segunda-feira, 28 de abril de 2014

Falta de água em São Paulo é a chegada do futuro?

No ano de 1976 o diretor de cinema Nicolas Roeg lançou o filme O homem que caiu na Terra, com David Bowie, sobre um alienígena que deixa sua família para vir à Terra, com o objetivo de salvar o seu planeta do problema da absoluta falta d'água. Eles eram ricos mas não tinham mais água.
No Brasil, as recentes noticias sobre a ausência de chuvas em São Paulo e a possibilidade de racionamento da água potável levam inevitavelmente à lembrança daquele clássico filme. Estamos vivendo o início de uma fase crítica na área dos recursos hídricos?
Quem acompanha o assunto sabe que o ensaio dramático paulista, representado pelo colapso do Sistema Cantareira, não é único nem isolado. Muito embora tenhamos 13,7% da água doce do mundo, os problemas vêm se avolumando. Eles são seculares no Nordeste e agravam-se em outras regiões, por motivos diversos. Fiquemos no exemplo mais significativo. Manaus, localizada às margens do rio Negro e no meio da selva amazônica, sofre contínuos problemas por falta de água, sendo que em novembro de 2013, 80% da população ficou sem o líquido (leia mais aqui).
Quando surge um problema de maior repercussão, como o abastecimento da cidade de São Paulo, as reações são sempre as piores. Procuram-se vilões, explora-se o fato politicamente com acusações pouco claras, mas com finalidade óbvia de obtenção de apoio popular, “descobre-se” que há perda de água por má conservação da tubulação, instaura-se inquérito civil para apurar responsabilidades e tudo volta à normalidade tão logo a chuva se encarregue de amenizar o risco. A situação é grave e deve ser encarada com mais razão e menos emoção.
O primeiro passo é ter em mente que o problema não é apenas nacional, mas sim mundial. A falta e a disputa pela água têm gerado conflitos em todos os continentes. Em 1990, na Guerra do Golfo, o Iraque detonou os reservatórios de dessalinização de água do Kuwait e envenenou suas águas. Os Estados Unidos garantiram ao México 1,8 quilômetros cúbicos das  águas do Rio Colorado. Só que, ao chegarem ao México, elas estavam salgadas, obrigando os americanos a construir, em 1973, a caríssima Usina de Yuma para dessalinalizar a água destinada ao país vizinho. Sabe-se que “há anos, Israel e Síria disputam as Colinas de Golã, uma área de morros cobertos de gelo, mas que abriga as nascentes do Rio Jordão, fundamental para o abastecimento do Oriente Médio”.
Não podemos dar solução aos problemas do globo terrestre. Todavia, podemos e devemos por obrigação constitucional com as futuras gerações (artigo 225), tentar pôr o problema sob controle a nível nacional. E isto deve ser feito conhecendo nossas falhas, reconhecendo que contribuímos todos para esta situação, por ação ou por omissão.
Imaginemos sete pecados capitais: desperdício e má educação ambiental, problemas de tubulação, agricultura não sustentável, gratuidade, ausência de estímulos para economizar, aumento da população e ausência de sanções. Vejamos:
1º) A educação ambiental está prevista na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, que é de 1981. Mas avança muito lentamente. São quase inexistentes ONGs que zelem pela preservação da água. Poucos se insurgem contra o gasto excessivo como, por exemplo, a limpeza da calçada com jatos de alta pressão ao invés de uma simples vassoura. Por outro lado, o desperdício é enorme. Desde a ineficiência do Poder Público até o gasto inútil nas atividades diárias (p. ex., longos banhos).
2º) Problemas de tubulação a gerar perda d´água são comuns, fruto do descaso administrativo. Referindo-se à empresa de saneamento de São Paulo, Sabesp, reportagem do jornal Estado de São Paulo apurou que “em 2013 a empresa perdeu 31´2% de toda a água produzida entre a estação de tratamento e a caixa d´água dos consumidores, conforme o Estado revelou em fevereiro. O índice representa cerca de 950 bilhões de litros...” (23.4.2014, A13).
