Por Pedro Pulzatto Peruzzo

Sempre
ouvimos dizer que o Estado é laico, no entanto não estamos acostumados a
refletir sobre o que isso significa. Há quem diga que a laicidade do
Estado significa que toda lei e toda política pública deve assumir uma
posição ateísta. No entanto, se lermos o preâmbulo da nossa
Constituição Federal
de 1988 veremos que nosso principal documento político foi “promulgado
sob a proteção de Deus”! Diante do texto do preâmbulo da nossa
Constituição, precisamos nos perguntar que Deus é esse que nos protegeu quando da promulgação da nossa
Carta Política.
Quero
começar
minha reflexão sugerindo desde já que esse Deus que aparece no preâmbulo da nossa
Constituição
é a referência de todas as religiões e crenças. Esta afirmação exige
dois esclarecimentos iniciais: 1- os ateístas permanecem prestigiados
pela
Carta Política de 1988, pois a referência a Deus no preâmbulo da
Constituição
não exclui ninguém; muito pelo contrário, apenas reconhece as origens
religiosas dos diversos grupos culturalmente diferenciados que integram a
nossa comunhão nacional; 2- quando falo em religiões e “crenças”, me
refiro tanto às religiões que acreditam que Deus é semelhante aos seres
humanos, como às religiões que acreditam que Deus é semelhante aos
animais ou ainda às crenças que entendem Deus como um foco de energia.
Enfim, esse Deus constante no
texto constitucional não é excludente.
No segundo parágrafo deste texto eu afirmei que esse Deus que aparece no preâmbulo da nossa
Constituição é a referência de todas as religiões e crenças. Digo isso porque no artigo
5º da
Constituição
de 1988, que cuida dos direitos e deveres individuais e coletivos, a
liberdade religiosa e de crença aparece em duas ocasiões de maneira
bastante plural:
Art. 5º, VI – é inviolável a
liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício
dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos
locais de culto e a suas liturgias;
Art. 5º, VIII – ninguém será
privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção
filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação
legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa,
fixada em lei;
Outros artigos da
Constituição também cuidam da liberdade de crença e religiosa.
Art.
231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras
que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens.
Art. 210, § 1º – O ensino
religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários
normais das escolas públicas de ensino fundamental.
Art. 226, § 2º – O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
Como
fica claro, a liberdade de crença e de exercício dos cultos religiosos,
bem como a impossibilidade de privar alguém dos seus direitos por
motivo de convicção religiosa, orientam as relações entre as pessoas.
Uma pessoa não pode discriminar outra pessoa por motivo de crença ou
religião. Do mesmo modo, a própria crença e orientação religiosa são
consideradas de livre escolha, e isso fica claro quando o artigo
210 da
Constituição diz que o ensino religioso será de matrícula facultativa, respeitando as opções ateístas, por exemplo.
A
grande questão que se coloca é que o atual momento político tem sido
marcado pela exclusão que alguns candidatos têm promovido a partir da
forma como eles e seu grupo se relacionam com Deus e, mais do que isso,
como esses grupos ganham muito dinheiro ao venderem e legitimarem apenas
uma forma de se relacionar com um único Deus. Isso é preocupante, pois
do mesmo modo que a
Constituição exige que todas as pessoas respeitem a liberdade de crença e de religião umas das outras, a
Carta Política
também exige que o Estado (e os que exercem cargos políticos) respeite
TODAS as crenças e orientações religiosas, inclusive a crença de que
Deus não existe.
O artigo
19, inciso
I, da
Constituição, diz:
É
vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I –
estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los,
embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes
relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a
colaboração de interesse público;
Isso significa que o Estado
não pode prestigiar uma religião ou se pautar numa religião para
elaborar leis ou políticas públicas. No entanto, não significa que a
pluralidade de crença não deve ser protegida pelo Estado. Este ponto é
muito importante, pois diante dessas regras constitucionais, podemos
concluir que a presença de bancadas religiosas no Congresso e a presença
de candidatos com discursos religiosos para a chefia do Poder Executivo
não seria um problema em si. Se no Brasil vale a regra da liberdade
religiosa e de crença, tanto os ateístas como os religiosos podem
representar o povo.
Opa! Eu disse POVO!
Eu realmente
acredito que o ateísmo ou a religiosidade de um líder político não seja
um problema em si. O problema, e aqui está o ponto central deste texto, é
quando esse líder ateísta, evangélico, muçulmano, umbandista, assume um
cargo representativo do povo e o exerce apenas para os ateístas, para
os evangélicos, para os muçulmanos ou para os umbandistas, se afastando
do seu mandato democrático e assumindo, equivocadamente, um mandato
religioso. Aos religiosos que pretendem desempenhar a função de
pregadores a
Constituição
garante os locais de culto, direito absolutamente legítimo num país de
pluralidade religiosa. No entanto, preciso lembrar que nem o Poder
Legislativo, nem o Poder Executivo e nem o Poder Judiciário é um local
de culto!
Assumir um cargo de representação democrática para
impor concepções religiosas de qualquer ordem é transformar o que é de
todos (
res pública) em algo restrito a apenas uma parcela do
povo. Um Deputado evangélico ou católico que defenda a liberdade
religiosa o faz dentro dos seus direitos constitucionais; no entanto, um
Deputado evangélico ou católico que recorre à religião para impedir o
acesso de homossexuais ao mesmo rol de direitos garantido aos
heterossexuais se afasta da finalidade republicana do seu mandato.
