Autor: Rafael Francisco Marcondes de Moraes e Luis Ricardo Repizo Kojo
RESUMO
O presente trabalho pretende expor breves ponderações acerca do crime doutrinariamente intitulado "embriaguez ao volante", em especial no contexto da fase policial da persecução criminal, visto que o delito ainda padece de consolidação em sua interpretação e aplicação, tanto na esfera administrativa quanto no âmbito judicial, propondo medidas a serem adotadas de acordo com as circunstâncias do caso concreto.
INTRODUÇÃO
O sistema jurídico brasileiro tem
procurado evoluir no tratamento referente ao tema "direção de veículo
sob estado de embriaguez", acompanhando o crescimento da quantidade e a
popularização dos automóveis, que repercutem no aumento de acidentes de
trânsito, muitos deles decorrentes dos efeitos do álcool no organismo
dos motoristas envolvidos.
Outrora tipificado no artigo 34 da Lei
das Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/1941), a condução do
veículo por motorista embriagado era considerada comportamento perigoso à
segurança alheia, e a conduta passou a configurar tipo penal específico
a partir do advento do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), instituído
pela Lei Federal nº 9.503/1997, que prevê onze tipos penais (artigos 302
a 312).
A embriaguez, segundo Mirabete (2000,
p.220), pode ser conceituada como a "intoxicação aguda e transitória
causada pelo álcool ou substância de efeitos análogos que privam o
sujeito da capacidade normal de entendimento" e é levada em consideração
na apreciação jurídica dos casos concretos, refletindo em maior ou
menor repressão ao agente que atua nesse estado.
O Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei
nº 2.848/1940), alicerce do sistema criminal, classifica a embriaguez
em voluntária, culposa e fortuita, de acordo com a sua origem, e somente
a última permite a exclusão da imputabilidade penal, pois pressupõe
involuntariedade, ou seja, seria oriunda de força maior (o indivíduo é
fisicamente forçado a consumir álcool ou substância de efeitos análogos)
ou de caso fortuito (quando se ingere substância cujo efeito inebriante
era desconhecido), nos termos do artigo 28, inciso II, do diploma
legal.
Portanto, juridicamente, a embriaguez
completa (plena) e involuntária (não desejada) enseja absolvição
própria, por exclusão da culpabilidade. Caso o comprometimento da
capacidade de compreensão e autodeterminação seja apenas parcial,
incidirá causa de diminuição de pena, de um a dois terços, prevista no §
2º, do artigo 28, do Código Penal.
Outrossim, a embriaguez pode
acarretar, ainda, a imposição de medida de segurança, caso se verifique
tratar-se de patologia, equiparando-se o alcoolismo a doença mental, na
forma do artigo 26 do Código Penal. Também pode determinar agravante
genérica, disposta no artigo 61, II, alínea "l", do mesmo codex, na
hipótese de o agente embriagar-se propositadamente para cometer o
delito, denominada embriaguez preordenada.
No delito em comento, tipificado no
artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, a embriaguez figura
diretamente como elemento do tipo penal, essencial para a subsunção do
fato concreto ao dispositivo legal.
CRIME DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE
A Lei Federal nº 11.705/2008, popularmente conhecida como "Lei Seca", estabeleceu a atual redação do artigo 306 do CTB:
Conduzir veículo automotor, na via
pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou
superior a 6 (seis) decigramas, ou sob influência de qualquer outra
substância psicoativa que determine dependência:
Penas - detenção de 6 (seis) meses a 3
(três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou
habilitação para dirigir veículo automotor.
Cumpre lembrar que a antiga redação do
dispositivo legal em estudo exigia prova de perigo concreto, que
consistia na exposição a dano potencial a incolumidade e não estipulava
concentração específica de álcool no sangue para configuração do delito:
Conduzir veículo automotor, na via
pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos,
expondo a dano potencial a incolumidade de outrem.
Observam-se duas condutas puníveis no
dispositivo em vigor: a primeira consistente na direção de veículo
automotor com concentração de álcool acima da estipulada, a segunda
caracterizada pela direção veicular sob influência de droga (outra
substância psicoativa que determine dependência).
No que tange à segunda conduta, para a
sua configuração, não se exige nenhum índice de concentração da
substância no organismo do agente, basta que conduza o veículo sob
influência da droga, o que poderá ser comprovado por qualquer meio
idôneo, sejam os tradicionais exames clínicos, sejam os exames técnicos
de laboratório, sejam provas testemunhais, dispensando-se maiores
indagações.
Em razão do acentuado consumo de
bebidas alcoólicas no país, a grande maioria dos casos envolve a
primeira conduta punível, verificada pela direção de veículos após
ingestão de álcool etílico. Por essa razão, tem a doutrina se debruçado
sobre o tema, porque o elemento objetivo inserido no tipo penal (seis
decigramas de álcool por litro de sangue) gera divergências, sobretudo
em virtude da necessidade de anuência do autor da infração para a
comprovação da concentração alcoólica em seu sangue.
O elemento objetivo do tipo
(concentração de álcool), em princípio, somente pode ser aferido
mediante submissão ao teste do etilômetro (popularmente, "bafômetro") ou
por meio de coleta de material sanguíneo do indivíduo para exame de
dosagem alcoólica. Isto porque o Decreto nº 6.488, de 19 de junho de
2008, que regulamentou o artigo 306, do CTB, estipulou somente o exame
de sangue e o teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro)
como testes de alcoolemia para efeitos de crimes de trânsito,
estabelecendo, para o último (etilômetro), uma concentração de álcool
igual ou superior a três décimos de miligramas por litro de ar expelido
pelos pulmões como equivalente à concentração prevista no tipo penal.
