quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Permanência de estrangeiros versus prova de estadia legal


Os fluxos migratórios entre os mais diversos países do mundo constituem um fenômeno de longa data. Demonstrando uma realidade salutar a permitir a integração entre variadas culturas, a migração dos povos entre países não pode, todavia, sujeitar-se unicamente ao bel prazer de quem migra, devendo restar adstrita à legislação soberana de cada nação.

No Brasil, o amparo aos estrangeiros que aqui buscam se fixar ou àqueles que apenas aqui comparecem a turismo, de forma recreativa ou temporária (para estudo, trabalho, atividades religiosas, desportivas) é, antes de tudo, constitucional. Da Constituição Federal decorre, por exemplo, o tratamento igualitário entre brasileiros e estrangeiros previsto no “caput” de seu artigo 5º, a livre locomoção conferida a qualquer pessoa no território nacional em tempo de paz (inciso XV do mesmo artigo) e o princípio da dignidade da pessoa humana, sendo este um dos fundamentos da República Federativa do Brasil constante no artigo 1º da Carta Magna.

Em se tratando de estrangeiros que pretendem se fixar de forma definitiva no país existem, basicamente, três tipos de pedido de permanência: com base em filho brasileiro, com base em cônjuge brasileiro, e por reunião familiar, todas elas amparadas pela Resolução Normativa 36/99, do CNIG (Conselho Nacional de Imigração).

Cumpre salientar que referidas modalidades de permanência não provêm da transformação do visto de turista para permanente, prática essa, aliás, vedada pelo artigo 38 da Lei 6.815/80:

Artº 38: “É vedada a legalização da estada de clandestino e de irregular, e a transformação em permanente dos vistos de trânsito, de turista, temporário (artigo 13, itens I a IV e VI) e de cortesia.”

Saliente-se que o artigo supracitado permanece em pleno vigor, sendo afastado somente em casos muito específicos, como o previsto no artigo 1º do Decreto 6.736/09 (de 12/01/09), o qual prevê a possibilidade de transformação de turista para permanente aos nacionais desses países que se encontrem no território do outro (nesse caso, o Tratado Internacional — Acordo Brasil / Argentina — foi incorporado à legislação brasileira com força de lei ordinária, sobrepondo-se à vedação do artigo 38 da Lei 6.815/80). Frise-se, portanto, que as mencionadas modalidades de permanência não decorrem da lei 6815/80, mas da RN 36/99 do CNIG. Isso tudo em consonância com o disposto no artigo 17 da Lei 6.815/80, qual seja:

“Art. 17. Para obter visto permanente o estrangeiro deverá satisfazer, além dos requisitos referidos no artigo 5, as exigências de caráter especial previstas nas normas de seleção de imigrantes estabelecidas pelo Conselho Nacional de Imigração.”

Os estrangeiros que pretendem se fixar de forma definitiva no Brasil podem, por conseguinte, tanto já virem de seu país de origem com o visto de permanente aposto em seu passaporte, como entrar no Brasil de forma regular (como turista, por exemplo) e aqui solicitar sua permanência definitiva no país. Tal interpretação extrai-se dos artigos 1º, parágrafo único, e 8º da RN 36/99 do CNIG transcritos a seguir:

“Art 1º — O Ministério das Relações Exteriores poderá conceder visto temporário ou permanente, a título de reunião familiar, aos dependentes legais de cidadão brasileiro ou de estrangeiro residente temporário ou permanente no País, maior de 21 anos.

Parágrafo único. As solicitações de visto de que trata esta Resolução Normativa serão apresentadas às Missões diplomáticas, Repartições consulares de carreira ou Vice — consulados com jurisdição sobre o local de residência do interessado.

“Art 8º — O Ministério da Justiça poderá conceder a permanência definitiva de que trata esta Resolução Normativa, quando o estrangeiro se encontrar legalmente no país.”

Da análise do artigo 8º supracitado, nota-se que o Ministério da Justiça somente poderá conceder a permanência definitiva (por filho brasileiro, cônjuge brasileiro ou por reunião familiar) ao estrangeiro que se encontrar legalmente no Brasil. Tal exigência decorre, também, da interpretação teleológica do artigo 38 da Lei 6.815/80:

Artº 38: “É vedada a legalização da estada de clandestino e de irregular, e a transformação em permanente dos vistos de trânsito, de turista, temporário (artigo 13, itens I a IV e VI) e de cortesia.”

