O site do Tribunal de Justiça de São Paulo veiculou, no dia 18 de dezembro de 2013, a notícia de que a 3ª Câmara de Direito Privado negou o processamento de uma execução de alimentos em que era pedida a prisão civil do devedor (artigo 733 do Código de Processo Civil). Entendeu-se que o pedido não era possível porque o título executivo era extrajudicial — uma escritura pública de divórcio —, e não uma decisão judicial.
Vejamos a fundamentação do voto:
É
que o art. 733 do Código de Processo Civil estabelece que a prisão
civil pode decorrer da inércia do devedor em pagar ou se escusar os
alimentos fixados em sentença ou decisão (“Na execução de sentença ou
decisão, que fixa os alimentos provisionais, o juiz mandará citar o
devedor para, em 3 (três) dias, efetuar o pagamento, provar que o fez ou
justificar a impossibilidade de fazê-lo”).
Contudo,
a escritura pública de divórcio é título executivo extrajudicial (art.
1.124-A, parágrafo 1º, CPC), cujo grau de certeza é menor do que o do
título produzido em juízo após contraditório e cognição exaurientes.
Daí
porque não se pode admitir a prisão civil do devedor, medida
excepcional e extremamente gravosa, em decorrência de ajuste que constou
de escritura pública.
Para a execução
desse débito alimentar, a agravada poderia se valer do rito da execução
por quantia certa contra devedor solvente (art. 732, CPC), mas não do
rito que prevê a prisão civil.
O assunto é de grande alcance
prático, ultrapassando os limites do simples interesse das partes, visto
que milhares são os casos de separação e divórcio instrumentalizados
por escritura pública com a estipulação de pensão alimentícia em favor
de um dos cônjuges ou dos filhos maiores.Por primeiro, deve-se refutar a tese de que a obrigação de prestar alimentos firmada em cartório de notas é desprovida da observância do princípio do contraditório. Entende-se que há, sim, contraditório na formação do acordo de divórcio feito perante o tabelião, pois no ato as duas partes devem estar presentes e assessoradas pelo advogado escolhido por elas, que tanto pode ser um só para as duas ou um para cada. Como se vê, nada é feito sem a presença e a anuência do devedor, que está amparado por profissionais do direito de sua confiança. O tabelião fará as vezes de um juiz, confirmando a vontade das partes e, com o advogado, alertando-as das consequências do ato que está sendo feito. Tudo isso com a participação ativa dos interessados.
Os cartórios são parceiros da justiça e assim devem ser vistos. É o poder Judiciário que seleciona e fiscaliza os tabeliães. Por isso a Resolução 35 do CNJ, no seu art. 52 diz: os cônjuges separados judicialmente podem, mediante escritura pública, converter a separação judicial ou extrajudicial em divórcio, mantendo as mesmas condições ou alterando-as.
Em outras palavras, as partes podem, por escritura, alterar até mesmo o que antes tinham combinado sobre alimentos na presença do juiz! Portanto, não há espaço para entender-se que a escritura tem menos valor que a homologação judicial e por isso é incabível obstar a execução da pensão alimentícia na forma do art. 733 do CPC.
Não podemos nos prender à literalidade do art. 733 do CPC, que fala em execução de sentença ou decisão. Este dispositivo só se refere a esses dois tipos de pronunciamentos judiciais porque foi redigido na época em que só por meio de um magistrado era definido o valor de uma pensão, ainda que por mera homologação.
Porém, os tempos mudaram, o direito não é o mesmo e, com o advento da Lei 11.441/07, em muito boa hora, o divórcio consensual sem filhos menores passou a poder ser feito por escritura pública, na qual os alimentos são convencionados para o casal ou para os filhos maiores. Portanto, desde 2007, a definição do valor dos alimentos não é mais privativa de uma decisão judicial. Há mais liberdade para as próprias pessoas resolverem suas vidas. Portanto, o artigo 733 deve ser interpretado de forma sistemática e atual, não podendo ser apenas lido de forma literal.
O entendimento do julgado que se analisa parece ter considerado que o devedor é a parte mais fraca na relação jurídica da dívida alimentar. Todavia, o que ocorre é exatamente o contrário. Nessa relação alimentar a parte mais forte é quem paga e não quem recebe os alimentos. Quem paga tem para se manter e ainda pode ajudar alguém. Quem recebe não tem nem para o próprio sustento.
A pessoa que recebe a pensão está em situação de vulnerabilidade, pois precisa que outra pessoa contribua para o que é necessário para o seu bem estar: alimentação, vestuário, educação, transporte, saúde e lazer.
A interpretação meramente literal do artigo 733 do CPC, feita pelo acórdão noticiado, criou uma exceção, não prevista na lei e nem na Constituição, em que uma dívida alimentar ficou sem a força da possibilidade de prisão do devedor, enfraquecendo o direito do credor dos alimentos, que deles necessita para ter uma vida humana com dignidade, o que é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, da Constituição).