Não haveria, desse modo, outro meio legal para a comprovação desse
elemento na seara penal.
Assim, tendo em vista a máxima de que
ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se
detegere), regra que se extrai do artigo 8º, II, "g", da Convenção
Americana de Direitos Humanos, ratificada e incorporada ao ordenamento
brasileiro por meio do Decreto nº 678/1992, apenas o agente que aceitar
fornecer amostra de seu sangue ou realizar o teste do "bafômetro" poderá
ser responsabilizado criminalmente.
Segundo Luiz Flávio Gomes (2009), só
existem duas formas de se comprovar a quantidade de álcool no sangue:
exame de sangue ou bafômetro. Aliás, o bafômetro (etilômetro), a rigor,
não mede a quantidade de álcool no sangue, sim, ele mede a quantidade de
álcool por litro de ar. Por força do Decreto 6.488, que regulamentou o
art. 306 do CTB, estabeleceu-se a equivalência. Seis decigramas por
litro de sangue (exame de sangue) corresponde a três décimos de
miligrama por litro de ar (exame pelo etilômetro ou bafômetro).
Ocorre que ambos exigem uma postura
ativa do suspeito e ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo
(por força do princípio constitucional da não auto-incriminação), como
vem sendo reconhecido pelo STF (HC 96.219-MG, RTJ 141/512, HC
68.742-DF)".
Damásio de Jesus (2009) comunga desse entendimento:
A "Lei Seca", como ficou conhecida a
de n. 11.705/2008, que incluiu no Código de Trânsito Brasileiro um
limite quantitativo rigoroso para o nível de álcool no sangue de
motoristas, constitui um bom exemplo de que o endurecimento da
legislação nem sempre produz os resultados pretendidos. Paradoxalmente, a
fixação do teto de 6 decigramas de álcool por litro de sangue - algo
como dois copos de cerveja - parece estar contribuindo para a impunidade
dos condutores flagrados em embriaguez ao volante.
O objetivo era induzir o nível de
álcool no sangue a zero. Pelo menos no início, a nova regra conseguiu
reprimir esse comportamento de risco, que, segundo estatísticas, está
envolvido em cerca de 40% a 60% dos acidentes de trânsito com mortes. A
fiscalização aumentou, e motoristas temerosos das penalidades
draconianas - prisão em flagrante e 6 meses a 3 anos de detenção -
passaram a pensar duas vezes antes de beber e dirigir.
Ocorre que, ao fixar o limite
numérico, a lei tornou o crime, tipificado no art. 306 do Código,
dependente da comprovação da embriaguez por meio de teste químico de
presença de álcool no sangue. Como ninguém está obrigado a produzir
provas contra si, é direito do autuado recusar-se a realizar o teste do
bafômetro. Levantamento recente indicou que, nos casos que chegam aos
Tribunais, 80% dos refratários ao teste terminam absolvidos por falta de
provas.
Colhe-se, como era previsível, o
efeito oposto do pretendido. À medida que o esforço de fiscalização se
esvai, o temor da punição arrefece. Em paralelo, difunde-se que basta
escapar do teste para arcar só com as punições administrativas (multa e
suspensão da carteira por um ano).
Nesse diapasão, sustenta também Renato
Marcão (2009, p. 164),em decorrência das mudanças introduzidas com o
advento da Lei n. 11.705, de 19 de junho de 2008, apenas poderá ser
chamada a prestar contas à Justiça Criminal por embriaguez ao volante,
nos moldes do art. 306, caput, primeira parte, do Código de Trânsito
Brasileiro, a pessoa que assim desejar ou aquela que for enleada ou mal
informada a respeito de seus direitos, e por isso optar por se submeter
ou consentir em ser submetida a exames de alcoolemia ou teste do
"bafômetro" tratados no art. 277 do mesmo Codex e, em decorrência disso,
ficar provada a presença da dosagem não permitida de álcool por litro
de sangue.
Renato Marcão complementa, enfatizando
outro ponto relevante afeto à questão em análise, consistente na
necessidade de comunicação ao autor quanto ao direito que possui a se
recusar à submissão aos testes técnicos para aferição da concentração de
álcool (2009, p. 165): por questão de lealdade e cumprimento da própria
Constituição Federal, todo aquele que for abordado na via pública
conduzindo veículo automotor sob suspeita de haver ingerido bebida
alcoólica deve ser informado de seus direitos, entre os quais o de não
se submeter a exames de alcoolemia, teste do bafômetro etc.
A jurisprudência também tem se
declinado nessa linha, como se extrai do julgamento exarado pelo
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP, RESE nº
990.08.187866-6, rel. Des. Newton Neves, 28.7.2009):
Com a entrada em vigor da Lei
11.705/2008, exige o tipo penal, para a caracterização do crime,
elementar única, qual seja, a concentração de 0,6 (seis decigramas) de
álcool por litro de sangue. E essa exigência veio ainda destacada pelo
Decreto 6488, de 19 de junho de 2008 que, ao regulamentar os artigos 276
e 306, do CTB, para disciplinar a margem de tolerância prevista no
parágrafo único do primeiro artigo, enquanto não definidas em resolução
do CONTRAN ratifica, para os fins criminais de que trata o artigo 306 da
Lei 9503/97, a exigência de concentração igual ou superior a seis
decigramas de álcool por litro de sangue.
Portanto, e sendo o fato aqui apurado
datado de maio de 2008, impossível se torna a comprovação do delito
criminal imputado ao denunciado, o que faz reconhecer, pela nova redação
do artigo 306, do CBT, a ocorrência do "abolitio criminis".
