quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Aposentado que precisa de cuidador recebe adicional

Aposentado em condições normais pode receber acréscimo de um quarto em seus vencimentos se necessitar de assistência permanente de outra pessoa. Foi o que decidiu a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, ao conceder adicional de 25% no valor do benefício de um aposentado rural de 76 anos que está inválido e necessitando de cuidador permanente.
O relator da decisão, desembargador federal Rogério Favreto, considerou que o idoso tem o mesmo direito daqueles que se aposentam por invalidez e ganham o adicional quando precisam de cuidadores. A Lei 8.213/91 prevê, em seu artigo 45, que o valor da aposentadoria por invalidez do segurado que necessitar da assistência permanente de outra pessoa será acrescido de 25%.
Favreto ressaltou que o mesmo acréscimo deve ser concedido neste caso pelo princípio da isonomia. Apesar de o autor da ação ter se aposentado normalmente em 1993, hoje encontra-se em dificuldades, devendo ser beneficiado pela lei.
“O fato de a invalidez ser decorrente de episódio posterior à aposentadoria não pode excluir a proteção adicional ao segurado que passa a ser inválido e necessitante de auxílio de terceiro, como forma de garantir o direito à vida, à saúde e à dignidade humana”, declarou Favreto.
Para o desembargador, a Justiça não deve fazer diferença entre o aposentado por invalidez que necessita de auxílio permanente de terceiro e outro aposentado por qualquer modalidade de aposentadoria que passe a sofrer de doença que lhe torne incapaz de cuidar-se sozinho.
“Compreender de forma diversa seria criar uma situação absurda, exigindo que o cidadão peça a conversão ou transformação da sua condição de aposentado por idade e/ou tempo de contribuição por invalidez, com o objetivo posterior de pleitear o adicional de acompanhamento de terceiro”, argumentou.
Favreto afirmou em seu voto que “o julgador deve ter a sensibilidade social para se antecipar à evolução legislativa quando em descompasso com o contexto social, como forma de aproximá-la da realidade e conferir efetividade aos direitos fundamentais”.
O aposentado deverá receber o acréscimo retroativamente desde o requerimento administrativo, que foi em abril de 2011, com juros e correção monetária. A decisão é do dia 27 de agosto. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRF-4.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

CONSULTORIA CRIMINAL PODE EVITAR CONDENAÇÕES

As investigações sobre o caso de suposto cartel em licitações dos metrôs de São Paulo e do Distrito Federal têm dividido opiniões sobre os verdadeiros culpados da história. Enquanto o governador Geraldo Alckmin diz que, caso a irregularidade seja comprovada, o Estado seria a maior vítima, as empresas envolvidas no escândalo alegam que o governo tinha total ciência sobre a formação de cartel.
Uma licitação é elaborada quando as unidades de administração pública necessitam adquirir produtos ou serviços de particulares. O método garante igualdade de competição pelo novo contrato entre todas as empresas. A intenção principal da licitação, além de garantir a isenção por parte do órgão público, é que a empresa escolhida ofereça o melhor custo benefício em relação aos seus concorrentes. O processo licitatório deve garantir a observância do princípio constitucional da isonomia.
Quando um funcionário público determina certo tipo de contratação e, sem o apoio de nenhuma hipótese legal, o faz sem intermédio de uma licitação, esse agente poderá estar cometendo um delito. Essa dispensa imotivada pode ser considerada crime não só do agente público, mas também do particular que foi contratado. Isso é preocupante e deve ser bem avaliado pela empresa contratada, uma vez que o único meio dela se resguardar e saber se a dispensa/inexigibilidade se deu corretamente é por meio de uma consultoria advocatícia. Do contrário, poderá incorrer no referido crime, como frequentemente ocorre. A pena para a prática desse tipo de delito é de três a cinco anos de detenção, além de multa, de acordo com o artigo 89, parágrafo único, da Lei 8.666 de junho de 1993.
Há de se destacar, também, que basta que o particular ofereça qualquer vantagem ao servidor publico para que a contratação seja feita sem atenção estrita à Lei e ambos (particular e público) também respondam por corrupção, crime cuja pena segundo o Código Penal é de de 2 a 12 anos de reclusão, além de multa.
Ainda existe a possibilidade da fraude à licitação decorrer de conluio entre as empresas ou agentes particulares para manipular o preço que o Poder Público irá pagar pelo bem ou serviço, e aí sim o Estado é apenas e tão somente vítima. O crime praticado é aquele previsto no artigo 90 da Lei 8.666/1993, e a pena é de 2 a 4 anos de detenção, além de multa.
Cada vez mais os conceitos privados de dever de cautela ganham espaço na seara criminal. Apesar do direito penal exigir que seja comprovada a intenção criminosa de alguma das partes para que se verifique a irregularidade, muitas empresas, mesmo sem efetivamente ter intenção de cometer um ato ilícito, acabam se prejudicando em situações nas quais há crime de licitação justamente por não terem o acompanhamento de uma consultoria jurídica penal, pois existem inúmeras situações em que a Lei não é clara em relação a necessidade ou não de se licitar, bem como atos singelos e corriqueiros podem ser considerados como tentativas de corrupção.
Sem este tipo de orientação em processos licitatórios, a empresa fica absolutamente vulnerável, o que afeta de forma definitiva a imagem da companhia. No caso dos metrôs de São Paulo e do Distrito Federal, caso fique comprovado que os responsáveis pelas empresas envolvidas na licitação tinham prévia intenção e agiram de modo a formar cartel, em prejuízo do Estado, o corpo diretivo da companhias deverá responder por tais atos, bem como os agentes públicos, se souberem do processo fraudulento ou receberam vantagens para ignorar as fraudes.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA - Não se aplica a majorante em lavagem de dinheiro