O entendimento do julgado em análise retira das escrituras, indevidamente, eficácia jurídica que lhes é conferida pela Lei 11.441/07 e tem a consequência perniciosa de fazer com que a Justiça tenda a ser cada vez mais sobrecarregada, pois, com menos eficácia nos acordos de divórcio feitos nos cartórios de notas, as pessoas tendem a procurar o Judiciário para fazer o mesmo acordo que poderiam perfeitamente fazer fora dele.
O credor dos alimentos tem direito à proteção que decorre da possibilidade da prisão do devedor inadimplente. Se não for reconhecida essa eficácia no título extrajudicial, produzido no cartório de notas, a tendência é o credor fazer questão de que o acordo seja feito perante o Judiciário, com isso gerando processos e mais processos totalmente desnecessários, para mera homologação, exatamente o que a Lei 11.441/07 quis evitar.
Por sua vez, esse afluxo maior de processos tornará a justiça ainda menos célere e menos eficiente, o que contraria pelo menos dois princípios constitucionais: eficiência (art. 37) e duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII).
Lembre-se que os tabeliães não são os únicos que podem celebrar acordos de alimentos. A defensoria pública e o ministério público também podem lavrar termos de acordos, gerando igualmente títulos extrajudiciais. E o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu a possibilidade de prisão civil na execução de tais títulos. Vejamos os precedentes adiante.
RECURSO
ESPECIAL - OBRIGAÇÃO ALIMENTAR EM SENTIDO ESTRITO – DEVER DE SUSTENTO
DOS PAIS A BEM DOS FILHOS - EXECUÇÃO DE ACORDO EXTRAJUDICIAL FIRMADO
PERANTE O MINISTÉRIO PÚBLICO – DESCUMPRIMENTO - COMINAÇÃO DA PENA DE
PRISÃO CIVIL - POSSIBILIDADE.
1.
Execução de alimentos lastrada em título executivo extrajudicial,
consubstanciado em acordo firmado perante órgão do Ministério Público
(art. 585, II, do CPC), derivado de obrigação alimentar em sentido
estrito - dever de sustento dos pais a bem dos filhos.
2.
Documento hábil a permitir a cominação de prisão civil ao devedor
inadimplente, mediante interpretação sistêmica dos arts. 19 da Lei n.
5.478/68 e Art. 733 do Estatuto Processual Civil. A expressão "acordo"
contida no art. 19 da Lei n. 5.478/68 compreende não só os acordos
firmados perante a autoridade judicial, alcançando também aqueles
estabelecidos nos moldes do art. 585, II, do Estatuto Processual Civil,
conforme dispõe o art. 733 do Código de Processo Civil. Nesse sentido:
REsp 1117639/MG, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em
20/05/2010, DJe 21/02/2011.
3. Recurso
especial provido, a fim de afastar a impossibilidade apresentada pelo
Tribunal de origem e garantir que a execução alimentar seja processada
com cominação de prisão civil, devendo ser observada a previsão
constante da Súmula 309 desta Corte de Justiça.
RESP 1285254/DF - Relator Ministro Marco Buzzi - T4 - j. 04.12.12
RECURSO
ESPECIAL - PROCESSUAL CIVIL - EXECUÇÃO DE ALIMENTOS – ACORDO
REFERENDADO PELA DEFENSORIA PÚBLICA ESTADUAL - AUSÊNCIA DE HOMOLOGAÇÃO
JUDICIAL - OBSERVÂNCIA DO RITO DO ARTIGO 733 E SEGUINTES DO CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL - POSSIBILIDADE, NA ESPÉCIE – RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1.
Diante da essencialidade do crédito alimentar, a lei processual civil
acresce ao procedimento comum algumas peculiaridades tendentes a
facilitar o pagamento do débito, dentre as quais destaca-se a
possibilidade de a autoridade judicial determinar a prisão do devedor.
2.
O acordo referendado pela Defensoria Pública estadual, além de se
configurar como título executivo, pode ser executado sob pena de prisão
civil.
3. A tensão que se estabelece
entre a tutela do credor alimentar versus o direito de liberdade do
devedor dos alimentos resolve-se, em um juízo de ponderação de valores,
em favor do suprimento de alimentos a quem deles necessita.
4. Recurso especial provido.
REsp 1117639/MG - Relator Ministro Massami Uyeda - T3 - j. 20.05.2010
Com
tantas possibilidades de soluções dos problemas por outras vias que não
o processo judicial, não me parece correto o entendimento que induz as
pessoas a procurar a justiça nos casos em que não há litígio, pois em
tais casos elas estão de acordo e podem resolver o seu problema muito
mais rapidamente, num cartório extrajudicial ou perante outros órgãos
como a defensoria pública ou o ministério público.Devemos ter em mente que não há possibilidade de prisão civil sem o crivo judicial. Quem decreta a prisão não é o advogado, não é o tabelião e nem são as partes. A prisão só é decretada por um juiz e sempre depois de possibilidade de defesa.