A comprovação da embriaguez por meios
indiretos é prevista de forma exclusiva para a configuração da infração
administrativa, como fixado pelo artigo 165, do CTB, que mantém, em sua
redação, a determinante de direção "sob a influência de álcool", havendo
mesmo expressa disposição quanto a possibilidade da produção de prova
indireta ou indiciária (art. 277, § 2º, CTB), autorizando a imposição da
sanção administrativa até mesmo pela recusa do infrator em se submeter
aos procedimentos ali previstos (§ 3º).
Todavia, e como sabido, não se
confunde a infração administrativa com a tipificação criminal, exigindo
essa, para sua caracterização, a presença de todos os seus elementos,
não podendo essa conclusão ser fruto de dedução não autorizada por lei.
Nem se diga, como feito, que o
infrator será beneficiado pela recusa em se submeter aos testes de
alcoolemia pois, em ocorrendo esta hipótese, poderia o agente público,
policial civil ou militar, entendendo haver sinais evidentes de
embriaguez, conduzi-lo a presença da autoridade para, através de exame
clinico, atestar o estado de toxidez alcoólica.
No caso examinado, repete-se,
impossível fica comprovar, quer pelo teste de alcoolemia ou exame
clinico a elementar do tipo penal fixado pela redação da Lei
11.705/2008, razão pela qual correta se mostra, a r. decisão extintiva.
Ante todo o exposto, nega-se provimento ao recurso.
Nota-se que a doutrina majoritária tem
entendido que a existência da prova técnica de concentração de álcool
no sangue é imprescindível para a efetiva configuração do crime, não
bastando o tradicional exame clínico realizado por profissionais de
medicina, pois, em princípio, não afere com exatidão a quantidade
estipulada no tipo penal, exceto no caso do Instituto Médico Legal de
São Paulo, adiante mencionado.
Não obstante os posicionamentos acima,
consigna-se a existência de entendimentos no sentido contrário, que
procuram proporcionar maior efetividade ao dispositivo legal, como é o
caso de parecer elaborado pelo Ministério Público do Estado de Santa
Catarina, ao abordar a questão, a seguir colacionado (Parecer nº
005/2008/CCR - Ministério Público de Santa Catarina. 10 jul. 2008):
O problema todo começa quando o
motorista, usando da faculdade constitucional de não ser obrigado a
fazer prova contra si, recusa-se a submeter-se ao teste de alcoolemia.
Se isso acontecer, a infração administrativa está caracterizada (art.
165, § 3º). Entretanto, como ficará a situação na esfera criminal? É
possível valer-se de outros meios de prova para atestar a materialidade
do delito? Ora, se não for possível valer-se de outros meios de prova,
mas apenas dos testes de alcoolemia, praticamente se tornou letra morta o
crime previsto n art. 306, uma vez que basta o condutor recusar-se a
fazer o teste que não poderá ser processado criminalmente. Portanto,
essa conclusão não pode ser tão simples assim, sob pena do art. 306 cair
no vazio. Por outro lado, o tipo penal previsto no art. 306 deixa
claramente expresso que o crime só pode ocorrer se o condutor estiver
com uma concentração mínima de seis decigramas de álcool por litro de
sangue, o que exige prova técnica de alcoolemia para a correta aferição
desse critério matemático, em tese (art. 158 do CPP). Como resolver esse
impasse?
Antes de tudo é preciso ter em mente que essa é uma questão de prova, apenas, que vai
depender do caso concreto. O que se discute é qual a prova adequada. A
princípio, a prova técnica (teste de alcoolemia) é o meio mais
apropriado. Todavia, diante da recusa do condutor, podem ser usados
outros meios de prova, como o exame clínico (que é uma prova pericial)
ou mesmo depoimentos testemunhais? Arriscamo-nos a responder que nos
casos de embriaguez patente (e só nesses casos) esses outros meios de
provas podem ser usados para lastrear a convicção do juiz.
Observa-se a concepção de situação
passível de configuração do delito mesmo quando ausentes os dois meios
de prova técnica consignados na lei, situação esta denominada
"embriaguez patente", assim conceituada em trecho complementar do mesmo
parecer:
De fato, certo é que o critério
matemático imposto pela nova redação do art. 306, no caso de uma
embriaguez de grau médio para baixo, em que o condutor apresenta parcos
sinais de ingestão de álcool, com pouco odor, falando adequadamente,
andando com equilíbrio, dificilmente poderá ser atestada senão pelo uso
dos testes de alcoolemia. Se o condutor tomou uma taça de vinho, por
exemplo, caso se recuse a fazer o bafômetro, não há forma de saber se
alcançou a concentração mínima exigida para a caracterização do delito.
Só o exame de alcoolemia poderá atestar com precisão o grau mínimo de
embriaguez.
No entanto, na situação de uma
embriaguez patente, em que o condutor ingeriu não uma taça de vinho, mas
uma dúzia de garrafas, por exemplo, apresentando-se cambaleando, não se
agüentando em pé, quase em coma alcoólico, com forte odor, voz
completamente embargada, é evidente que o seu grau de embriaguez
excedeu, em muito, o limite de seis decigramas de álcool por litro de
sangue. Por que, então, este motorista não pode ser submetido a um exame
clínico, a fim de que os médicos atestem aproximadamente o seu grau de
embriaguez, o qual evidentemente é bem superior ao limite mínimo? Isso é
perfeitamente possível do ponto de vista médico, acreditamos (prova
pericial). Por que não pode o magistrado, por meio do seu livre
convencimento, valer-se da prova testemunhal, para atestar se de fato o
réu ingeriu as dez garrafas de vinho, pouco antes de dirigir?