A concepção teórica do que vem a ser uma organização criminosa é objeto de grande desinteligência na doutrina especializada[1], tornando-se verdadeira vexata queastio. A essa dificuldade somava-se o fato de que a nossa legislação não definia o que podia ser concebido como uma organização criminosa, a despeito de todas as infrações penais envolvendo mais de três pessoas serem atribuídas, pelas autoridades repressoras, a uma “organização criminosa”. Aboliram, nesses crimes, a figura do concurso eventual de pessoas. Nem mesmo na Lei 9.034/95, que dispunha sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, desincumbiu-se desse mister.
Nosso referencial normativo anterior, para a delimitação dos casos que envolvessem uma suposta organização criminosa, era a Convenção das Nações Unidas sobre Crime Organizado, também conhecida como Protocolo de Palermo (reconhecido pelo Decreto 5.015/2004), que define grupo criminoso organizado como: “Grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material”.
Com o advento da Lei 12.694, de 24 de julho de 2012, passou-se a definir em nosso país, finalmente, o fenômeno conhecido mundialmente como organização criminosa, nos seguintes termos: “Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de três ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a quatro anos ou que sejam de caráter transnacional” (Artigo 2º). Essa definição, contudo, não chegou a consolidar-se no âmbito do nosso direito interno, pois o legislador pátrio editou nova lei redefinindo organização criminosa com outros contornos e outra abrangência. Referimo-nos à Lei 12.850, de 2 agosto de 2013[2], que define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Código Penal, revoga a Lei no 9.034, de 3 de maio de 1995, e dá outras providências. Com efeito, este último diploma legal traz a seguinte definição de organização criminosa: “Considera-se organização criminosa a associação de quatro ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos, ou que sejam de caráter transnacional” (artigo 1º, parágrafo 1º).
Nessa conceituação são trazidos novos elementos estruturais tipológicos definindo, com precisão, o número mínimo de integrantes de uma organização criminosa, qual seja, quatro pessoas (o texto revogado tacitamente falava em “três ou mais”), a abrangência das ações ilícitas praticadas no âmbito ou por meio de uma organização criminosa, que antes se restringia à prática de crimes. Agora pode abranger, em tese, a prática, inclusive, de contravenções, em função do emprego da locução infrações penais. Um dos critérios de delimitação da relevância das ações praticadas por uma organização criminosa reside na gravidade da punição das infrações que são objetos de referida organização, qual seja, “a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos” (artigo 1º, parágrafo 1º).
O texto revogado da lei anterior (12.694/12) previa crimes com pena igual ou superior a quatro anos” (artigo 2º). Na realidade, nessa opção político criminal o legislador brasileiro reconhece o maior desvalor da ação em crimes praticados por organização criminosa ante a complexidade oferecida à sua repressão e persecução penal.
Por fim, deve-se destacar que o legislador, com este diploma legal, atenta para os compromissos internacionais na repressão de crimes praticados por organizações criminosas internacionais, dando atenção, finalmente, aos tratados e convenções internacionais[3] recepcionados por nosso ordenamento jurídico. Nesse sentido, o parágrafo 2º do artigo 1º desta Lei 12.850 estabelece que se aplique aos seguintes casos, independentemente da quantidade de pena aplicável:
“I - às infrações penais previstas em tratado ou convenção internacional quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;
II - às organizações terroristas internacionais, reconhecidas segundo as normas de direito internacional, por foro do qual o Brasil faça parte, cujos atos de suporte ao terrorismo, bem como os atos preparatórios ou de execução de atos terroristas, ocorram ou possam ocorrer em território nacional”.
Trata-se, a rigor, de exceção relativamente à limitação de infrações com penas máximas superiores a quatros anos de reclusão, justificada pelos compromissos assumidos pelo Brasil via Tratados e Convenções Internacionais.
A rigor, a formação ou constituição de organização criminosa para fins de praticar crimes, indiscriminadamente, facilita a quem se reúne de forma estruturada, organizada e dedicada a delinquir, possibilitando a obtenção de maior efetividade no desenvolvimento da ação criminosa; consequentemente, pode assegurar melhores resultados, tornando a prática de crimes uma atividade lucrativa.
Visto sob essa ótica, constata-se que a gravidade da atuação por intermédio de organização criminosa destinada a prática de infrações mais graves é o fundamento do qual se utiliza o legislador contemporâneo para agravar, cada vez mais, a penalização dessas condutas.
Ao internalizar o conceito de organização criminosa, no entanto, o legislador condicionou que a sua finalidade seja a prática de infrações penais sancionadas com reclusão superior a quatro anos. Sob essa perspectiva deve-se reconhecer que a atuação por intermédio de organização criminosa ostenta maior desvalia da ação delituosa, justificando o incremento de sua punição.
2. Conflito entre as Leis 12.694/12 e 12.850/13: haveria dois tipos de organização criminosa
Alguns doutrinadores[4], v. g. Rômulo de Andrade Moreira[5], questionam se o nosso ordenamento jurídico admitiria “dois tipos de organização criminosa”: um para efeito de aplicação da Lei 12.694/2012, que disciplina o julgamento colegiado em primeiro grau de crimes praticados por organizações criminosas; e outro, para aplicação da Lei 12.850/2013, que define organização criminosa e dispõe sobre sua investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal respectivo.
Trata-se, inegavelmente, de relevante questão sobre conflito intertemporal de normas penais que exige detida reflexão, sob pena de usar-se dois pesos e duas medidas. Com efeito, comentando a Lei 12.850, Rômulo Andrade Moreira afirma:
“Perceba-se que esta nova definição de organização criminosa difere, ainda que sutilmente, da primeira (prevista na Lei 12.694/2012) em três aspectos, o que nos leva a afirmar que hoje temos duas definições para organização criminosa: a primeira que permite ao Juiz decidir pela formação de um órgão colegiado de primeiro grau e a segunda (Lei 12.850/2013) que exige uma decisão monocrática. Ademais, o primeiro conceito contenta-se com a associação de três ou mais pessoas, aplicando-se apenas aos crimes (e não às contravenções penais), além de abranger os delitos com pena máxima igual ou superior a quatro anos. A segunda exige a associação de quatro ou mais pessoas (e não três) e a pena deve ser superior a quatro anos (não igual). Ademais, a nova lei é bem mais gravosa para o agente, como veremos a seguir; logo, a distinção existe e deve ser observada”[6].
No entanto, na nossa ótica, admitir-se a existência de “dois tipos de organização criminosa” constituiria grave ameaça à segurança jurídica, além de uma discriminação injustificada, propiciando tratamento diferenciado incompatível com um Estado Democrático de Direito, na persecução dos casos que envolvam organizações criminosas. Levando em consideração, por outro lado, o disposto no parágrafo 1º do artigo 2º da Lei de introdução as normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/1942), lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. Nesses termos, pode-se afirmar, com absoluta segurança, que o parágrafo 1º do artigo 1º da Lei 12.850/2013 revogou, a partir de sua vigência, o artigo 2º da Lei 12.694/2012, na medida em que regula inteiramente, e sem ressalvas, o conceito de organização criminosa, ao passo que a lei anterior, o definia tão somente para os seus efeitos, ou seja, “para os efeitos desta lei”. Ademais, a lei posterior disciplina o instituto organização criminosa, de forma mais abrangente, completa e para todos os efeitos. Assim, o procedimento estabelecido previsto na Lei 12.694/12, contrariando o entendimento respeitável de Rômulo Moreira, com todas as venias, deverá levar em consideração a definição de organização criminosa estabelecida na Lei 12.850/13, a qual, como lei posterior, e, redefinindo, completa e integralmente, a concepção de organização criminosa, revoga tacitamente a definição anterior.
Por outro lado, o próprio Rômulo Moreira, reconhece, nesse seu respeitável opúsculo sobre a matéria, que “A “grande” novidade trazida pela nova lei (que não revogava a Lei 9.034/95, muito pelo contrário, reafirmava-a) consiste na faculdade do Juiz decidir pela formação de um órgão colegiado de primeiro grau (como o Conselho de Sentença — no Júri, ou o Conselho de Justiça — na Justiça Militar) para a prática de qualquer ato processual em processos ou procedimentos que tenham por objeto crimes praticados por organizações criminosas...”[7]. Pois essa grande novidade continua vigente e válida, para os efeitos daquela lei (12.694/12), sem qualquer prejuízo para os “efeitos a que se propõe”.
Seria um verdadeiro paradoxo, gerando, inclusive, contradição hermeneuticamente insustentável, utilizar um conceito de organização criminosa para tipificação e caracterização do referido tipo penal e suas formas equiparadas, e adotar outro conceito ou definição para que o seu processo e julgamento fossem submetidos à órgão colegiado no primeiro grau de jurisdição, nos termos da Lei 12.694/2012. Ademais, a necessidade de reforçar a segurança dos membros do Poder Judiciário na persecução de crimes praticados por organizações criminosas, através dessa Lei, certamente deverá estender-se, igualmente, à persecução penal do crime de formação e participação em organização criminosa, tipificado na Lei 12.850/2013, inclusive para as instâncias superiores. Esse tratamento assecuratório, por si só, isto é, por sua própria finalidade já assegura sua aplicação.
Nosso entendimento justifica-se também pelo fato de a nova Lei 12.850/2013 tipificar no seu artigo 2º, como crime autônomo, e por primeira vez em nosso ordenamento jurídico, o crime de formação e participação em organização criminosa[8], cujo texto não comentaremos neste espaço, por que não se destina a essa finalidade. No entanto, resulta claro que organização criminosa definida no parágrafo 1º do artigo 1º desta Lei 12.850 não se confunde com quadrilha ou bando (artigo 288) tipificada no Código Penal brasileiro, aliás, que acaba de receber, deste mesmo diploma legal, a denominação, a nosso juízo, mais adequada, de “associação criminosa”.
Por outro lado, considerando que a Lei 12.850 define de forma distinta organização criminosa e associação criminosa (antiga quadrilha ou bando), fica sepultada de uma vez por todas a polêmica sobre a semelhança ou identificação entre organização criminosa e quadrilha ou bando, agora definida como associação criminosa. Isso decorre da clareza dos termos de cada instituto, bem como dos diferentes requisitos legais exigidos para as suas composições típicas, além do mínimo de integrantes em cada espécie de “associação” (quatro na organização, e três na associação), conforme analisamos, sucintamente, em outro tópico.
Constata-se, em outros termos, que a Lei 12.850/2013 abandonou a terminologia “quadrilha ou bando”, consagrada pelo nosso Código Penal de 1940, passando a denominá-la associação criminosa, nos seguintes termos: “Artigo 288. Associarem-se três ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes: Pena - reclusão, de um a três anos. Parágrafo único. A pena aumenta-se até a metade se a associação é armada ou se houver a participação de criança ou adolescente”. E, além de adotar outro nomen iuris, alterou, igualmente, o número mínimo de participantes (reduzindo para três), bem como a causa de aumento que recebeu nova configuração: “se a associação é armada ou se houver a participação de criança ou adolescente”. Enfim, “a participação de criança ou adolescente” em uma associação criminosa, que não se confunde com organização criminosa, repetindo, passou a ser também causa de majoração penal. No entanto, essa majoração, que antes dobrava a pena, agora determina a elevação somente de metade. E, como lei mais benéfica, no particular, retroage, sendo aplicável a casos anteriores à sua vigência.
Ademais, a diversidade dos dois crimes reflete-se diretamente na disparidade de punição de uma e outra infração penal, tanto que a gravidade e complexidade da participação em organização criminosa justifica, na ótica do legislador, a cominação de uma pena de reclusão de três a oito anos, na ótica do legislador, ao passo que a quadrilha ou bando, agora, associação criminosa, tem pena cominada de um a três anos de reclusão.
Lavagem de dinheiro e formação de organização criminosa
Aproveitamos nossa primeira reflexão para questionar a possibilidade de punição cumulativa do crime de lavagem de capitais com o novo crime de constituição de organização criminosa, tipificado no artigo 2º da 12.850/2013, e, especialmente, a incidência da causa de aumento de pena[9] (parágrafo 4º do artigo 1º da Lei 9.613). Em outras palavras, seria possível punir pelos dois crimes o integrante de uma organização criminosa, que pratica o crime de lavagem de capitais, e, principalmente, com a incidência da referida causa de aumento? Não constituiria essa possibilidade uma afronta à proibição do ne bis in idem?
A questão é bastante complexa, pois não se trata da mera discussão acadêmica sobre a admissibilidade da punição, em concurso material, do crime de organização criminosa, com o crime que venha a ser efetivamente executado por membros de dita organização, mas, fundamentalmente, da incidência da majorante do parágrafo 4º do artigo 1º da Lei 9.613/98. Quanto a possibilidade de qualquer membro de uma organização criminosa responder, cumulativamente, por qualquer outro crime que praticar (inclusive de lavagem de capitais), já demonstramos quando examinamos essa temática relativamente ao crime de quadrilha ou bando[10]. Quanto a esse aspecto não resta a menor dúvida sobre sua admissibilidade.
Com efeito, o que estamos questionando, neste momento, é se a participação em organização criminosa, ainda que por interposta pessoa, pode ser penalizada duas vezes: uma para incidência da causa de aumento (parágrafo 4º do artigo 1º), quando da realização do crime de lavagem de capitais, e outra pela configuração do crime de organização criminosa (artigo 2º da Lei 12.850/2013. Entendemos que não é admissível essa dupla punição, pois, nessa hipótese particular, estamos diante da valoração do mesmo fato para efeito de ampliação da sua punição que caracterizaria o ne bis in idem. De modo que se o agente já é punido mais severamente pelo fato de praticar o crime de lavagem de dinheiro na condição de integrante de organização criminosa, esse mesmo fato, isto é, sua participação em organização criminosa não poderá caracterizar de forma autônoma o novo crime do artigo 2º da Lei 12.850/2013. Esse nosso entendimento encontra respaldo no conflito aparente de normas, sob a ótica do princípio da especialidade[11], aplicando apenas uma das duas punições, ou seja, somente a lavagem de capitais com sua respectiva causa de aumento (parágrafo 4º do artigo 1º da Lei 9.613), qual seja, cometida “por intermédio de organização criminosa”.
Em outros termos, pode-se concluir, a causa especial de aumento constante do parágrafo 4º, do artigo 1º da Lei 9.613/98, deve ser interpretada da seguinte forma: são puníveis de forma mais rigorosa os atos constitutivos de lavagem de dinheiro, quando feitos por intermédio de organização de quatro ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos, ou que sejam de caráter transnacional. Agora, mais do que nunca o Supremo Tribunal Federal deverá ficar atento à distinção tipológica entre organização criminosa e associação criminosa (artigo 288 do Código Penal), não havendo mais razão e nem desculpa para a eterna confusão que Ministério Público e Polícia Federal têm feito sobre esses dois institutos penais, aliás, passivamente recepcionada pela jurisprudência pátria, especialmente pela gravidade das sanções cominadas.
Haveria uma outra possibilidade, alternativa que nos parece também razoável: responde simplesmente em concurso pelos crimes de lavagem de dinheiro e por integrar determina organização criminosa ou associação criminosa, dependendo do caso, sem aplicar a majorante do parágrafo 4º, para evitar o bis in idem. Em outras palavras, deve-se buscar a situação menos gravosa ao acusado, as circunstâncias fáticas é que poderão determinar a escolha devida. Mas uma coisa é certa: não pode responder pelos dois crimes e ainda cumulados com a majorante, para evitar uma dupla punição por um mesmo fato. E, finalmente, eventual condenação pelo crime de lavagem de dinheiro, ainda que eventualmente tenha sido cometido por meio de associação criminosa (artigo 288 do Código Penal), em hipótese alguma autoriza a aplicação da majorante, por que de organização criminosa não se trata, como ficou claro pelos termos da Lei 12.850/13 .
[1] Confira a esse respeito a coletânea de estudos publicados em Juan Carlos Ferré Olivé e Enrique Anarte Borrallo (Eds.) Delincuencia organizada. Aspectos penales, procesales y criminológicos. Huelva, Universidad de Huelva, 1999. Na doutrina nacional, confira Raúl Cervini e Luis Flávio Gomes, Crime organizado, enfoques criminológicos, jurídico (Lei 9034/95) e político criminal, São Paulo, RT, 1995, p. 75 e s.; Wilson Lavorenti e José Geraldo da Silva, Crime Organizado na atualidade. Camoinas, Bookseller, 2000, p. 18 e s.; entre outros.
[2] Publicado no DOU de 5.8.2013 - Edição extra
[3] Ver, nesse sentido, a extraordinária obra de Valério de Oliveira Mazzuoli. O controle jurisdicional da covencionalidade das leis, 2ª ed., São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011.
[4] Como é o caso de Rômulo de Andrade Moreira que suscita o questionamento no artigo A nova Lei de organização criminosa – lei nº. 12.850/2013. Atualidades do direito. Editores Alice Bianchini e Luiz Flávio Gomes, 2013. Disponível em: . Consultado em: 14.08.2013.
[5] Rômulo Andrade Moreira. A nova lei de organização criminosa – Lei Nº. 12.850/2013, 1ª ed., Porto Alegre, Ed. Lex Magister, 2013, p. 30-1 (no prelo)
[6] Rômulo Andrade Moreira. A nova lei de organização criminosa – Lei Nº. 12.850/2013, 1ª ed., Porto Alegre, Ed. Lex Magister, 2013, p. 30-1 (no prelo)
[7] Rômulo de Andrade Moreira. A nova lei de organização criminosa, cit. p. 20.
[8] Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas. . (...)
[9] § 4o A pena será aumentada de um a dois terços, se os crimes definidos nesta Lei forem cometidos de forma reiterada ou por intermédio de organização criminosa. (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)
[10] Ver nosso Tratado de Direito Penal, Parte Especial, 7ª ed., São Paulo, Saraiva, 2013, vol. 4, p. 455.
[11] Cezar Roberto Bitencourt. Tratado de Direito Penal, Parte Geral, 19ª ed., São Paulo, Saraiva, 2013, vol. 1, p. 255.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Veja como STJ julga as prerrogativas dos advogados

