quarta-feira, 12 de junho de 2013

Dever constitucional obriga juiz a fundamentar decisões

No Mercador de Veneza, William Shakespeare alerta-nos que o demônio pode citar as Escrituras para seus fins. Nada mais correto. Não há nenhuma norma mais elevada ou ideia democrática que não possa ser usada com alguma técnica mais ou menos sofisticada pelo autoritarismo. Não deixa de ser irônico que o decisionismo judicial hoje imperante tenha por apoio normas que nada mais são do que reflexos necessários da garantia constitucional do contraditório.
Com base na garantia de fundamentação das decisões judiciais prevista no inciso IX do artigo 93 da Constituição da República, os tribunais tem repetido à exaustão a cantilena de que não é necessário que o juiz enfrente todas as teses e questões levantadas pelas partes, contanto que venha a decidir fundamentadamente. Daí, admite-se frequentemente que o juiz deixe de enfrentar todas as teses apresentadas pelas partes.
Semelhante fenômeno tem acontecido quanto à norma do artigo 131 do Código de Processo Civil, que determina que o juiz apreciará livremente a prova, atentando aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, a qual vem sendo aplicada como uma franquia a um discricionarismo judicial de impossível controle pela via recursal.
Em apoio a essa postura, os discursos judiciais costumam ser entremeados por citações de expressões latinas como narra mihi factum dabo tibi jus (narra-me os fatos que te darei o direito), como forma de libertar os juízes do dever de prestar contas sobre o que foi debatido no processo. Usando essa expressão, os julgadores entendem-se desobrigados de deliberar sobre os argumentos jurídicos apresentados pelas partes, pois a palavra por eles dita seria inevitavelmente o direito. A decisão judicial, nesse estado de coisas, não deriva propriamente da dinâmica do processo, nem da ação, nem da defesa, assemelhando-se, em verdade, a um dito divino ou mágico. O princípio é o verbo, puro e simples, e não o diálogo ou a deliberação.
Entretanto, a partir da percepção de que é o contraditório o princípio basilar e inarredável de todo o direito processual, nota-se que a norma do inciso IX do artigo 93 da CF, os dizeres do artigo 131 do CPC, e as expressões latinas citadas são, em verdade, fatores de constrição do discricionarismo judicial. Encerram deveres e limites à magistratura e direitos às partes e à sociedade em geral. O contraditório, muito mais do que uma franquia de simples participação formal no processo, é a possibilidade de influir na construção de uma decisão estatal, garantida com o dever de os órgãos de decisão deliberarem a respeito dos argumentos produzidos. É, enfim, fator de legitimação do exercício do poder estatal.
Com efeito, o dever de fundamentação das decisões judiciais (inciso IX do artigo 93 da CF) não permite que os julgadores fundamentem de qualquer modo, aleatoriamente, de forma desconectada da discussão engendrada pelas partes. Não basta que haja uma coerência abstratamente considerada entre a decisão e o fundamento produzido, como se a sentença fosse um texto independente. A fundamentação de que trata o comando do artigo 93, IX, da CF, é uma coerência entre o que se decide e todo o processo, com todas as suas vicissitudes, o que repugna a prática tão difundida de decisões estandardizadas, que pouco se referem à concretude da discussão travada nos autos.
A partir da percepção de que o ordenamento processual exige das partes, por seus advogados, a apresentação de arrazoados sobre questões de fato e também de direito tendentes a fundamentar seus pedidos aos órgãos judiciários, percebe-se que o dever de fundamentação das decisões judiciais é a contraparte do ônus de fundamentar suportado pelas partes. O contraditório, afinal, envolve, não só a oportunidade de falar, como também a de ser ouvido. A garantia do contraditório exige dos órgãos judiciários atenção e deliberação a respeito do que dizem as partes sobre os fatos e sobre o direito. Além de demonstrar que compulsou os autos, que leu os arrazoados das partes, por meio dos relatórios das decisões, devem os julgadores verter em palavras a deliberação que fazem sobre os fundamentos de fato e de direito que as partes apresentam.
Num quadro em que o princípio é o verbo da autoridade, não é de se estranhar que haja tantos recursos em que as partes questionam a total ausência de deliberação sobre suas teses. Ao decidirem esses recursos, costumam os tribunais enunciar, à exaustão, é certo, que “o juiz não está obrigado a deliberar sobre todas as teses apresentadas pelas partes, conquanto que decida de forma fundamentada nos termos do inciso IX do art. 93 da Constituição”, e citam-se aos borbotões julgados que repetiram essa cantilena enfadonha e antipática, mas uma ideia como essa frustra frontalmente o princípio do contraditório, a título de dar cumprimento à regra do artigo 93, IX, da Constituição.