Corroborando a possibilidade de
configuração do delito, mesmo quando ausentes os exames de dosagem
alcoólica e do etilômetro, destaca-se também a edição de ato pelo
Instituto Médico Legal do Estado de São Paulo, por meio da Portaria IML
nº 1/2009, de 5 de outubro de 2009, que padronizou critérios para a
realização de exame clínico de embriaguez, elaborado mediante observação
do comportamento da pessoa (aparência, orientação, atitude, atenção,
memória durante o exame, entre outros), e estabelece a correspondência
da alcoolemia do indivíduo de acordo com os sinais que ele apresenta no
momento do exame, da forma exposta a seguir.
Apresentando os sinais característicos
da fase de excitação, quais sejam, euforia ou agressividade, diminuição
da atenção, diminuição da concentração, alteração da coordenação motora
e dano às funções sensoriais, a concentração de etanol plasmático no
indivíduo estaria na faixa de 5 a 10 decigramas por litro de sangue.
Presentes os sinais predominantes da
fase do chamado estado franco de embriaguez, como fala arrastada,
ataxia, perda do juízo crítico, alteração de memória, sonolência e
instabilidade de humor, a alcoolemia estaria na faixa de 10 a 20
decigramas de álcool por litro de sangue.
A Portaria prevê também a avaliação da
concentração alcoólica, dependendo do intervalo de tempo entre o fato e
o exame clínico, de acordo com a nota técnica nº 15/2008, do Ministério
da Saúde, a qual declina que a eliminação do álcool pelo organismo
humano se dá em média a uma velocidade de 0,15 gramas/litro/hora, o que
possibilita aferir se no momento do fato a alcoolemia era compatível com
o índice previsto no tipo penal.
Assim, com base nesses critérios, o
médico legista poderá concluir em seu laudo de exame clínico se o
indivíduo apresenta-se com a alcoolemia maior ou igual a seis decigramas
por litro de sangue, no momento do exame ou mesmo no momento em que a
pessoa examinada dirigia o veículo.
Certamente, referida Portaria e todos
os laudos elaborados a partir dela ainda serão submetidos a uma ampla
análise em juízo e receberão manifestações e questionamentos acerca de
sua legitimidade como elemento de materialidade delitiva, passível ou
não de configurar o crime de embriaguez ao volante, sobretudo em razão
de o exame clínico não estar previsto como teste de alcoolemia para os
fins criminais do artigo 306 do CTB, segundo o respectivo decreto
regulamentador (Decreto nº 6.488/2008), mas o ato não deixa de ser uma
importante referência no escopo de promover concretude à norma penal.
Assim, constatam-se as divergências
existentes sobre o tema, que se seguem por vezes de severas críticas ao
legislador, e denotam a preocupação e a falta de padronização no
tratamento conferido pelo poder público aos casos concretos apreciados.
INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA
A infração administrativa atrelada à
embriaguez ao volante está tipificada no artigo 165, do Código de
Trânsito, e também sofreu alterações pela Lei Federal n. 11.705/2008,
trazendo atualmente o seguinte texto:
Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
Infração - gravíssima;
Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze meses);
Medida administrativa - retenção do veículo até apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação.
E o parágrafo único do dispositivo
reporta-se ao artigo 277 do Código de Trânsito para estabelecer a forma
de apuração da infração:
Parágrafo único. A embriaguez também poderá ser apurada na forma do art. 277.
O artigo 277, por sua vez, assim dispõe:
Todo condutor de veículo automotor,
envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de
trânsito, sob suspeita de dirigir sob influência de álcool será
submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro
exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados
pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado.
§ 1º Medida correspondente aplica-se no caso de suspeita de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos.
§ 2º A infração prevista no art. 165
deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a
obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios
sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor.
§ 3º Serão aplicadas as penalidades e
medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao
condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos
previstos no caput deste artigo.
Interessante anotar que, curiosamente,
a redação original do artigo 165, quando da edição do CTB, exigia a
concentração de álcool em nível superior a seis decigramas por litro de
sangue, índice hoje previsto para o tipo penal correspondente, e a
infração administrativa teve seu texto modificado posteriormente pela
Lei Federal nº 11.275/2006 e recebeu a última atualização e redação em
vigor pela citada "Lei Seca".
Percebe-se também que, no âmbito
administrativo, a recusa do motorista configura infração administrativa,
consoante determina o § 3º, do artigo 277 do CTB, que remete às medidas
previstas no artigo 165.
Assim, como já mencionado, para a
caracterização da infração administrativa não se exige a concentração
objetiva de álcool no sangue, e a apuração da embriaguez pode ser feita
por outros meios de prova (testemunho dos policiais, por exemplo) e não
somente os dois testes de alcoolemia consignados no decreto
regulamentador, consoante preceitua o § 2º, do artigo 277 do CTB.
ASPECTOS PRAGMÁTICOS
A seguir, serão traçados alguns pontos
de repercussão prática das explanações ora lançadas, levando-se em
conta as diferentes situações que podem se verificar, sobretudo no
tocante à responsabilização de indivíduos que se recusem a realizar os
testes de alcoolemia legalmente admitidos.
Numa análise restritiva, diante do
quadro legal atual, a lavratura de um auto prisional ou instauração de
inquérito policial em decorrência de crime de embriaguez ao volante,
assim como a consequente persecução criminal com decisão condenatória
está limitada aos casos nos quais o agente consinta em fornecer o
material para a elaboração da prova técnica por meio dos testes de
alcoolemia, salvo se admitida a prova pelo exame clínico, ainda pendente
de maior apreciação pelo Poder Judiciário paulista e nacional,
supracomentada. Do contrário, havendo recusa do autor, inevitavelmente,
este responderá somente pela infração administrativa ou por outra
infração penal a depender do caso concreto, como, por exemplo, a
contravenção de embriaguez, conforme adiante detalhado.
