terça-feira, 3 de dezembro de 2013

O sistema judicial é seletivo e sacrifica o mais fraco

Na semana que passou, o site Congresso em Foco publicou reportagem sobre os disparates do sistema penitenciário brasileiro.[1] Chama a atenção para o fato de que o sistema penal como um todo é seletivo, pois considera crimes ou pune de modo mais severo atos que podem ser praticados, preponderantemente, pelas camadas menos favorecidas da população.[2] O resultado disso é visto nas prisões brasileiras.
A matéria confirma o que, há poucos dias, disse o ministro Luís Roberto Barroso: “Para ir preso no Brasil, é preciso ser muito pobre e muito mal defendido. O sistema é seletivo, é um sistema de classe. Quase um sistema de castas”.[3]
Pouco ou nada falamos sobre esse estado de coisas. Mas, como afirmei em outro texto desta coluna, não se trata de mero conformismo. Afinal, não apenas vivemos como se não tivéssemos nada a ver com problemas como esses. Beirando ao cinismo, chegamos a encontrar justificativas para que as coisas sejam como são.[4] Assim como, por exemplo, a mesma sociedade que critica a violência decorrente do tráfico de drogas o alimenta, consumido carreiras em baladas chiques.
Os problemas acontecem não apenas no âmbito do processo penal. O acesso das pessoas mais pobres à Justiça, no âmbito civil, também é difícil. Exemplos: a Defensoria Pública ainda encontra-se deficitária, em boa parte do Brasil;[5] em alguns estados do país, o valor das custas processuais é excessivamente elevado; as sedes dos tribunais, em muitos casos, encontram-se muito distantes da comarca ou subseção judiciária, o que torna dispendioso o deslocamento do advogado da parte para acompanhamento da causa;[6] etc.
Mas, se de um lado faltam investimentos ou gestão de recursos financeiros que olhem para as pessoas mais fragilizadas, o que há, do outro lado?
Há exemplo recente, que bem demonstra o modo como o Estado pode criar leis “seletivas”, também no âmbito civil. Refiro-me à Lei 12.663/2012, conhecida como “Lei da Copa”.
Tenho defendido que essa lei padece de inconstitucionalidade.[7]
Há na “Lei da Copa” disposições que revelam a absoluta subserviência do Estado brasileiro à Fifa, como o artigo 23, segundo o qual “a União assumirá os efeitos da responsabilidade civil perante a Fifa, seus representantes legais, empregados ou consultores por todo e qualquer dano resultante ou que tenha surgido em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado aos Eventos”, ou o artigo 53, que isenta “a Fifa, as Subsidiárias FIFA no Brasil, seus representantes legais, consultores e empregados” do adiantamento de custas judiciais e estabelece, ainda, que eles “não serão condenados em custas e despesas processuais”.[8]
O artigo 68 da Lei 12.663/2012, ao afastar a incidência de vários dispositivos da Lei 10.671/2003(Estatuto da Defesa do Torcedor), viola, a meu ver, os artigos 5º, inciso XXII, e 170, inciso V, da Constituição, mas é, sobretudo, um dispositivo imoral, concebido com o intuito de favorecer uma pessoa e o grupo com ela relacionado em detrimento do torcedor, protegido pela Lei 10.671/2003.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que isenta a Fifa de uma série de obrigações, a referida lei cria tipos penais específicos que tutelam os interesses da entidade (cf. artigos 30 ss. da “Lei da Copa”).
Vê-se, pois, que a “Lei da Copa” foi criada para proteger uma pessoa ou grupo em detrimento do povo brasileiro. Nenhuma surpresa, pois, como afirmam os dirigentes da Fifa, menos democracia é melhor para se organizar uma Copa.[9]
O Estado e seus principais agentes, quando realmente querem, agem para mudar as coisas. Mas o Estado, em todos os seus níveis e dimensões, existe para servir à sociedade, e não a uma pessoa ou a um determinado grupo. Deve o Estado atuar com o objetivo de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, como diz a Constituição (artigo 3º, inciso I). Solidário é o Estado se tem interesse na sociedade, pois solidariedade significa, essencialmente, importar-se e, no caso, o Estado deve importar-se, essencialmente, com o povo (CF, art. 1º, parágrafo único). Esse, pois, é o sentido, tanto como motivo da existência quanto como rumo a ser seguido pelos órgãos do Estado.
Assim, todos os agentes públicos devem atuar em prol da sociedade, e não do próprio aparato estatal e, evidentemente, não de interesses pessoais, próprios ou de pessoas ou grupos específicos, em detrimento do bem comumNão sendo assim, restará ao Estado apenas a forma estrutural, desvinculada do serviço que lhe dá sentido, que é cuidar dos interesses do povo.
O sistema judicial, penal ou civil, não pode ser seletivo, ou de castas.

[1] Disponível aqui.
[2] Defendo, na obra Constituição Federal comentada (2. ed., Ed. Revista dos Tribunais, 2013, comentário ao artigo 5.º, XL), que a criação de tipos penais deve ser orientada pelo arcabouço constitucional. Há situações em que a norma constitucional expressamente destaca alguns bens jurídicos, como merecedoras de atenção do legislador por ocasião da elaboração de leis penais. Esse modo de pensar, segundo nosso entendimento, não deve ser considerado apenas quando há disposição expressa no texto constitucional, acerca da criminalização de determinada conduta. O bloco constitucional, integralmente considerado, deve servir de orientação, pautando o legislador na eleição de condutas a serem criminalizadas e no estabelecimentos de penas que lhes sejam adequadas. Com efeito, há valores claramente estabelecidos na Constituição com primazia. Assim, por exemplo, devem merecer tratamentos diferentes, de um lado, as condutas que contrariem os fundamentos e objetivos do Estado brasileiro (artigos 1.º e 3.º da Constituição), ou que, sacrificando direitos fundamentais, tenham elevado alcance social, e, de outro, as infrações penais de menor potencial ofensivo (CF, artigo 98, I). As regras que constroem tipos penais, assim, devem concretizar a aspiração constitucional.
[3] Voto disponível aqui, e, em vídeo, aqui.
[4] Cf. o que escrevi no texto intitulado “Pelo fim da jurisprudência defensiva: uma utopia?”, nesta coluna, disponível aqui.
[5] Cf. mapa da Defensoria Pública no Brasil elaborado pelo Ipea e pela Anadep, disponível aqui.
[6] No caso da Justiça Federal, a existência de apenas cinco Tribunais Regionais coloca-os ainda afastados do local em funciona o juízo de primeiro grau. A Emenda Constitucional 73/2013 inseriu o § 11 no artigo 27 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para criar os Tribunais Regionais Federais da 6.ª, 7.ª, 8.ª e 9.ª Regiões. Os efeitos da referida Emenda, porém, foram suspensos por liminar concedida pelo Presidente do STF, Ministro Joaquim Barbosa (cf. ADIn 5.017-MC, j. 17.07.2013, disponível aqui).
[7] Escrevi a respeito na Constituição Federal comentada, cit., comentário ao artigo 217.
[8] Tramita, no STF, Adin contra os dispositivos mencionados, dentre outros (cf. Adin 4976).
[9] Cf. reportagem publicada aqui.
José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. Acompanhe-o noTwitter, no Facebook e em seu blog.

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