sexta-feira, 17 de abril de 2015

"Processos agora limitam-se a delações e grampos, sem investigação"


Desde a década de 1970, quando defendeu um carregador do Mercado Municipal de São Paulo preso sob suspeita de furtar um saco de arroz, o criminalista Antônio Cláudio Mariz de Oliveira tem como principais ofícios analisar cada acusação, contestar provas e ir para a tribuna a favor de réus. Hoje, aos 69 anos, ele vê com estranhamento seu cliente sendo transferido para prisão domiciliar por ter assinado termo de delação premiada, na famosa operação “lava jato”, depois de perder vários recursos.
Mariz de Oliveira reconhece certa birra com esse tipo de acordo, “cacoete de advogado velho”. Mas aponta existir um "antiprocesso", com a tendência das autoridades de usar cada vez mais delações e interceptações telefônicas, sem campana nem outros métodos de investigação. “Voltou-se à Bíblia. Porque é o verbo na escuta e o verbo na delação”, afirma ele, que defende o executivo Eduardo Hermelino Leite, vice-presidente da Camargo Corrêa.
O criminalista avalia que a prisão do cliente baseou-se apenas no mérito da acusação. Define como parcial o juiz federal Sergio Fernando Moro, responsável pelos processos da “lava jato”, e ao mesmo tempo o considera “tecnicamente bom” e “cuidadoso”. É graças ao juiz, afirma, que a operação mantém-se firme um ano depois de deflagrada, enquanto algumas antecessoras acabaram anuladas por ilegalidades logo no início. “Há mais cautela, mais apego às formalidades legais.”
Mariz de Oliveira diz ainda que a classe tem como desafio a cultura punitiva da sociedade, que passou a cobrar condenações. Ele defende o direito às garantias constitucionais, pois entende que todo mundo pode um dia ser levado ao banco dos réus, inclusive por acusações equivocadas. Afinal, “o crime não é um ente distante, algo só dos outros”.
Para o criminalista, é papel da Ordem dos Advogados do Brasil investir em campanhas para mostrar quem é o advogado e evitar que o profissional seja confundido com criminosos. Com duas passagens pela presidência da seccional paulista (1987 a 1990), ele vê a OAB como “menos classista” e pouco voltada às necessidades do advogado no dia a dia.
Mariz de Oliveira ainda foi presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (1983 a 1984) e secretário estadual de Justiça e de Segurança Pública no governo de Orestes Quércia (1990 a 1991). Presidiu o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (2003 a 2006) e atuou como “foca” (repórter iniciante) do jornal O Globo, em 1968. Começou a trabalhar em 1962 no escritório do pai, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, que foi desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Na década seguinte, abriu banca própria com o irmão, José Eduardo Mariz de Oliveira, e o primo, Alberto Viégas Mariz de Oliveira (desembargador recém-aposentado).
Leia a entrevista:
ConJur – A operação “lava jato” já passa de um ano, resistindo a reclamações levadas a tribunais superiores. Advogados questionaram, sem sucesso, a competência do juiz responsável, elementos das interceptações telefônicas e o andamento do caso no Paraná. O que essa operação difere de outras já derrubadas por ilegalidades, como satiagraha e castelo de areia?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – 
Atribuo a anulação de outras operações à afoiteza do juiz e à afoiteza dos operadores, dos executores das decisões. Houve casos em que as interceptações telefônicas não eram fundamentadas ou que o juiz acompanhava as diligências, trabalhando como um verdadeiro investigador. Na “lava jato” há mais cautela, mais apego às formalidades legais. O juiz Sergio Moro está conduzindo os processos com muita celeridade, mas não está gerando nulidades. Os despachos dele são calcados na lei, são doutrinariamente corretos. Ele se tornou um juiz tecnicamente bom, cuidadoso, para ser um juiz punitivo.
ConJur – Gostaria de ser julgado por ele?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – Não. Ele é bom juiz no sentido técnico, mas não é imparcial... Cheguei a questionar a competência dele para atuar na “lava jato”, mas já perdi essa questão.
ConJur – Essa é uma estratégia de defesa já ultrapassada agora?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira –  Talvez haja chance no Supremo Tribunal Federal. No meu caso, não mudaria nada, porque meu cliente [Eduardo Hermelino Leite, vice-presidente da Camargo Corrêa] decidiu fazer a cooperação. Obviamente não o impedi, mas sou contra a delação premiada, pelo menos como é posta hoje. Não temos cultura voltada para a delação. Esse é um instituto absolutamente novo importado do Direito americano.