As delegacias de polícia são
verdadeiras "primeiríssimas instâncias" na análise e aplicação das
inovações legislativas, pois realizam o primeiro contato dos supostos
infratores com o novo ordenamento, formalizam os fatos e enquadram legal
e provisoriamente o caso concreto. Daí a importância de se
estabelecerem direcionamentos e padrões nas providências a serem
adotadas já no momento inicial da persecução criminal, tendo em vista
que o estado de embriaguez do indivíduo é transitório, esvaindo-se
rapidamente a possibilidade de sua comprovação, de modo natural através
da liberação das toxinas pela urina ou transpiração do organismo do
agente.
Em síntese, três são as situações que
ocorrem na prática: na primeira, o agente consente e se submete ao exame
do etilômetro (bafômetro); na segunda, o indivíduo fornece material
sanguíneo para o exame de dosagem alcoólica; e na terceira, ocorrendo
recusa aos dois testes anteriores, haverá tão somente o exame clínico e
eventuais depoimentos de testemunhas sobre o estado em que o indivíduo
se apresentava no momento dos fatos.
Antes da exposição de cada situação de
modo mais pormenorizado, é salutar asseverar que a apreciação do caso
concreto e as medidas a serem adotadas no âmbito da polícia judiciária
são de integral atribuição da autoridade policial competente, a qual
decidirá dentro da margem de discricionariedade que a lei lhe confere e
fundada em sua convicção jurídica acerca dos fatos apresentados.
Nesse sentido, o presente trabalho
propõe-se como parâmetro de reflexão, sugestão e auxílio na solução das
situações que se verifiquem no mundo fático.
Na mesma linha, encontram-se os
posicionamentos de cada agente incumbido de atuar na persecução penal,
quais sejam, os promotores de justiça, (pólo acusatório do processo
penal), os defensores públicos e advogados (pólo defensivo) e os
magistrados, os quais também farão uso de suas respectivas convicções,
pautados por diretrizes institucionais ou doutrinárias no intuito de
dirimir cada caso concreto levado à apreciação da justiça criminal.
EXAME DO ETILÔMETRO
O exame do etilômetro realiza-se, como
regra, quando o motorista for abordado por agentes de trânsito e anui
em se submeter ao teste do aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro
ou bafômetro). Para tanto, deve soprar, e o aparelho rapidamente afere a
concentração de álcool por litro de ar expelido pelos pulmões e emite,
em seguida, o resultado, gerando um pequeno documento impresso em papel
com os dados.
A confirmação de índice igual ou
superior a três décimos de miligramas por litro de ar equivale à
concentração de álcool por litro de sangue consignada no tipo penal, de
acordo com o Decreto regulamentador nº 6.488/2008, compreendendo este
resultado indício da materialidade delitiva.
Assim, em qualquer modalidade de
flagrante: seja o flagrante próprio, quando o autor cometeu ou acabou de
cometer o delito; seja o flagrante impróprio ou quase-flagrante, quando
o perseguido após a prática delitiva vem a ser capturado (motorista
alcoolizado que abandona o veículo e tenta empreender fuga); seja o
flagrante presumido ou ficto, quando o indivíduo é encontrado com
objetos que permitam a presunção de que seja ele o autor (por exemplo,
indivíduo alcoolizado encontrado fora do automóvel que dirigia, com
chaves ou documentação do automóvel ou qualquer outro objeto que faça
presumir ser ele a pessoa que estava dirigindo), haverá o mínimo de
certeza acerca da autoria. Nessas circunstâncias, o resultado do exame
do etilômetro pode servir como sinal da ocorrência do crime de
embriaguez ao volante, consubstanciando-se os indícios de autoria e
materialidade no contexto do estado de flagrância, suficientes, em tese,
para a lavratura do respectivo auto prisional.
No entanto, o Poder Judiciário ainda
não firmou posição quanto à admissão do resultado do etilômetro como
elemento de materialidade do crime analisado, como se depreende de
algumas decisões que versam sobre a questão, algumas delas a favor
(TJSP, HC 990.09 081022-0, 14ª Cam., Rel. Des. Walter da Silva,
20.8.2009):
A tipificação da conduta encontra eco
no artigo invocado pelo Parquet, sendo que a legislação não obriga que
se faça exclusivamente o exame sangüíneo para comprovação da
materialidade, eis que constitui prova robusta o aferimento do nível de
álcool no corpo do paciente por meio do etilômetro.
E outras no sentido inverso (TJSP, RESE 990.08.074708-8, 10ª Cam., Rel. Fernanda Galizia Noriega, 13.3.2009):
O teste do bafômetro, por si só não pode ser considerado como prova da materialidade delitiva.
Razão não assiste ao ilustre Promotor
de Justiça recorrente, ao argumentar no sentido da aplicação do Decreto
n. 6.488/08 que regulamentou o artigo 306 do Código de Trânsito
Brasileiro, admitindo o etilômetro para a determinação do nível de
alcoolemia, porquanto a nova Lei de trânsito determina que para fins de
embriaguez na condução de veículo automotor, o agente deve ter
concentração de álcool superior a 06 (seis) decigramas por litro em seu
sangue e o exame do "bafômetro" não tem o condão de constatar a efetiva
concentração de álcool no sangue do indivíduo.
Logo, sem o exame de sangue não há
como constatar se o apelado estava embriagado e, portanto, não se pode
vislumbrar a materialidade delitiva para o prosseguimento do processo.