Indispensável à administração da Justiça, o advogado é inviolável em seus atos e manifestações no exercício da profissão. O texto, presente na Constituição, resguarda não só o advogado, mas seus clientes, a Justiça e a cidadania. No Superior Tribunal de Justiça, a jurisprudência sobre limites e excessos das prerrogativas dos advogados é farta.
No Habeas Corpus 229.306, a defesa alegava que a atuação do advogado no processo de origem teria sido de “péssima qualidade” e deficiente. Assim, por falta de defesa técnica, a condenação do réu em 13 anos por homicídio qualificado deveria ser anulada.
O ministro Jorge Mussi, porém, afastou a nulidade. Para o relator, o advogado era habilitado e fora regular e livremente constituído pelo réu, pressupondo confiança no profissional. A atuação do advogado não seria negligente, já que sustentou suas teses em todas as oportunidades oferecidas pelo juízo.
Conforme o ministro, não se pode qualificar como defeituoso o trabalho do advogado que atua de acordo com a autonomia garantida pelo estatuto.
Mussi explica que a experiência de cada profissional, em qualquer ofício, resulta em trabalhos distintos sobre um mesmo fato. “Trata-se, na verdade, da avaliação subjetiva do profissional, diante de um caso concreto, das medidas que entende devidas para alcançar um fim almejado”, avalia o ministro. Porém, Mussi diz que no ofício do advogado não é possível exigir um resultado específico, senão zelo na prestação do serviço e o emprego dos recursos que lhe estiverem disponíveis em busca do êxito almejado.
“Assim, embora aos olhos do impetrante a atuação do causídico constituído pelo paciente não seja digna de elogios, da leitura das peças que foram acostadas aos autos não se constata qualquer desídia ou impropriedade capaz de influenciar na garantia à ampla defesa do acusado. Aliás, mostrou-se combativo ao não resignar-se com a decisão de pronúncia, manifestando seu inconformismo até o último recurso disponível, revelando a sua convicção na estratégia defensiva traçada, a qual foi igualmente sustentada perante o conselho de sentença. Entretanto, diante de um insucesso, para o crítico sempre haverá algo a mais que o causídico poderia ter feito ou alegado, circunstância que não redunda, por si só, na caracterização da deficiência de defesa”, concluiu.
Carga de autos
Em decisão recente, o STJ afirmou que apenas o advogado que deixou de devolver os autos no prazo é que pode ser responsabilizado pela falta.
No Recurso Especial 1.089.181, as instâncias ordinárias haviam imposto restrições a todos os advogados e estagiários da parte, mas o STJ afirmou que só poderia ser punida a advogada subestabelecida que deixou de devolver os autos. Porém, no caso analisado, nem mesmo essa punição poderia ser mantida, já que os autos foram devolvidos antes do prazo legal de 24 horas que permitiria a aplicação de sanções.
“Merece reforma o acórdão recorrido, uma vez que a configuração da tipicidade infracional decorre não do tempo em que o causídico reteve os autos, mas do descumprimento da intimação para restituí-los no prazo legal”, esclareceu o ministro Luis Felipe Salomão.
Vistas para 47 réus
O STJ já decidiu que não viola prerrogativas da advocacia a limitação, pelo juiz processante, de restrição à vista dos autos fora do cartório quando a medida é justificada.
No HC 237.865, o Tribunal afirmou que a retirada dos autos de processo com 47 réus, cada um com seus advogados próprios, envolvidos em cinco denúncias relacionadas a tráfico internacional de drogas, causaria tumulto e retardamento processual.
Conforme o STJ, as partes não tiveram impedido o acesso aos documentos ou cópias, o que não restringiu seu direito de defesa. Apenas foi aplicada exceção prevista no próprio Estatuto da Advocacia (artigo 7º, parágrafo 1º, item 2).
O caso tratava de réus presos com mais de quatro toneladas de cocaína e cinco toneladas de maconha. Na operação, foram apreendidos também 48 veículos, um avião e mais de US$ 1 milhão, além de maquinário e produtos químicos para preparação e adulteração das drogas. O grupo, de acordo com a denúncia, produzia as drogas na Bolívia e as distribuía para São Paulo, a Europa e a África.
Tumulto protelatório
O advogado que tenta tumultuar o trâmite processual e apenas adiar o julgamento também pode ter negada a carga dos autos. No REsp 997.777, o STJ considerou válida a negativa de carga dos autos pelo tribunal local.
Às vésperas do julgamento, os advogados foram substituídos. Por isso, os novos representantes pediam vista fora de cartório. A corte havia negado a retirada dos autos porque a parte teria, desde a primeira instância, feito várias manobras para procrastinar o andamento do processo.
Intimação
Por outro lado, o STJ anulou (HC 160.281) o julgamento de um recurso em sentido estrito porque a decisão do relator autorizando vista para cópias deixou de ser publicada, o que impediu o conhecimento do ato pelo advogado.
Para o tribunal local, o defensor constituído e os dois estagiários autorizados deveriam ter procurado tomar conhecimento da decisão, que só foi juntada três dias antes do julgamento. Eventual prejuízo para o réu decorreria da própria desídia da defesa. Mas o STJ considerou que o ato, nessas condições, constituiu um nada jurídico.
Os ministros consideraram que não seria razoável exigir do advogado que se dirigisse todos os dias ao gabinete do relator ou à secretaria do foro para informar-se sobre o andamento do processo.
Ainda conforme o STJ, havendo advogado constituído, tanto em processo judicial quanto administrativo, as intimações devem ser feitas também em seu nome, sob pena de nulidade. É o exemplo do decidido no Recurso Especial 935.004.
Na origem, um processo administrativo corria perante o conselho de magistratura. O juiz recebeu pena de censura por ter nomeado como inventariante seu padrinho de casamento, que por sua vez contratou o irmão do magistrado como advogado do espólio.
Como não foi intimado dessa decisão do conselho, o advogado que defendia a parte no processo de inventário não pôde entrar a tempo com a exceção de impedimento e suspeição contra o juiz.
O STJ considerou nula a intimação do resultado de processo administrativo feita somente em nome da parte em processo judicial relacionado ao caso, sem inclusão de seu advogado constituído.
Vista em processo administrativo
Porém, o STJ considerou, no REsp 1.232.828, que a administração não pode simplesmente impedir o advogado de retirar autos de processo administrativo da repartição.
No caso, o advogado tinha uma senha da repartição para provar que havia tentado obter vista do processo em que pretendia verificar o lançamento de ISS contra seu cliente. Mas o horário impresso correspondia à madrugada de domingo.
No STJ, foi considerado que, apesar disso, o documento, somado à presunção de boa-fé dos advogados, servia como prova. Mais que isso, a autoridade coatora se manifestou informando que realmente não concedia vista em carga dos processos administrativos. Isso configurou a violação do direito líquido e certo do advogado.
Imunidade por ofensas
Para o STJ, o advogado não pode ser responsabilizado por ofensas em sua atuação profissional, ainda que fora do juízo. No HC 213.583, o Tribunal reconheceu a ausência de justa causa em processo por crimes contra a honra movido por juiz contra um advogado.
O advogado era procurador municipal. A juíza titular da causa negara o mandado de segurança contra o ente público. A parte recorreu com embargos de declaração, os quais foram acolhidos com efeitos infringentes pelo magistrado, que substituía a titular afastada.
Na apelação, o procurador teria ofendido o juiz substituto, ao apontar sua decisão como ilegal e imoral. Isso porque teria, “curiosamente”, julgado “com celeridade sonhada por todos os litigantes” a causa movida por esposa de servidor de seu gabinete, na vara onde era titular.
Para o tribunal local, haveria injúria na afirmação de que a fundamentação era lamentável e a decisão absurda e ilegal; difamação, ao apontar que a decisão fora tomada “curiosamente” de forma célere, absurda, antiética e com interesse na causa; e calúnia ao afirmar que o juiz teria favorecido esposa de subordinado, fatos que corresponderiam a prevaricação e advocacia administrativa.
O STJ, no entanto, entendeu que não havia na apelação nenhum elemento que demonstrasse a intenção do advogado de ofender o magistrado ou imputar-lhe crime. Os ministros consideraram que a manifestação era objetiva e estava no contexto da defesa do ente público, seu cliente. As críticas, ainda que incisivas e com retórica forte, restringiam-se à decisão e à atuação profissional do magistrado, não invadindo a esfera pessoal.
Os ministros apontaram ainda que a própria magistrada titular da vara, ao receber a apelação, anotou que somente o tribunal teria competência para reverter sua decisão original e lhe causava “estranheza” a decisão do substituto. “Salvo engano, juízos com mesmo grau de jurisdição não podem alterar sentença um do outro”, registrou a magistrada.
Porém, no RHC 31.328, o STJ entendeu que a formulação de representação à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contra outro advogado não guarda relação com o exercício de atividade advocatícia, o que afasta a imunidade. Nesse mesmo processo, o STJ também reafirmou jurisprudência segundo a qual o cliente não pode ser responsabilizado por eventual excesso de linguagem de seu patrono.
“Pela ordem, Excelência!”
O tribunal esclareceu, no Agravo de Instrumento 1.193.155, que a prerrogativa de o advogado “usar a palavra, pela ordem, em qualquer juízo ou tribunal” não permite a juntada de documentos após o julgamento do recurso.
No caso, o Joinville Esporte Clube tentava comprovar, com a petição denominada “questão de ordem”, ter ingressado na “Timemania”, afastando a cobrança tributária. Porém, a peça só foi atravessada depois do julgamento colegiado do agravo regimental que confirmara a negativa ao agravo de instrumento. Os ministros anotaram, ainda, que tal petição não agiria sobre o prazo prescricional.
Direito próprio
As prerrogativas profissionais são direito do próprio advogado. Essa interpretação decorreu do caso em que um clube impediu o defensor de ingressar em suas dependências, afirmando que somente sócios podiam frequentá-lo.
O advogado defendia um cliente perante o conselho deliberativo do country club. Temendo que o impedimento tornasse a acontecer, o advogado ingressou com medida cautelar, que foi deferida. Porém, no mérito, o processo foi extinto, sob o argumento de que o advogado não poderia pleitear em seu nome direito de terceiro, seu cliente.
Para o STJ, no entanto, é “óbvio” que o titular das prerrogativas da advocacia é o advogado e não quem o constitui. Por isso, a legitimidade para a ação, nos termos em que proposta, era mesmo do defensor (REsp 735.668).
Juiz atrasado
O atraso do magistrado por mais de 30 minutos autoriza o advogado a deixar o recinto, mediante comunicação protocolada em juízo. Porém, essa medida só se justifica quando o juiz não está presente no fórum.
No Habeas Corpus 97.645, o STJ rejeitou a alegação de nulidade em caso no qual o advogado do réu acusado de homicídio qualificado, na quarta audiência marcada, deixou o local após atraso do magistrado, que presidia outro feito no mesmo recinto.
A primeira audiência estava marcada para 20 de novembro, e o réu foi apresentado às 15h30. Às 15h58, o advogado protocolou a petição informando do exercício de sua prerrogativa, sem nem mesmo entrar em contato com o magistrado, que, por se tratar de interrogatório do acusado, adiou o feito para 6 de fevereiro do ano seguinte.
A oitiva das testemunhas da acusação foi marcada para as 13h30 de 30 de maio, já que não compareceram à primeira. Às 16h30, o réu, preso, ainda não havia sido apresentado, o que levou à remarcação.
Em 10 de outubro, como as testemunhas do réu estivessem atrasadas, foi iniciada a audiência de outro caso, às 14h15. Às 16h20 foi feito o pregão do processo. O magistrado foi então informado de que os advogados, novamente sem entrar em contato prévio, haviam protocolado às 16h16 petição relativa à prerrogativa. O réu, já solto, deixou o fórum junto com seu defensor. Diante do fato, o magistrado nomeou defensor público e deu seguimento ao feito.
Para o STJ, além de não se enquadrar na hipótese prevista no estatuto, o caso não trouxe nenhum prejuízo à defesa. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