3º) A agricultura é necessária, precisamos todos de alimentos. Porém, é bom lembrar que a produção de apenas 1 quilo de trigo significa o gasto entre 500 e 4.000 litros de água. A plantação de arroz também importa em enorme consumo. Ora, sendo a água bem econômico de domínio público e não privado, não se compreende porque até hoje não foi cumprida a Lei 9.433 de 1997, que no art. 12 permite a sua cobrança.
4º) Na linha do que foi dito no item anterior, apesar de ter valor econômico reconhecido pelo art. 1º, inc. II da Lei 9.433/97,  a água é grátis. E ninguém se anima a apresentar projeto de lei propondo a sua cobrança, porque seria impopular e traria reflexos nos votos da eleição subsequente. No entanto, não se valoriza aquilo que não se paga. Já chegou o momento de estabelecer-se o mínimo necessário a cada pessoa para suas necessidades e o que passar deste mínimo ser cobrado. Nesta linha, observe-se que a subtração de água é furto, ou seja, o crime previsto no art. 155 do Código Penal.
5º) É preciso dar estímulo para a preservação de nascentes. Não basta processar aquele que não preserva as áreas de preservação permanente de seu imóvel. É preciso também dar-lhe algum tipo de vantagem. E isto já vem sendo feito por vários municípios. Por exemplo, em São José dos Pinhais, PR, os produtores rurais de Bacia do Rio Miringuava, desde que adotem as práticas do programa “Produtor de Água”, receberão valores que ser poderão superiores a R$ 20.000,00 anuais (Gazeta do Povo, 23.11.2013, p. 4). A propósito do tema, vide livro de Carlos Geraldo Teixeira, “Preservação de Nascentes – o pagamento por serviços ambientais ao pequeno ruralista provedor”, ed. Del Rey.
6º) Aumento de população: o aumento ou a má distribuição da população também constitui um problema do Estado. Se os recursos naturais são os mesmos, é inevitável que o aumento descontrolado de pessoas em uma região, seja pela multiplicação natural ou pelo deslocamento, vai gerar problemas de consumo da água. Assistir impassível este fato é adiar um problema inevitável.
7º) Ausência de sanções. O desperdício não deve ser tratado como mera falta de educação, mas sim ser objeto de sanção administrativa, quiçá penal em casos extremos. Por exemplo, o condomínio que não discrimina os gastos particulares de cada condômino deve ser sancionado com autuação administrativa. Isto certamente levaria o síndico a posicionar-se de forma enérgica e, consequentemente, a serem definidas as responsabilidades pelos gastos de cada habitação. Por outro lado, aqueles que em edificação urbana deixam de conectar seu imóvel ás redes de abastecimento de água e de esgoto, mesmo que notificados pela autoridade administrativa, devem ser responsabilizados criminalmente. A criminalização, ainda que apenada de forma branda e submetida ao Juizado Especial Criminal, terá efeito intimidatório.
Em suma, o problema da falta d'água está posto, não é mais uma quimera de realização possível em 2025. Para enfrentá-lo é preciso disposição e criatividade. Não há uma solução única, mas sim várias a serem adotadas com determinação. Desde a cobrança (por exemplo, a Dinamarca) até soluções como a  “da remota vila de Baontha-Koyala, no noroeste da Índia. Seus habitantes não tinham uma gota d’água para beber até meados da década de 80. No final dos anos 90, recuperaram seus lençóis subterrâneos e o principal rio da região voltou a ter água. O que fizeram? Simples. Cavaram poços no quintal das casas para recolher água de chuva. É o óbvio. Mas ninguém havia feito antes” (Cláudio Ângelo e outros; para ler, clique aqui). 