Por outro lado, considerando-se que o
resultado do teste do etilômetro é elaborado por equipamento operado por
agente público sem formação técnica própria, o documento por ele
emitido não possui a mesma credibilidade, tampouco o mesmo status de um
laudo pericial.
Além disso, o Código de Processo
Penal, em seu artigo 159, exige que as perícias sejam realizadas por
perito oficial, portador de diploma de curso superior, e o motorista
investigado deverá também ser encaminhado ao Instituto Médico-Legal para
a realização de exame de dosagem alcoólica (através do material
sanguíneo). Não haverá óbice à autoridade policial, no caso concreto,
registrar a ocorrência, sem autuar o indivíduo em flagrante. Aguardará o
resultado do exame pericial, este sim apto a atestar a concentração
etílica no sangue, confeccionado nos precisos moldes da lei, podendo
indicar, inclusive, resultado diverso do apontado pelo etilômetro.
Referida medida se harmoniza com o
sistema legal vigente, tanto no aspecto técnico-jurídico, quanto na
questão de isonomia de tratamento aos cidadãos, se comparada com a
situação em que o agente não se submete ao bafômetro, mas apenas ao
exame de dosagem alcoólica. Neste caso, também se aguarda o resultado da
perícia, com prazo de dez dias para elaboração, prorrogável em casos
excepcionais, nos termos do parágrafo único, do artigo 160 do CPP.
Frise-se que, mesmo no caso de prisão
em flagrante, como regra, será fixada fiança criminal para que o autor a
recolha e responda, em liberdade, a regular persecução criminal, com
supedâneo no artigo 322 do CPP, por se tratar de delito punido com
detenção.
EXAME DE DOSAGEM ALCOÓLICA
Na prática, surpreendido um motorista
que aparenta estar alcoolizado, apresentando sinais de embriaguez como
odor etílico, andar cambaleante, fala pastosa e embargada, entre outros,
o agente de trânsito, se possuir à disposição o aparelho etilômetro,
solicitará que o indivíduo se submeta ao teste, podendo ele se recusar a
expirar o ar de seu pulmão no equipamento, conforme supradescrito.
Ocorre que o número desses
equipamentos utilizados nas fiscalizações ainda é pequeno se comparado
com a quantidade de veículos que trafegam nas vias públicas. Muitas
vezes, não haverá o aparelho para tentar aferir a concentração de álcool
no motorista.
Desse modo, os motoristas
aparentemente alcoolizados devem ser conduzidos às delegacias de polícia
e, na sequência, encaminhados para unidades do Instituto Médico-Legal
(IML) com requisições das autoridades policiais para a realização de
exame de dosagem alcoólica, elaborado com o material sanguíneo do
motorista, ou exame clínico de embriaguez, feito pelo médico-legista
mediante análise visual e comportamental do indivíduo (equilíbrio,
reflexos, hálito, conversa etc.).
Importa destacar que é conveniente que
o delegado de polícia requisite o exame de dosagem alcoólica cumulado
com o exame clínico, porque o agente pode se recusar a fornecer amostra
de seu sangue, prejudicando a elaboração da dosagem alcoólica, e restará
somente o exame clínico requisitado.
Ademais, como regra, demanda certo
tempo para a elaboração do laudo pericial de dosagem alcoólica (prazo
legal de dez dias, prorrogável, como acima citado), e somente após sua
confecção será possível aferir o índice de concentração de álcool no
sangue do agente.
Evidentemente que, mesmo havendo
anuência e submissão ao "bafômetro", o motorista deverá ser conduzido ao
IML para realização dos outros dois exames, corroborando o conjunto
probatório e aproximando-se o máximo possível da verdade real, objetivo
primordial das apurações de infrações penais.
Caso haja somente o exame de dosagem
alcoólica (o motorista recusou-se ao etilômetro ou simplesmente não
havia o equipamento, por exemplo), será necessário aguardar o envio do
respectivo laudo à unidade de polícia judiciária, inviabilizando, em
princípio, o entendimento que admite a autuação em flagrante do agente.
Uma vez protelada a confirmação da materialidade delitiva, deve o
delegado de polícia registrar os fatos em boletim de ocorrência, para
posterior adoção de providências de acordo com o resultado pericial.
Aportado o laudo na unidade policial, e
verificado o índice legal de concentração alcoólica, será instaurado
inquérito policial, seguindo-se da juntada das diligências realizadas em
cada caso, para posterior indiciamento do indivíduo, tendo em vista a
presença dos indícios delitivos, prosseguindo-se os autos à justiça
criminal para a devida responsabilização penal.
EXAME CLÍNICO E PROVAS TESTEMUNHAIS
O exame clínico e as provas
testemunhais são os dois outros meios de prova que restarão, se o
motorista aparentemente alcoolizado recusar-se a soprar o "bafômetro" e a
fornecer sangue para exame de dosagem alcoólica.
Consoante entendimento predominante,
já exposto de modo exaustivo, referidos exames não seriam admitidos para
fins de caracterização do crime de embriaguez ao volante, por não
atestarem o índice objetivo instituído no tipo penal, ressalvada a
posição do Instituto Médico Legal do Estado de São Paulo, retro
destacada, que mediante portaria procurou possibilitar conclusão
pericial amoldada à exigência legal, de acordo com os sinais
predominantes das fases da embriaguez apresentados pelo indivíduo
examinado.