ALIENAÇÃO PARENTAL - É preciso consciência da gravidade da alienação parental

O término de um relacionamento amoroso, ainda que reconhecido por uma sentença judicial, não tem o condão de romper todos os vínculos jurídicos e afetivos entre pai e mãe. Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até que a morte os separe são máximas que não se aplicam a todos os casais, mas estão permanentemente presentes nos laços entre pais e filhos.
A Emenda Constitucional 66/2010 inovou ao prever no ordenamento jurídico brasileiro o divórcio direto, sem mais a necessidade de comprovação de período intermediário de separação (um ano de separação judicial ou dois anos de separação de fato). Entretanto o divórcio direto não faz, tal qual varinha mágica, com que o ex-casal vire, de imediato, a página dos problemas que inviabilizaram o convívio conjugal. Inadvertidamente, a vulnerável figura do filho, é utilizada como objeto de chantagem ou retaliação ao ex-cônjuge.
Sob este contexto, neste 26 de agosto, completam-se três anos da publicação da Lei de Alienação Parental (Lei 12.318/2010). Uma expressão cunhada pela psicologia para se referir à interferência na formação de criança e adolescente promovida ou induzida por um dos genitores para que o filho repudie o outro genitor, a alienação parental abrange atos de ex-cônjuge destinados a prejudicar o estabelecimento ou a manutenção da relação entre pai e filho.
O objetivo da lei foi a de disponibilizar instrumentos processuais aptos a inibir ou atenuar os efeitos da alienação parental, bem como de possibilitar a determinação judicial de acompanhamento psicológico e biopsicossocial para a criança ou adolescente, na condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
A enumeração legal do que constituem atos de alienação parental não se restringe a um rol fechado, mas exemplificativo. Realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor, dificultar o exercício da autoridade paterna, mitigar o contato de criança ou adolescente com genitor e impedir o exercício do direito regulamentado de convivência familiar são hipóteses previstas pela lei. Da mesma forma, a omissão deliberada de informações pessoais relevantes sobre o filho, como dados escolares, médicos e alterações de endereço; a apresentação falsa de denúncia contra genitor para obstar ou dificultar a convivência dele com o filho; e, por fim, a mudança de domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor ou com familiares deste.
A prática de ato de alienação parental fere direito fundamental de convivência familiar saudável, prejudica a realização de afeto nas relações com genitor e com o grupo familiar, constitui abuso moral contra a criança ou o adolescente e descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar ou decorrentes de tutela ou guarda.
Configurada a alienação parental, as consequências jurídicas vão desde a advertência judicial até a suspensão do poder familiar ao alienador, passando pela ampliação do regime de convivência familiar em favor do genitor alienado, a estipulação de multa ao alienador e a alteração da guarda para guarda compartilhada ou sua inversão. Sem prejuízo da responsabilização civil e criminal do alienador.
O legislador cumpriu o seu papel ao positivar em lei um conceito até então restrito ao universo da psicologia, mas de graves consequências sociais. Além disso, ciente das limitações tradicionais da resolução de litígios pela via judicial estrita, deu ampla vazão aos instrumentos de áreas cognitivas não-jurídicas, como os acompanhamentos e controles psicossociais. Agora, no terceiro aniversário de vigência da lei, cabem aos diversos atores — juízes, promotores, advogados, psicólogos, sociólogos e, fundamentalmente, aos pais — terem consciência da gravidade dos atos de alienação e das consequências danosas que se perpetuam para além das partilhas de divórcio.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Lei do Georreferenciamento ainda é desconhecida


“Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”. Assim está estabelecido no artigo 3º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/42, alterada pela Lei 12.376 de 30 de dezembro de 2010), no entanto, como ter conhecimento de todas as obrigações se somente em 2013, até o mês de julho, já foram aprovadas pela Câmara dos Deputados duas novas Emendas Constitucionais, duas Leis Complementares e 64  Leis Ordinárias? O mais incrível é que tal produção está somente em âmbito federal. Se trouxermos para o âmbito das leis estaduais e municipais, a totalização será um número ainda mais atormentador.
A Lei 10.267, de 2001, mais conhecida como Lei do Georreferenciamento, é uma dessas que, mesmo com 12 anos de existência, ainda é desconhecida por grande parte dos proprietários rurais, causando transtorno aos que nessa obrigação legal esbarram. A referida lei modificou a Lei 6.015, de 1973 (Lei dos Registros Públicos), sendo sua mudança mais significativa a determinação de que o georreferenciamento do imóvel rural deve ser averbado em sua matrícula junto ao Cartório de Registro de Imóveis.
O georreferenciamento do imóvel rural é um procedimento técnico através do qual o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Imcra) gerencia e promove o ordenamento da estrutura fundiária nacional, mantendo atualizado um cadastro nacional de imóveis rurais, de proprietários e detentores de imóveis rurais e de arrendatários e parceiros — obrigatório para todos os imóveis rurais — consoante as determinações da Lei 10.267, de 2001, e atualmente regulamentado pela Norma de Execução 105/2012 do Incra.
Para a realização do referido procedimento é preciso que o interessado contrate um profissional da área de agrimensura credenciado junto ao Incra e apresente documentação necessária para a posterior certificação do imóvel, tais como requerimento, relatório técnico com a descrição do objeto, período de execução, nome do proprietário, quantidade e descrição dos equipamentos e softwares utilizados, quadro resumo das precisões obtidas, cópia da matrícula, planta, memorial descritivo, planilha técnica, dentre outros. Toda a documentação é analisada por servidores públicos; em caso de regularidade, é expedida a respectiva certificação.
Sem a respectiva certificação, o imóvel rural não poderá ser vendido, partilhado, permutado, doado, desmembrado, remembrado, alienado fiduciariamente e nem poderá ser realizada a contratação de empréstimos agrícolas (financiamentos) que permitam a execução da função social por parte do imóvel rural, podendo redundar, no caso de descumprimento da função social da propriedade, na desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, com o recebimento como pagamento de Títulos da Dívida Agrária resgatáveis do 2º ao 20º ano.
A finalidade maior e última do georreferenciamento é ultimar as providências necessárias e cabíveis com o intuito de acabar definitivamente com a sobreposição de imóveis mediante a utilização do sistema geodésico brasileiro, concedendo assim uma maior segurança jurídica ao sistema fundiário brasileiro.
Enfim, a despeito da boa intenção da norma jurídica, o Incra não está aparelhado para dar resposta à demanda nacional de georreferenciamento de todos os imóveis rurais, sendo motivo gerador de outros dois decretos-lei que alteraram o prazo final de obrigatoriedade do averbamento do georreferenciamento na escritura pública do imóvel rural.
O último Decreto-Lei 7.620, de 2011, estabelece os seguintes prazos: noventa dias, para os imóveis com área de cinco mil hectares, ou superior; um ano, para os imóveis com área de mil a menos de cinco mil hectares; cinco anos, para os imóveis com área de quinhentos a menos de mil hectares; dez anos, para os imóveis com área de duzentos e cinquenta a menos de quinhentos hectares; treze anos, para os imóveis com área de cem a menos de duzentos e cinquenta hectares; dezesseis anos, para os imóveis com área de vinte e cinco a menos de cem hectares; vinte anos, para os imóveis com área inferior a vinte e cinco hectares.
O Parágrafo 3º do artigo 10 do Decreto-Lei 4.449, de 2002, fixa a data de 20 de novembro de 2003 como início de contagem para esses prazos, ou seja, a partir de novembro de 2013 todos os imóveis com área de duzentos e cinquenta hectares ou maiores são obrigados a proceder com o georreferenciamento.
Assim, é importante frisar que todos os processos administrativos de mesma natureza trazem como objeto a solicitação de certificação dos serviços de georreferenciamento, gerando uma sobrecarga de atividades para a autarquia fundiária. Isso compele o proprietário do imóvel rural a precaver-se e a solicitar o quanto antes o georreferenciamento de seu imóvel sob pena de sofrer elevados prejuízos quando necessitar realizar quaisquer das operações já citadas (venda, partilha, permuta, doação, desmembramento e remembramento, alienação fiduciária, empréstimos agrícolas, etc.). Se empreender no Brasil já é um desafio naturalmente oneroso, o indivíduo ser surpreendido com obrigações legais novas e antigas é uma situação ainda mais desconfortável.
Por tudo o que foi exposto, tem-se que, de acordo com a lei, os proprietários de imóveis rurais estão obrigados a georreferenciar imediatamente seus imóveis, sendo prudente e recomendável que tal operação seja realizada o quanto antes, até mesmo para evitar prejuízos, já que o Incra, não conseguindo expedir a certificação em prazos razoáveis, vem atendendo prioritariamente aos pedidos emergenciais solicitados através de medidas extrajudiciais e judiciais cabíveis. Intenta-se, assim, acelerar de forma legítima o processo de certificação dos imóveis rurais, evitando maiores transtornos aos proprietários e detentores da posse.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

