domingo, 25 de julho de 2010

VIOLAÇÃO Á PRIVACIDADE - BRASIL É CONDENADO PELA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANDOS DA OEA POR INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS ILEGAIS

Brasil é condenado novamente pela CIDH:
Caso Escher (Violação à privacidade)

LUIZ FLÁVIO GOMES

Em maio de 1999, o então major Waldir Copetti Neves, oficial da Polícia Militar do Paraná, solicitou à juíza Elisabeth Khater, da comarca de Loanda, no noroeste do estado, autorização para grampear linhas telefônicas de cooperativas de trabalhadores ligadas ao MST. A juíza autorizou a escuta imediatamente, mas deixou de cumprir a constituição e a lei brasileiras, seja porque não fundamentou sua decisão, seja porque não notificou o Ministério Público, seja porque ignorou o fato de não competir à PM fazer investigação criminal contra civis. Durante 49 dias os telefonemas foram gravados.

A falta absoluta de embasamento legal, disse a ONG Justiça Global, demonstra a clara intenção de criminalizar os trabalhadores rurais grampeados.

A Secretaria de Segurança Pública do Paraná, segundo a mesma ONG, “convocou uma coletiva de imprensa e distribuiu trechos das gravações editados de maneira tendenciosa. O conteúdo insinuava que integrantes do MST planejavam um atentado à juíza Elisabeth Khater e ao fórum de Loanda. O material foi veiculado em diversos meios de imprensa, o que contribuiu para o processo de criminalização que o MST já vinha sofrendo”.

Ainda consoante notícia da Justiça Global (www.global.org.br), “no dia 06 de agosto de 2009 a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA divulgou a sentença do caso “Escher e outros Vs Brasil”, na qual condena o Brasil pelo uso de interceptações telefônicas ilegais em 1999 contra associações de trabalhadores rurais ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Paraná”.
“O Estado brasileiro foi considerado culpado pela instalação dos grampos, pela divulgação ilegal das gravações e pela impunidade dos responsáveis”.

“A polêmica em torno de escutas telefônicas é atual. Há menos de um ano, denúncias de grampo nas investigações da Polícia Federal ao banqueiro Daniel Dantas causaram reações indignadas no Congresso, e nos poderes Executivo e Judiciário. Recentemente, a divulgação das gravações sigilosas do filho de José Sarney causou polêmica e resultou em uma medida judicial que proibiu a veiculação das conversas. A sentença divulgada hoje evidencia o fato de que, no Brasil, setores da Justiça e da classe política se comportam de maneira distinta em função dos atores envolvidos”.

“A denúncia à OEA foi feita em dezembro de 2000 pelo MST, pela Justiça Global, pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), pela Terra de Direitos e pela Rede Nacional de Advogados Populares (RENAP)”.

Em 2 de março de 2006 a Comissão declarou admissível o caso (juízo de admissibilidade da demanda) mediante o Relatório n. 18/06 e, em 8 de março de 2007, conforme os termos do artigo 50 da Convenção, aprovou o Relatório de Mérito n. 14/07, o qual continha determinadas recomendações contra o Estado brasileiro.

Esse relatório foi notificado ao Brasil em 10 de abril de 2007, sendo-lhe concedido um prazo de dois meses para comunicar as ações empreendidas com o propósito de implementar as recomendações da Comissão. Depois de três prorrogações concedidas ao Estado, “[a]pós considerar as informações prestadas pelas partes com relação à implementação das recomendações constantes do relatório de mérito, e […] a falta de progresso substantivo no que diz respeito ao [...] efetivo cumprimento [das mesmas]”, a Comissão decidiu submeter o caso à jurisdição da Corte. Considerou que o presente caso representa uma oportunidade valiosa para o aperfeiçoamento da jurisprudência interamericana sobre a tutela do direito à privacidade e do direito à liberdade de associação, assim como os limites do exercício do poder público.

Para bem se compreender a decisão da CIDH contra o Brasil no caso Escher e outros vale a pena recordar o seguinte: hoje em todo planeta existem vários sistemas regionais de proteção dos direitos humanos fundamentais (europeu, africano etc.). No nosso entorno cultural importa destacar o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, que é composto (a) de uma pluralidade de tratados e convenções (destacando-se o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969), assim como (b) de vários órgãos jurisdicionais.

Contamos no continente interamericano tanto com o subsistema de proteção da OEA (fundado no Pacto Internacional citado) bem como com o subsistema fundado na Convenção Americana (de 1969). Pode um país fazer parte do primeiro subsistema (EUA, v.g.) e não do segundo. Mas quem faz parte do segundo necessariamente também integra o primeiro.

No que diz respeito aos órgãos jurisdicionais do subsistema da Convenção Americana contam com destaque a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (sediada em Washington) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (localizada em San Jose da Costa Rica), que constituem (grosso modo falando) nossa quinta instância (emblemáticos, da atuação dela, são os casos Ximenes Lopes e Maria da Penha).

O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos (cf. nosso livro, escrito em conjunto com Valerio Mazzuoli, Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos , 2. ed., São Paulo: RT, 2009) foi desenvolvido no âmbito da OEA (Organização dos Estados Americanos), depois da Segunda Guerra Mundial. Mas ganhou força inusitada na última década (porque o Brasil só aceitou a jurisdição da Corte em 1998).