ConJur – Esse instituto que veio dos Estados Unidos se enquadra no nosso ordenamento jurídico?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – Está na lei, mas não se enquadra na nossa cultura. A prova de que a delação ainda não está inserida no nosso contexto cultural-político-penal é que se está utilizando a prisão para forçar colaborações. Até o procurador [da República Manoel] Pastana defendeu em parecer que, nos crimes de colarinho branco, o passarinho deveria estar na gaiola para cantar. A prisão preventiva é a negação de um princípio constitucional, da presunção de inocência. Pode ser aplicada, desde que esteja muito claro o caráter de necessidade da prisão, fundada em fatos provados. Nem um suspeito de assassinato, réu confesso, encontrado com a arma e próximo ao corpo da vítima, pode ser preso apenas pela morte. Ele pode aguardar em liberdade, porque prendê-lo pelo homicídio seria antecipação de mérito. Ele teria que ser preso se estivesse subvertendo a ordem natural das coisas processuais naturais. Se interrogasse as testemunhas, por exemplo, porque poderia suborná-las ou ameaçá-las, isso seria causa. Se fosse encontrado no aeroporto, descumprindo proibição de sair do país, ele poderia ser preso, porque haveria risco de embargar a aplicação da lei penal no futuro. Se subisse num banco em praça pública e começasse a fazer apologia do crime ou telefonasse para alguém continuar a praticar o crime, a ordem pública estaria ameaçada, então ele poderia ser preso em nome dessa ordem pública. É preciso ter fatos que justifiquem a prisão preventiva. E esses fatos são diversos aos relacionados à culpa dele. A culpa é outra coisa.
ConJur – No caso do seu cliente na “lava jato”, o senhor alega que não havia critério para prendê-lo em caráter preventivo?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – Não há critério nenhum. Nem no caso dele nem dos outros. Meu cliente foi preso antes da instauração do inquérito. Não foi ouvido. Atribuo a prisão dele a uma acusação de mérito, já que foi baseada em um depoimento da delação premiada, sem que a veracidade fosse apurada. Quando foi denunciado, meu cliente já estava um mês preso.
ConJur – Quais os principais motivos para o senhor ser contra a delação premiada?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – Primeiro sou contra por cacoete de advogado velho. Eu dificilmente vou me adaptar a esse tipo de advocacia do acordo. Meu negócio é receber a acusação, contestá-la, fazer a prova, ir para a tribuna, escrever, tudo sempre dentro do processo dialético. O processo brasileiro é regido pelo princípio do contraditório. Isso tem origem na própria natureza humana: você não pune um filho seu sem saber se ele fez ou não fez. Se você chega em casa e a empregada fala que seu filho fez uma peraltice, a primeira coisa que você faz é perguntar o que ele diz sobre isso. E também não vai dar um prêmio se ele confessar que fez, nem pedir para ele delatar a irmã. O nosso processo, de origem latina e europeia, corresponde a anseios da própria humanidade. Tem defeitos, porque não acompanhou a modernidade e é repleto de formalidades, mas é muito mais ligado ao Direito natural que o Direito americano. Então, para mim, é uma excrescência tentar punir alguém por outra forma que não seja a investigação. Essa é uma maneira de obter uma pseudo verdade. Às vezes é verdade, às vezes não. Esse instituto da investigação que a Constituição atribui a uma instituição estatal, que é a polícia — e subsidiariamente o Ministério Público também quer fazer —, isso acabou. Não tem campana, não tem mais Sherlock Holmes. Agora é escuta telefônica e delações que viram ação.
ConJur – A prova agora é o verbo?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – É o verbo. Voltou-se à Bíblia. Porque é o verbo na escuta e o verbo na delação. O delator entrega mais de cem documentos, coopera com outros assuntos, vira auxiliar.
ConJur – É como se fosse uma terceirização da investigação?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – É uma linha auxiliar das autoridades investigativas. O grande órgão investigativo hoje do país é a imprensa. Quer saber também por que não gosto desse negócio de delação? O advogado é obrigado a desistir de recursos, de Habeas Corpus. Isso é um crime! É o fim da picada!
ConJur – E a delação chegou com uma força...