“As ideias devem brigar; os ministros, não”

O presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, defendeu nesta segunda-feira (19/8), que o Supremo Tribunal Federal retome o julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, com “serenidade e equilíbrio”. A afirmação foi feita diante da expectativa de como o colegiado voltará a se reunir depois de, na última quinta-feira (15/8), o presidente do tribunal, ministro Joaquim Barbosa, ter impedido o colega Ricardo Lewandowski de votar e encerrado a sessão.
Para Marcus Vinícius, o julgamento deve seguir “sem adjetivações às diversas opiniões e correntes, próprias de um colegiado em tribunal constitucional de um Estado Democrático de Direito”. De acordo com ele, “a sociedade espera um julgamento imparcial e justo em todas as causas, respeitando-se as divergências, o devido processo legal e o princípio da prevalência da maioria”.
O presidente da OAB disse também que “a prevalência da maioria com o respeito à opinião das minorias é a pedra de toque da democracia”. E concluiu: “As ideias devem brigar. Os ministros, não.”
Discussão
Na última quinta, o ministro Joaquim Barbosa acusou Lewandowski de fazer chicana e usar os Embargos de Declaração para “arrependimento”. Lewandowski, que mais uma vez explorou deficiências da acusação, pediu então que Barbosa se retratasse. O presidente do STF se recusou.
Os ministros se entreolhavam envergonhados com a situação. O decano do Supremo, Celso de Mello, tentou intervir duas vezes, em vão. A discussão fez com que Barbosa encerrasse a sessão — clique aqui para ler sobre a discussão. Lewandowski considera propor uma questão de ordem para que tenha garantido o direito de votar sem interrupções.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Renúncia à meação não pode ser feita no inventário e não dispensa escritura pública

Em decisão unânime, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou provimento a recurso especial de uma viúva de Mato Grosso do Sul que, decidida a abrir mão de sua meação em favor dos herdeiros, buscava a formalização da disposição de seu patrimônio nos autos do inventário do marido.

O pedido foi indeferido pelo juízo sucessório ao fundamento de que meação não é herança, mas patrimônio particular da meeira, sendo, portanto, necessária a lavratura de escritura pública para a efetivação da transferência patrimonial.

A viúva recorreu e o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) reafirmou a necessidade de escritura pública: “A disposição da meação do cônjuge supérstite é ato de iniciativa inter vivos e não se confunde com a sucessão causa mortis. Ademais, a escritura pública é a forma prescrita pela lei como condição essencial para validade de alguns atos, e para tais, torna-se ela imprescindível, nos termos do artigo 108 do Código Civil”.

Entendimentos contrários

No STJ, a viúva alegou não ter condições de arcar com as despesas cartorárias e que a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) aceita a cessão de meação por termo judicial nos autos do inventário.

Ao analisar o caso, a ministra Nancy Andrighi, relatora, disse que, de fato, o acórdão apontado reconheceu a possibilidade de a cessão da meação se dar por termo nos autos, ao equipará-la, de certa maneira, à renúncia da herança.

No entendimento do TJSP, destacou a ministra, a cessão da meação, “embora inconfundível com a renúncia à herança, dela se aproxima ao ponto em que implica efetiva cessão de direitos, de modo que utilizáveis os mesmos instrumentos para sua formalização”.

Posição do STJ
Para a relatora, entretanto, o ato de disposição patrimonial da viúva, caracterizado como a renúncia à sua meação em favor dos herdeiros, não pode ser equiparado à renúncia da herança.

“Verifica-se que o ato de disposição patrimonial pretendido pela recorrente, representado pela cessão gratuita da sua meação em favor dos herdeiros do falecido, configura uma verdadeira doação, inclusive para fins tributários”, disse a ministra.

“Embora seja compreensível a dificuldade da recorrente em arcar com o pagamento dos custos necessários à lavratura de uma escritura pública, para poder transferir aos seus filhos a propriedade da metade do imóvel inventariado, não há possibilidade de se prescindir das formalidades expressamente previstas na legislação civil”, concluiu a relatora.

Abusos do Ministério Público estão em toda parte

“Não se pode servir a um tempo a dois senhores” (Mateus 6, 24), diz a conhecida expressão. Parece que ultimamente o ditado tem ampla incidência aos membros do Ministério Público sobretudo aqueles pertencentes aos estados-membros da federação brasileira.
Com essa breve anotação, quero lembrar aquilo que muitos têm chamado de uma “superafetação de poderes” daquela importante instituição da República brasileira. Será justa a acusação? Vejamos. Como todos sabem, o Ministério Público foi dotado de amplos poderes e competências na Constituição de 1988.
É sabido que o Ministério Público atuou na Constituinte de 1988 com um poderoso “lobby” em defesa das competências que entendia ser mais conveniente para defender a sociedade. Dizem que talvez apenas os militares, o sistema financeiro e a bancada ruralista não ultrapassou o Ministério Público em organização de seu lobby à ocasião.
O problema é que com o tempo, o chamado “lobby” do MP atuou com tal voracidade  para captar garantias de independência  (e inimputabilidade) que nem mesmo a instituição conseguiu evitar os abusos de seus membros.
A regra matriz da competência do Ministério Público, como se sabe, está no artigo 127 da Constituição Federal. Incumbe-lhe defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis.
Inegável a importância de tais atribuições. Não discuto esse ponto. Vem o Ministério Público cumprindo o seu papel ou tem desbordado de seu papel dentro e na política corporativista desviando-se de sua missão primordial?
Chamo a atenção para alguns sérios desvios, alguns atribuíveis a seus membros (homens são falíveis e os promotores de Justiça não são exceção), outros atribuíveis à própria instituição (MP) e a seu regramento.
Como desvios corriqueiros que têm atormentado a advocacia brasileira, tomem a grande incidência de ações promovidas contra os advogados e agentes públicos no legítimo exercício de suas funções.
Não há comarca em que o promotor de Justiça não opine sobre qualquer política pública adotada ou em discussão pelo município. O mesmo ocorre quando se discute políticas públicas na Câmara Municipal. Comportamento adequado e funcionalmente equilibrado? Creio que não.
São muitas as exigências e complexidades do estado e das empresas governamentais, como se sabe. Pois é comum o questionamento do Ministério Público quando o agente público contrata advogado sem licitação, diante das expressas hipóteses previstas na lei de licitações.
Comportamento adequado e funcionalmente equilibrado? Creio que não.
Diante de exageros, ações temerárias, surgem reações naturais de toda a sociedade. O equilíbrio (e a chamada “separação” de poderes) e a natural competência de cada um deles, exige prudência, moderação de toda e qualquer instituição e do agente público, mesmo e sobretudo daqueles destinados à nobre função fiscalizadora.
Um bom exemplo de reação social foi a PEC 37 equivocadamente derrubada pelo Congresso Nacional por temor circunstancial da opinião pública e por uma flagrante manipulação da imprensa, que repetiu sem conhecer os argumentos do Ministério Público.
Na verdade, como todos sabem, houve, novamente, um monumental esforço de lobby e marketing para passar a mensagem da “mordaça”. Muitos sucumbiram a essa versão fantasiosa e manipuladora da realidade.
Em momento algum a PEC 37 pregava a “mordaça” ou a diminuição de seus poderes fiscalizatórios. Apenas reforçava as competências constitucionais diante de sucessivos abusos do Ministério Público em vários campos em que exerce sua “fiscalização” (sic).
Como afirma o professor José Afonso da Silva, um profundo conhecedor do direito constitucional e da Constituição de 1988 (assessorou inclusive os trabalhos desenvolvidos noprocesso constituinte), “o Ministério Público não recebeu da Constituição o poder para promover investigações diretas na área penal”( Parecer PEC 37).
As recentes ações (inquéritos) de investigação “livre”(sem peias) do Ministério Público no campo civil, penal, administrativo, financeiro e tributário, atropelam direitos constitucionais e, portanto, exorbitam totalmente dos limites a ele atribuídos.
Como regra geral o MP evita instaurar inquérito civil, dando oportunidade de defesa ao acusado. Prefere abrir um procedimento investigativo “interno”, para colher o investigado (vítima) de surpresa. Essa é, por exemplo, a fonte de tantas ações de improbidade claramente temerárias
Como ensina José Afonso da Silva no mesmo trabalho, “ na verdade, na prática, serve-se o Ministério Público, ou do inquérito civil ou de procedimento administrativo, diretamente, como meio de proceder a investigações na esfera criminal. Como se disse antes, isso constitui um desvio de finalidade, uma fraude à Constituição que não lhe confere tal poder”.
Até linhas telefônicas têm sido grampeados indistinta e injustificadamente pelo Ministério Público que pretende, em vários campos, substituir-se à ação policial à margem da Constituição Federal. Sabe-se que o Ministério Público tem adquirido sofisticados equipamentos de última geração para captar conversas e “subsidiar”investigações, o que é intolerável. Quem ficalizará o fiscal?
É inadmissível que aquele órgão que pretende (supostamente) defender a sociedade passe a atuar atropelando direitos como se fosse uma verdadeira agência de inteligência governamental.
Entrevistem-se advogados (as) criminalistas, advogados que lidam com o direito público no Brasil, procuradores públicos , agentes públicos de norte a sul do país, e todos responderão em uníssono: Os abusos na atuação do Ministério Público têm aumentado dia a dia.
Além de abusos, o Ministério Público imiscui-se corriqueiramente em assuntos de grande irrelevância social. Tome-se o exemplo da recente mudança de certidão de nascimento de um ministro do Tribunal de Contas da União (cujo registro estava equivocado).
Desencadeou-se um “procedimento investigatório” para saber se o aludido ministro não queria ficar mais um ano no Tribunal antes de se aposentar. Tudo isso apesar da ampla documentação oferecida pelo ministro a imprensa, comprovando o engano do registro. Um verdadeiro disparate!
E por fim há a chamada “politização indevida” da função. Que me perdoem os meus amigos promotores de Justiça, mas não vejo na Constituição brasileira autorização ética ou moral alguma para que promotores de Justiça exerçam cargos e funções, quer na administração pública, quer na iniciativa privada.
Como podem ser independentes e cumprirem o seu nobre papel de serem fiscais da lei e promotores da defesa social se estão incrustados na administração pública federal, estadual e municipal?
E os abusos não vêm somente do setor público. Encontramos promotores de Justiça em toda parte, sobretudo em instituições públicas e privadas de ensino, bem como em cursinhos preparatórios. Se houvesse uma efetiva fiscalização de suas atividades, certamente os corregedores “descobririam” que a carga horária e a dedicação de seus colegas é incompatível com as nobres funções que exercem (ou deveriam exercer) na instituição.
Além disso, citem-se a presença de promotores de Justiça em vários tipos de colegiados, públicos, privados, ou para-estatais, muitas vezes comprometendo a independência funcional apregoada na Constituição, em clara linha de impedimento com as funções exercidas como um todo pelo Ministério Público.
Como podem ter os mesmos direitos e serem equiparados à magistratura nacional se, ao contrário dos magistrados, podem exercer cargos e funções em toda a administração pública brasileira e mesmo em (várias) instituições de ensino por todo o Brasil?
Ao ingressarem nos quadros e fileiras do serviço público e no mercado privado (sobretudo “educacional”) nacional, passam a ser alvo fácil, senão co-autores das mesmas mazelas que estão preordenados a fiscalizar. Alguém pode duvidar dessa afirmação elementar? Cremos que não.
Com inteira razão a crítica procedente de Wallace Paiva Martins Junior ao afirmar:
A possibilidade da dedicação à atividade político-partidária por membros do Ministério Público que se lançam à disputa de mandatos políticos no Poder Executivo ou no Poder Legislativo ou a cessão ou afastamento para integração de membros do Ministério Público a cargos em comissão no Poder Executivo colabora para certa desconfiança na imparcialidade do órgão e de seus membros. Por isso, deve ser completamente extinta, porquanto tende a identificação do Ministério Público como órgão do governo e abastarda a instituição com a aproximação aos interesses político-partidários. Além de outros princípios, viola-se a premissa fundamental de dotação de prerrogativas reforçadas, semelhantes às da Magistratura (vitaliciedade, irredutibilidade estipendial, inamovibilidade, poderes de requisição etc.), instituídas para a consecução das altas funções do Ministério Público. A posição especial do Ministério Público e, máxime, de seus membros como órgão independente no exercício direto ou na ignição ao controle jurídico da Administração Pública (art. 129 II e III, Constituição Federal), torna incompossível. O exercício de atividade política ou governamental na esfera do Poder Executivo. As brechas do art. 128, § 5º, II, e, da Constituição Federal e do art. 29, § 3º, do Ato das Disposições Transitórias são justificadas por interesses corporativos, que não podem se sobrepor ao interesse público primário de imparcialidade derivado da independência. Aliás, no aspecto subjetivo, tais brechas nem sempre renderam bons frutos corporativos ou institucionais. É, no mínimo, lamentável a brecha que o art. 29, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias abre que, dentre outras exceções fruto de poderoso lobby, visa acomodar situações particulares, desnaturando em grande parte o perfil constitucional do Ministério Público inscrito nos dispositivos permanentes da Constituição Federal, para preservação do exercício de atividade político-partidária”.
O desfocado corporativismo domina a instituição que não consegue fazer movimentar suas corregedorias em assuntos sensíveis. Há uma cultura equivocada da necessária “presença” dos agentes do Ministério Público em toda parte. Isso só desgasta e prejudica a função constitucional da instituição, comprometendo sua independência e contribuindo com o crescente decréscimo de sua credibilidade.
De um lado, ninguém acredita seriamente que exista fiscalização e punição para aqueles que desbordem ou abusem de suas prerrogativas, e, de outro, o que fazer quando as próprias regras da instituição endossam comportamentos antiéticos, imorais e abusivos como acabamos de demonstrar?
Desnecessário repetir a conhecida noção de que nem tudo o que é legal atende o princípio da moralidade administrativa e seus standards mais elevados!
É hora da sociedade brasileira, dos movimentos sociais e também da imprensa não se deixarem enganar por jogadas usuais de marketing que escondem as verdadeiras mazelas e abusos daqueles que deveriam, com exclusividade, defender o interesse público e social, em regime de dedicação integral!
Como dizia Edmond Burke, “quanto maior é o poder, tanto mais perigoso é o abuso”, sobretudo quando ele vem de quem deveria defender a sociedade!