Preliminarmente, anote-se a existência
de posições minoritárias que admitem a configuração do crime mesmo sem a
comprovação objetiva da concentração, como é o caso do citado parecer
do Ministério Público de Santa Catarina, que entende ser possível
inclusive a prisão em flagrante na hipótese da comentada "embriaguez
patente", conforme trecho abaixo colacionado (2008):
Por fim, impende esclarecer que a
negativa do bafômetro ou qualquer outro teste de alcoolemia não pode
sujeitar o motorista à prisão em flagrante. O condutor tem esse direito,
como já vimos. Pode optar entre fazer o bafômetro e arriscar-se à
caracterização imediata do delito ou pode negar-se e, conseqüentemente,
optar pela sanção administrativa prevista no art. 277, § 3º, do CTB. O
que não pode é ser preso em razão dessa negativa, simplesmente. Essa é
uma infração administrativa, apenas. A não ser no caso de embriaguez
patente, facilmente comprovada por outros meios de prova, como já
falamos, quando o crime está configurado. Nesses casos, apenas nesses
casos, possível é a prisão em flagrante do condutor, mesmo diante da
recusa do bafômetro, pela prática do delito previsto no art. 306.
Na mesma linha de argumentação, em
texto que instrui o referido parecer, Bruno Freire de Carvalho Calabrich
assevera (2008, Jus Navegandi):
Considerando a opção que o motorista
tem de se recusar ao teste do bafômetro ou a qualquer outro exame
(aceitando, com isso, a aplicação das sanções do artigo 165 do CBT), a
única hipótese para que seja forçosamente levado a uma delegacia é o
caso de ser preso em flagrante pelo crime de embriaguez ao volante. Mas a
prisão em flagrante por esse crime só pode ocorrer quando estiver
claramente caracterizada a embriaguez do motorista, o que de regra
resulta de um exame de alcoolemia positivo. Não sendo realizado esse
exame, outra possibilidade é o caso de embriaguez patente, verificada no
ato pelos agentes de trânsito ou por médicos em virtude de "notórios
sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor",
conforme previsão do art. 277, §2º do CBT. Embora a lei, neste artigo
277, refira-se apenas à comprovação da infração administrativa do art.
165 do CBT, não há por que não aplicá-la também ao crime do artigo 306. O
problema, entretanto, será uma questão de prova, a ser ponderada tanto
pela autoridade responsável pela lavratura de um (eventual) auto de
prisão em flagrante quanto pelo Ministério Público e pelo Judiciário, ao
ensejo do processo penal a ser instaurado contra o motorista que for
flagrado em (suposto) estado de embriaguez evidente. É de se admitir,
entretanto, a dificuldade prática da substituição de uma prova técnica
(como o bafômetro) por outra prova, considerando a exigência
"matemática", para a configuração do crime, de uma concentração igual ou
superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue. Assim, a prisão
em flagrante em caso de recusa do agente ao teste do bafômetro deve
ocorrer apenas em casos de embriaguez evidente, que há de ser
documentada pelo delegado de polícia no auto de prisão em flagrante,
inclusive com testemunhas e com qualquer outra prova apta a demonstrar o
fato. Se não se tratar de uma situação de notória embriaguez, comete
abuso de autoridade o agente que "prende" ou "conduz coercitivamente" o
motorista para fazer um exame ao qual ele se recusa. Na dúvida quanto a
seu estado de embriaguez, o condutor não pode ser preso; caso assim se
proceda, a prisão será ilegal e deve ser prontamente invalidada pelo
Judiciário, submetendo-se os responsáveis a um processo criminal por
abuso de autoridade, além de outras sanções administrativas e cíveis
cabíveis.
Não obstante os entendimentos acima,
considerando a majoritária inclinação no sentido de impedir a
caracterização delitiva quando ausente a comprovação pelos dois meios
legalmente previstos (bafômetro e dosagem alcoólica com material
sanguíneo), a autoridade policial deve angariar todos os elementos de
prova que lhe sejam possíveis na situação concreta, exaurindo as
providências cabíveis.
Num segundo momento, colhidos os
elementos, em especial os mais comuns, que consistem no exame clínico e
nas provas testemunhais, as circunstâncias do caso deverão ser
apreciadas para que se verifique eventual configuração de outras
infrações penais, a serem analisadas no tópico seguinte, que não a do
artigo 306, do CTB, prejudicada em razão da inexistência da prova
técnica de concentração alcoólica.
Finalmente, ressalte-se que em todos
os casos expostos, sempre será de bom alvitre que o motorista
alcoolizado seja encaminhado ao IML, para os exames periciais, e também a
um hospital para receber assistência médica, com aplicação de glicose
ou outras medicações, a fim de preservar sua saúde e sua integridade
física.
OUTRAS INFRAÇÕES PENAIS
A autoridade policial poderá analisar,
com outros elementos de prova como depoimentos e exame clínico, de modo
subsidiário, eventual caracterização de outras infrações penais, de
acordo com as características específicas do caso concreto, já na fase
administrativa do processo penal, caso não haja prova técnica da
concentração de álcool, prevista no tipo penal da embriaguez ao volante
(em razão da recusa do motorista aos testes), ou exista apenas laudo
pericial com índice de concentração alcoólica abaixo do legal.
Assim, mesmo não caracterizando
aplicação precisa do princípio da subsidiariedade, que advém da
existência de relação de conteúdo e continente entre duas normas, ou
ainda do princípio da especialidade, oriundo da relação de gênero e
espécie entre duas normas, principalmente porque o delito de embriaguez
ao volante deixou de ser crime de perigo concreto, serão elencadas
algumas infrações que podem ser vislumbradas conforme elementos
deflagrados em cada ocorrência, caso já não constem desde o registro
inicial como perpetradas em concurso com a do artigo 306 do CTB.
Na conjectura apresentada, uma das
infrações que pode se configurar é a contravenção penal de embriaguez,
tipificada no artigo 62, da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei nº
3.688/1941), que possui o seguinte texto:
Apresentar-se publicamente em estado
de embriaguez, de modo que cause escândalo ou ponha em perigo a
segurança própria ou alheia:
Pena - prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses ou multa.