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Advogado tem direito de retirar autos de cartório por uma hora

Não cabe a tribunais limitar a forma como advogados fazem cópia dos autos sem segredo judicial, mesmo aos profissionais que não tenham procuração para atuar no caso. Esse foi o entendimento do Conselho Nacional de Justiça para suspender os efeitos de regras do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que restringiam os meios para obtenção de cópias. Os conselheiros ratificaram na última terça-feira (22/4) uma liminar que já era contrária às medidas adotadas pela corte mineira.
Conforme os provimentos 195/2010 e 232/2012, da Corregedoria-Geral de Justiça do estado, os advogados só poderiam fazer cópias de quatro formas: usando escâner portátil ou câmera fotográfica, na própria secretaria de juízo; diretamente na secretaria, mediante pagamento; por meio de departamentos próprios da Ordem dos Advogados do Brasil, quando houver convênio para tal fim; e dirigir-se ao comércio “de reprografia mais próximo”, acompanhado por um servidor da secretaria de juízo.
A seccional mineira da OAB alegou em fevereiro que a regra consistia em “ato atentatório às prerrogativas” da advocacia, pois violava o Código de Processo Civil, cujo artigo 40 permite a retirada dos autos por prazo máximo de uma hora. Já o TJ-MG sustentou não haver ilegalidade nos provimentos, pois o CPC faz referência expressa aos procuradores das partes, levando a entender que a retirada não merece cabimento quando feita de forma indiscriminada.
A conselheira Luiza Frischeisen, porém, avaliou que a norma prejudica as partes e as atividades dos advogados. “É natural ao advogado conhecer da causa antes de firmar compromisso para com o cliente, inclusive no intuito de que se possa verificar, da forma que lhe aprouver e em todo seu aspecto, questões ou medidas de urgência”, avaliou.
“A parte ou o advogado sofrem prejuízos na impossibilidade do advogado, com ou sem procuração, retirar cópia dos autos do processo do jeito que lhe aprouver, estando ou não nas dependências da Secretaria de Juízo”, afirma a decisão da conselheira. O entendimento foi confirmado pelos demais membros do CNJ na última sessão.
Limite questionado
A limitação da chamada “carga rápida” (quando advogados têm acesso aos autos sem pedir autorização ao juiz competente) já foi questionada no CNJ por advogados e outras seccionais da OAB. Em outubro de 2011, por exemplo, o plenário julgou procedente pedido de providências formulado por um advogado que questionava regra verbal do Tribunal de Justiça do Espírito Santo de condicionar a cópia dos autos à autorização do desembargador relator do processo.
Na ocasião, os conselheiros, em decisão unânime, determinaram que a corte tomasse providências para permitir a cópia dos processos sem segredo de Justiça, independentemente de peticionamento pelo advogados. Com informações da Agência CNJ de Notícias.
Clique aqui para ler a decisão.
Processo 0001505-65.2014.2.00.0000

terça-feira, 15 de abril de 2014

Juízes absolvem motoristas bêbados (por causa da nova lei seca)

por Luiz Flávio Gomes

 “Com nova lei seca, juízes absolvem motoristas flagrados no bafômetro; Lei endureceu multa e aumentou prisões, mas ainda libera embriagados. Associação critica entendimento e pede tolerância zero a álcool no volante”.

O que mudou com a Lei 12.760/12 (comentada por nós no nosso livro Nova lei seca: Saraiva, 2013)? Antes, bastava a concentração de 6 decigramas de álcool no sangue para a caracterização do crime de embriaguez ao volante; agora a lei exige essa concentração de sangue mais “alteração da capacidade psicomotora”.

Tecnicamente falando: antes o crime era de perigo abstrato presumido (presume-se o perigo diante da embriaguez); agora é de perigo abstrato de perigosidade real, ou seja, além da embriaguez, é preciso provar no processo que o motorista estava com sua capacidade psicomotora alterada.

Como provar isso? Para não ficarmos no subjetivismo, basta uma conduta objetiva concreta reveladora da alteração dessa capacidade. Por exemplo: dirigir em ziguezague, na contramão, passar o sinal vermelho, subir calçada, bater numa árvore, dar cavalo-de-pau etc. Basta isso.

Não é preciso nenhuma vítima concreta. Não se trata de crime de perigo concreto. Não é preciso gerar nenhum acidente. Não é preciso lesar nenhuma outra pessoa. Não é preciso ter gente no local dos fatos na hora da condução perigosa.

Entre a figura do perigo abstrato presumido (que é inconstitucional) e o perigo concreto (que exige vítima concreta) existe o meio termo, que é o perigo abstrato de perigosidade real. A confusão generalizada na mídia e na cabeça do povo está ocorrendo por desconhecimento dessa técnica do direito penal (explicada no nosso livro). De outro lado, para a mídia e para o povo a única punição que é entendida como tal é a prisão. Tudo que é diferente da prisão não seria punição. Grave erro da mídia e do povo.

Por que o legislador passou a exigir a alteração da capacidade psicomotora? Para diferenciar o crime do art. 306 da infração administrativa do art. 165 do CTB. Para esta, basta dirigir embriagado (basta a prova da embriaguez). Para aquele é preciso prova da embriaguez + prova da alteração da capacidade psicomotora.