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Para tribunais, Serasa fornece dados ilegais

Graças aos serviços da Serasa Experian é possível saber que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso deve ter ido à joalheria Tiffany uma semana antes do último dia dos namorados, no dia 5 de junho, quando a loja consultou seu nome na Serasa. Já o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva parece ter ido às compras nas lojas de departamento Nosso Lar, que tem filiais em Tocantins e no Pará — e buscou saber seu crédito no último dia 7. Também se pode verificar que o perfil do senador Ivo Cassol na Serasa foi consultado pela Petrobras Distribuidora 15 dias antes de ele ser condenado pelo Supremo Tribunal Federal. Já a construtora MRV Engenharia andou procurando mais informações sobre a saúde financeira do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral.
Até o começo da semana, as informações acima podiam ser acessadas por qualquer assinante dos serviços da Serasa, por cerca de R$ 10 a consulta. Depois que a ConJur publicou reportagemrevelando as distorções das avaliações do serviço, repercutida pela colunista Mônica Bergamo, do jornal Folha de S.Paulo, os relatórios sobre esses e outros políticos foram removidos do sistema, segundo o jornal. São diversas as suposições que podem ser feitas com as relações entre os políticos e as empresas que consultaram seus nomes, mas o entendimento da Justiça a respeito tem se firmado em um só: é ilegal. Mostrar os últimos estabelecimentos que consultaram o perfil do consumidor na Serasa vai contra o Código de Defesa do Consumidor, segundo os tribunais de Justiça de São Paulo e do Rio Grande do Sul. 
“Não pode haver, como se pretende, supremacia do interesse dos estabelecimentos comerciais e bancários sobre o do consumidor, invadindo a privacidade deste, com a revelação desautorizada de suas eventuais relações comerciais”, diz acórdão da corte paulista em Ação Civil Pública que condenou a Serasa a pagar R$ 100 mil por manter o cadastro. A decisão é de 17 de janeiro deste ano — cabe recurso.
Segundo o acórdão, cujo relator é o desembargador Carlos Henrique Miguel Trevisan, o registro de consultas anteriores — também chamado de “cadastro de passagens” — vai contra o CDC porque o sistema não dá ao consumidor o conhecimento das informações a seu respeito que constam do banco de dados, impedindo, assim, que possa ser exigida a retificação de eventuais inexatidões anotadas, “além de permitir interpretação imprecisa acerca das informações cadastradas”.
As interpretações em questão vão além da bisbilhotice sobre a vida de famosos — como saber por que o site ingresso.com se preocupou em buscar o crédito do senador Renan Calheiros (foto) em abril deste ano ou por que o Banco do Nordeste andou procurando informações sobre o possível candidato a presidente da República Eduardo Campos. As interpretações que chegam ao Judiciário são de lojistas que, ao verem um histórico de consulta, negam-se a dar crédito a um cidadão, imaginando que ele já esteja comprometido com as lojas ou instituições financeiras que constam na lista.
“O prejuízo e a discriminação fazem parte desse jogo pesado onde empresas avaliam consumidores como números e já não há mais a preocupação com a fidelização do cliente. Sabe-se que o consumo aumenta, e se aquele consumidor não adquirir determinado produto ou serviço, outro virá em seu lugar”, afirma o advogado Rogério Rocha, sócio do escritório Péricles, Rocha, Mundim e Advogados Associados. 
O sistema da Serasa estabelece, com base em dados obtidos para outras finalidades, uma classificação das pessoas segundo sua possibilidade de adquirir crédito, explica o advogado Paulo Donadelli, especialista em Direito Constitucional do escritório Vianna & Gabrilli. “Como se fosse estabelecido um sistema de ‘castas’ de crédito, sem que o cidadão sequer saiba que foi classificado.”
Não é apenas a lista de consultas anteriores que tem chegado às cortes. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina também tem decidido que só a inclusão de dados no sistema sem comunicar ao consumidor em questão é ilegal e que o cidadão merece ser indenizado por isso. Vale dizer que, pelas decisões da corte, o simples fato de o cadastro existir, gerando uma “possível restrição ao crédito”, motiva indenização.
No TJ do Rio Grande do Sul já são várias as ações em que ficou decidido também que é necessária a aprovação do consumidor para que haja um cadastro a seu respeito. “É abusiva a prática comercial de utilizar dados negativos dos consumidores para lhes alcançar uma pontuação, de forma a verificar a probabilidade de inadimplemento. Sem dúvidas, este sistema não é um mero serviço ou ferramenta de apoio e proteção aos fornecedores, como quer fazer crer a demandada, mas uma forma de burlar direitos fundamentais, afrontando toda a sistemática protetiva do consumidor, que inegavelmente se sobrepõe à proteção do crédito”, diz decisão da desembargadora Marilene Bonzanini.
Erros e riscos
Se a própria existência dos dados é um problema para a Justiça e para os consumidores, a qualidade das informações é um problema também para o lojista ou para a instituição financeira que se fia na Serasa para conceder ou negar crédito. Dois dias depois de a revista eletrônica Consultor Jurídiconoticiar que as informações que a Serasa Experian passa ao mercado são pura fantasia, a empresa tirou de seu sistema dados de políticos como Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva, usados como exemplos pela reportagem. O login e a senha usados para acessar as informações também foram cancelados pela Serasa nove horas depois da publicação da notícia.
As informações dos políticos mostram que o serviço prestado pela Serasa é fantasioso. O crédito sugerido para a presidente da República é de R$ 2,1 mil; para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, R$ 778; para Lula (foto), R$ 10.894; e para o presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, R$ 25.896. (veja tabela abaixo)
O serviço também se presta a dizer a renda presumida de cada cliente. Nesses dados também ficam claros os erros. O ministro Joaquim Barbosa, cuja remuneração bruta de R$ 31 mil é pública e consta no próprio site do STF, tem, para a Serasa, renda mediana de R$ 2.986. A presidente da Republica, Dilma Rousseff, teria renda de R$ 3,7 mil.
Para o consumidor, tais distorções são péssimas, simplesmente porque levam muitas vezes a que seja negado crédito a uma pessoa que realmente possui capacidade financeira, explica Ana Paula Oriola de Raeffray, sócia do Raeffray Brugioni Advogados. 
A solução apresentada pela Serasa para a insegurança causada pelos erros em seus cadastros é que os clientes busquem informações de outras fontes que não o serviço que pagam à Serasa para obter. A afirmação está em notificação recebida pela ConJur, na qual, em vez de responder às perguntas feitas pela reportagem, a Serasa Experian exigiu que o site tirasse do ar a notícia que tratava do assunto. 
Dados públicos
Cabe lembrar que o cadastro é feito com diversas informações cedidas pelo poder público. O Tribunal Superior Eleitoral tem discutido um acordo entre a corte e a Serasa que previa o envio de dados de eleitores à empresa. O acordo foi anulado pela presidente do tribunal, ministra Cármen Lúcia, e a corte concedeu prazo para que a Serasa se manifeste.  
Para o advogado Antonio Fernando Pinheiro Pedro, os dados e informações pessoais fornecidos por obrigação legal a tribunais e órgãos públicos constituem direitos públicos individuais constitucionais sob guarda das instituições. Negociar esse patrimônio ou cedê-lo a terceiros por qualquer forma que não seja mediante mandado judicial obtido no bojo de procedimento processual, diz o advogado, “constitui improbidade administrativa”.
É dever do Estado garantir o sigilo, que pode ser afastado em situações excepcionais, como por exemplo, em convênios com outros entes públicos visando melhorar o próprio serviço do Estado, explica o advogado eleitoral Dyogo Crosara. Em recente convênio firmado com o Ministério da Previdência, lembra ele, o cruzamento do cadastro eleitoral com o banco de dados do INSS permitiu checar se pessoas que já faleceram ainda constavam como aptas na lista de eleitores, bem como permitiu o cancelamento de aposentadorias de pessoas que no cadastro eleitoral apareciam como mortas.
Já no convênio com a Serasa "não há interesse público que justifique a quebra do sigilo das informações do cadastro eleitoral, bem como a entidade que receberia os dados não é uma entidade pública, mas sim um ente privado", diz o advogado.
Veja abaixo alguns exemplos da disparidade entre o limite de crédito sugerido pela Serasa Experian e a renda presumida também pela empresa:
NomeLimite de crédito sugeridoRenda presumida
Joaquim Barbosa25.8962.986
Henrique Eduardo Alves15.67616.315
Renan Calheiros12.74111.912
Lula10.8943.232
Ivo Cassol8.1039.757
Sérgio Cabral4.3734.615
Geraldo Alckmin2.93311.110
Daniel Dantas2.7306.516
Tiririca2.19812.553
Dilma Rousseff2.1013.700
José Serra2.0983.416
Abílio Diniz2.04214.230
Aécio Neves1.6609.368
Demóstenes Torres1.6213.014
Nicolau dos Santos Netto1.6002.860
Paulo Maluf1.5512.607
Marina Silva1.5475.508
Natan Donadon1.1651.902
Eduardo Campos9382.971
Fernando Henrique Cardoso7781.207
Protógenes Queiroz7514.788
Carlinhos Cachoeira31913.391
Eike BatistaNão disponível14.462
 