Conforme referido dispositivo legal, denota-se que, fora as leis de anistia (a partir das quais se busca, justamente, regularizar os estrangeiros irregulares no Brasil) ou de outras normas específicas (como no caso do Acordo de Residentes no Mercosul — regulamentado pelo Decreto 6.975/09 — que, em seu artigo 3º, parágrafo 2º, franqueia o registro de temporário aos estrangeiros independente da condição migratória em que houverem ingressado no país, sendo, inclusive, isentos de multas), permanece em pleno vigor a exigência da prova da estada legal no país aos ádvenas que desejem obter sua permanência definitiva no Brasil.

Ocorre, todavia, que a realidade fática nem sempre se amolda às previsões legais. É muito comum o caso em que o estrangeiro encontra-se de forma irregular no Brasil (seja por haver ingressado no território nacional como clandestino ou, ainda, tendo ingressado como turista, haver ultrapassado sua estada legal no país) e apresenta-se à Polícia Federal para protocolar seu pedido de permanência definitiva. Nesse caso, como conciliar a exigência da estada legal no país com o as previsões de nosso ordenamento jurídico que amparam os estrangeiros? Para tal análise, prudente se faz a separação da questão da permanência com base em filho ou cônjuge brasileiro e a permanência com base em reunião família.

Conforme consta no artigo 8º da RN 36/99 do CNIG, a estada legal do estrangeiro no país é condição para que o Ministério da Justiça conceda a permanência definitiva no Brasil ao mesmo. Nota-se, contudo, que, em homenagem ao direito de petição constitucionalmente previsto no artigo 5.º, XXXIV, “a”, da CF, ainda que o estrangeiro encontre-se de forma irregular no país, ser-lhe-á permitido “protocolar” o seu pedido de permanência definitiva no país, bem como receber do órgão administrativo resposta quanto ao deferimento ou indeferimento de seu pedido.

Ocorre um impasse, todavia, nos casos em que o estrangeiro possui filho ou cônjuge brasileiro (nas condições impostas pelo art. 75 da Lei 6.815/80), encontra-se em estada irregular e requer a permanência no país. Cumpre salientar que, por força do artigo 75, II, “a” e “b” da Lei 6.815/80, o estrangeiro que se enquadrar nas condições do referido artigo não pode ser expulso do Brasil. Vejamos:

Artº 75. Não se procederá à expulsão:

II — quando o estrangeiro tiver:

cônjuge brasileiro do qual não esteja divorciado ou separado, de fato ou de direito, e desde que o casamento tenha sido celebrado há mais de 5 (cinco) anos; ou

a) filho brasileiro que, comprovadamente, esteja sob sua guarda e dele dependa economicamente.”

Considerando a condição de inexpulsabilidade do estrangeiro que possui filho ou cônjuge brasileiro, passou a ser firme a jurisprudência brasileira no sentido de entender que o estrangeiro que se enquadre em tal situação também não pode ser deportado. Ora, a deportação é justamente a medida de retirada compulsória aplicável aos estrangeiros que se encontrem de forma irregular no país. Por conseguinte, se o ádvena que possui filho ou cônjuge brasileiro não pode ser expulso ou deportado do Brasil, ainda que se encontre em estada irregular no país, razoável se faz que o mesmo possa obter sua permanência caso cumpra os demais ditames legais.  

Caso diverso, contudo, é o do estrangeiro que se encontra em estada irregular no país e requer sua permanência definitiva com base em reunião familiar. Muito embora o ádvena em tal condição também possua direito de petição, cumpre salientar que o mesmo não se encontra amparado pela condição de inexpulsabilidade (ou da impossibilidade de sofrer deportação). Desse modo, a menos que referido estrangeiro encontre-se em situação muito peculiar (o que só pode ser visto caso a caso) a indicar a incidência de princípios maiores, como o da dignidade da pessoa humana, ou o da proteção à família, previsto no artigo 226 da Constituição Federal, razoável pode vir a ser a negativa de seu pedido de permanência definitiva no Brasil.

Nota-se, por fim, que o deferimento da permanência ao estrangeiro que preencher todos os requisitos legais constitui direito público subjetivo do requerente, não sendo aquela concedida caso falte o cumprimento de algum dos citados requisitos.

Nesse diapasão, cabe concluir, em homenagem ao princípio da soberania, que a legislação migratória de cada nação há de ser respeitada, somente podendo ser avaliada a viabilidade do afastamento de alguma exigência legal para a concessão da permanência analisando-se as situações “in concreto”.

Por: Delano de Sousa Tschiedel

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