STF pode, licitamente, renunciar ao seu poder/dever de controle. É indispensável verificar se os requisitos materiais e procedimentais foram observados, antes de dar seguimento ao feito.
No caso da denúncia, é preciso também, no mínimo, verificar se a conduta apontada está tipificada como crime. Não faz o menor sentido que o MP encaminhe o expediente ao Judiciário, apenas e tão somente para que este o repasse ao Legislativo. Se o Judiciário nada pode fazer, bastaria que o MP enviasse a denúncia à Câmara dos Deputados.
Em face dos atos descritos nos parágrafos iniciais, convém comparar a colaboração premiada com dois outros meios de obtenção de provas: a ação controlada e a infiltração. O que se pretende demonstrar é que, na prática, nenhuma dessas três modalidades foi observada, tendo sido criada uma figura híbrida, sem previsão legal.
Quanto à ação controlada, basta transcrever o artigo 8º e seu §1º: “Art. 8º. Consiste a ação controlada em retardar a intervenção policial ou administrativa relativa à ação praticada por organização criminosa ou a ela vinculada, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz à formação de provas e obtenção de informações. §1º O retardamento da intervenção policial ou administrativa será previamente comunicado ao juiz competente que, se for o caso, estabelecerá os seus limites e comunicará ao Ministério Público”. Note-se que ela tem condicionantes, e exige a prévia ciência da autoridade judicial.
A infiltração de agentes policiais, nos termos do artigo 10, também tem condicionantes e “será precedida de circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial, que estabelecerá seus limites.” Note-se, novamente, o indispensável controle prévio exercido pelo Poder Judiciário.
Entretanto, nos casos concretos referidos, especialmente a gravação feita por Joesley Batista, houve uma mistura desses três instrumentos. O comportamento do agente da gravação se assemelhou a uma ação controlada, pois, à época, esse agente já estava sob vigilância de operações da Polícia Federal. Sem ser policial e sem autorização judicial, ele foi instruído e instrumentado para ingressar na residência do presidente da República e, sem a ciência deste, gravar uma conversa ensaiada, cheia de insinuações e induzimentos, a qual foi indevidamente editada, conforme ficou patente com os desdobramentos dos fatos.
Diante dessa rocambolesca situação, passou a haver, na imprensa, na opinião pública e no Poder Legislativo, um questionamento sobre a validade e a utilidade da colaboração premiada. Ora, nos termos da Constituição Federal e da Lei 12.850 de 02/08/13, existem limites e controles que, na prática, não foram observados.O problema, portanto, não está na lei, mas, sim, no descumprimento da lei.
Conclusões
A questão fundamental é a incompatibilidade entre a colaboração premiada e o direito de mentir. O acusado, hoje, sabe que pode dizer qualquer coisa, acusar outras pessoas, inventar o que for mais apetitoso para a obtenção do benefício, pois tal comportamento, embora contrário ao espírito e à letra da lei, estaria, segundo alguns, amparado pelo direito à autodefesa e o direito de mentir.
Para quem defende a existência de um suporte constitucional para esse direto, o próprio compromisso de dizer a verdade (§14ª) seria um constrangimento ilícito e, como tal, nulo, por violar o direito à ampla defesa, com todos os meios para isso necessários.
Em nosso entender, a garantia da ampla defesa assegura apenas que se lance mão de todos os meios compatíveis com a ordem jurídica. Ninguém contesta que a ordenação jurídica não contempla qualquer direito à má-fé. Ao contrário, especialmente em se tratando de atividade de qualquer agente do Poder Público, o princípio implícito é o da boa-fé. O agente público não pode atuar de má-fé, nem transigir com relação a isso no seu relacionamento com particulares. Não pode o agente público permitir, tolerar, transigir com a má-fé de quem com ele se relacione.
Ouça-se a doutrina: “A atuação administrativa, em contrariedade ao fim previsto no ordenamento positivo, viola a exigência de boa-fé. Esta exprime, na ação do administrador, a exigibilidade de uma conduta leal e honesta, ou seja, de um proceder que se pode esperar de uma pessoa de bem.” (Edilson Pereira Nobre Júnior, O Princípio da Boa-fé e sua Aplicação no Direito Administrativo Brasileiro, Sergio Fabris Editor, Porto Alegre, 2002, p. 168)
Esse princípio foi acolhido pelo novo Código de Processo Civil, cujo artigo 5º dispõe: “Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.” Além disso, o CPC cuida de sancionar a má-fé: “Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que: I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;”
No âmbito do processo administrativo, a Lei 9.784, de 29/1/99, em seu artigo 2º, contempla a moralidade entre seus princípios e, no parágrafo único desse mesmo artigo, o dever de “atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé”. Esse dever atinge todos os participantes do processo administrativo: tanto o agente público quanto o particular interessado.
Pode-se concluir, portanto, lembrando a lição elementar de Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Edit. Forense, 9ª edição, 1984, p. 166): “Deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis.” A mentira é incompatível com o devido processo legal, sendo absurda a interpretação que consagra a mentira como decorrente do direito ao devido processo legal.
A utilização prestante e eficiente da colaboração premiada, prevista na Lei 12.850 de 02/08/13, depende da reforma da jurisprudência que consagra o direito de mentir.

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