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – Ela vem atender alguns fatores, como a rapidez na apuração, a preguiça de alguns magistrados e a cultura punitiva da sociedade. A ineficiência estatal para combater a criminalidade criou uma cultura punitiva muito forte, muito arraigada já na sociedade, que está levando a uma ignorância muito grande do sistema penal. O Direito Penal não é só punitivo, é também um Direito garantista. O Direito Penal e o Direito Processual Penal normatizam o direito de punir e, do outro lado, colocam limites para garantir outro interesse importantíssimo: a liberdade. Só que, para a sociedade, juiz e promotor devem usar instrumentos para a punição. Por isso hoje o advogado é mal visto.
ConJur – O senhor diz que isso acontece "hoje". Esse movimento é atual?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – Mais atual do que nunca. Houve uma época no meu escritório que não tinha um réu preso antes da condenação. Há uns 20 ou 25 anos, não se prendia preventivamente. Hoje, quando a sociedade se depara com o crime, a expectativa é punição. Não há uma expectativa pela inocência, é só pela culpa. Quando vem a inocência ou a proclamação menor da culpa, o Judiciário é colocado como leniente ou corrompido. A justiça do povo é muito perigosa. Ela pôs Jesus Cristo na cruz e jogou gladiadores aos leões.
ConJur –  O site do seu escritório diz que o Direito Penal pode envolver qualquer um, até uma pessoa que está dirigindo e comete um crime de trânsito...
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – O crime não é um ente distante, algo só dos outros, sempre fora de casa. Quem pode garantir que nunca vai matar alguém? Quem pode dizer que nunca vai ser acusado falsamente? Por isso é preciso prestigiar o direito de defesa, as garantias constitucionais. Não acredito na lei como mudança de conduta, acredito na educação. Eu não estou falando mal da lei, eu sou advogado, dependo da lei. Estou dizendo que não é possível mudar condutas só com a previsão da punição. A prisão virou a única resposta plausível para o crime. Eu atuei na defesa do jornalista Pimenta Neves. Quando apresentei pedido de Habeas Corpus em São Paulo, o relator disse que ele deveria ficar preso por ser réu notório. Onde que a notoriedade de alguém é motivo de culpa, é motivo de prisão? Essa cultura punitiva está tão disseminada que impregnou os juízes.
ConJur – A presidente Dilma anunciou em março um "pacote anticorrupção", parar acelerar processos sobre enriquecimento, contra servidor público ou autoridades com prerrogativa de foro. Esse Direito Penal do Inimigo já chegou ao Executivo e ao Legislativo?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – É o Direito Penal da emergência. Quando surge um crime mais clamoroso, sempre tem um deputado para falar que é preciso endurecer as penas para aqueles casos. O homicídio qualificado como crime hediondo é uma das coisas mais absurdas que existe. O que faz um homicídio ser qualificado? O promotor querer qualificar. Se ele coloca uma qualificadora qualquer, como uso de instrumento que dificultou a defesa, pronto, já qualificou! E por isso o caso vai ser julgado como hediondo. O que o crime hediondo oferece de prejuízo maior? O acusado não pode ter indulto nem graça, a progressão é só depois de cumprido dois terços [da pena] para o réu primário e três quintos [da pena] para reincidente. Isso é ilusão, cortina de fumaça.
ConJur – O senhor avalia que agravar penas, de forma geral, não implica em redução da criminalidade?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – Esse é o ponto. Estamos enxugando gelo há 50 anos. Combatendo o crime pelos seus efeitos: lei mais rigorosa, polícia na rua, pena de morte... Nós não estamos cuidando do menor ou criando mecanismos para combater a corrupção. Só agora foi criada a Lei Anticorrupção, que é uma norma boa, mas não é penal, só atinge o bolso. Quem comete o crime, não pensa antes na pena. Ou algum criminoso que vai assaltar alguém na rua resolverá guardar o revólver na cinta porque ouviu dizer que a pena pode ser maior? Ele está ali para matar e para morrer. No caso de crime de colarinho branco, a cobiça fala mais alto do que uma previsão de futura punição.
ConJur – Há uma corrente defendendo que a execução das penas seja aplicada logo depois da decisão de segunda instância, para evitar demora provocada por recursos. O que o senhor acha disso?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – A demora já existe em primeiro grau, continua no segundo. Por que não se pode esperar mais um ano ou dois? Acho que os recursos são necessários. É um absurdo dizer que o advogado é culpado porque usa recurso. Mas alguns devem ser rediscutidos, como os Embargos de Declaração. Eles servem, segundo a lei, para você corrigir omissão, obscuridade. Você pode corrigir isso diretamente num recurso. Está servindo para o pré-questionamento de algumas matérias, medida que o Supremo e o Superior Tribunal de Justiça consideram necessária.