Ao contrário do que ocorre com a
embriaguez ao volante, nesta contravenção a comprovação da embriaguez
não está restrita à demonstração do índice objetivo da concentração
alcoólica, podendo ser caracterizada por qualquer outro meio idôneo,
sobretudo os tradicionais exames clínicos ou as provas testemunhais.
Para configuração da contravenção,
além do estado de embriaguez, será necessário que o agente se apresente
publicamente, ou seja, em praças, ruas, clubes, festas entre outros, e
que coloque em perigo a sua própria segurança ou a segurança alheia,
circunstância esta a ser aferida no caso concreto.
Outra infração possível de configuração é a de participação em competição não autorizada, do artigo 308, do CTB:
Participar, na direção de veículo
automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição
automobilística não autorizada pela autoridade competente, desde que
resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada:
Penas - detenção, de seis meses a dois
anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou
habilitação para dirigir veículo automotor.
Se do contexto fático apurado no caso
for possível constatar que o investigado praticava disputa ou competição
sem autorização do órgão público competente, o estado de embriaguez e
eventuais depoimentos dando conta da alta velocidade imprimida ou de
manobras imprudentes pelos competidores, por exemplo, poderão demonstrar
o dano potencial à incolumidade exigido no tipo penal.
O delito de direção de veículo sem
permissão ou habilitação, previsto no artigo 309, do CTB, também poderá
se caracterizar, observando-se sua redação:
Dirigir veículo automotor, em via
pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda,
se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano:
Penas - detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano.
Nota-se que, não possuindo o agente
permissão ou habilitação no momento em que é flagrado dirigindo,
demonstrado o perigo de dano decorrente da condução irregular do veículo
automotor (por meio do conjunto probatório trazido aos autos), estará
configurado o crime.
Por fim, o crime previsto no artigo
311, também do CTB, de excesso de velocidade em determinados locais,
tipifica a seguinte conduta:
Trafegar em velocidade incompatível
com a segurança nas proximidades de escolas, hospitais, estações de
embarque e desembarque de passageiros, logradouros estreitos, ou onde
haja grande movimentação ou concentração de pessoas, gerando perigo de
dano:
Penas - detenção de seis meses a um ano, ou multa.
Como nas demais infrações
relacionadas, a comprovação da velocidade excessiva e do perigo de dano,
nas localidades indicadas, poderá ser feita por qualquer meio idôneo,
podendo o delito ficar caracterizado caso esses elementos estejam
presentes no fato apreciado.
Por óbvio, tantas outras infrações
penais poderão ser vislumbradas no caso concreto, mas as retroapontadas
têm maior proximidade com o crime de embriaguez ao volante e exigem,
relativamente, pequenos elementos a serem acrescidos para a subsunção
aos seus tipos penais.
Para a formalização das situações
relatadas, na prática, o delegado de polícia poderá instaurar inquérito
policial, não obstante se trate de infrações de menor potencial
ofensivo, que ensejariam, em tese, a lavratura de termo circunstanciado
de ocorrência, este aplicável, caso toda a situação e suas
peculiaridades fossem reveladas de plano, por ocasião da apresentação do
autor na delegacia de polícia, o que nem sempre se verifica.
Sendo assim, as circunstâncias
específicas serão demonstradas mediante diligências ulteriores ou mesmo
após a chegada do laudo pericial acerca da concentração alcoólica ou do
exame clínico, por exemplo, e a ocorrência, em princípio, é registrada
para apuração do crime de embriaguez ao volante e não da infração penal
posteriormente caracterizada.
No inquérito policial serão realizadas
e acostadas todas as diligências pertinentes (boletim de ocorrência,
oitivas, laudos etc.), e o delegado de polícia destacará, no relatório
final, as circunstâncias que entende presentes e que poderão determinar a
configuração de uma ou outra infração penal, remetendo ao Poder
Judiciário para a devida apreciação do magistrado e do promotor de
justiça, com a ressalva de que, em se tratando de infração de menor
potencial ofensivo, caberá a distribuição ao respectivo Juizado Especial
Criminal.
CONCLUSÃO
Do exposto, constata-se a falha na
construção legislativa pátria, que revela ausência de uma análise no
contexto amplo do sistema jurídico quando da alteração de dispositivos
legais.
Inicialmente anunciada como de maior
repressão, a alteração do crime de embriaguez ao volante, como sói
ocorrer, na realidade implicou, tecnicamente, num posicionamento mais
brando do poder público diante do infrator, permitindo por vezes a
impunidade daquele que foi flagrado, efetivamente, alcoolizado e
causando perigo na condução de veículos.
Entretanto, a proposta do presente
trabalho, por meio das considerações delineadas, é de oferecer
parâmetros para as providências iniciais de polícia judiciária quanto ao
crime de embriaguez ao volante, diante da legislação atual, e sugerir
saídas legais para viabilizar respostas da Justiça Pública ante
situações comumente constatadas, buscando respaldo em outras infrações
penais em vigor, quando da impossibilidade de configuração do crime do
artigo 306 do CTB.
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Acesso em 29 set. 2009.
________________________________________
Notas:
* Rafael Francisco Marcondes de
Moraes. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo. Especialista em
Direito Público. Foi Escrivão de Polícia, Advogado e Oficial de
Promotoria. Graduado pela Faculdade de Direito de Sorocaba.
Luis Ricardo Repizo Kojo. Delegado de
Polícia do Estado de São Paulo. Especialista em Ciências Penais. Foi
Escrivão de Polícia e Investigador de Polícia.
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