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Perus, pavões e urubus: a relação entre Direito e moral

Prolegômenos: meu vômito epistemológicoLi matéria no jornal O Globo (clique aqui para ler) sobre a farra dos senadores com o ervanário da “viúva” e o material sobre a corrupção envolvendo a compra dos trens em São Paulo.
Já escrevi sobre a relação entre direito e moral. Muito. Em Verdade e Consenso essa questão tem capítulo específico. Posso pecar, aqui, pela repetição. Mas a culpa é da pós-modernidade. Ninguém lê de novo o que já foi escrito tempos atrás. E o tempo não espera. Os fatos nos atropelam. E as colunas acabam sendo capas de sentido desses fatos. Se os criticamos, têm um determinado colorido. Se não os criticamos, passam batidos. No fundo, a tarefa da crítica é descobrir um elefante escondido atrás de uma formiga. É tirar o óbvio do anonimato!
De todo modo, lamentavelmente, uma coisa é certa: parece que não adianta falar das mazelas sobre o mal uso da verba pública e os malfeitos (sic) do andar de cima. Os trens de São Paulo, a Siemens, os cartéis, os usos de verba para combustível pelos senadores, a hospedagem em hotéis de luxo apenas comprovam que essa gente nunca ouviu nem entendeu o recado das ruas, fosse ele antigo ou recente. Continuam a fazer as coisas como se estivéssemos no baile da Ilha Fiscal. Com a diferença de aqui, ali, comparando com hoje, tratava-se de puro amadorismo. Pegássemos a turma do tal baile e fizéssemos uma confrontação com aquilo que se faz hoje com o ervanário da viúva e teríamos a convicção de que o pessoal do século XIX responderia, hoje, por crime de bagatela no Juizado Especial Criminal. Pagariam cesta básica. Amadores, perto dos profissionais pós-modernos.
Nasci no meio do mato, onde esse não tem fecho. De parteira. Não frequento colunas sociais. Quando vejo nossas classes dirigentes andando de aviões para cima e para baixo, governantes e empresários envolvidos em negociatas e depois serem louvados pela imprensa nas colunas sociais (e não só lá), fico pensando: em que país eu nasci? Com isso se explica quem compra os apartamentos de milhões de reais que gente das “demais classes” jamais vai pisar. Carrões que valem 400 ou 500 mil reais... Quem compra isso em um país de miseráveis? Restaurantes que cobram milhares de reais per capita em uma noite. Brasíl(ia) é o país dos empoderados. Tudo (lá) é diferente. E tudo tem fonte única: o dinheiro da Viúva. Do povo. Da rafanalha, gasto a rodo em comissões, negocistas, mais comissões. Fora a dinheirama que gastamos para tentar — sem sucesso — pegar os malfeitores... Esses apartamentos, carrões e barcos são de gente dos quais 90% não resiste a cinco minutos da análise de seu Importo de Renda (de todo modo, isso não adiantaria muito, porque, se pegos, bastaria pagar o valor, antes ou depois de condenado em processo criminal; o ruim é o sujeito cometer furto em terrae brasilis, porque quem furta está lascado!). Para essa gente toda, meu vômito epistemológico. Argh! é a minha onomatopéia para isso tudo.
Para que serve o Direito?Pergunto: pode o Direito, hoje, ser cindido da ética (ou, melhor, da moral)? É ainda possível dizer, como se fazia “antigamente”, que uma conduta era imoral, mas legal?[1] Pois bem. Hoje ninguém nega que o Direito seja um sistema composto por regras e princípios. Nesse contexto, princípios são normas. Afinal, como já disse outras vezes, praticamente todos os livros sobre o tema não negam a tese de que princípios são (sejam) normas (despiciendo dizer que princípios só aplicam a partir de regras e estas se aplicam somente a partir de princípios).
O que ocorre é que, dependendo de como se olha os princípios, estes perdem essa aludida normatividade. Transformam-se em enunciados performativos. Ou mantras. Ou expressões com forteanemia significativa. Valem, pois, nada. É dizer, se os pensamos como “valores”, meros postulados ou “mandados de otimização”, sua normatividade se fragiliza muito. E a “fábrica” de “princípios” não para... Não faz muito tempo, o STJ judicializou o amor, com base no princípio da... felicidade.[2] Nem vou falar do princípio da afetividade, da rotatividade, da ausência eventual do plenário, do deduzido, etc.
Sigo. Com o panprincipiologismo, ocorre uma fragilização daquilo que é ponto central do direito pós-bélico, como diria Mário Losano: o seu elevado grau de autonomia. Repito o que aqui já disse em outras colunas: Direito não é moral. Direito não é sociologia. Direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões a ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador. Ou seja, ele possui, sim, elementos (fortes) decorrentes de análises sociológicas, morais, etc. Só que estas, depois que o direito está posto — nesta nova perspectiva (paradigma do Estado Democrático de Direito) — não podem vir a corrigi-lo.
Não preciso reprisar o que tanto tenho referido. Registro, apenas, que o Direito não ignora a moral, pois o conteúdo de seus princípios depende dessa informação. Todavia, quando o Direito é aplicado, não podemos olvidar dos princípios, tampouco aceitar que eles sejam qualquer moral. Também já expliquei isso em outros textos e aqui não vou me aprofundar.
Este é o custo que temos de pagar para ter um Direito como o de hoje. Que não é igual ao de antanho. No momento de concretização do direito, as questões de princípio se sobrepõem às questões de política. Assim, o direito também deve “segurar” (conter) a moral (e os moralismos). Isso, por exemplo, pode ser visto de forma mais acentuada nas cláusulas pétreas e no papel da jurisdição constitucional.
Imoral, mas legal? Onde está o elefante?Leiamos, só para começar (e poderia citar tantos outros), o seguinte dispositivo da Constituição: “O Brasil é uma República que visa a erradicar a pobreza, garantir a justa distribuição de riqueza, diminuir as desigualdades sociais e regionais, promover os ‘valores’ éticos por intermédio dos meios de comunicação (concessão pública), evitar discriminações etc”. Isto não vale nada? Se não vale, por que não o sacamos da Carta? Ah, ele vale? Então, façamos valê-lo. E já!
Com isso, quero deixar assentado que cada texto jurídico-normativo (regra/preceito) não pode se colocar na contramão desse desiderato, digamos assim, virtuoso (convenhamos, bastante virtuoso), propagado pelo texto da Constituição. Nem estou falando, ainda, do famoso princípio da moralidade (e seus congêneres).
Dizendo isso de maneira mais simples: é fácil concluir que não queremos uma República em que a vigarice seja a regra e que achemos absolutamente normal — e por que não, legal (sic) — o aproveitamento das benesses originárias do espaço público, dando razão, assim, àquilo que Raymundo Faoro denunciava de há muito: uma sociedade sustentada nos estamentos e nos privilégios daí decorrentes.
Ou seja, nem tudo que é “legal” é legal (e, tampouco, constitucional). Vejamos alguns episódios, que se enquadram nesse elevado padrão de autonomia que o Direito alcançou. Há algum tempo parlamentares utilizaram suas cotas de passagens aéreas para levar familiares e amigos, a maioria em caras passagens em classe executiva (ou primeira classe), a passeios nos Estados Unidos e na Europa. Agora o jornal O Globo mostra a “Farra II, a volta”. Veja-se, ademais, que esse uso de passagens aéreas não se restringe ao Congresso...
Quais foram os argumentos de todos os utentes desses privilégios? “Tudo foi feito de acordo com a legislação (leis, decretos, portarias etc.)”. No caso dos parlamentares, estes esgrimiram o “novo regramento”, feito depois dos escândalos de março de 2009, que “legalizou” (sic) as viagens de parentes dos parlamentares com dinheiro público. Para ser fiel ao texto de então: a nova regra invocada dizia que “o benefício pode ser utilizado pelo próprio parlamentar, a mulher ou marido, seus dependentes legais e assessores em situações relacionadas à atividade parlamentar”. Mas nem isso é obedecido...
Inacreditável: as próprias glosas feitas pelo TCU apenas apontaram para os utentes que usufruíram das benesses “fora das autorizações legais” (sic). Uau: quer dizer que, para ser legal, basta fazer uma “leizinha” ou um “regulamentozinho” qualquer? Está o TCU no século XIX? Se for assim, sugiro um decreto determinando o chicoteamento do senador que utilizar a verba para ir ao futebol... Vale? Podemos mandar licitar a compra dos látegos (sem superfaturamento, é claro)?
Outro argumento: “a conduta feriu a ética, a moral, mas não contrariou o Direito...”! Incrível. Quer dizer que o Direito não tem relação com a ética ou a moral? Isso é o que dá a doutrina não ter construído, até hoje, uma teoria da norma. Ficamos por aí falando em “valores”, que “princípios são valores positivados” e, na hora da aplicação, fazemos uma distinção semântico-estrutural entre regras e princípios... Além disso, fazemos dissertações e teses sobre isso... Depois nos queixamos.
Andante. A questão é saber se as virtudes soberanas previstas na Constituição “suportam” essa “legalidade” (mundo de regras que, se não permitem os ab-usos, também não os proíbe..., mandando às favas, com isso, os princípios que regem o Direito Administrativo!). Mais ainda, quero saber como a dogmática jurídica — majoritária no campo administrativo-constitucional — lidará com essas dicotomias (contraposições) “regras-princípios”... Já sei a resposta. A pergunta é retórica.