A legislação penal é dura? Uma das 12 mais severas do planeta. Introduziu a tolerância zero e prevê penas administrativas e penais duríssimas. Nenhuma quantidade de álcool é permitida (salvo casos irrisórios, decorrentes de enxaguantes bucais, por exemplo). Nenhum motorista bêbado deveria escapar (se houvesse excelente fiscalização). Juridicamente nenhum escapa, porque ou está enquadrado na infração administrativa ou no campo penal.

Qual a diferença entre eles? A infração administrativa só exige prova da embriaguez e é punida com multa de quase 2 mil reais, perda da carteira por um ano + apreensão do veículo. O crime exige prova da embriaguez + prova da alteração da capacidade psicomotora (dirigir em ziguezague etc.). Pena: todas as citadas, mais prisão de 6 meses a 3 anos. Para incidir a pena de prisão (que é muito grave) é preciso que corra um crime. Sem este, as penas são administrativas (e são duras). A desgraça é que o povo e a mídia entendem como punição exclusivamente a prisão. Essa é a desgraça. Desgraça lançada no final do século XVIII e começo do século XIX pelo sistema penal burguês, que começou a mandar todo proletário para a cadeia. Aí o povo passou a entender que punição é cadeia. Fora dela, não é punição. Errado entendimento.
As penas administrativas são duras. Se fossem aplicadas sem trégua, as mortes diminuiriam. Entre o sistema da pena aplicada de forma certa e infalível (sistema de Beccaria) e o sistema da pena desproporcional, irracional e desequilibrada que quase nunca é aplicada, optamos por este último. Daí a quantidade exorbitante de mortes no Brasil (mais de 43 mil por ano).

Quando as associações médicas pedem mais eficácia da lei, não estão erradas. É isso que todo mundo quer (mas que não acontece no nosso país por falta de fiscalização). Para suprir uma deficiência do Estado (na fiscalização), mídia e povo passam a exigir a aplicação errada da lei (entendendo que tudo é crime). Nem tudo é crime. Alguma coisa é administrativo, outra é crime.

Quem está fazendo essa distinção? Os juízes e tribunais, que são os aplicadores da lei. Se a lei distinguiu as coisas, os juízes devem seguir a lei. O problema não está na lei (que escreveu uma das mais duras do planeta). O problema não está nas penas (que estão entre as mais severas do mundo). O problema não está nos juízes (que estão aplicando corretamente a lei, distinguindo o que é administrativo e o que é penal). O gravíssimo problema dos países capitalistas selvagens que contam com mídia e povo embrutecidos é o seguinte: primeiro o capitalismo selvagem suga quase tudo e deixa o Estado mínimo quebrado; depois se exige que ele seja eficiente na fiscalização. Como? Com os recursos escassos que possui. Onde a mídia e o povo não são embrutecidos, a lei tem império certo e as mortes diminuem drasticamente.

Os países de capitalismo evoluído, distributivo e altamente civilizado (Dinamarca, Suécia, Holanda, Bélgica, Nova Zelândia, Islândia etc.) caracteriza-se pela excelente taxa de escolaridade dos seus habitantes, pouquíssimos analfabetos (em razão da educação de qualidade para todos), baixa taxa de violência (menos de 3 homicídios para cada 100 mil pessoas), baixíssima taxa de mortes no trânsito (0,17 em média para cada mil veículos e 7,7 pessoas para cada 100 mil habitantes), excelente posição no IDH (pertence ao grupo do IDH muito elevado), altíssimo uso das tecnologias, as questões sociais são problemas do Estado e da sociedade (não da polícia), não apresenta escabrosas e chocantes desigualdades (possui o indicador GINI médio de 0,31) e os trabalhadores normalmente recebem média, alta ou altíssima renda per capita. São, ademais, países que contam com efetivo (nunca absoluto) controle da corrupção.

E o Brasil, com seu capitalismo selvagem?