O
problema de um titular de cargo público fundamentar em crenças
religiosas opiniões que terão reflexos em leis ou em políticas públicas
aplicáveis a todos reside exatamente no fato de que essas opiniões podem
ser aplicadas a todos. Numa República constituída em Estado Democrático
de Direito, as leis e as políticas públicas necessariamente precisam
considerar a pluralidade do povo, pois é esse povo, com toda a sua
pluralidade, que é o real titular do poder. Conseguir entender que uma
lei que garanta a liberdade religiosa pode ser democrática e republicana
e que uma simples omissão ou retrocesso legislativo pode caminhar na
contramão da proposta democrática constante na
Constituição é fundamental para a compreensão dos limites da tolerância.
Algumas questões que tocam a ideia de tolerância são abordadas de maneira muito interessante no texto
Os limites da tolerância,
de Rainer Forst, em que o autor reflete sobre a utilização de símbolos
religiosos em escolas (intolerante é quem ostenta ou quem quer proibir a
ostentação?), casamento
gay (intolerante é quem quer ampliar o
conceito de família ou quem quer impedir essa ampliação?) e xenofobia
(intolerante é quem não entende a primazia do nacional ou quem não
entende que os imigrantes são titulares de direitos mínimos?).
Forst reconhece que: (…)
pode-se
distinguir entre tolerância como uma prática (de um Estado, por
exemplo) e como uma atitude ou mesmo uma virtude, a qual chamamos de aceitaçã
o. A primeira pode estar presente em uma sociedade sem a última. Além disso, Forst apresenta dois requisitos para a tolerância, quais sejam a “reciprocidade” e a “generalidade”:
(…) Reciprocidade,
nesse contexto de justificação, significa que não se reivindiquem
certos direitos e recursos que são negados aos outros, e que nossas
próprias razões (valores, interesses, necessidades) não sejam projetadas
sobre as dos outros ao defendermos nossas pretensões. Deve-se estar
disposto e apto a sustentar normas básicas com razões que não estejam
fundadas em verdades “superiores” ou em concepções do bem que possam ser
razoavelmente rejeitadas por outros com identidade ética e cultural
diferentes. Ademais, de acordo com o critério da generalidade, as
razões para as normas básicas devem ser reciprocamente aceitáveis e
compartilháveis entre todos os cidadãos, não apenas entre os grupos
dominantes. Compreendidos corretamente, os critérios de reciprocidade e
de generalidade implicam que não é qualquer dissenso que pode invalidar
normas gerais, mas apenas o dissenso que levante objeções que não podem
ser, elas mesmas, rejeitadas com base nesses critérios.
Ou
seja, as discordâncias que surgem em processos respeitosos de diálogo a
respeito da forma como normas básicas de convivência podem atingir a
generalidade que garanta a todos o recurso a elas para fazerem valer
seus direitos reciprocamente não são um problema. O problema reside nas
discordâncias que, como resultado, dão ensejo a imposições de normas que
só fazem sentido a um grupo fechado de pessoas. Em avaliação bastante
esclarecedora a esse respeito, Forst diz:
(…) Esse é o
caso do casamento homossexual, em que os casais demandam as mesmas
possibilidades legais de outros casais aos quais se permite o casamento.
Enquanto essa alegação de direitos iguais é baseada na reciprocidade
política, os contra-argumentos que negam esses direitos iguais e se
apóiam em visões não-generalizáveis (religiosas, por exemplo) para se
justificarem violam tanto o critério da reciprocidade como o da
generalidade. Uma mera “tolerância” social de formas de vida
homossexuais, como muitos defendem, não é suficiente (ainda que seja
também “tolerância” de acordo com a concepção como permissão); em vez
disso, o reconhecimento legal igual é o que a justiça exige.
Forst
deixa claro que tolerar por respeito não exige nutrir estima por uma
prática, mas unicamente entender que a permissão pelo confinamento não é
suficiente para traçar os limites da tolerância. Se um evangélico não
concorda com a união homoafetiva, então ele tem o direito de não adotar
esse modelo de união para ele. No entanto, se ele exigir a proibição ou o
confinamento da homoafetividade apenas em locais específicos, ele
extrapola o limite da tolerância e abre campo para que outras pessoas
assumam o poder e proíbam os cultos evangélicos ou imponham a obrigação
de realização desses cultos em locais fechados e silenciosos… A medida
do respeito é o próprio respeito!
Nesse sentido, a intolerância
não surge quando grupos religiosos ou ateístas assumem o poder, mas
quando a religião ou o ateísmo desses grupos impede a religião, o
ateísmo ou as lutas políticas por direitos de outros grupos.
Por
fim, importante esclarecer que a omissão em relação a qualquer tema é
uma posição inescusável de qualquer cadidato. Nenhum candidato à
Presidência da República, por exemplo, pode deixar de se posicionar em
relação a algum tema. Lançar mão do plebiscito, por exemplo, como trunfo
para a solução de alguma disputa de natureza política que pode
“queimar” um candidato com o seu grupinho” é não reconhecer que o povo
brasileiro está subordinado a uma mídia barbarizadora.
Um
candidato realmente republicano e democrático é aquele que assume as
lutas das minorias e, assim, se compromete com a construção de espaços
realmente públicos onde as ideias de todos possam circular livremente
considerando a concepção de tolerância apresentada por Forst enquanto
respeito, e não apenas enquanto
permissão.
Se
evangélico, se ateísta, se católico, se umbandista o candidato, isso
não me interessa, desde que ele não transforme a política e o seu cargo
em local de culto e de pregação.
Pedro Pulzatto Peruzzo é advogado e militante de direitos humanos