Efetivamente, a partir de uma leitura bem literal e fragmentária da regra da fundamentação das decisões judiciais, ninguém diria que seria desfundamentada uma sentença que se limitasse a transcrever, a título de fundamentação, o que disse a parte autora como causa de pedir. Atender-se-ia à literalidade do inciso IX do artigo 93, mas se desatenderia o postulado maior do contraditório, sobretudo naqueles casos em que o réu vem a juízo, contesta, produz prova, alegações finais, etc. Fundamentar uma decisão unicamente com os fundamentos da parte autora, tratando o réu que se mostra cioso na defesa de seus interesses como se revel fosse, significa fraudar o princípio do contraditório e a verdadeira razão de existir do disposto no inciso IX do artigo constitucional 93.
Tristemente, também a regra do artigo 131 do CPC vem sendo aplicada tortuosamente em afronta ao contraditório. Quando se diz que o juiz apreciará livremente a prova presente dos autos, significa, antes, um alerta ao julgador para que não julgue com base em fatos e circunstâncias não constantes dos autos. A norma do artigo 131, antes de conferir liberdade de apreciação das provas ao magistrado, limita-lhe o conhecimento aos elementos que estão efetivamente presentes nos autos e que, por esta razão, foram ou puderam ser objeto de debate pelas partes.
Além disso, normas como a do artigo 131 que estipulam a livre apreciação da prova significam a necessidade de fechamento do sistema processual de influências externas. Apreciar livremente, significa, deliberar sem pressões externas. Trata-se de garantia aos indivíduos de que o judiciário irá apreciar suas postulações de forma independente, desinteressada, e dentro de parâmetros estreitos, previsíveis e controláveis: aquilo que consta documentado nos autos.
Conexa à norma do artigo 131 do CPC, apresenta-se a expressão latina narra mihi factum dabo tibi jus. Não se trata de um penhor de confiança adredemente conferido aos juízes no sentido de que será tido como o justo aquilo que porventura venha por eles decidido, o que, no limite, justifica a própria supressão do direito de recorrer. Bem diversamente, significa mais uma constrição ao decisionismo judicial, a partir da colocação de uma baliza para além da qual não pode ir o julgador: os fatos alegados pelas partes. Além de estar limitado pelos elementos de prova constantes dos autos, o magistrado encontra-se acicatado pelas alegações das partes. Não podem os juízes abandonarem a postura de inércia para deflagrarem, eles próprios, demandas judiciais. Por isso se diz que o processo depende da iniciativa das partes. Devem elas narrar o fatos como condição sem a qual os juízes não podem dizer o direito. Assim, nunca o direito será dito pelos juízes se o interessado a quem beneficiaria alguma decisão judicial não se anima de, pelo menos, narrar os fatos. Esse é o conteúdo limitador da arbitrariedade judicial da expressão latina.
É evidente que o juiz não está limitado pelos fundamentos de direito da ação nem da defesa, podendo dar a qualificação jurídica que reputar mais adequada à demanda deduzida. No entanto, isso não significa que o juiz não precise prestar conta às alegações jurídicas apresentadas pelas partes, demonstrando que o direito evocado por elas não é o mais adequado. Não se admite a discordância gratuita, desfundamentada, sobre os fundamentos jurídicos aduzidos pelas partes.
Sobretudo num modelo constitucional de contraditório influenciado pela posição proeminente da advocacia, erigida à condição de função essencial à justiça, não se podem aceitar por trás do narra mihi factum dabo tibi jus disposições judiciais autoritárias que reduzem o papel dos causídicos ao de mero narradores de histórias. Mais do que narrar os fatos, os advogados contribuem com a decisão judicial com propostas de enquadramento desses fatos nas normas jurídicas, as quais merecem ser objeto de deliberação pelos destinatários. Aliás, não é demais lembrar que é inepta a petição inicial que não traga os fundamentos jurídicos do pedido (CPC, arts. 283, III c/c 295, parágrafo único, I), a significar que, desde o nível infraconstitucional, atribui-se à advocacia um papel muito mais relevante do que o de mera instituição contadora de fatos para um futuro e mágico enquadramento jurídico a ser feito pela autoridade judicial.
A narrativa dos fatos pelos postulantes é condição necessária para o exercício da jurisdição. É uma condição necessária, porém não suficiente. Jamais será o direito aquilo que vier a ser dito pelo juiz se não houver deliberação sobre os argumentos apresentados pelas partes, por seus advogados.
Bem vistas as coisas, embora as normas dos artsigos 93, IX, da CF e do artigo 131 do CPC estejam sendo evocadas para destruir o contraditório, chega-se até a pensar, num gesto mais radical, em revoga-las. Porém, sem tais normas, a compreensão do contraditório ficaria na absoluta dependência de uma doutrina pujante que conquistasse os corações e as mentes dos estudantes e professores de Direito, e a crítica ao autoritarismo perderia alguns de seus mais importantes esteios. Os demônios não precisariam de malabarismos argumentativos para dominar tudo. É, enfim, preciso não perder de vista que as Escrituras não deixam de ser santas se o demônio as usa para seus fins.
Pablo Bezerra Luciano é procurador do Banco Central e presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Banco Central do Brasil.

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