Os países do primeiro grupo (IDH muito elevado = países de capitalismo evoluído e, normalmente, distributivo e civilizado) matam muito menos no trânsito (média de 0,17 para cada mil veículos ou 7,7 mortes para cada 100 habitantes). Os números dos grupos seguintes (IDH elevado, médio e baixo) são: 0,81 e 16,2 (segundo grupo), 2,80 e 18,4 (terceiro grupo) e 22,38 e 20,6 (quarto grupo). O Brasil mata 0,66 para cada mil veículos (perto da média do segundo grupo) e 22 pessoas para cada 100 mil (no quarto grupo). Em síntese, somos muito violentos. Veja a tabela aqui

Os países com os melhores IDH´s apresentam baixíssimas taxas de mortes no trânsito, com exceção dos Estados Unidos, país com a maior frota de veículos do mundo e alta incidência de violência (quando comparados com essa elite de dez países). Já entre os países com baixos IDH´s, como Níger, República Democrática do Congo, Moçambique, Chade, Burquina Faso, Mali, Eritréia, República Centro Africana, Guiné e Burundi, os piores do índice, as taxa de mortes no trânsito alcançam números altíssimos, tanto por 100 mil habitantes, como por 1 mil veículos.

O Brasil, quando comparado com os países do primeiro grupo do IDH, é uma nação fracassada. A causa principal é o capitalismo selvagem (extrativista e patrimonialista), que não tem nada a ver com o capitalismo distributivo das nações avançadas e prósperas como Noruega, Austrália, Holanda, Alemanha, Nova Zelândia, Irlanda, Suécia, Suíça e Japão etc.

A prevenção de acidentes e de mortes no trânsito passa por seis eixos: 1) Educação, 2) Engenharia (das estradas, das ruas e dos carros), 3) Fiscalização, 4) Primeiros socorros, 5) Punição e 6) Consciência cívica e ética do cidadão (EEF + PPC).

O gigante inacabado chamado Brasil apresenta sérios problemas no funcionamento de todas as instituições assim como nos seis eixos citados. O sistema educacional é um dos mais deploráveis do planeta (últimas colocações no PISA). Grande parcela dos carros é insegura e as estradas são esburacadas e mal sinalizadas. O Estado negligencia na fiscalização, os primeiros socorros são demorados e a punição é muito falha. O brasileiro, no volante de um carro, em muitos casos, é um bárbaro mal educado, bêbado e sem precaução (o céu, para ele, não é o limite, é o escopo). Todos os ingredientes da salada mortífera são abundantes. Resultado: perto de 43 mil mortes por ano. Solução: educação de qualidade em período integral para todos, mais forte redistribuição de renda (melhor renda per capta) e rápida diminuição nas desigualdades, começando pelas educacionais e socioeconômicas.
Luiz Flávio Gomes
Publicado por Luiz Flávio Gomes
Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz...

Concessionária de rodovia é responsável por animal na pista

A empresa responsável pela administração de rodovias deve garantir a segurança de quem utiliza a estrada, já que o motorista paga pedágio para ter boas condições. Esse foi o entendimento da 32ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo para condenar a Intervias a pagar indenização de R$ 60 mil a um usuário que atropelou um cavalo na pista. Parte do valor deverá ser paga pela seguradora do autor.
A vítima relatou que trafegava à noite na rodovia Vicente Botta (SP-215) quando se deparou com um cavalo e, sem conseguir desviar, provocou o acidente. O motorista teve o olho direito perfurado e perdeu totalmente a visão desse olho. Ele conseguiu decisão favorável em primeira instância, mas recorreu do valor por danos morais e estéticos, fixados a princípio em R$ 38.150.
Em sua defesa, a Intervias atribuiu a culpa do acidente ao dono do animal e disse que faz a manutenção da rodovia de maneira rigorosa. A empresa afirmou ainda que nem sequer houve omissão culposa de sua parte. Mesmo com os argumentos, o desembargador Francisco Occhiuto Júnior, relator do caso, avaliou que houve responsabilidade da ré.
“Sua conduta foi no mínimo negligente, já que, sabedora de outras invasões de animais, deveria fiscalizar de forma contínua a rodovia, para tentar evitar os acidentes”, disse o desembargador. “Ora, o usuário da estrada paga pelo pedágio, que é tarifa pela prestação dos serviços, de modo que o simples fato de ser a empresa concessionária de serviço público não a isenta da responsabilidade objetiva.” O julgamento teve votação unânime. Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-SP.
Clique aqui para ler o acórdão.
Apelação 0003811-91.2008.8.26.0129    