ConJur – O STF tem adotado uma trava para impedir HC substitutivo de recurso. O senhor vê algum problema nessa conduta?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – Os ministros entendem que só podem admitir casos excepcionais. Mas como você vai saber se o caso é excepcional? Você examina do mesmo jeito, então julga. É a mesma coisa de liminar de liminar. Não pode. Mas o ministro Teori [Zavascki, relator da “lava jato” no STF] soltou o [ex-gerente da Petrobras Renato] Duque em liminar de liminar. 
ConJur – Dos presos na “lava jato”, somente Duque conseguiu a liberdade por HC analisado no Supremo. Para os demais, o ministro Teori Zavascki e a 2ª Turma aplicaram a tese de que a corte não pode apreciar HCs quando pedidos de liminares só foram negados monocraticamente em outros tribunais. Estão claras quais exceções são liberadas pela Súmula 691?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – É poder discricionário. E a pior coisa que existe na Justiça é a utilização da discricionariedade, que em certos casos chega ao arbítrio. Como eu sei que posso quebrar a súmula? O pedido precisa ser levado à Turma, que coloca o tema na pauta, analisa, perde tempo, para dizer que não pode analisar.
ConJur – Há alguma chance de questionar a forma como foram firmadas as delações premiadas da "lava jato"?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – Não. Como você vai mexer na nulidade de uma delação se o cliente está em liberdade e de repente corre o risco de voltar para a prisão?
ConJur – Isso é aceitar a culpa pelo medo?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – É, a delação é medo. O Moro não ficou bravo depois que alguns advogados procuraram o ministro da Justiça e decretou a preventiva de novo? São duas preventivas! Eu nunca vi isso na minha vida: preventiva por fato inexistente! No Direito Penal, você não pode punir ninguém por parte de terceiros. Isso é uma máxima.
ConJur – Qual a sua mensagem para o jovem criminalista que está chegando agora na carreira?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – Está faltando humanização para o criminalista mais jovem. E o que humaniza a gente é cadeia. Foi indo à casa de detenção que comecei a sair do meu berço esplêndido de burguesinho do Paraíso e comecei a ver o Brasil, assim como toda a minha geração. Já o advogado jovem de hoje em dia entrou ganhando dinheiro, numa época florida da advocacia criminal, a época das grandes operações.
ConJur – Quando o senhor passou a ir para a porta de cadeia?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – Comecei em 1970. Trabalhava antes com meu pai no Direito Cível, quando o [advogado] José Carlos Dias me indicou para o primeiro cliente criminal. Passei a ser nomeado defensor dativo do júri, fiz cento e poucos júris de graça, e comecei a advogar no Centro Social da Polícia Militar. Aquilo foi um laboratório para mim. Eu atendia os PMs em todos os seus problemas penais, quer no exercício das funções policiais, quer não.
ConJur – Isso em plena ditadura militar?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – Sim. Também defendi na época o professor Roberto Jorge Haddock Lobo Netto, que foi acusado de fazer proselitismo nas salas de aula e acabou absolvido. Essas experiências me permitem garantir que está mais difícil advogar hoje que na época da ditadura. Porque a primeira prerrogativa do advogado é conhecer o processo. Hoje, temos dificuldades para ver processo e eu juro pelo meu grau que isso não tinha na ditadura. Pegávamos a procuração, íamos à Auditoria Militar Você ia para uma sustentação e os militares te respeitavam. Tinham torturado o cliente, mas o advogado era respeitado. Agora, na "lava jato", eu não vi a delação do meu cliente até hoje. É tudo lacrado, difícil. Mesmo o advogado que participou dos depoimentos não tem cópias.
ConJur – De acordo com a lei, a delação deve se tornar pública depois da denúncia...
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – Claro.
ConJur – Como ex-presidente da OAB-SP, o senhor avalia que há diferença na Ordem dos Advogados entre a época que o senhor atuava e os dias de hoje?
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira – Ela é menos classista, mas cresceu muito. Virou um cartório. Se acabasse a lei que manda a OAB exercer o papel de disciplina da classe, a OAB acabaria junto. Enquanto associações sem inscrição compulsória auxiliam o advogado no seu dia a dia, a Ordem hoje não presta serviços nem representa mais os anseios da advocacia no sentido de lutar pela classe. É necessário fazer uma campanha de elucidação do nosso papel. A sociedade não sabe quem somos. Nós somos confundidos com clientes e com bandidos.

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