De todo modo, parece que o ponto de estofo do problema reside na seguinte questão: em nome de um conjunto de regras, praticam-se as maiores ilegalidades há décadas, sem que esse cipoal de regulamentos, portarias, subportarias e pareceres interpretativos (sic) tenha sido colonizado/invadido pelo mundo prático dos princípios. Gosto quando a máquina pública se debruça sobre uma portaria ou um regulamento qualquer. Em vez de discutir o ato, discute-se a partir dele, como uma espécie de “mito do dado”.
O que quero dizer é que, se já ocorreu um “princípio turn” no campo do Direito Administrativo, este ainda precisa ser aprimorado. A permanência de regras dessa má estirpe faz com que se pense que, de fato, não há qualquer força normativa nos princípios...! Princípios no atacado encantam. Já no varejo... desencantam. Decepcionam. E como decepcionam. O enunciado “O Brasil é uma República” ficou vazio de conteúdo. Anêmico. Afinal, o que é uma República?
O Direito fracassou?Minha tese: quem sabe, possamos afirmar que, depois desse novo paradigma do Estado Democrático de Direito, a democracia deve ser feita no e partir do Direito. Bingo. Ferrajoli foi um dos primeiros a perceber isso. E que a política não comanda o direito. Nem a moral. Neste ponto, remeto os leitores para a entrevista que dei para a ConJur sobre o caso Demóstenes (Direito não pode ser corrigido por valores morais).
Os princípios são deontológicos. Logo, funcionam a partir do código lícito-ilícito. Não são valores, repito. Com isso, podemos responder a pergunta “para que serve o Direito?”. Antes de se dizer que uma conduta fere apenas (?) a “moral” ou a “ética” (como definir isso?), não seria melhor olhar com mais acuidade/profundidade o que diz o conjunto de regras e princípios do sistema jurídico? Não seria melhor fazer uma interpretação constitucional do regramento?
Vamos deixar isso bem claro: se uma regra estabelece determinado privilégio ou benesse (por exemplo, que um parlamentar pode utilizar verbas públicas para viajar com a sua família), essa regra é, antes de tudo, inconstitucional. Se o princípio da moralidade não serve para dar suporte de validade a esse regramento, joguemo-lo fora. Livremo-nos dele, pois. E o princípio republicano? Pode existir uma República no interior da qual os agentes públicos possuem privilégios privados que, em nenhuma dimensão, podem ser tidos como garantias funcionais? Se a resposta for pela negativa da normatividade de tais princípios, é melhor, então, pararmos de fazer dissertações e teses dizendo que princípios são normas...!
Quando se diz “isso não é republicano”, o que se está dizendo é que a conduta é reprovável. Fere o princípio republicano. Também fere a igualdade, porque provavelmente tal conduta representa um privilégio (por exemplo, utilizar avião que outras pessoas — a patuleia — não têm acesso). Logo, deve haver uma regra que proíba tal conduta. Ou, se existir uma regra permitindo a conduta, essa regra será inconstitucional, porque estará ferindo os princípios da moralidade, da igualdade e da República.
No caso de condutas “autorizadas” ou realizadas no-“vácuo”-da-não-proibição, a pergunta que o jurista atento deve fazer é: a) qual é a regra que permite a conduta? b) em segundo lugar, se existe uma regra que proíbe a conduta? Por fim, examinará o conjunto normativo à luz dos princípios. E, bingo! Em minutos, o resultado exsurgirá...! Com certeza, não será necessário invocar a “ponderação de valores”. Podem acreditar.
O gambiarrismo jurídico de terrae brasilisPor tudo isso, quero insistir: se o Direito não serve para resolver esses problemas, pode ser extinto (atenção: isso é uma ironia ou um sarcasmo — em terrae brasilis, como disse o finado Millôr, a ironia tem de ser explicada). E, em seu lugar, instalemos uma “ordem moral” (idem, idem ao que está acima entre parênteses — é, pois, um sarcasmo!). Ou uma ordem fundada na ética (ibidem — agora é um hipersarcasmo!).
Consequentemente, essa “nova ordem” não necessitará do direito (que, ao que tudo está a indicar, já-não-serve-para-nada). Talvez, assim, em face das constantes transgressões da moral e da ética, venhamos a corrigir as condutas aéticas e imorais através do.... direito. Ora, viva! Vejam só. Por incrível que parece, teríamos que chamar o direito de volta...! E, pronto. Com o fracasso de uma ordem moral ou ética, paradoxalmente poderíamos recuperar a autonomia do direito. Trágico. E simples, pois!
Graças à Constituição, o direito não deve servir (mais) apenas para justificar condutas imorais. Graças a ela, os juristas não mais precisa(ria)m dizer frases infames e apedêuticas como “o que a autoridade tal fez foi muito feio, mas não feriu o Direito...”! A partir da Constituição, deveríamos poder dizer: a “feiura” da conduta, em alguma medida, já diz respeito aos princípios...!
E que não precisássemos mais dizer apenas que “a atitude de ministro, do secretário ou do governador, ao utilizar um avião de empresa que tem negócios com o Estado, não foi “legal”, mas foi legal (entendam a ironia do “legal”). Que possamos dizer, sobranceiramente: essa atitude é ilegal e, por conseguinte, inconstitucional! Ora, viva (de novo)! Cada coisa no seu lugar, como diria Voltaire, falando do personagem Pangloss (e compreendamos as suas desventuras): “reparem que o nariz foi feito para sustentar óculos. Por isso usamos óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para vestirem calças; por isso usamos calças. As pedras foram feitas para serem talhadas...”.
E eu complemento: a Constituição foi feita para ser cumprida! Ainda que, como diria o otimistaPangloss, “da melhor forma possível”...!
E paremos de fazer gambiarras. Nossa baixa reflexão jurídica produziu um ensino jurídico standard(com câmbio manual, sem ar condicionado, sem direção hidráulica, sem bancos de couro e semairbag) e uma operacionalidade em que a doutrina não doutrina e a jurisprudência é produto da estagioariocracia. Pronto. Graças a isso, continuamos a nos achar muito espertos, cindindo, de um lado, direito e moral e, do outro, quando nos interessa, “moralizando o Direito”. E saímos por aí dizendo que “princípios são valores...” (não aguento mais ouvir isso; cá para nós, isso é muito chato). Com isso, o sujeito pode utilizar o dinheiro da cota de passagem para abastecer jatinho particular... E, quiçá, meter a mão no dinheiro da viúva via consórcios (sic) de empreiteiras. “Combina-se” tudo antes e, pronto. Será “só imoral...”. Será “feio, mas... Ou seja, nossa relação “direito-moral” é, mesmo, produto de uma gambiarra jurídica, como no conto japonês (que circula por aí) sobre o surgimento do Peru (a ave), invenção que parece ter dado errada, senão vejamos:
Em uma planície, viviam um urubu e um pavão. Certo dia, o Pavão refletiu: — “Sou a ave mais bonita do mundo animal, tenho uma plumagem colorida e exuberante, porém nem voar eu posso, e não mostrar minha beleza. Feliz é o urubu que é livre para voar para onde o vento o levar.”
O urubu, por sua vez, também refletia no alto de uma árvore: — “Que ave infeliz sou eu! A mais feia de todo o reino animal e ainda tenho que voar e ser visto por todos. Quem me dera ser belo e vistoso tal qual aquele pavão.”
Foi quando ambas as aves tiveram uma brilhante ideia e, a partir de um acordo de líderes, onde rolou muita emenda parlamentar, juntaram-se e fizeram um cruzamento (os sistêmicos poderiam chamar a isso de “acoplamento estrutural”) entre eles, gerando um descendente que voasse como o urubu e tivesse a graciosidade do pavão. Bingo. Nasceu o peru, que é feio pra caramba e não voa!
Moral da história: se a coisa tá ruim, não inventa! Gambiarra só dá... bom, os leitores sabem o que quero dizer! Gambiarra é isso que está aí. Gambiarra é... esse ensino jurídico, a prova da Ordem, os livros simplificadores, os “puxadinhos hermenêuticos”, os dribles “da vaca hermenêuticos”, os concursos quiz show, a baixa reflexão jurídica, o “novo” Código de Processo Civil que já nasce velho, o “novo” Código de Processo Penal que não consegue superar o problema da “livre apreciação da prova”, o velho Código Penal, a commonlização do direito, a ponderação de regras, a ponderação de princípios... Enfim, são os nossos perus que estão por aí: feios e não voam! E ainda fazem muito barulho por nada... Talvez por isso se diga seguidamente: a conduta de fulano foi “feia”, mas “dentro da lei”... Pobre lei!

[1] Não incluo nessa discussão as condutas criminosas stricto sensu. Vícios e comportamentos não devem ser punidos através do direito penal, em face da secularização. Assim, tenho defendido – com base na secularização do direito, desde o dia 5 de outubro de 1988, a não recepção da lei das contravenções penais. Portanto, é de outra coisa que aqui estou tratando.
[2] Antes que alguém me faça uma crítica invocando a Constituição americana, remeto o leitor ao meu Compreender Direito, RT, 2013, onde explicito essa questão.