terça-feira, 1 de abril de 2014

O duro desafio de defender presos políticos na ditadura

Tal como a Igreja e a imprensa, a Ordem dos Advogados do Brasil participou da Marcha Com Deus pela Liberdade, o grande movimento de massas contra o governo de João Goulart e suas reformas, e que se tornou uma espécie de aviso prévio do golpe militar de 31 de março de 1964, mas se desencantou logo em seguida. No caso da advocacia, esse desencanto se manifestou em um longo período de conformismo e apatia.
O estado de indiferença diante dos acontecimentos foi quebrado em 1977, quando o então presidente da Ordem, Raimundo Faoro, publicou um artigo no jornal O Globo, denunciando as torturas a que fora submetido o ex-presidente da UNE, Aldo Arantes, preso em São Paulo, desde dezembro de 1976. Faoro não era o candidato da esquerda para presidir a OAB. O candidato da esquerda era Josaphat Marinho. Mesmo assim, Faoro, que já participara antes da Comissão de Direitos Humanos do Congresso, teve como presidente da Ordem uma atuação firme diante da ditadura. E acabou sendo um dos interlocutores da sociedade civil nas conversas com o governo do general Ernesto Geisel que levaram ao processo de distensão politica.
Para o jornalista Elio Gaspari, autor da mais conceituada obra sobre o regime militar, não se pode considerar a ditadura como uma coisa única e continua. Segundo ele, ela tem nuances e pode ser dividida em três períodos: de 1964 a 1968 é uma coisa, de 1969 a 1973 é outra, e depois de 1974, é outra ainda. “No caso dos advogados que atuaram na defesa dos presos políticos também há nuances, há graus variados de valentia. De 64 a 68, o advogado precisava ter cinco colhões para defender um preso político; de 69 a 73, de 18; de 74 para a frente, com dois colhões ele já resolvia”, diz ele.
É na fase das “18 bolas”, entre 1969 e 1973, que emergem as figuras notáveis de alguns advogados que expuseram a própria vida, foram vítimas de atentados e passaram eles mesmos pela prisão na defesa dos direitos de cidadãos perseguidos pelo regime. A história de 15 desses notáveis advogados estão contados no livro Os advogados e a Ditadura de 1964 – A Defesa dos Presos Políticos no Brasil, organizado pelos professores Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins, e publicado pelas editoras PUC-Rio e Vozes, em 2010. O livro faz o relato da atuação dos seguintes advogados: Airton Soares, Dalmo Dallari, Eny Moreira George Tavares, Heleno Fragoso, Luís Eduardo Greenhalgh, Marcelo Alencar, Marcelo Cerqueira, Mário Simas, Modesto da Silveira, Sigmaringa Seixas, Sobral Pinto, Técio Lins e Silva e Wilson Mirza. A lista inclui o procurador de Justiça de São Paulo Hélio Bicudo. Não entraram na lista, mas merecem ser mencionados, pelo menos mais dois advogados de São Paulo: José Carlos Dias e Idibal Pivetta.
O mais notável da atuação desses homens e mulheres que foram à luta é que nem sempre eles conheciam seus clientes e sequer defendiam os mesmos pontos de vista ideológicos e não faziam questão de cobrar honorários. O exemplo mais notável neste sentido é dado pelo mais admirado dentre os advogados de presos políticos, uma subcategoria que se criou então dentro da advocacia: Heráclito Fontoura Sobral Pinto, morto em 1991, aos 98 anos. Sobral Pinto era católico fervoroso, anticomunista radical, mas, acima de tudo, um defensor dos direitos e respeitador da lei. Sobre seu ofício, ele dizia: “O advogado só é advogado quando tem coragem de se opor aos poderosos de todo gênero que de dedicam à opressão pelo poder. É dever do advogado defender o oprimido. Se não o faz, está apenas se dedicando a uma profissão que lhe dá o sustento e à sua família. Não é advogado”.
O cliente mais conhecido de Sobral foi Luís Carlos Prestes, o pai ideológico de todos os comunistas do Brasil. Outro foi Carlos Lacerda, tão anticomunista como o próprio advogado. Marcelo Cerqueira e Modesto da Silveira eram claramente contrários à luta armada, mas nunca deixaram de defender um guerrilheiro caído e recolhido à prisão.