De fato, o devedor é citado para pagar, comprovar que pagou ou se justificar no prazo legal de três dias. A prisão só vem rapidamente quando ocorrem essas três omissões do devedor. Não existe entre nós uma prisão automática, decorrente da pura e simples falta de pagamento. Desde a inadimplência até a ordem de prisão, há uma importante tramitação processual, que assegura uma série de garantias.
Deve ficar bem claro que a escritura não acarreta a prisão de ninguém. Não há o que temer. Todos estão seguros, inclusive os devedores. A prisão é excepcional, pois é a última opção do juiz, reservada apenas para quem não tem motivo justo para deixar de pagar.
Portanto, é um equívoco ser rigoroso demais na exigência formal do título que gera o crédito aos alimentos. Isso fez o julgado em questão. Se a preocupação é não prender alguém desnecessariamente, basta que o juiz só decrete a prisão nos casos em que isso realmente é necessário, mas independentemente de o título ser judicial ou extrajudicial.
As pessoas costumam pagar as pensões não porque são presas, mas pelo temor de ter a sua prisão decretada. Por isso que, para que as coisas funcionem bem, basta que exista a mera possibilidade de a prisão ser decretada. Mas, quando se considera, de antemão, que a prisão é incabível porque o título é extrajudicial, o temor desaparece e com ele um importante estímulo ao pagamento pontual.
Com a impontualidade estimulada, aumenta ainda mais o número dos processos de execução, sobrecarregando-se ainda a justiça, de maneira totalmente desnecessária. Como vemos, um dos efeitos é uma litigiosidade maior.
Finalmente, do ponto de vista de política judiciária e de planejamento estratégico do Poder Judiciário, é um equívoco grave negar a possibilidade de prisão por alimentos convencionados em escritura de divórcio, pois o fundamento de proteger o devedor inadimplente acaba sendo um golpe gravíssimo contra o instituto do divórcio extrajudicial, que muito tem contribuído para melhorar a atuação da justiça e a vida de tantas pessoas.
Negar eficácia parcial aos divórcios extrajudiciais é estimular que eles sejam feitos em juízo, o que contraria o momento em que vivemos. Não devemos fomentar o litígio e nem a desnecessária judicialização, que já é grande. Devemos buscar formas alternativas de resolução dos conflitos, como tem dito o Conselho Nacional de Justiça.
O Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Desembargador José Renato Nalini, em entrevista publicada no jornal Valor Econômico, no dia 02 de janeiro de 2014, quando tomou posse, disse que uma das metas de sua gestão é reduzir o número de demandas. Vejamos um trecho do que foi dito pelo chefe do Poder Judiciário Paulista.
“Gostaria
que a sociedade paulista prestasse mais atenção ao Judiciário e
ajudasse a definir se esse é o modelo realmente hábil para a solução de
conflitos. Há um excesso de demandismo. O Brasil tem 93 milhões de
processos para quase 200 milhões de habitantes. Isso é irreal. O
Judiciário deve investir cada vez mais nos meios alternativos de solução
de conflitos. A população se acostumou a discutir todas as suas
questões, desde as mais graves até as menores, em juízo. Nós alargamos a
porta de acesso à Justiça. Todos entram, mas agora não encontram a
saída, que é um funil. O Judiciário deve mostrar que a solução pacífica,
a autocomposição, é muito mais eficaz do que a solução dada pelo
Estado-juiz. Quando se faz um acordo, além de economizar tempo e
dinheiro, você foi protagonista da sua história. Opinou, discutiu e
entendeu. Você não foi excluído. No processo, a parte é excluída. Ela
fica ali. É só o advogado que fala”.
Em conclusão, a escritura de
divórcio que estipula alimentos entre os cônjuges não é juridicamente
frágil e nem potencialmente perigosa para a proteção dos direitos dos
envolvidos. Ao contrário, ela é um importante instrumento de realização
rápida do direito, bem como da “desjudicialização”, de modo que, a regra
procedimental prevista no artigo 733, do CPC deve ser harmonizada com a
inovação prevista na Lei 11.441/07, viabilizando, portanto, o método
coercitivo do devedor, em consonância ao que dispõe a Constituição
Federal, consistente na admissão da excepcional prisão do devedor de
alimentos, ainda que estes tenham sido estipulados consensualmente
perante um cartório de notas. Com esta ótica não se prega a
indiscriminada prisão civil dos devedores de pensões alimentícias. O que
se defende é a mera possibilidade do cabimento da prisão civil, sem se
fazer a discriminação da natureza do título executivo, seja ele judicial
ou uma escritura pública.
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