Tal sistema, do ponto de vista jurisdicional, baseia-se, fundamentalmente, no trabalho dos dois órgãos citados: (a) Comissão Interamericana de Direitos Humanos (que é uma espécie de primeira instância do sistema interamericano de proteção de direitos humanos) e (b) Corte Interamericana de Direitos Humanos (que, em regra, funciona como uma espécie de segunda instância do sistema interamericano citado).
Atenção: os países subscritores da Convenção Americana de Direitos Humanos podem atuar diretamente junto à Corte (nesse caso ela funciona como instância única).
Cada um desses órgãos (Comissão e Corte) está composto por sete membros (sete juristas), nomeados e eleitos pelos Estados na Assembléia-Geral da OEA. Os membros atuam individualmente e autonomamente, isto é, sem nenhuma vinculação com os seus governos, e também não representam o país de sua nacionalidade.

A Comissão e a Corte desempenham suas funções de acordo com as faculdades que lhes foram outorgadas por distintos instrumentos legais, no decorrer da evolução do sistema interamericano. Apesar das especificidades de cada órgão, em linhas gerais os dois supervisionam o cumprimento, por parte dos Estados, dos tratados interamericanos de direitos humanos e têm competência para receber denúncias individuais de violação desses tratados.

Isso quer dizer que os órgãos do sistema têm competência para atuar quando um Estado-Parte for acusado da violação de alguma cláusula contida em um tratado ou convenção. É claro que deverão ser cumpridos previamente alguns requisitos formais e substantivos que tanto a Corte quanto a Comissão estabelecem para que tal intervenção seja viável.

A Comissão é o primeiro órgão a tomar conhecimento de uma denúncia individual, e só em uma segunda etapa a própria Comissão poderá levar a denúncia perante a Corte. Como o Brasil só reconheceu a jurisdição contenciosa da Corte em 10 de dezembro de 1998, só podem ser apresentadas a ela denúncias de violações ocorridas após essa data. Porém, a Comissão pode receber denúncias de violações anteriores, isso porque sua competência se estende à análise de violações da Declaração Americana 62 (1948) e da Convenção Americana desde a ratificação pelo Brasil em novembro de 1992. Sobre o modo de aceder à Comissão Interamericana de Direitos Humanos remetemos nosso leitor para nosso livro acima citado.

A Corte Interamericana cumpre duas espécies de funções: (a) contenciosa (quando há conflito) e consultiva (preventiva). É uma instância judicial autônoma. A fase prévia de todo processo desenrola-se perante a Comissão. É impossível contenciosamente ir direto à Corte. O procedimento dentro da Corte está regido pela Convenção, pelo seu regulamento, assim como pela sua jurisprudência. O procedimento na Comissão tem sua fase de conciliação. Quando infrutífera, vem a fase de produção de provas e de decisão. Qualquer pessoa pode se dirigir à Comissão (independentemente de advogado).

De 1998 a agosto de 2009 foram 507 as petições (demandas) apresentadas junto à Comissão Interamericana (O Estado de S. Paulo de 10.08.09, p. A6), que atua como uma espécie de primeira instância (no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos). Vinte e nove (desse total) já foram admitidas pela Comissão. Em agosto de 2009 achavam-se tramitando (na Comissão) 108 petições. A tendência é elevar em muito o número de denúncias contra o Brasil. Primeiro porque aqui se cometem muitas violações jushumanitárias; segundo porque agora a comunidade jurídica está conhecendo melhor (cada dia mais) o funcionamento do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos (cf. nosso livro, escrito em conjunto com Valerio Mazzuoli, Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos , 2. ed., São Paulo: RT, 2009); terceiro porque a Justiça brasileira funciona, em regra, muito mal (e às vezes até nem funciona, para apurar graves violações aos direitos humanos).
Até este momento já foram duas condenações proferidas pela Corte Interamericana (caso Ximenes Lopes e caso Escher). No caso Ximenes Lopes cumpre destacar a incansável atuação da sua irmã (Irene), que atuou irresignadamente para alcançar a devida reparação na Corte (que ocorreu em 2006). Um dia antes de expirar o prazo dado pela Corte (01.07.09), seis pessoas foram condenadas pela morte de Damião Ximenes Lopes. A Comissão, por seu turno, já impôs incontáveis recomendações (medidas cautelares) contra o Brasil (casos Urso Branco, Presidio de Araraquara, Febem-Tatuapé que foi fechada -, Maria da Penha etc.). Só no ano de 2008 a Comissão admitiu mais seis casos: Margarida Alves, Cadeia de Guarujá, Marte de bebês em Cabo Frio, José Dutra da Costa, Márcio Lapoente e Gabriel Pimenta.

Na eventualidade de que um determinado país seja palco de muitas violações aos direitos humanos, ele pode ser excluído das ações do Banco Mundial ou do BID. E se o país não cumpre a decisão da Comissão ou da Corte o assunto de jurídico transforma-se em político (a ser resolvido pela Assembléia Geral da OEA).

*Luiz Flávio Gomes é Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

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