A defesa mais notória no currículo de Sobral Pinto foi a de Harry Berger, comunista preso no Brasil durante a ditadura do Estado Novo e torturado até ficar louco. Para ele, Sobral Pinto invocou a Lei de Proteção aos Animais: “Esta lei diz que nenhum animal pode ser posto numa situação que não esteja de acordo com sua natureza. Um cavalo não pode ficar dentro de uma baia a vida inteira, tem que sair, galopar, isto é da sua natureza. O Homem também não pode ficar numa situação dessas, contrária a tudo que há na sua natureza e na sua psicologia”.
Em 1964, coube a Sobral Pinto fazer a defesa de um grupo de chineses membros de uma missão comercial que estava no Rio de Janeiro no dia do golpe. Como conta em seu livro Lições de Liberdade, “eles foram presos como espiões. Dois eram jornalistas, credenciados pelo Itamaraty; três eram organizadores de uma exposição de produtos chineses e estavam em entendimentos com o Banco do Brasil e o ministério da Indústria e Comércio; quatro vinham comprar algodão e também estavam em entendimentos com o Banco do Brasil e outros órgãos do governo. Os nove tinham passaporte diplomático. Foram condenados e, em seguida, foram deportados”.
Sobral Pinto chegou a ser preso em 1968, em Goiânia, quando se preparava para ser paraninfo de formatura de uma turma de estudantes de Direito. Em 1980, seu escritório no Rio de Janeiro sofreu um atentado a bomba.
Em 1970 e no mesmo dia de novembro, no Rio de Janeiro, foram presos os advogados Heleno Fragoso, George Tavares e Augusto Sussekind de Moraes Rego. Em comum tinham apenas o fato de serem defensores de presos políticos. Muitos outros também foram presos e sofreram os mais variados tipos de pressão. Modesto da Silveira conta que, uma vez, em plena audiência na auditoria militar, o escrivão lhe deu a notícia de que sua filha havia sido atropelada. Ele fica alarmado, mas antes de qualquer coisa, liga para sua casa. A mulher atende e confirma que nada aconteceu. Era apenas mais um ato para amedrontar o advogado.
Mario Simas, que teve entre seus clientes os frades dominicanos de São Paulo acusados de darem apoio ao grupo de Carlos Marighella, admite que não chegou a ter sua integridade física ameaçada, mas sofreu retaliações. Perdeu os dois empregos fixos que tinha — um no Sindicato dos Metalúrgicos de São Pualo e outro no Centro Social dos Soldados da Polícia militar. Segundo conta o livroAvogados contra a Ditadura, a diretoria do sindicato justificou assim a sua demissão: “Doutor, um corpo a mais, um corpo a menos boiando no Rio Tietê, não conta”.
Hélio Bicudo, que era do Ministério Público, entra no livro não pela defesa de presos políticos, mas em homenagem à sua luta sem tréguas pelos direitos humanos. Élio Gaspari diz que, por uma única razão, ele já merecia ser reverenciado: “Foi o homem que colocou o Fleury na cadeia”. O delegado Sérgio Paranhos Fleury comandou no Dops de São Paulo, onde tornou-se um ativo colaborador dos militares que comandavam a repressão política no Estado. Por seu papel como repressor foi condecorado pelo Exército e pela Marinha. Morto em um acidente em 1979, deixou a fama de ser um torturador frio e cruel.
O caminho de Fleury cruzou o de Helio Bicudo por outras circunstâncias, não menos violentas: o delegado foi denunciado pelo procurador de Justiça de fazer parte do Esquadrão da Morte em São Paulo, um grupo de policiais dedicado ao extermínio de supostos bandidos. “Dos 35 policiais denunciados nas investigações sobre o esquadrão, apenas seis, de menor hierarquia, foram condenados. Os delegados foram todos absolvidos. Eram intocáveis”. Fleury chegou a ser preso, mas logo foi posto em liberdade, por um casuísmo da legislação. Foi editada então a Lei Fleury (Lei 1.941), que alterou o artigo 594 do Código de Processo Penal e garantiu ao réu primário com bons antecedentes o direito de responder o processo em liberdade. Um casuísmo, mas um avanço. Apesar de acontecer em plena ditadura.